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Processo n.º 98/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1. Por sentença de 14 de Novembro de 2008, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Sintra julgou totalmente procedente a impugnação judicial deduzida por A., S.A.
contra o acto de liquidação da taxa de regulação e supervisão efectuada pela
Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), relativa ao ano de 2007,
incidente sobre os operadores de comunicação social da categoria de televisão,
por considerar que a referida taxa prevista na alínea a) do n.º 3, do artigo 3.º
e artigo 4.º do Regime de Taxas da ERC (Anexo I do Decreto-Lei n.º103/06, de 7
de Junho) “ao ter sido criada pelo Governo sem autorização legislativa da
Assembleia da República, encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por
violação do princípio da legalidade tributária expresso nos art.ºs 165.º, n.º 1,
alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.”
Diz-se na sentença, para o que agora releva, o seguinte:
“ [...]
Foi o Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, que aprovou o Regime de Taxas da
ERC, que estabeleceu um sistema de taxas tripartido: a taxa de regulação e
supervisão, a taxa por serviços prestados e a taxa por emissão de títulos
habilitadores.
No caso colocado à consideração do tribunal está em causa a denominada “taxa” de
regulação e supervisão prevista no art. 3º, nº 3, al. a), dispondo o art. 4º
sobre a epígrafe “Taxa de regulação e supervisão”:
“1 - Ao abrigo da alínea b) do artigo 50.º e do n.º 1 do artigo 51.º dos
Estatutos da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados pela
Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, a taxa de regulação e supervisão visa
remunerar os custos específicos incorridos pela ERC - Entidade Reguladora para a
Comunicação Social no exercício da sua actividade da regulação e supervisão
contínua e prudencial.
2 - Estão sujeitas à taxa de regulação e supervisão todas as entidades que
prossigam, sob jurisdição do Estado Português, actividades de comunicação
social, sendo o quantitativo da taxa calculado em conformidade com a categoria
em que se inserem e com a subcategoria de intensidade reguladora necessária.”
Importa pois proceder à qualificação jurídica do tributo denominado taxa de
regulação e supervisão da ERC, sendo certo que é hoje em dia pacificamente
aceite pela doutrina e jurisprudência que a circunstância do legislador ter
qualificado determinada figura jurídica como taxa não é relevante, devendo antes
verificar-se se substancialmente ela se reconduz a essa figura ou se se trata de
um imposto, ou como defendem certos autores como um “tertium genus”.
A resposta a dar a esta questão torna-se necessária para se aferir da
constitucionalidade das normas que enquadram a criação da taxa de regulação e
supervisão, face ao disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.ºs
2 e 3, da Constituição.
De acordo com estes normativos constitucionais, a criação de impostos, bem como
a definição dos seus elementos essenciais (incidência, taxa, benefícios fiscais
e garantias dos sujeitos passivos) são matéria da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República, só podendo os mesmos ser
estabelecidos por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo
por aquela autorizado.
Vejamos.
O conceito de taxa tem sido alvo de ampla discussão doutrinal e jurisprudencial,
encontrando-se hoje definidos, com suficiente base dogmática, os seus elementos
essenciais.
A título de exemplo, fazendo apelo à fundamentação constante de outras decisões,
cita-se o douto acórdão do Tribunal Constitucional, nº 68/2007:
“Como se sabe, existe uma abundante jurisprudência constitucional sobre a
distinção entre imposto e taxa (...). Para extremar a noção de ‘imposto’
constitucionalmente relevante da de ‘taxa’, o Tribunal tem-se socorrido
essencialmente de um critério que pode qualificar-se como ‘estrutural’, porque
assente na ‘unilateralidade’ dos impostos (...), admitindo ainda, porém, como
factor adicional de ponderação, que se tome em consideração a ‘razão de ser ou
objectivo das receitas em causa’, quer para recusar a certas receitas o carácter
de imposto, quer como argumento ponderoso para afastar o carácter de taxa de uma
dada prestação pecuniária coactiva (...).
(...)
Tanto na jurisprudência uniforme do Tribunal, como na orientação unânime da
doutrina, um elemento ou pressuposto estrutural há-de, desde logo e
necessariamente, verificar-se, para que determinado tributo se possa qualificar
como uma ‘taxa’, qual seja o da sua ‘bilateralidade’: traduz-se esta no facto de
ao seu pagamento corresponder uma certa ‘contraprestação’ específica, por parte
do Estado (ou de outra entidade pública). Se tal não acontecer, teremos um
‘imposto’ (ou uma figura tributária que, do ponto de vista constitucional, deve,
pelo menos, ser tratada como tal). (...) Se se não divisarem características de
onde decorra a ‘bilateralidade’ da imposição pecuniária, nada mais será preciso
indagar para firmar a conclusão de harmonia com a qual é de arredar a
qualificação dessa imposição como ‘taxa’”
De acordo com a natureza da contraprestação do estado ou de outro ente público,
a própria lei no art. 4º, nº 2 da Lei Geral Tributária (LGT), autonomiza três
situações que revestem a natureza de taxa: a prestação concreta de serviços
públicos, a utilização de um bem do domínio público e a remoção de um obstáculo
jurídico à actividade dos particulares.
Face ao que ficou dito, como caracterizar o tributo impugnado nos presentes
autos?
A doutrina e a jurisprudência recentes têm afastado este tipo tributário da
qualificação de taxa, em alguns casos aproximando-o da figura das contribuições
financeiras a favor das entidades públicas, a que se refere designadamente o
art.º 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição, que estabelece uma reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República quanto à “criação
de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições
financeiras a favor das entidades públicas”.
No parecer junto aos autos da autoria do Prof. Casalta Nabais conclui-se no
sentido de que a taxa em causa está sujeita ao princípio da legalidade fiscal
decorrente dos art.ºs 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da
Constituição, conforme a seguir se transcreve:
“A “taxa de regulação e supervisão” não responde cabalmente ao teste da
bilateralidade, pois a sua instituição não se deve à necessidade de dar resposta
a uma necessidade gerada directa ou indirectamente pelos operadores do sector,
mas antes à satisfação de interesses gerais. (...) Com efeito, o legislador
prevê como fundamento da taxa os “custos específicos incorridos pela ERC” no
exercício da sua actividade de regulação e supervisão, sem concretizar
devidamente o conteúdo da expressão. (...) A circunstância de resultar do
próprio diploma o valor das taxas a pagar por cada operador é indício de que os
custos específicos não dependem da actividade que a ERC efectivamente venha a
prestar a cada operador. Pois não se identificam os custos especiais ocasionados
à entidade reguladora, para além do “custo zero do serviço”. (...) Também não
poderemos reconduzir a bilateralidade da taxa ao critério dos custos imputáveis
como juízo subsidiário de determinação do valor a exigir. É que o legislador
afasta expressamente essa possibilidade, definindo essa taxa como a distribuição
pelos regulados de encargos especiais de regulação segundo critérios do volume
de trabalho, complexidade técnica, características técnicas do meio utilizado,
alcance geográfico e impacte da actividade dos regulados.
(...)
A referida taxa também não responde adequadamente ao teste da proporcionalidade,
pois fica a ideia de que o critério da proporcionalidade pretendido pelo
legislador corresponde, afinal, a uma forma de agravar a tributação das
entidades que revelam maior capacidade contributiva.
(...)
Em suma, o tributo designado por taxa de regulação e supervisão não responde
cabalmente aos testes da bilateralidade e da proporcionalidade, de qualquer
modo, de um tributo que deve ser objecto do tratamento jurídico-constitucional
reservado aos impostos”. devendo ser reconduzido à categoria dos tributos
unilaterais e ao regime jurídico-constitucional dos impostos”
Atentemos no disposto no Artigo 7.º do Decreto-Lei nº 103/2006 que sob a
epígrafe “Distribuição dos encargos em sede de taxa de regulação e supervisão”
dispõe:
“1 - O método de fixação da taxa de regulação e supervisão, constante do anexo
II ao presente decreto-lei e do qual faz parte integrante, assenta numa
distribuição dos encargos de regulação e supervisão contínuas e prudenciais
entre os diversos operadores de comunicação social, segundo os seguintes
critérios:
a) Volume de trabalho repercutido na actividade reguladora;
b) Complexidade técnica da actividade reguladora;
c) Características técnicas do meio de comunicação utilizado;
d) Alcance geográfico do meio de comunicação utilizado;
e) Impacte da actividade desenvolvida pelo operador de comunicação social.
2 - Os critérios repercutidos no método de fixação da taxa de regulação e
supervisão constante do anexo II ao presente decreto-lei e do qual faz parte
integrante determinam o quantitativo da taxa a suportar, que será reproduzido
por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das
finanças e da comunicação social, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 51.º
dos Estatutos da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados
pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro. “
De facto, se tivermos em consideração esta norma, não é possível caracterizar o
tributo em causa como uma taxa, pois falta-lhe a contrapartida específica,
individualizada e concreta dirigida ao sujeito passivo operador na área da
comunicação social e que seria o seu beneficiário.
O que se verifica é que a denominada taxa de regulação e supervisão não tem como
fundamento a prestação de um serviço público concreto, antes visa assegurar os
interesses públicos que o Estado colocou a cargo da ERC, não se concretizando
numa utilização individualizada pelo sujeito passivo, de bens públicos ou
semi-públicos, como contrapartida duma actividade a ele dirigida.
Coloca-se, no entanto a possibilidade de considerar a denominada taxa de
regulação e supervisão como uma contribuição financeira a favor de uma entidade
publica, figura que é admitida na alínea i), do nº 1 do art. 165º da CRP e,
assim sendo, a questão a decidir é a de saber se estará subordinada ao princípio
da legalidade fiscal enquanto reserva de lei formal, tal como este se configura
para os impostos ou, se a reserva de lei diz apenas respeito ao seu regime
geral.
A propósito da figura de contribuições financeiras a favor de entidades
públicas, afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira In “CRP, Constituição da
República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora,
2007, p. 109, o seguinte:
“A mesma norma constitucional também menciona, inovadoramente, a par dos
impostos e das taxas, outras “contribuições financeiras a favor das entidades
públicas”. Com esta referência – que claramente aponta para uma terceira
categoria tributária, ao lado dos impostos e das taxas stricto sensu –, a
Constituição parece ter dado guarida ao controverso conceito de parafiscalidade,
que comporta certas figuras híbridas, que compartilham em parte da natureza dos
impostos (porque não têm necessariamente uma contrapartida individualizada para
cada contribuinte) e em parte da natureza das taxas (porque visam retribuir o
serviço prestado por certa instituição pública, ou dotada de poderes públicos, a
um certo círculo ou certa categoria de pessoas ou entidades, que beneficiam
colectivamente da actividade daquela). É nesta categoria que entram
tradicionalmente as contribuições para a segurança social, as quotas das ordens
profissionais e outros organismos públicos de autodisciplina profissional, as
“taxas” dos organismos reguladores, etc.”
O Tribunal Constitucional tem concluído no sentido de que as imposições
tributárias a favor de organismos de coordenação económica são equiparáveis aos
impostos (por exemplo, Acórdão n.º 1239/96), aplicando-se-lhes o princípio da
legalidade fiscal.
Vejamos.
Do que vem sendo dito, é certo que a denominada taxa de regulação e supervisão
não se enquadra na definição doutrinal e jurisprudencial de imposto ou de taxa,
antes constituindo uma contribuição financeira a favor de uma entidade pública.
Ora, o regime geral das contribuições financeiras a favor de entidades públicas
não foi ainda objecto de regulamentação nos termos do art. 165º, nº 1, al. i) da
CRP, isto é através de lei ou decreto-lei autorizado.
Assim sendo, embora a taxa de regulação e supervisão se encontre prevista no
art. 51º da Lei nº 53/2005 de 08/11 (diploma que criou a ERC), referindo-se a
uma contribuição financeira em favor de uma entidade pública, cujo regime geral
não se encontra regulamentado, deverá submeter-se ao princípio de reserva de
competência parlamentar quanto à determinação da sua taxa e da sua incidência,
bem como dos respectivos benefícios fiscais e das garantias dos contribuintes.
Em conclusão, por razões de segurança jurídica as designadas receitas
parafiscais devem ser criadas nos moldes constitucionais previstos para os
impostos, obedecendo ao princípio da legalidade tributária, o que não obsta a
que tais contribuições se venham a enquadrar num regime geral, cuja definição
legal cabe à Assembleia da República nos termos previstos no art. 165º, nº 1,
al. i) da CRP.
No caso dos autos, o que se verifica é que a incidência, montante, isenções e
garantias dos sujeitos passivos da denominada taxa de regulação foram definidos
por diploma governamental – Decreto-Lei n.º 103/2006 – sem o suporte de uma lei
parlamentar que habilitasse o Governo a aprovar essa legislação.
Também não pode considerar-se que o artigo 51º, nºs 1 e 2 dos Estatutos da ERC,
contém uma autorização legislativa para o efeito, pois o legislador refere-se
expressamente a “taxas devidas como contrapartida dos actos praticados pela ERC”
e como decorre de todo o exposto, a figura tributária a que se deu o nome de
“taxa de regulação” não se inclui na categoria das taxas.
Nos termos supra expostos, a taxa de regulação e supervisão impugnada nos
presentes autos, ao ter sido criada pelo Governo sem autorização legislativa da
Assembleia da Republica, encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por
violação do princípio da legalidade tributária expresso nos art.ºs 165.º, n.º 1,
alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
[...]”
Desta sentença recorreu o Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por ter sido julgada
inconstitucional “a taxa prevista na alínea a), do n.º 3, do artigo 3.º e artigo
4.º, do Regime de Taxas da Entidade Reguladora para a Comunicação Social,
resultante do Decreto-Lei n. 103/2006, de 7 de Junho, por violação do disposto
nos artigos 103.º, n.º 2 e 3 e 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição da
República Portuguesa”.
O recurso foi admitido. O Ministério Público apresentou alegação e concluiu:
“1.º
A parte final da alínea i) do nº 1, do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa prevê a existência de uma terceira categoria tributária, ao lado das
taxas “stricto sensu” e dos impostos, permitindo incluir nas contribuições
financeiras a favor de entidades públicas as “taxas colectivas” que funcionam
como contrapartida do serviço prestado — embora em termos não estritamente
individualizáveis — por uma entidade pública a favor de um círculo ou categoria
de pessoas, que beneficiam colectivamente da actividade daquela.
2º
A taxa de regulação e supervisão, criada e regulada pelos artigos 50º, alínea
b), e 51.º dos Estatutos Anexos à Lei nº 53/05, de 08/11, e pelos artigos 3º, nº
3, alínea a), e 4.º do Regime de Taxas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/06, de
7 de Junho, insere-se na figura dos referidas “taxas colectivas”, estando
consequentemente sujeita a reserva de lei parlamentar apenas quanto ao
respectivo “regime geral”.
3º
Os traços fundamentais de tal taxa resultam, em termos bastantes, da Lei nº
53/05, suportando o respectivo desenvolvimento em diploma editado pelo Governo,
no exercício da sua competência legislativa própria.
4.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A recorrida A., S.A. não apresentou alegação.
II. Fundamentação
2. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, tem
por objecto a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes
dos artigos 3º n.º 3 alínea a), e 4º do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 103/06 de 7
de Junho, que definem o regime da taxa de regulação e supervisão devida à
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e que o Tribunal Administrativo e
Fiscal de Sintra considerou inconstitucionais, por violação do disposto no
artigos 103.º nº 2 e 3 e alínea i) do nº 1 do art. 165.º da Constituição.
A questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso já
foi apreciada pelo Tribunal nos Acórdãos n.º s 365/08 de 2 de Julho e 613/08 de
10 de Dezembro, juízo depois reiterado nas Decisões Sumárias n.ºs 66/2009 e
87/2009 e no Acórdão n.º 261/2009, de 26 de Maio, todos disponíveis para
consulta em www.tribunalconstitucional.pt, tendo sido claramente adoptado um
juízo de não inconstitucionalidade de tais normas.
Pode ler-se no Acórdão n.º 613/08 o seguinte:
“ [...]
6. Ora, o grau de autonomia financeira não pode deixar de se afigurar como um
dos critérios decisivos na aferição da efectiva independência de uma entidade
administrativa não sujeita a qualquer tipo de poderes de controlo por parte do
Governo. O regime de financiamento instituído pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, de
07 de Junho, traduz pois a própria natureza mista da ERC – Entidade Reguladora
para a Comunicação Social.
Na medida em que todos os membros da comunidade residente em território nacional
são beneficiários directos da actividade administrativa da ERC, enquanto pessoa
colectiva pública especialmente vocacionada para a protecção dos direitos,
liberdades e garantias nos meios de comunicação social, é a própria lei [cfr.
alínea a) do artigo 50º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de
8 de Novembro] que determina que uma parte substancial do orçamento próprio
daquela entidade seja assegurada mediante verbas a transferir do Orçamento de
Estado, de cada ano, ou ainda mediante a participação nas taxas de utilização do
espectro radioeléctrico pagas ao ICP-ANACOM, a título de remuneração por
utilização de um bem do domínio público [cfr. alínea a) do artigo 50º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro]. Como é
evidente, ao contrário do que sucede com outras entidades administrativas
reguladoras, não seria expectável – ou sequer compatível com o princípio da
proporcionalidade – que os regulados pela ERC fossem exclusivamente onerados com
os custos financeiros (“excessive burden”) da sua actuação. Pelo contrário, no
caso da ERC, a actividade administrativa desempenhada vai muito para além de uma
clássica função de mera regulação e supervisão económica do mercado da
comunicação social, pelo que sempre será exigível que toda a comunidade
contribua, através dos impostos liquidados por cada contribuinte, para suprir os
custos financeiros da actividade daquela entidade administrativa independente.
Mas, para além de assumir a sua função de entidade administrativa de defesa dos
direitos e liberdades fundamentais, a ERC actua igualmente enquanto entidade
encarregue da regulação e da supervisão do sector económico da comunicação
social. Como tal, outra parcela significativa do orçamento próprio da ERC não
pode deixar de ser sustentada por taxas (e outras contribuições financeiras) a
cobrar junto das entidades que prosseguem actividades de comunicação social e,
como tal, se encontram sujeitas à actividade reguladora daquela entidade
administrativa independente. Na medida em que a actividade da ERC também visa
assegurar a promoção de um mercado mais eficiente, transparente e de sã
concorrência, torna-se inevitável que os próprios regulados participem nos
custos financeiros daquela actividade.
Resta assim verificar se, tal como entendido pela decisão recorrida, a
participação dos regulados não pode ser feita mediante pagamento de uma “taxa de
regulação e supervisão”, na medida em que as normas constantes dos artigos 3º,
n.º 3, alínea a), e 4º do Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
103/2006, de 7 de Junho, são inconstitucionais, por violação do artigo 103º, nºs
2 e 3, e da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa.
7. Antes de avançar, importa transcrever os preceitos legais em apreciação:
“Artigo 3.º
(Natureza e espécies de taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação
Social)
(…)
3 - As taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social integram-se
nas seguintes categorias:
a) Taxa de regulação e supervisão;
(…)
Artigo 4.º
(Taxa de regulação e supervisão)
1 - Ao abrigo da alínea b) do artigo 50.º e do n.º 1 do artigo 51.º dos
Estatutos da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados pela
Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, a taxa de regulação e supervisão visa
remunerar os custos específicos incorridos pela ERC - Entidade Reguladora para a
Comunicação Social no exercício da sua actividade da regulação e supervisão
contínua e prudencial.
2 - Estão sujeitas à taxa de regulação e supervisão todas as entidades que
prossigam, sob jurisdição do Estado Português, actividades de comunicação
social, sendo o quantitativo da taxa calculado em conformidade com a categoria
em que se inserem e com a subcategoria de intensidade reguladora necessária.
Ora, a decisão recorrida afirmou que:
“Dificilmente se poderá considerar o tributo em causa como uma taxa atent[a] a
falta de uma contrapartida específica e individualizada em relação ao seu
sujeito passivo e em concreto, na pessoa do respectivo operador da área da
comunicação social sua beneficiária. Efectivamente, aquela não tem por
fundamento a prestação concreta de um serviço público, antes visam assegurar os
interesses públicos postos a seu cargo pelo Estado, não se concretizando numa
utilização individualizada pelo sujeito passivo de bens públicos ou
semi-públicos, com contrapartida numa actividade do credor especialmente
dirigida ao mesmo.” (fls. 189 a 190).
Tal concepção de “taxa”, exclusivamente ancorada na verificação de uma
contrapartida expressa através da prestação de um serviço público, aparenta
desconsiderar que o n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária configura como
taxa não só aqueles tributos que visam retribuir a prestação de um serviço
público, mas também a utilização de um bem do domínio público ou a remoção de um
obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares. Porém, não cabe, neste
momento, aprofundar um juízo sobre a qualificação jurídico-tributária a atribuir
à “taxa de regulação e supervisão”, prevista artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º
do Anexo I relativo ao Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho.
Independentemente de tal qualificação ser susceptível de controvérsia – tendo,
aliás, sido colocada em causa pela recorrente ERC, em sede de alegações –, não
cabe, nos presentes autos, desenvolver este tema. É que, por força do artigo
79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a
constitucionalidade de normas que tenham sido efectivamente desaplicadas pelos
tribunais recorridos. Ora, neste caso concreto, a decisão recorrida apenas
desaplicou as normas constantes dos referidos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º,
quando interpretadas no sentido de que a referida “taxa de regulação e
supervisão” se reconduz a uma “contribuição financeira” a favor de uma entidade
pública e não a uma “taxa”.
Procede-se, então, ao conhecimento da questão de inconstitucionalidade suscitada
pela desaplicação normativa adoptada pela decisão recorrida.
8. Qualquer que seja a terminologia adoptada pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, ou a
conclusão a que se chegue acerca da discussão sobre a natureza de “taxa” – em
função da sua maior ou menor sinalagmaticidade –, importa notar que a actual
redacção da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, após a revisão
constitucional de 1997, distingue claramente “impostos”, de uma parte, de
“taxas” e “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, de
outra parte (para um maior desenvolvimento, veja-se o Acórdão n.º 365/2008,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Se quanto aos “impostos”, é fixada uma reserva de competência legislativa
parlamentar quanto à respectiva criação, já quanto às “contribuições financeiras
a favor das entidades públicas” apenas é exigível a fixação parlamentar do
respectivo regime geral, aproximando-as, a final, do regime aplicável às
“taxas”.
9. Ora, como já notado por este Tribunal (cfr. Acórdão n.º 365/2008, disponível
in www.tribunalconstitucional.pt), na falta de um regime geral fixado por lei
parlamentar, deve dar-se por suficientemente protector da reserva de lei
parlamentar o preceituado na própria lei de valor reforçado que criou a ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social. É que o legislador parlamentar,
através do n.º 1 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º
53/2005, de 8 de Novembro, não se limitou a remeter para o legislador
governamental a fixação das taxas (e demais contribuições financeiras –
acrescenta o Tribunal) devidas àquela “entidade administrativa independente”.
A criação de taxas e demais contribuições financeiras, para efeitos de inclusão
nas receitas da ERC, consta expressamente da alínea b) do artigo 50º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro. Sucedeu
apenas que, nos termos do já referido n.º 1 do artigo 51º do mesmo diploma, se
remeteu para decreto-lei do Governo a determinação de: i) critérios de
incidência; ii) requisitos de isenção; iii) valor das taxas. Daqui decorre que
foi a Assembleia da República quem, mediante lei de valor reforçado [cfr. n.º 3
do artigo 112º e alínea a) do n.º 6 do artigo 168º, ambos da CRP] criou
expressamente as taxas e demais contribuições financeiras a suportar pelas
entidades sujeitas à regulação e supervisão da ERC, remetendo para decreto-lei a
sua concretização.
Mas, ainda mais relevante, o próprio legislador parlamentar não se furtou a
fixar estritos limites de conteúdo ao diploma legal regulamentador das taxas e
demais contribuições financeiras. Pelo contrário, o legislador parlamentar fixa
os princípios fundamentais a respeitar pela legislação densificadora, a saber:
a) Critérios para fixação das taxas (e demais contribuições financeiras), de
acordo com princípios de objectividade, transparência e proporcionalidade – cfr.
n.º 2 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08
de Novembro;
b) Delimitação dos sujeitos passivos das taxas (e demais contribuições
financeiras) – cfr. n.º 4 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei
n.º 53/2005, de 08 de Novembro;
c) Tendencial sinalagmaticidade entre a actividade de regulação gerada pelo
sujeito passivo e o montante da taxa (e demais contribuições financeiras) a
suportar – cfr. n.º 4 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º
53/2005, de 08 de Novembro;
d) Periodicidade da liquidação e pagamento das taxas (e demais contribuições
financeiras) – cfr. n.º 5 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei
n.º 53/2005, de 08 de Novembro.
Em suma, da análise da concreta configuração da lei de valor reforçado que criou
a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, resulta que deve dar-se
por preenchida a exigência de previsão parlamentar de um regime geral das
contribuições financeiras, sendo que – neste caso concreto – a definição
parlamentar dos princípios gerais aplicáveis ao regime de taxas e demais
contribuições financeiras se apresenta até mais pormenorizado do que seria
exigível a um regime geral fixado por lei parlamentar (neste sentido
pronunciou-se este Tribunal, no já citado Acórdão n.º 365/2008, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, independentemente da discussão sobre a natureza jurídico-tributária da
“taxa de regulação e supervisão”, e apreciando exclusivamente a interpretação
normativa desaplicada pela decisão recorrida, que considerou que aquela
integraria a categoria de “contribuição financeira devida a entidade pública”,
conclui-se que as normas extraídas dos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º do
Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, não são
inconstitucionais, pois não violaram os nºs 2 e 3 do artigo 103º e da alínea i)
do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, nem se
vislumbram outros fundamentos de inconstitucionalidade, pelo que deve ser
concedido provimento aos recursos interpostos, com a necessária reforma da
decisão recorrida, nos termos do n.º 2 do artigo 80º da LTC.
[…]”
Não havendo razões para divergir da solução adoptada pelo Tribunal, é a esta
jurisprudência que se adere, concluindo-se também no sentido da não
inconstitucionalidade das normas que constituem o objecto do presente recurso.
III. Decisão
3. Nestes termos, o Tribunal Constitucional julga procedente o recurso e, em
consequência, decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas extraídas dos artigos 3º n.º 3 alínea
a) e 4º do Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora
para a Comunicação Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/2006 de 7 de Junho;
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Julho de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos