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Processo nº 62/97
1ª Secção Rel. Cons. Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I.1.- O Tribunal de Círculo e da Comarca de Oeiras condenou J... pelo cometimento de um crime de desobediência simples, previsto e punível pelo artigo 158º do Código da Estrada e o artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal (testes de pesquisa de álcool), na pena de trinta dias de multa, à taxa de Esc: 1500.00/dia. O Tribunal considerou, então, que o artigo 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, fora revogado pelo Código Penal de 1995.
O arguido interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa. Aderiu à tese de revogação do artigo 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº
124/90, de 14 de Abril, mas suscitou a questão de constitucionalidade das normas aplicadas, interpretadas no sentido de 'um condutor ter de se submeter por expiração em aparelho adequado à detecção de álcool, sucessivas vezes, independentemente da sua capacidade'.
Na Relação, o Ministério Público emitiu parecer em que, ao contrário da sentença recorrida, defendia a aplicação ao caso das normas dos artigos 12º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 124/90, que considerava não haverem sido revogadas. E deste parecer foi o recorrente notificado.
Em acórdão de 6 de Novembro de 1996, a Relação de Lisboa confirmou a sentença recorrida, mas, alterando a qualificação jurídico-penal dos factos provados. E alterou-a, considerando que o artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90 não fora revogado - se bem que daí não derivasse pena mais grave do que a cominada em Iª instância, por virtude da proibição da reformatio in pejus'.
O arguido interpôs recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, invocando o artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Delimitou-lhe o objecto na norma do artigo 12º do Decreto-Lei nº
124/90, 'se interpretada no sentido de que constitui recusa a exame a atitude de um condutor que após se submeter por duas vezes ao teste de pesquisa de álcool por expiração de ar em aparelho adequado, não originando qualquer resultado conclusivo, se recuse continuar a submeter-se a tal teste, por violação do artº
32 nº 1 e nº 6 da CRP'.
Mas o recurso não foi admitido, em despacho, de 21 de Novembro de
1996.
Nesse despacho aduzem-se dois fundamentos essenciais: o primeiro era o de que a questão de constitucionalidade do artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90 não fora suscitada durante o processo - mesmo quando, na sentença da Iª Instância a Sra. Juiz ressalvava a hipótese de futuramente rever a sua posição sobre a revogação da norma e mesmo quando era esse o parecer do Ministério Público e o recorrente dele fora notificado -; o segundo fundamento era o de a norma não haver sido aplicada com a interpretação que o recorrente reputava de constitucionalmente controversa.
J... reclamou, então, desse despacho para o Tribunal Constitucional. Assim:
'(..) O despacho de fls. 40 e seguintes não admitiu o recurso do ora reclamante para o Tribunal Constitucional, com o fundamento de que a inconstitucionalidade da norma do artgº 12º do DL 124/90, não foi arguida pelo recorrente no decurso de processo e com o fundamento de que devem ser arguidas inconstitucionalidades de normas e não a sua interpretação, a não ser que a interpretação seja manifestamente anómala.
O recurso do então recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, não levantou efectivamente a questão da inconstitucionalidade do artgº 12º do DL
124/90, mas levantou a questão da inconstitucionalidade do artgº 158º, nº 1, alínea a) do Código da estrada e 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, se interpretados no âmbito referido pelo recorrente na sua motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, por ser essa norma aplicada em 1ª instância.
O Tribunal da Relação de Lisboa, acordou em atribuir uma diferente qualificação jurídica dos factos, assentes em 1ª instância e veio a condenar o recorrente pela prática do crime do artgº 12º do DL 124/90.
Desde logo se verifica que o despacho ora reclamado não deu seguimento ao disposto no artgº 75º-A da Lei nº 28/82, suprindo-se assim a oportunidade do ora reclamante justificar a sua atitude, nos termos dessa disposição legal, o que resulta em manifesto prejuízo do mesmo, pois da justificação que desse poderia resultar um juízo diferente por parte do Tribunal da Relação, quanto à não admissibilidade ou admissibilidade do presente recurso.
Quanto ao facto de o recorrente em momento algum ter suscitado a inconstitucionalidade da norma do artgº 12º do DL 124/90, nem se pode queixar que foi surpreendido com a aplicação de norma com que razoavelmente não podia contar, sempre se dirá que se nos não afigura que o problema possa ser colocado nesses termos.
Com efeito e quanto a nós não se trata apenas de ter sido aplicada a norma diferente da aplicada pelo Tribunal 'a quo', quanto aos factos dados como assentes, trata-se também de ter sido operada uma diferente qualificação jurídica, considerada legítima pelo Acordão da Relação proferido nos autos, situação essa que não pode ser assacada ao recorrente, em termos de formulação de um juízo de prognose prévio, que o levasse a concluir que o Tribunal iria proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos, quando é ele, apenas, quem recorre.
E aliás, tal não se afigura possível porquanto nos termos do artgº
409º nº 1 do C.P.P. o tribunal superior não pode modificar na sua espécie ou medida as sanções constantes da decisão recorrida, pelo que não contaria o recorrente com a aplicação de uma norma, através de um mecanismo, que se afigura não ser aplicável ao caso.
Exigir-se o contrário significa 'a priori' que para existir direito de recurso para o Tribunal Constitucional não basta arguir a inconstitucionalidade da norma aplicada nas instâncias, mas também prever quais as normas que serão aplicadas pelo Tribunal de Recurso, o que nos parece tarefa gigantesca e sobretudo, manifestamente injusta, se considerarmos a amplitude do tribunal 'ad quem', a esse respeito, que num recurso pode conhecer oficiosamente de uma série de questões prévias, modificar as decisões aplicadas ou não conhecer do próprio recurso por se considerarmos violados determinados dispositivos atinentes à formalidade do mesmo, ou mesmo, como aconteceu no presente caso, operar uma diferente qualificação jurídica dos factos, tendo aplicado, assim, outra norma.
Por outro lado, o argumento de que devem ser arguidas as inconstitucionalidades de normas e não a sua interpretação, a não ser que a mesma seja anómala, é, salvo o devido respeito, improcedente, porque a inconstitucionalidade de uma norma nunca poderá deixar de ser aferida, também, em função de uma interpretação que se faça da mesma, sendo esse aliás o motivo porque é chamado o Tribunal Constitucional a intervir, pelo que salvo melhor opinião, a competência para ajuizar da inconstitucionalidade de norma em qualquer uma das suas vertentes pertence ao Tribunal Constitucional, não tendo o Tribunal da Relação competência para aferir do modo como a inconstitucionalidade de uma norma é suscitada'(...).
2. O Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
II. 1. O recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com invocação de que se pretende recorrer par o Tribunal Constitucional, pressupõe, entre o mais, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide a causa.
Este pressuposto faz recair sobre as partes em juízo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas convocáveis e, bem assim, de adoptarem uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de um ulterior recurso para o Tribunal Constitucional. Por isso, como se afirmou no acórdão nº 479/89, 'a simples' 'surpresa' com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais em que seria justificado dispensar os interessados da invocação prévia da inconstitucionalidade perante o tribunal 'a quo'. (D.R., II Série, de
24-4-1992).
Esta interpretação ressalva porém as situações excepcionais em que o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão de que recorre, garantindo aí o acesso ao Tribunal Constitucional. São os casos em que o recorrente não teve intervenção no processo por ela não estar processualmente prevista (cf., por todos, o acordão nº 51/90, D.R., II Série, de 12-7-1990) ou os casos em que se confrontou com uma interpretação judicial de todo imprevisível ou insólita, com que razoavelmente não poderia contar (hipotizando uma tal situação, cf., por todos, o acordão nº 479/89, cit.). Aí, é a própria evidência da impossibilidade processual de suscitação prévia a fazer que se admita o recurso de constitucionalidade. (cf., também, os acórdãos nºs 136/85, 94/88, 391/89 e
61/92, D.R., II Série, de 28-1-1986, 22-8-1988, 14-9-1989, de 18-8-1992, respectivamente.
3. É manifesto que o caso não configura uma daquelas situações excepcionais ou anómalas susceptíveis de dispensar o recorrente do ónus da suscitação prévia da questão de constitucionalidade, ou seja, de a suscitar antes de proferida a decisão recorrida. É que o problema da revogação do artigo 12º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, pelo Código Penal de 1995, mostrou-se controverso desde as formulações da sentença de Iª Instância até ao parecer do Ministério Público na Relação, de que, aliás o reclamante foi notificado. O reclamante poderia então, contraditar esse parecer e dar uma resposta à hipótese de 'recuperação' do artigo 12º pelo Tribunal de recurso.
III. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, fixando-se a taxa de justiça em seis ucs.
Lisboa, 4 de Março de
1998 Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José manuel Cardoso da Costa