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Proc. nº 212/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I
1. Em autos de contra-ordenação instaurados pelos Serviços de Fiscalização Tributária da Direcção Distrital de Finanças de Viana do Castelo contra o contribuinte A..., com residência em Pedreira, Cerdal, concelho de Valença, foi-lhe imputada a contra-ordenação de omissão da requisição escrita para aquisição de livros de facturas a terceiros, prevista no art. 10º, nº 1, do Decreto-Lei nº 45/89, de 11 de Fevereiro, vindo a ser-lhe aplicada coima no montante mínimo de 200.000$00, previsto no art. 13º do mesmo diploma.
Inconformado, interpôs o contribuinte recurso para a Tribunal Tributário de 1ª Instância de Viana do Castelo.
Através de despacho de fls. 37 e vº, foi julgado procedente o recurso interposto pelo contribuinte arguido. Para tal, o Senhor Juiz desaplicou a norma do nº 1 do art. 35º do Código de Processo Tributário, com fundamento em inconstitucionalidade, considerando que a mesma, ao estabelecer um prazo de prescrição de 5 anos, superior aos prazos gerais de prescrição de 1 e 2 anos previstos nos arts. 17º e 27º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (na redacção do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro) e até ao prazo prescricional para o procedimento por certos crimes, violava a Constituição. Escreveu-se nesse despacho:
' Compreende-se mal, do nosso ponto de vista, que haja prazos de prescrição de procedimento por contra-ordenações superiores aos de crimes, e, mais insólito ainda, ao nível dos existentes por crimes que podem ser punidos com pena de prisão de 5 anos, digo, de 4 anos e 364 dias - vide alíneas d) dos citados artigos [arts. 117º, nº 1, do Código Penal de 1982 e 118º, nº 1, do Código Penal de 1995]. Parece, por outro lado que os crimes fiscais são punidos com penas mais leves que os crimes correspondentes previstos no Código Penal, donde não poder dizer-se que a matéria fiscal é particularmente sensível, a justificar medidas de excepção. Em suma, não vemos razão para que o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional fiscal seja superior aos previstos no citado DL 433/82. Pensamos, pois, que o dito nº 1 do art. 35º contém uma disposição inconstitucional - cuja aplicação recusamos por violação dos princípios do Estado de direito democrático e da igualdade, contidos nos arts. 9º, b) e 13º, nº 1, da lei fundamental'.
Notificado desta decisão, dela interpôs recurso o agente do Ministério Público, recurso que foi admitido por despacho de fls. 41.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas alegou a entidade recorrente, a qual formulou as seguintes conclusões:
'1º- A relevância das funções cometidas pela Lei Constitucional ao «sistema fiscal» constitui suporte material bastante para o estabelecimento pelo nº 1 do artigo 35º do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº
154/91, no exercício da autorização legislativa concedida pela Lei nº 37/90, de um regime de prescrição do procedimento em sede de contra-ordenações fiscais mais desfavorável, no que toca à sua duração, para os infractores.
2º- O estabelecimento de um prazo prescricional de 5 anos para as contra-ordenações fiscais não constitui, deste modo, solução legislativa arbitrária ou discricionária, violadora dos princípios constitucionais da igualdade ou do Estado de direito democrático.' (a fls. 49-50)
Concluiu no sentido de ser julgado procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivo que a tal obste, passa a conhecer-se do objecto do recurso.
II
4. Dispõe o art. 35º, nº 1, do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril:
' O procedimento por contra-ordenações fiscais prescreve no prazo de cinco anos a contar do momento da prática da infracção.'
O diploma que aprovou o Código de Processo Tributário foi editado pelo Governo no exercício da competência conferida pela Lei nº 37/90, de 10 de Agosto. O art. 2º, nº 4, alínea a), desta lei de autorização legislativa indicou como um dos pontos a ser acolhido no diploma autorizado 'a fixação em cinco anos do prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional e das coimas'.
Manteve-se, assim, o prazo de prescrição do procedimento nas transgressões fiscais previsto no § 1º do art. 115º do Código de Processo das Contribuições e Impostos de 1963, ampliando-se os prazos prescricionais de 1 e 2 anos previstos no Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro.
Com a ampliação daquele prazo para 5 anos pretendeu o legislador harmonizar o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional com o prazo de caducidade do direito de liquidação de impostos, atendendo à acessoriedade das obrigações infringidas em relação à dívida de imposto. Como referem A. Barros Lima Guerreiro e M. Silvério Elias Mateus, 'um prazo mais curto de prescrição do procedimento por contra-ordenações fiscais dificultaria a liquidação das obrigações tributárias no prazo legal, retirando qualquer incentivo à regularização tributária do contribuinte no período que faltasse para a caducidade da liquidação', criando 'situações de desigualdade entre os infractores' (Código de Processo Tributário Comentado, Lisboa, 1991, pág. 68).
5. Violará a norma que fixou agora o prazo prescricional do procedimento pela prática de contra-ordenações os princípios constitucionais da igualdade e do Estado de direito democrático, como se sustentou no despacho recorrido?
Responde-se negativamente à questão, seguindo de perto a argumentação acolhida no acórdão nº 302/97, da 2ª Secção do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II Série, nº 138, de 18 de Junho de
1997).
Depois de recordar que o princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, através da consagração de regimes diversos para situações diversas, proibindo, porém, a consagração de discriminações sem qualquer fundamento razoável, nomeadamente diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicas exemplificativamente no nº 2 do art. 13º da Constituição, escreveu-se neste acórdão:
' Ora, a esta luz não vê o Tribunal como possa considerar-se que a norma do artigo 35º, nº 1, do Código de Processo Tributário, ao estabelecer um prazo prescricional para as contra-ordenações fiscais mais longo do que o estatuído para as contra-ordenações em geral, encerra uma desigualdade de tratamento arbitrária, sem fundamento razoável ou material bastante dos arguidos em processo de contra-ordenação fiscal em comparação com os arguidos em outros processos de contra-ordenação. É que, por um lado, toda a nossa tradição jurídica vai no sentido de se fixar um prazo de prescrição das transgressões que actualmente são contra-ordenações fiscais superior ao que era estabelecido para as outras transgressões. Por outro lado, como sublinha o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, «a relevância das funções cometidas pela lei fundamental ao 'sistema fiscal' (artigos 106º e 107º da Constituição da República Portuguesa) constituirá suporte material bastante para legitimar o estabelecimento de um regime especial de prescrição do procedimento contra-ordenacional fiscal menos favorável aos infractores, dificultando e desincentivando a fuga ao cumprimento dos deveres essenciais à satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais entidades públicas e à realização de relevantes objectivos de justiça social (...)»' (deve notar-se que, a partir da quarta revisão constitucional os artigos referentes ao sistema fiscal são os artigos 103º e 104º).
Bastará, de resto, atentar no caso sub judicio para se alcançar que a detecção da infracção contra-ordenacional imputada ao recorrido ocorreu durante uma acção de fiscalização realizada à contabilidade de um outro contribuinte, fornecedor do arguido. Ora, é manifesto que o carácter 'não público' ou não patente da prática das contra-ordenações fiscais cria dificuldades acrescidas aos serviços de fiscalização tributária, o que constitui causa de uma distinção de regime que é materialmente fundada e não arbitrária.
6. No despacho recorrido imputa-se à norma desaplicada a violação do princípio do Estado de direito democrático.
Não se vê que a norma em causa viole tal princípio.
Reconhecendo que houve ampliação do prazo prescricional estabelecido em 1990 pelo Código de Processo Tributário de 1993, tal ampliação de prazo prescricional haverá de ser considerada à luz do disposto nas normas de Direito Transitório sobre alteração de prazos (art. 297º do Código Civil, cujas normas são aplicáveis no domínio fiscal - neste sentido Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão, Código de Processo Tributário Comentado e Anotado, 3ª ed., Coimbra, 1997, pág. 101).
Tendo a ampliação do prazo prescricional sido autorizada por lei parlamentar e estando estabelecida no diploma autorizado, dificilmente se vislumbra qualquer violação do princípio do Estado de direito democrático.
7. Improcedem, assim, as razões que levaram ao julgamento de inconstitucionalidade.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser reformulado em conformidade com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Março de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa