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Proc. nº 508/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. C..., Lda., procedeu, em 22 de Junho de 1992, ao despedimento com justa causa de E..., desenhador maquetista, admitido ao serviço daquela sociedade em 24 de Outubro de 1985.
E... intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção comum, na forma sumária, contra a C..., pedindo a declaração de nulidade do despedimento e a condenação da ré no pagamento das prestações salariais vencidas e vincendas, até à data da sentença. O autor fixou o valor da causa em 1.966.800$00 (um milhão, novecentos e sessenta e seis mil e oitocentos escudos).
O Tribunal do Trabalho de Lisboa, por sentença de 12 de Maio de
1993, julgou procedente a acção, tendo condenado a ré no pagamento dos valores correspondentes às retribuições que o autor deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença. A ré foi ainda condenada no pagamento de uma indemnização no valor de um mês de retribuição base por cada ano de antiguidade, contando-se para o efeito todo o tempo decorrido até à sentença.
2. A C... interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença do Tribunal do Trabalho de Lisboa de 12 de Maio de 1993. Nas alegações de recurso não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 31 de Maio de 1995, decidiu negar provimento ao recurso, tendo, em consequência, confirmado a decisão recorrida (decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa de 12 de Maio de
1993, que julgou ilícito o despedimento de E...).
3. A C... interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1995, para o Supremo Tribunal de Justiça, suscitando a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 9º, nºs 1 e
2, alíneas a), c), d), e), e m), e 12º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº
64-A/89, de 27 de Fevereiro, por violação do disposto nos artigos 13º, nº 1,
18º, nº 1, 53º, 58º, nº 1, e 62º, nº 1, da Constituição.
E... contra-alegou, suscitando a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, em virtude de o valor da causa (1.966.800$00 - um milhão, novecentos e sessenta e seis mil e oitocentos escudos), articulado com a alçada do Tribunal da Relação (2.000.000$00 - dois milhões de escudos), impossibilitar a interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na resposta à questão prévia suscitada, a C... suscitou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 305º, 308º, nº 2 e 309º, do Código de Processo Civil, por violação do disposto nos artigos 2º e 20º, nº
1, da Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da inadmissibilidade do recurso, pelas razões apresentadas pelo recorrido.
Na resposta ao parecer do Ministério Público, a C... sustentou a inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 314º, nºs 1 e 4, do Código de Processo Civil, por violação do disposto nos artigos 2º, 20º, nº 1, e 18º, nº
2, da Constituição.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Abril de 1996, decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a decisão recorrida (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1995) ser irrecorrível, por o valor da acção ser inferior ao valor da alçada do Tribunal da Relação.
4. Interpôs, então, a C... recurso de constitucio-nalidade dos '... acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e pela Relação de Lisboa
...', ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 305º, 308º, nº 2,
309º e 314º, nºs 1 e 4, do Código de Processo Civil e 9º, nºs 1 e 2, alíneas a), c), d), e) e m), e 12º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
'I - As normas dos artigos 9º, nº 1 e nº 2 alíneas a), c), d), e) e m) e 12º, ambas do D.L. 64-A/89, de 27/Fev., aplicadas nas decisões judiciais, são materialmente inconstitucionais, nos segmentos de interpretação referidas nos números 3.1 a 3.4 e 4 do ponto I Ilicitude do Despedimento, destas alegações.
II - Essas normas jurídicas aplicadas naqueles segmentos de interpretação violam os artigos 13º, nº 1, 58º, nº 1, 61º, nº 1 e 62º, nº 2 da C. República Portuguesa, pelo que devem ser declaradas materialmente inconstitucionais.
III - Nos acórdãos da Relação e do Supremo foram aplicadas normas jurídicas - art. 305º, 308º, nº 1, 309º, todos do C.P.C., nos segmentos de interpretação referidos nos números 8 a 12 destas alegações.
IV - Essas normas foram aplicadas no sentido de que para a fixação do valor da causa não deve ser considerada a existência de prestações vincendas
(art. 472º, nº 1 do C.P.C.).
V - Ora, nos autos o acórdão da Relação condena a Ré em prestações vincendas, designadamente as prestações salariais vencidas desde a instauração da acção até à data da sentença.
VI - Nesta circunstância, o valor da causa é fixada pela lei, tendo em conta o pedido do A. devendo neste serem considerados os interesses vencidos e vincendos.
VII - Ao interpretar-se os artigos 305º, 308º, nº 1 e 309º, todos do C.P.C. no sentido mencionado na conclusão IV estão criadas sérias dúvidas na Ré acerca da certeza e segurança do direito, é desrespeitado o art. 2º, parte inicial da Constituição da República Portuguesa.
VIII - Na verdade a interpretação das normas jurídicas mencionadas na conclusão antecedente no sentido de que o valor da causa é fixado no montante indicado pelo A., no caso de a Ré não impugnar, viola os princípios constitucionais do Estado de direito, a segurança e a certeza do direito, o princípio da igualdade e a não restrição dos direitos, liberdades e garantias e o direito de acesso aos tribunais, estatuídos respectivamente, nos arts. 2º, parte inicial, 13º, nº 1, 18º, nº 2 e 20º, todos da Lei Fundamental.
IX - Assim sendo, os artigos 305º, 308º, nº 1 e 309º, todos do C.P.C., aplicados nos segmentos de interpretação acima referidos, devem ser declarados materialmente inconstitucionais, com os legais efeitos.'
O recorrido contra-alegou, tendo propugnado '... a improcedência do alegado pela recorrente ...'.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Questão prévia
6. O presente recurso vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1995 e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1996.
Relativamente ao primeiro, o recorrente entende que o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou e aplicou as normas contidas nos artigos 9º, nºs 1 e 2, alíneas a), c), d), e) e m) e 12º, num sentido inconstitucional. Contudo, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do recurso no que concerne a estas normas.
7. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este pressuposto processual num sentido funcional. De acordo com tal sentido, para que se possa considerar suscitada durante o processo uma questão de constitucionalidade normativa, é necessário que tal se faça de modo a que o juiz a quo se aperceba de que tem essa questão para decidir. Assim, é necessário que o recorrente identifique a norma ou as normas que considera inconstitucionais, que indique o princípio ou norma constitucional que considera violado e que apresente uma fundamentação, ainda que resumida, da inconstitucionalidade arguida (cf., entre outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Por outro lado, a arguição da questão de constitucio-nalidade normativa tem de ocorrer de forma a que o juiz a quo sobre ela se possa pronunciar, ou seja, o recorrente deve suscitar tal questão antes da prolação da decisão recorrida, excepto nos casos anómalos em que o recorrido não tem oportunidade processual de cumprir esse ónus, nomeadamente em virtude de ser confrontado com uma aplicação ou com uma interpretação normativa completamente inesperada - é o caso, por exemplo, das chamadas 'condenações surpresa'. Contudo, o presente caso não consubstancia qualquer situação de falta de oportunidade processual, pois o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa, pelo que, desde a prolação do acórdão do Tribunal do Trabalho de Lisboa, se tornara previsível que as normas contidas nos artigos 9º e 12º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, seriam aplicadas no sentido em que efectivamente vieram a ser pelo Tribunal da Relação.
8. Nos presentes autos, e uma vez que as normas constantes dos artigos 9º, nºs 1 e 2, alíneas a), c), d), e) e m), e 12º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, foram aplicadas apenas pelo Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de 31 de Maio de 1995), era perante este Tribunal que a questão de inconstitucionalidade referente a tais normas deveria ter sido suscitada.
Contudo, na contestação de fls. 63 e ss., apresentada no Tribunal do Trabalho de Lisboa, assim como nas alegações de recurso, apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a recorrente não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, a conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 9º, nºs 1 e 2, alíneas a), c), d), e) e m) e 12º, nº
1, alínea c), do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, só foi questionada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Porém, tal recurso não foi admitido, em virtude de o valor da acção ser inferior ao valor da alçada da Relação.
Ora, vindo o presente recurso interposto, nesta parte, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1995, e não tendo sido suscitada perante este Tribunal a questão de constitucionalidade normativa que a recorrente pretende ver apreciada, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do recurso relativamente às normas constantes dos artigos 9º e 12º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, em virtude de não se verificar o pressuposto processual da arguição da questão de constitucionalidade normativa durante o processo [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
9. Conclui-se, ante o exposto, que o Tribunal Consti-tucional não tomará conhecimento do objecto do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1995, em virtude de a questão de constitucionalidade normativa não ter sido suscita durante o processo.
Fica, assim, restringido o objecto do presente recurso às normas constantes dos artigos 305º, nº 2, 308º, nº 1, 309º e 472º do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de o valor da causa ser o valor indicado pelo autor, no caso de a ré não o impugnar. B A questão da eventual inconstitucionalidade dos artigos 305º, nº 2, 308º, nº 1, 309º e 472º do Código de Processo Civil, em face dos artigos 2º, 13º, nº 1 e 18º, nº 1, da Constituição
10. A recorrente entende que é inconstitucional a interpretação das normas contidas nos artigos 305º, nº 2, 308º, nº 1, 309º e 472º no sentido de, havendo fixação do valor da acção pelo autor sem oposição do réu, ser definitiva tal fixação, mesmo no caso de ser pedida a condenação do réu no pagamento de prestações vincendas (cujo valor acaba por exceder o valor da alçada da Relação).
Segundo a recorrente, tal interpretação normativa viola a segurança e a certeza jurídica, ínsitas no princípio do Estado de direito (artigo 2º da Constituição). Por outro lado, a recorrente sustenta que essa interpretação normativa viola também o princípio da igualdade (artigo 13º, nº 1, da Constituição). A recorrente afirma ainda, e por último, que tais normas, quando interpretadas no sentido referido, consubstanciam uma restrição de direitos, liberdades e garantias desproporcionada e irrazoável (artigo 18º, nº 1, da Constituição), pois está em causa o acesso ao direito e aos tribunais (artigo
20º, nº 1, da Constituição).
São estas as questões a analisar.
11. No que se refere ao confronto das citadas normas com o artigo 2º da Constituição, o Tribunal Constitucional entende que estando os critérios definidores do valor da acção fixados na lei infraconstitucional (artigos 305º e ss. do Código de Processo Civil) e tendo tais critérios sido aplicados pelo ora recorrido no momento da interposição da acção junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa, não se divisa qualquer inconstitucionalidade de tais normas, por violação da segurança e da certeza jurídicas, postuladas pelo princípio do Estado de direito democrático.
Na verdade, a ora recorrente teve, desde o início do presente processo, conhecimento do valor que o autor atribuiu à acção. Por outro lado, o pedido formulado por E... perante o Tribunal do Trabalho de Lisboa compreendia as prestações vincendas até à data da sentença. Assim, a ré teve a possibilidade legal de contestar a fixação do valor efectuada pelo autor na fase dos articulados. Uma vez que o valor fixado por E... não foi alterado, pode dizer-se que a recorrente concordou tacitamente com tal fixação, uma vez que não a impugnou, podendo fazê-lo na contestação apresentada junto do Tribunal do Trabalho de Lisboa (artigo 315º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Assim sendo, não se detecta qualquer expectativa relevante e legítima que tenha sido afectada pela interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça das normas que constituem o objecto do presente recurso. Não foram postergadas, consequentemente, a segurança e a certeza jurídicas, que constituem corolários do princípio do Estado de direito democrático.
Refira-se, aliás, que a imutabilidade do valor da acção a partir de um determinado momento processual visa, precisamente, concretizar no plano infraconstitucional os valores de certeza e segurança. Com efeito, tal imutabilidade só pode decorrer da legalmente pretendida estabilidade de determinados elementos da acção, com vista à tutela das expectativas que legitimamente se criem em relação ao curso do processo, nomeadamente em sede de recurso.
A interpretação dos artigos 9º e 12º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de
27 de Fevereiro, sufragada pelo acórdão recorrido, não afronta, pois, o princípio do Estado de direito democrático ínsito no artigo 2º da Constituição.
12. Quanto à questão do confronto da interpretação normativa segundo a qual o valor da causa não pode ser corrigido de forma automática
(acrescentando-se o valor das prestações vincendas) com os artigos 20º, nº 1, e
18º da Constituição, o Tribunal Constitucional conclui, igualmente, pela não inconstitucionalidade.
Com efeito, a questão das limitações à faculdade de recorrer em função de mecanismos processuais, como sejam as alçadas, tem sido equacionada por este Tribunal em diversas ocasiões (cf., entre outros, Acórdão nº 287/90, D.R., II Série, de 20 de Fevereiro de 1991 e, como obras de referência mais recentes, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1994, p. 99 e ss. e Carlos Lopes do Rego, 'Acesso do Direito e aos Tribunais', Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 80 e ss.), entendendo-se que a garantia da via judiciária se traduz no direito de recurso a um tribunal e de obter dele uma decisão jurídica sobre toda e qualquer questão judicialmente relevante (cf. Acórdão citado e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 161 e ss.) e no direito de defesa contra actos jurisdicionais, mediante o recurso para outros tribunais.
Sendo certo que o direito ao recurso tem dignidade constitucional, que resulta, nomeadamente, da explícita previsão da existência de tribunais de primeira instância e de tribunais de recurso [cf. artigo 211º, nº 1, alínea a), da Constituição], daí não se poderá inferir a existência de um ilimitado direito de recurso. O que resulta do disposto no artigo 20º da Constituição, em matérias diversas da penal, é apenas que existe um genérico direito de recurso dos actos jurisdicionais com um conteúdo mínimo de eficácia relativamente à obtenção de justiça, cujo preciso conteúdo será traçado pelo legislador ordinário. Não resulta, porém, a exigência de um duplo grau de jurisdição, em termos absolutos.
À lei infraconstitucional estará vedada a abolição do sistema de recursos ou uma sua afectação substancial, que o esvazie de eficácia relativamente à realização da justiça material (consubstanciaria uma afectação substancial do sistema de recursos, por exemplo, a elevação do valor da alçada dos tribunais de comarca para 10.000 contos). Contudo, caberá ao legislador ordinário estabelecer os precisos e concretos limites do direito ao recurso, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da adequação
(cf., sobre o direito ao recurso, os Acórdãos nºs 270/95 - inédito, 249/94 - D.R., II Série. de 27 de Agosto de 1994, 447/93 - D.R., II Série, de 23 de Abril de 1994 e 377/96 - inédito).
O estabelecimento do valor das alçadas dos tribunais enquadra-se nesse espaço de manobra reconhecido ao legislador infraconstitucional. Com efeito, a limitação do acesso às várias instâncias de recurso em função do valor da causa (que reflecte a relevância dos interesses conflituantes na acção) afigura-se razoável e necessária ao bom funcionamento do aparelho judicial.
Tem-se tradicionalmente justificado esta forma de limitação do direito de recorrer pelo valor com razões atinentes à política de justiça. Na verdade, o que se pretende é o descongestionamento dos tribunais superiores, libertando-os do julgamento das causas de menor relevância (expressa no reduzido valor da acção). Assim, se é duvidoso que, do ponto de vista da justiça pura, a essência do direito ou a equidade possam estar dependentes do valor da causa, certo é, porém, que o Estado deve fixar, por razões de interesse público, um critério abaixo do qual não haja praticamente utilidade em ocupar os serviços judiciais.
Por outro lado, a fixação dos valores das alçadas dos tribunais de comarca e da relação em 500.000$00 e 2.000.000$00, respectivamente, é proporcional e adequada às exigências resultantes da articulação entre os interesses das partes e o bom funcionamento da justiça e permite uma concretização eficaz, no plano infraconstitucional, do direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição.
Assim, tais limites não consubstanciam uma restrição de um direito fundamental (direito ao recurso) incompatível com a Constituição, não só porque da Constituição não resulta um direito ilimitado de recorrer das decisões jurisdicionais, como também porque, no presente caso, não houve qualquer afectação do núcleo essencial do direito ao recurso. Com efeito, a recorrente teve oportunidade de submeter à apreciação do Tribunal da Relação a decisão que lhe foi desfavorável do Tribunal do Trabalho de Lisboa. O que o recorrente pretende é o reconhecimento de um triplo grau de jurisdição, que não
é exigido pela Constituição.
13. Num outro plano de argumentação, também se dirá que não decorre da Constituição a exigência da consagração, pelo direito ordinário, de um mecanismo de correcção automática do valor inicialmente atribuído à acção.
Com efeito, a fixação do valor da causa resulta da concretização dos critérios legais, levada a cabo pelas partes, podendo o juiz intervir, no caso de o acordo (expressa ou tacitamente) alcançado se encontrar em flagrante oposição com a realidade (artigos 314º, 315º e 317º do Código de Processo Civil).
O valor assim fixado torna-se definitivo a partir de determinado momento processual, resultando tal fixação (em princípio) do acordo alcançado. Nenhuma disposição constitucional exige a correcção automática do valor inicialmente fixado. Na verdade, nem se pode dizer que tal exigência consubstancie uma decorrência do direito ao recurso, pois, como se referiu, tal direito não pode deixar de ser configurado dentro de determinados limites.
Assim, e tendo em conta que o valor atribuído pelo recorrido não foi impugnado pela recorrida (tendo esta a possibilidade de o fazer e sendo certo que o autor pediu, desde logo, na petição inicial, a condenação da ré no pagamento de prestações vincendas), há que concluir que a interpretação das normas contidas nos artigos 305º, 308º, nº 1, e 309º do Código de Processo Civil, no sentido de, uma vez fixado o valor da acção, este não poder ser alterado (nem mesmo automaticamente), não viola o disposto nos artigos 18º e
20º, nº 1, da Constituição.
Por último, à questão segundo a qual a interpretação das normas impugnadas, constante da decisão recorrida, violaria o princípio da igualdade, na medida em que num processo idêntico, em que o valor da causa fixado com a contribuição das partes fosse outro, haveria a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, responde este Tribunal também negativamente.
Do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº 1, da Constituição, decorre a exigência de tratamento igual de situações substancialmente idênticas. E decorre também a proibição de diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável (cf. Acórdão nº 713/96, D.R., II Série, de 9 de Julho de 1996).
Importa ter presente, para a análise da questão suscitada, que o processo corre termos em função de impulsos positivos desencadeados pelas partes. De tal maneira assim é, que o desfecho da acção muito depende da actuação (processual) das partes ao longo do processo. A conduta (ou a sua ausência) processual dos vários sujeitos envolvidos na lide tem consequências no próprio curso do processo.
Tal decorre dos princípios do dispositivo e da auto-
-responsabilidade das partes, cujos afloramentos se evidenciam em vários aspectos de regime da tramitação processual (cf. Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, 1985, p. 475 e ss.).
Assim, compreende-se que a parte que deixa passar um prazo de recurso, que não apresenta prova de um facto por si alegado ou que não contesta os factos alegados pela outra parte veja repercutir sobre si as consequências dessa sua omissão.
Ora, tais circunstâncias não implicam uma violação do princípio da igualdade. Não se poderá, com efeito, argumentar com razoabilidade que será uma violação da igualdade que a parte que tenha interposto o recurso em tempo, tenha feito prova de factos alegados ou que tenha apresentado contestação venha a ter uma decisão favorável, ao contrário daquela que, em processo análogo, tenha omitido tais comportamentos. Na realidade, as diferenças do sentido decisório, num e noutro caso, assentam directamente nas diferentes actuações das partes, não se podendo considerar violação do princípio da igualdade que a parte diligente, que utiliza eficazmente os mecanismos processuais que a lei lhe faculta, aumente as possibilidades de um desfecho favorável, ao passo que a parte que opte por uma actuação processual omissiva, desinteressada, comprometa o eventual êxito da acção.
14. No presente processo, a recorrente, enquanto ré, teve a possibilidade de impugnar o valor da acção fixado pelo recorrido (cf. artigos
314º e 315º do Código de Processo Civil). Não o tendo feito em tempo processualmente adequado, não pode agora impugnar a interpretação normativa, com base na qual se considerou que o valor da acção se encontra definitivamente fixado, com fundamento na violação do princípio da igualdade, pois para a fixação de tal valor também contribuiu a sua omissão na fase dos articulados.
Se a recorrente tivesse impugnado o valor avançado pelo autor, o valor da acção seria eventualmente outro. Não o tendo feito, o valor da acção ficou definitivamente fixado, não se verificando qualquer violação do princípio da igualdade pela interpretação normativa que fundamentou tal fixação, pois o valor da acção só ficou fixado nos termos referidos, em virtude de a então ré não ter impugnado o valor atribuído pelo autor. Pode, portanto, afirmar-se que tal fixação é ainda uma consequência directa da não utilização por parte da recorrente de um mecanismo processual legalmente previsto.
15. Há assim que concluir, em face dos argumentos expostos, que as normas impugnadas não enfermam de qualquer inconstitucionalidade.
III Decisão
20. Ante o exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 1979;
b) Não julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 305º,
308º, nº 1, e 309º, do Código de Processo Civil, na interpretação dada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1996, confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 1998 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel cardoso da Costa