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Proc. nº 767/96
1ª Secção Cons: Rel. Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. No Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação contra A..., imputando-lhe o cometimento de um crime de difamação agravada, previsto e punível pelos artigos 164º, nº1, 167º, nº 2, e
168º, nº 1, do Código Penal.
O arguido requereu a abertura de instrução, suscitando várias nulidades: da notificação da acusação por edital - como questão prévia, e ainda de competência do Ministério Público para a constituição de arguido, e da pronúncia. Essas nulidades, dizia, concretizavam uma interpretação das normas dos artigos 57º, 58º, 86º, 113º e 335º do Código de Processo Penal, em que eram contrárias aos artigos 25º, 26º, 32º e 205º, da Constituição da República.
Em despacho de 26 de Junho de 1996, o Sr. juiz julgou improcedente a nulidade invocada da notificação por edital e rejeitou, por extemporâneo, o requerimento para abertura da instrução.
O arguido interpôs recurso desse despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em requerimento autónomo, interpôs ainda recurso para o Tribunal Constitucional, com invocação do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Em despacho de 20 de Setembro de 1996, o Sr. juiz admitiu o recurso interposto para a Relação e não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional. Disse sobre este recurso:
'(...) Veio A... interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida a fls. 261 a 263, com fundamento no disposto na alínea b), do nº 1, do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15.11..
Estabelece a citada disposição legal que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A decisão da qual o Recorrente vem interpor o recurso traduz-se num despacho que indeferiu, por intempestivo, um requerimento para abertura de instrução por ele apresentado.
Tal decisão apenas se debruçou sobre a questão da não apresentação em prazo do requerimento instrutório.
É certo que no seu requerimento o Recorrente suscita uma questão da constitucionalidade da constituição como Arguido por parte do Mº Público. Porém, tal questão não chegou a ser objecto de apreciação por parte do Tribunal - nem sequer implicitamente como pretende o Recorrente - por se ter, desde logo, decidido ser o requerimento extemporâneo.
Assim, entendemos que a decisão ora objecto de recurso não aplicou qualquer norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada, não sendo quanto a ela admissível recurso ao abrigo da citada disposição legal.
Pelo exposto, ao abrigo do artº 76º, nº 2, da Lei nº 28/82, de
15.11. não admito o recurso para o Tribunal Constitucional interposto a fls. 272 e ss..
A... deduziu reclamação desse despacho para o Tribunal Constitucional. Assim:
'(...) Após inquérito em que não foi ouvido e em que foi constituído arguido pelo MºPº sem que disso tivesse tido conhecimento, o reclamante, que exerce funções universitárias nos E.U.A., onde reside, veio a ser acusado do crime de abuso de liberdade de imprensa.
A acusação foi-lhe notificada irregularmente através de edital publicado, ao que consta dos autos, em casa da sogra.
Do edital não consta a nomeação de defensor oficioso, nem a identidade deste.
O juíz do 6º Juízo Criminal recebeu a acusação e reproduziu-a, nomeando então, e só então, defensor oficioso ao ora reclamante.
Dos autos de inquérito já constava que o advogado do arguido em Portugal era o signatário - J. A. Pires de Lima - como tal reconhecido pelos investigadores.
Quer isto dizer que, quando foi nomeada defensora ao arguido, o tribunal sabia quem era o advogado escolhido por ele.
Mesmo assim, desrespeitou a vontade do arguido e nomeou-lhe outro.
Quando recebeu pelo correio as cópias da acusação e pronúncia, a defensora nomeada - Dra. Maria Luisa Fonseca, consultou os autos e, ao ver referido o Dr. J.A. Pires de Lima como advogado do arguido, logo com este contactou.
Alertado pela defensora nomeada, logo o reclamante requereu abertura de instrução e, além disso, embora no mesmo requerimento, arguiu duas nulidades do processo.
- a constituição de arguido pelo MºPº e
- a nomeação de defensor oficioso de pessoa diferente do advogado que dos autos constava ter sido o escolhido pelo arguido.
O juiz a quo não recebeu a instrução por a considerar fora do prazo.
Então o reclamante interpôs dois recursos:
- um recurso ordinário para o Tribunal da Relação da decisão que julgou extemporânea a instrução e
- um recurso para o T.C. por considerar que aquela mesma decisão implicitamente decidira que estavam sanadas as invocadas nulidades.
Com efeito, ao invocar as nulidades, embora no requerimento de instrução, o arguido fê-lo autonomamente.
Por outro lado, em relação à constituição de arguido pelo MºPº, considerou o ora reclamante que resultava de uma interpretação dos artigos 57º e
268º do C.P.P. manifestamente ofensiva dos artigos 26º, 32º e 205º da C.R.P., por constituir acto limitativo dos direitos e liberdades do cidadão, da exclusiva competência dos Tribunais.
Quanto à nulidade de nomeação de defensor oficioso, estando identificado no processo de facto quem era o advogado do arguido ausente, invocou o recorrente a inconstitucionalidade que resultava da ofensa da norma do artigo 32º (3) da C.R.P. e do artigo 8º da Lei Fundamental, por força dos artigos 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
E, realmente, só uma errada interpretação das normas dos artigos 57º e segs., nomeadamente do artigo 61º do C.P.P. permitiram que o processo crime tivesse chegado à pronúncia sem que tivesse sido respeitada a escolha do advogado que constava dos autos ou sequer tivesse sido nomeado qualquer defensor ao arguido.
É que se tivesse sido respeitado o nº 3 do artigo 32º da C.R.P., logo que foi constituído arguido, o MºPº devia ter promovido indicação de defensor para receber as notificações, como resultado dos artigos 57º e segs. e especificamente do artº 61º.
Só uma interpretação restritiva e inconstitucional destas normas
(artigos 57º e segs. do C.P.P.) permitiram ao tribunal alhear-se do advogado escolhido pelo arguido, desrespeitar a vontade deste e tornar tais normas ofensivas do artigo 32º da C.R.P. e das garantias da defesa nele consagradas.
Tem razão o tribunal a quo quando considera que o recurso para o T.C. da decisão relativa à constituição de arguido não tem autonomia em relação ao recurso de decisão que não recebeu a instrução por a julgar extemporânea.
Realmente, a decisão de extemporaneidade baseia-se na acusação edital e esta supõe a constituição de arguido.
Daí que o recurso ordinário seja o meio para debater esta questão.
Mas já não é assim, em nosso entender, quanto à nomeação do defensor oficioso.
Esta não consta do edital.
O Tribunal Criminal notificou a defensora oficiosa da nomeação, e da acusação e pronúncia, bem como do pedido cível.
Foi a partir daí e no prazo legal que o arguido forçou o tribunal a reconhecer o advogado escolhido pelo arguido e arguiu a nulidade da nomeação.
A nomeação foi tardia e desrespeitou o direito de escolha da defesa.
Tardia porque deve ser contemporânea da constituição de arguido para assegurar efectivamente a defesa com todas as garantias constitucionais, evitando os riscos do edital.
Ofensiva do direito de escolha, por tudo quanto atrás se articula.
Não parece razoável a tese do JIC que não admite o recurso por achar que não aplicou norma inconstitucional e nada decidiu acerca desta nulidade invocada, pois se limitou a indeferir a instrução por intempestiva.
É que, por intempestiva também indeferiu a arguição da nulidade de nomeação de defensor oficioso.
E isso equivale a decidir que a considerou sanada.
Ora, a nulidade referida, na medida em que afecta todo o processo desde a constituição de arguido e afecta as garantias constitucionais da defesa,
é insanável.
Se o advogado escolhido pelo arguido tivesse sido informado do andamento do processo, certamente a notificação edital teria sido evitada e talvez não tivesse havido sequer acusação e pronúncia ou, pelo menos, ter-se-ia evitado a questão da tempestividade do exercício do direito à instrução'(...).
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação. Disse:
'(...) É manifesto que o ora reclamante não curou de esgotar, como lhe cumpria, os recursos ordinários possíveis, impugnando, nos termos gerais e no âmbito da ordem dos Tribunais Judiciais, a decisão proferida no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, na parte em que desatendeu as pretensas nulidades contidas na fase do inquérito: não se vê, aliás, porque razão não incluiu esta matéria no âmbito do recurso ordinário que interpôs para a Relação, e que circunscreveu à questão da extemporaneidade do requerimento instrutório.
Ora, tratando-se do recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, a não exaustão dos recursos ordinários possíveis preclude a admissibilidade do recurso de fiscalização concreta, prematuramente interposto, o que conduz à improcedência da presente reclamação' (...).
II. O recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, pressupõe, para além da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo e da aplicação pela decisão recorrida da norma ou normas impugnadas, a exaustão prévia dos recursos ordinários. Na verdade, a norma do artigo 70º, nº 2, da mesma Lei vem ligar
àquele recurso este pressuposto, ao determinar que 'os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam'.
Ora, é evidente, como sublinha o Sr. Procurador-Geral Adjunto, que no caso o reclamante não esgotou como lhe cumpria os recursos ordinários possíveis. A decisão proferida no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, na parte em que desatendeu a arguição de nulidades, podia ainda ser impugnada na ordem dos tribunais judiciais (cf. artigos 399º e 407º, nº 1, alínea h), do Código de Processo Penal). A não verificação deste pressuposto da exaustão dos recursos ordinários, leva, só por si, à improcedência da reclamação.
III. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em seis ucs.
Lisboa, 4 de Março de 1998 Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa