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Proc. nº 856/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. E..., Lda., requereu junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa a suspensão da eficácia do acto do Vereador da Câmara Municipal de Lisboa de 7 de Maio de 1996, que determinou a remoção de um reclamo luminoso.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, por decisão de 18 de Julho de 1996, indeferiu a suspensão de eficácia do acto impugnado, em virtude de não se verificar o requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
2. E..., Lda., interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 18 de Julho de 1996 para a Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo.
Nas alegações apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente sustentou que a interpretação do artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de os requisitos das várias alíneas serem cumulativos, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2º, 13º, 18º, 20º e 268º, nºs 4 e 5, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 19 de Setembro de
1996, negou provimento ao recurso.
3. E..., Lda., interpôs recurso de constitucio-nalidade do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Setembro de 1996, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na interpretação acolhida pela decisão recorrida.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'1ª - O direito de acesso aos tribunais (art. 20º da CRP) projecta-se, no plano do relacionamento particula-res-Administração, na garantia de recurso contencioso do art. 268º da CRP.
2ª - O direito a uma tutela judicial efectiva com-preende a existência de medidas de 'protecção provisória' - mas não excepcionais - de salvaguarda dos direitos.
3ª - Estes direitos e garantias estão em estreita conexão com os princípios do Estado de direito democrático e da igualdade e beneficiam da
'protecção acrescida' conferida aos direitos, liberdades e garantias.
4ª - Na aplicação do artigo 76º, alíneas a) e b), das LPTA, o juiz deve proceder sempre a uma ponderação relativa entre interesses públicos e particulares, impondo-se como interpretação conforme à Constituição aquela que afirme a não cumulatividade e independência de apreciação dos requisitos estabelecidos naquela norma.
5ª - Ao não proceder a esse juízo de ponderação, e defender uma posição de perfeita autonomia e cumulati-vidade de apreciação dos requisitos, que torna até indiferente a ordem do seu conhecimento, dispensando de analisar os demais, sempre que conclua pela não verificação de um deles, o acórdão recorrido interpretou o artigo 76º, nº 1, da LPTA num sentido inconstitucional, por violação das normas dos artigos 2º, 13º, 18º, 20º e 268º, nºs 4 e 5, da Constituição da República.'
Por seu turno, a recorrida contra-alegou, propugnando o não provimento do recurso de constitucionalidade.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. O presente recurso de constitucionalidade tem por objecto a norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretado no sentido de conter requisitos cumulativos para o deferimento da suspensão de eficácia do acto questionado.
É a seguinte a redacção do preceito impugnado:
'Artigo 76º
(Requisitos)
1. A suspensão da eficácia do acto recorrido e concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público;
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilega-lidade da interposição do recurso.'
Tal norma já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, tendo-se então decidido no sentido da sua não inconstituciona-lidade (cf. Acórdãos nºs
631/94 - D.R., II Série, de 11 de Janeiro de 1995, 8/95, 194/95, 201/95, 252/95,
35/96, 141/96, 142/96, 182/96, 921/96 e 109/97 - inéditos).
Com efeito, nos Acórdãos referidos, o Tribunal Constitucional, depois de reconhecer que compete à lei ordinária determinar os casos de anulação de actos administrativos, ficando na livre disponibilidade do legislador limitar
(ou eliminar) o poder instrumental de suspensão dos actos impugnados, considerou que a discricionariedade legislativa, quanto à enunciação dos requisitos da suspensão, revela-se conforme aos parâmetros constitucionais de acesso à justiça administrativa, na medida em que não impede o interessado de obter protecção para os seus direitos e interesses legalmente protegidos, concluindo que a norma impugnada não viola o disposto nos artigos 18º, 20º, 268º, nºs 4 e 5, e 266º, nº
1, da Constituição.
É este o entendimento que cumpre agora adoptar, remetendo- -se a respectiva fundamentação para os Acórdãos referidos.
6. Por outro lado, a recorrente sustenta que a norma impugnada é ainda inconstitucional por violação do disposto nos artigos 2º e 13º da Constituição. Desenvolvendo tal entendimento, a recorrente afirma existir uma
íntima conexão entre os princípios da igualdade de armas e do contraditório e os princípios do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição) e da igualdade (artigo 13º da Constituição).
Na verdade, tais princípios postulam, no plano processual, e em sede geral, a consagração de mecanismos que garantam o princípio do contraditório e a igualdade de armas.
Importa, porém, averiguar se no âmbito do Direito Administrativo será constitucionalmente admissível, sem colidir com os princípios invocados, um desnivelamento das posições dos sujeitos, em atenção aos valores que a Administração salvaguarda no exercício da actividade pública.
7. Num sistema administrativo de tipo francês, ou de administração executiva, é reconhecida a primazia do interesse público sobre os interesses privados, o que leva a que a administração disponha de poderes de autoridade para impor aos particulares as soluções de interesse público que à sua realização forem indispensáveis (cf. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2ª edição, 1994, pp. 124 e 125).
Mesmo entendendo que o particular se encontra perante a Administração como um sujeito jurídico autónomo e em situação de igualdade, não pode deixar de se reconhecer que a Administração, no exercício da actividade pública, dispõe de um poder jurídico de afectar unilateralmente a esfera jurídica dos cidadãos (cf. Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1996, pp. 186, 187 e 542).
Assim, mesmo num modelo de Administração prestadora do Estado social, superado o modelo administrativo do Estado liberal, há que reconhecer que o estatuto da Administração na relação jurídica pública se diferencia do estatuto do particular, em consequência dos interesses que aquela prossegue, também eles com dignidade constitucional.
Ora, no presente recurso de constitucionalidade a requerente propugna que a interpretação do artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de conter requisitos cumulativos para o deferimento da suspensão de eficácia do acto impugnado viola o princípio do Estado de direito democrático e da igualdade.
Porém, um tal entendimento ignora que o desnivelamento nas relações entre a Administração (investida de poderes de autoridade, ou, se se preferir, no exercício de um poder jurídico unilateral) e os particulares é justificado pelos interesses colectivos que o exercício da actividade administrativa visa prosseguir. Por outro lado, tal entendimento não considera, igualmente, que a suspensão de eficácia dos actos administrativos é um mecanismo processual acessório que consubstancia a concretização de uma garantia dos particulares perante a Administração, na medida em que mitiga o poder unilateral desta (cf. Vieira de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, 1994/95, p. 112 e ss.).
Por último, e decisivamente, o entendimento da recorrente confunde o que possa ser uma discriminação constitucionalmente inadmissível do particular relativamente à Administração com uma adequada harmonização dos interesses em causa numa fase inicial do recurso de anulação.
Com efeito, a norma impugnada, ponderando o interesse público e o interesse do particular, permite a paralisação da actividade administrativa, quando a execução imediata do acto recorrido cause, com probabilidade, prejuízo de difícil reparação ao particular, quando tal paralisação não determine grave lesão do interesse público e quando inexistam indícios de ilegalidade do recurso interposto. Trata-se de uma ponderação razoável e criteriosa dos interesses em confronto que permite uma solução equilibrada e adequada à necessidade de composição do interesse público com a situação do particular.
Assim, a norma impugnada não colide com os princípios do Estado de direito democrático e da igualdade.
8. Conclui-se, nesta medida, que a norma constante do artigo 76º, nº
1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de conter requisitos cumulativos para o deferimento da suspensão de eficácia, não é inconstitucional.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, negando provimento ao recurso, e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 1998 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa