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Proc. nº 147/97
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A Direcção-Geral da Aviação Civil instaurou processo contra-ordenacional contra a T..., U.E.E., com representação geral em Lisboa, pelo facto de não ter pago no prazo legal as taxas de segurança previstas no Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março. Na resposta, a empresa transportadora angolana procurou justificar o não pagamento pelo facto de não ter sido possível obter autorização do banco central do seu país para a transferência de divisas. Nessa resposta suscitou a questão da inconstitucionalidade formal das disposições conjugadas dos arts. 4º, nº 2, e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março, e do nº 3 do Despacho Normativo nº 21/93, de 27 de Fevereiro, por violação do disposto nos arts. 115º, nºs. 1 e 5, 201º e 202º, alínea c), da Constituição, alegando que não agira com dolo.
Através de decisão de 3 de Julho de 1995, o Director-Geral de Aviação Civil aplicou a coima de 92.520$00 à mesma transportadora.
Inconformada, interpôs a sancionada recurso para o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, mas este veio a ser julgado improcedente por sentença de 29 de Abril de 1996.
Desta sentença interpôs a T... recurso para a Relação de Lisboa, tendo apresentado a sua motivação, onde manteve a suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa acima referida.
Através de acórdão proferido em 5 de Fevereiro de 1996, a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso. Relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, depois de analisar a jurisprudência constitucional sobre a repartição de competências entre a Assembleia da República e o Governo em matéria de ilícito de mera ordenação social, afirmou o seguinte:
' No caso em apreço, o Governo, no âmbito da sua competência legislativa, aprovou o Decreto-Lei nº 102/91, onde criou uma taxa de segurança a cobrar pelas transportadoras aéreas, no acto de emissão e cobrança do preço do bilhete e definiu o ilícito decorrente do seu não pagamento atempado (arts. 1º, 2º, 3º, 4º e 8º). No nº 2 desse art. 4º, dispôs-se, porém, o seguinte: «As condições e o prazo de entrega à DGAC das importâncias cobradas nos termos do número anterior serão definidos por despacho do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações». Ora, o Despacho Normativo nº 21/93, de 27 de Dezembro, emanado do Ministério de Obras Públicas, Transportes e Comunicações, foi feito, como do seu próprio texto consta, «Nos termos do nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março» e, no seu art. 3º, fixou-se o prazo (aludido expressamente naquele art.
4º, nº 2) em 30 dias. Deste modo, não há aqui qualquer acto administrativo modificativo, suspensivo, revogatório ou interpretativo das normas legais criadas pelo DL nº 102/91, antes um regulamento autorizado expressamente por esse diploma legal e em tudo a ele conforme. Portanto, é completamente despida de razão, por mais longínqua que seja, a alegação feita pela recorrente de inconstitucionalidade formal do referido Despacho Normativo.' (a fls. 113 vº-114)
Notificado deste acórdão, dele interpôs recurso de constitucionalidade a recorrente, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls. 120.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações a recorrente e o recorrido Ministério Público.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
'a) É da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral de punição das contra-ordenações e contravenções e dos respectivos processos, e definir contravenções puníveis com pena de prisão e modificar o «quantum» desta; b) Por autorização legislativa dada pela Lei 24/82, de 23 de Agosto, maxime no respectivo artigo 2º, a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar em matéria de contra-ordenações e coimas, o que este veio a fazer, dentro do prazo de validade da referida autorização legislativa, pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro; c) As normas contravencionais ínsitas no Decreto-Lei 102/91, de 8 de Março, devem e têm que ser consideradas constitucionalmente válidas em si, enquanto
[emanadas do] Governo, porque integradas no normativo geral do Decreto-Lei
433/82, de 27 de Outubro; d) Mas o Governo não pode é delegar, como o fez através da norma ínsita no nº 2 do artigo 4º do citado Decreto-Lei 102/91, de 8 de Março, para o Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações - como este fez através do referido Despacho Normativo 21/93 - o poder de definir os termos e condições em que se verifica então a contra-ordenação prevista, como Quadro Geral, no nº 1 do artigo 8º do citado Decreto-Lei 102/91, de 8 de Março; e) Assim, por violação do disposto nos artigos 115º, nºs. 1 e 5, 201º e 202º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios que dos mesmos dimanam, deve reconhecer-se, e assim se decidir por acórdão, que é inconstitucional o nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei 102/91, de 8 de Março, enquanto permite que, como foi e é o caso, pelo Despacho Normativo nº 21/93 se definam os termos e condições de aplicação da contra-ordenação a que alude o nº
1 do artigo 8º do citado Decreto-Lei 102/91, de 8 de Março.' (a fls. 143-144)
A entidade recorrida, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
'
1º A contraordenação imputada à recorrente encontra-se suficientemente tipificada na lei (artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março), consistindo no incumprimento pontual da obrigação de entrega à Administração das importâncias cobradas aos utentes, a título de taxa, e retidas na fonte pelas transportadoras aéreas.
2º Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a circunstância de a lei que prevê e tipifica tal contra-ordenação acolher - para o efeito de determinar quando ocorre incumprimento pontual do devedor - o estatuído em regulamento administrativo, no qual a própria lei delegou legitimamente a definição do prazo de cumprimento da referida obrigação pecuniária.
3º Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.' (a fls.
155-156)
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não se ver motivo que a tal obste, impõe-se conhecer do objecto do recurso.
II
4. Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março, que o legislador governamental afastou a solução constante do Decreto-Lei nº 10/83, de 17 de Janeiro - diploma este que 'consagra[va] a filosofia de que a totalidade das despesas com o pessoal e material afectos à segurança da aviação civil, para a repressão de actos ilícitos, seria da exclusiva responsabilidade do Estado' - pondo a cargo dos utentes do transporte aéreo, enquanto destinatários concretos da prestação de serviços, uma parte dos custos de segurança, 'a exemplo do que vem acontecendo em alguns países europeus'. Foi, assim, criada uma taxa de segurança a pagar por cada passageiro embarcado em aeroportos e aeródromos nacionais, sendo a mesma taxa 'devida por cada título de passagem emitido' (art. 2º do diploma).
Dispõem os arts. 4º e 8º do Decreto-Lei nº 102/91: Art. 4º - '1- A taxa de segurança constitui receita da Direcção-Geral da Aviação Civil (DGAC), sendo a respectiva importância cobrada pelos transportadores no acto de emissão do bilhete ou de cobrança do preço deste.
2- As condições e o prazo de entrega à DGAC das importâncias cobradas nos termos do número anterior serão definidos por despacho do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações'. Art. 8º- '1- Constitui contra-ordenação a entrega fora dos prazos estabelecidos, nos termos do nº 2 do artigo 4º, de todo ou parte do produto das taxas cobradas pelos transportadores nos termos do artigo 2º, a qual será punida com coima variável entre a décima parte e metade da receita em falta, entre o mínimo de
15.000$00 e máximo de 500.000$00.
2- Compete ao director-geral da Aviação Civil a graduação das coimas previstas no número anterior, as quais constituirão, em 40%, receita da DGAC, revertendo o remanescente para o Estado.'
Por outro lado, o Despacho Normativo nº 21/93, de 27 de Fevereiro, com invocação do nº 2 do art. 4º do Decreto-Lei nº 102/91, de 8 de Março, estabeleceu as condições e o prazo de entrega à Direcção-Geral de Aviação Civil das taxas de segurança cobradas pelas transportadoras aos respectivos passageiros. De harmonia com o nº 3 desse Despacho Normativo nº 21/93, 'o pagamento dos montantes devido pelos transportadores ou seus agentes à DGAC deverá efectuar-se no prazo de 30 dias a contar da data da emissão da guia pela DGAC'.
5. Constitui, por isso, objecto do presente recurso a questão de constitucionalidade do art. 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 102/91, conjugado com o nº 2 do art. 4º do mesmo diploma, enquanto tipifica como contraordenação a entrega fora dos prazos previstos em regulamento da taxa de segurança criada por esse decreto-lei.
6. Na tese da empresa recorrente, seria inconstitucional a referida norma do nº 1 do artigo 8º enquanto relegava para regulamento um dos elementos do tipo da contraordenação.
De facto, a entidade recorrente não põe em causa que o Governo possa criar contraordenações através de decreto-lei, nos quadros do diploma parlamentar (ou governamental, com autorização parlamentar), que estabelece o
'regime geral... dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo' (art. 165º, nº 1, alínea d), da Constituição. Prova disso é a aceitação, nas suas alegações, da doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional nº 56/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs. 153 e segs.), através de uma extensa transcrição da fundamentação dessa decisão. Põe antes em causa que um elemento do tipo contraordenacional possa constar de regulamento. Como se lê nas suas alegações:
' Através do mecanismo que ressalta do disposto no nº 2 do artigo 4º do Decreto-Lei 102/91, consubstanciado afinal no Despacho Normativo nº 21/93, a definição concreta da prática da contra-ordenação e da respectiva punição foi assim delegada, contra o que a Constituição da República Portuguesa impõe, em Despacho Normativo.' (a fls. 142)
7. Terá razão a recorrente?
Responde-se negativamente à questão.
Na verdade, o art. 8º, nº 1, define o tipo do ilícito de mera ordenação social de forma suficientemente precisa, mostrando-se observado o princípio da legalidade (cfr. art. 2º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro). A contraordenação é constituída pela entrega fora dos prazos estabelecidos do todo ou de parte do produto das taxas cobradas pelos transportadores. No mesmo número do artigo estatui-se a coima a aplicar, fixando-se os respectivos limites mínimo e máximo (limites que se situam dentro dos limites actuais do regime geral do ilícito de mera ordenação social - cfr. art. 17º do referido Decreto-Lei nº 433/82, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro).
A circunstância de a fixação do prazo de entrega das taxas cobradas pelas transportadoras constar de regulamento não afecta a observância do princípio da legalidade, nem implica qualquer deslegalização, proibida pelo nº 6 do art. 112º da Constituição (texto de quarta revisão constitucional; anteriormente era o nº 5 do art. 115º).
Como escreve o Senhor Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações:
' É, pois, evidente que o despacho normativo cuja inconstitucionalidade vem suscitada [Despacho Normativo nº 21/93, de 27 de Fevereiro] se limitou estritamente a fixar o prazo de cumprimento de uma obrigação pecuniária pelas transportadoras aéreas - encarregadas de cobrar e «reter na fonte» a aludida taxa, procedendo à sua ulterior entrega nos cofres da entidade administrativa a que tal receita se destina. Deste modo, o despacho normativo em causa não tipifica nem define os pressupostos e condições em que considera preenchida a contraordenação prevista e sancionada na lei: em rigor tal norma sancionatória, constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº 102/91, limita-se a estabelecer que constitui contraordenação o incumprimento pontual de certa obrigação pecuniária a cargo das transportadoras aéreas - sendo óbvio que nada impede que, em sede do direito que rege o ilícito de mera ordenação social, existam normas que incluem conceitos abertos ou indeterminados, que vejam o respectivo conteúdo preenchido em função de outros actos normativos, v. g., de regulamentos administrativos.'
A propósito do ilícito criminal teve já ocasião o Tribunal Constitucional de considerar que não implicava violação do princípio da legalidade a possibilidade de uma norma legal relegar para um regulamento a concretização dos critérios de admissibilidade de aditivos alimentares, em princípio proibidos.
No acórdão nº 427/95 (publicado na II Série do Diário da República, nº 260, de 10 de Novembro de 1995) pode ler-se o seguinte:
'... O princípio da legalidade atinge nuclearmente a norma incriminadora, no sentido dos artigos 29º da Constituição e 1º do Código Penal, e não contempla com o mesmo rigor as delimitações negativas ou excepções à incriminação [...] A norma remissiva não é uma norma em branco que delegue na portaria o poder de definir o conteúdo da incriminação. Os critérios do ilícito penal - desvalor da acção proibida, desvalor do resultado lesivo e identificação do bem jurídico tutelado - encontram-se nas normas dos artigos 24º, nº 1, alínea a), e 82º, nº
2, alínea a), I, do Decreto-Lei nº 28/84 (aprovado mediante autorização legislativa da Assembleia da República). Tais critérios hão-de ser compreendidos a partir da ideia de utilização de aditivos que afectam a pureza dos produtos alimentares. A descrição, feita pela portaria, dos aditivos admissíveis é apenas uma concretização do critério legal, através da enumeração de substâncias que são insusceptíveis de afectar a pureza dos produtos, apesar de constituírem aditivos alimentares. Mas tal enumeração de substâncias não documenta nenhum critério autónomo de ilicitude - consiste apenas numa aplicação de conhecimentos técnicos.'
Ora, transpondo este entendimento para o caso sub judicio, tem de concluir-se no sentido da não inconstitucionalidade das normas apontadas pela recorrente. A contraordenação está definida suficientemente no plano legal, ao prever a falta de entrega pontual do produto das taxas cobradas pela transportadora. A fixação do prazo de entrega pela portaria pode perfeitamente ser feita a nível regulamentar, sendo inclusivamente admissível que esse prazo possa ser alterado por razões de natureza administrativa, que não afectam a consagração legal do ilícito de mera ordenação social.
8. Tem, assim, de concluir-se no sentido de que o recurso não merece provimento.
III
9. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional julgar improcedente o recurso, confirmando o acórdão recorrido no que toca ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 1998 Armindo Ribeiro Mendes Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa