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Processo n.º 698/09
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República requer, nos termos do disposto no artigo 278.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51.º, n.º 1, e
57.º, n.º 1, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), “a apreciação da conformidade com a mesma Constituição da
norma da alínea b) do n.º 6 do artigo 14.º enquanto conjugada com as normas das
alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo constante do Decreto n.º 366/X da
Assembleia da República, recebido na Presidência da República no dia 12 de
Agosto de 2009 para ser promulgado como lei”.
Indica os seguintes fundamentos:
«1º
A norma impugnada integra o Decreto nº 366/X, diploma que aprova o novo Código
de Execução das Penas e que altera, significativamente, o modelo da legislação
vigente sobre a matéria, bem como o próprio paradigma penal relativo aos fins
das penas, determinando, para além do reforço dos direitos dos reclusos:
a) A substituição do juiz do tribunal de execução de penas pelo Ministério
Público no respeitante ao exercício da actividade de visitação regular dos
estabelecimentos prisionais, de verificação da legalidade das decisões dos
serviços prisionais e de outras funções relativas à execução da pena;
b) A atribuição a órgãos da administração penitenciária do poder e da obrigação
de decidir sobre a colocação do recluso em regime aberto, quando estiverem
reunidos um conjunto de pressupostos de forma e de fundo.
2º
O regime jurídico em apreciação não deixa de suscitar dúvidas sobre a
concordância prática entre a tutela de novos direitos reconhecidos aos reclusos
e a prossecução dos fins de reparação social, a salvaguarda efectiva dos bens
jurídicos fundamentais que o Direito Penal deve assegurar e a prevenção de
situações causadoras de alarme social geradas pela colocação, não materialmente
justificada, de condenados por crimes graves, em meios livres.
3º
Dispõe a norma do nº 3 do artigo 12º do Decreto nº 366/X que a execução das
penas e medidas privativas da liberdade em regime aberto decorre em
estabelecimento ou unidade prisional de segurança média e favorece os contactos
com o exterior e a aproximação à comunidade, admitindo duas modalidades, a
saber:
i) O regime aberto no interior, que implica o desenvolvimento de actividades
dentro do estabelecimento prisional ou nas suas imediações, com vigilância mais
atenuada;
ii) O regime aberto no exterior, caracterizado pelo desenvolvimento de
actividades de ensino, formação profissional, trabalho ou programas em meio
livre e sem vigilância directa.
4º
Pelo seu turno, o artigo 14º do diploma fixa os pressupostos da colocação do
recluso em regime aberto, a qual ocorre sempre com o seu consentimento,
cumprindo sublinhar, de entre outros:
i) Prévia formulação de um juízo de prognose favorável a uma não subtracção do
recluso à execução da pena ou ao não aproveitamento desse regime para delinquir;
ii) Adequação do regime aberto ao comportamento prisional do recluso, à
salvaguarda da ordem, segurança e disciplina no estabelecimento prisional, à
protecção da vítima e à defesa da ordem e paz social;
iii) Colocação em regime aberto no exterior dos reclusos que, encontrando-se na
situação prevista nos nºs i) e ii) desta rubrica, tenham cumprido um quarto da
pena, gozado previamente uma saída jurisdicional com êxito e que não tenham
pendente um processo que implique prisão preventiva;
iv) Cessação da colocação do recluso em regime aberto, no caso de deixarem de se
verificar os pressupostos referidos ou de se verificar o incumprimento pelo
recluso das condições relativas à concessão desse regime.
Sucede que,
5º
A competência para a decisão de colocação do recluso em regime aberto no
exterior, de acordo com a alínea b) do nº 6 do artigo 14º do decreto, é cometida
ao Director-Geral dos Serviços Prisionais.
6º
Cumpre, em qualquer caso, ao Ministério Público junto do Tribunal de Execução
das Penas, de acordo com a alínea b) do artigo 141º do diploma, verificar a
legalidade da decisão de colocação do recluso em regime aberto no exterior (a
qual lhe deve ser comunicada nos termos do nº 8 do artigo 14º) e proceder à sua
impugnação junto do tribunal de execução das penas, caso a considere ilegal.
7º
Se é um facto que os regimes abertos no interior e no exterior das prisões se
encontram acolhidos na legislação em vigor (Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de
Agosto, e respectivas alterações), sendo a correspondente autorização também
cometida à competência da administração penitenciária, verifica-se, contudo, que
os pressupostos dessa autorização foram modificados e alargados em termos que
suscitam dúvidas quanto à sua constitucionalidade.
8º
Entre o modelo vigente e o novo modelo legal de colocação do recluso em regime
aberto ao exterior existem algumas diferenças que importa assinalar:
a) Enquanto o modelo vigente supõe que o regime aberto ao exterior possa ser
concedido, caso a caso, pela administração prisional ao recluso, quando a sua
personalidade e comportamento o justifiquem[1], já o novo modelo consagra o
instituto como um virtual direito, alargado indistintamente a todos os reclusos,
cabendo à administração o exercício de um poder-dever de examinar a sua situação
e decidir com base num conjunto de pressupostos legais de fundo e forma[2];
b) Enquanto no modelo vigente os pressupostos que fundamentam a concessão do
referido regime consistem na ausência de receio que o condenado se subtraia à
execução da pena ou se aproveite da situação para delinquir[3], no novo modelo
exige-se, cumulativamente, que a administração pondere também a adequação do
regime ao comportamento prisional do recluso, à segurança e disciplina no
estabelecimento prisional, à protecção da vítima e à defesa da ordem e da paz
social[4];
c) Enquanto o modelo vigente de regime aberto ao exterior configura uma virtual
excepção ao regime geral de execução de penas, sendo passível de ser conferido
num momento de consolidação da mesma pena, mormente em fase avançada de
preparação para a liberdade[5], o novo modelo admite que o regime aberto ao
exterior possa ser concedido como regra geral e numa fase precoce, após o
cumprimento de apenas um quarto da pena[6];
d) Enquanto o modelo vigente implica que o detido possa sair do estabelecimento,
com ou sem custódia[7], o novo modelo determina que o recluso saia sempre sem
vigilância directa[8];
e) Enquanto o modelo vigente estabelece algumas regras sobre os termos do
cumprimento da pena em regime aberto[9], o novo modelo, que revoga a legislação
em vigor, nada esclarece sobre a relação entre o estabelecimento penitenciário e
o recluso, os limites temporais de aplicação do regime aberto ao exterior e a
sua relação com a liberdade condicional, deixando de regular a configuração dos
termos em que se executa o referido regime.
9º
Se não é isenta de dúvidas de constitucionalidade, atenta a salvaguarda da
reserva de jurisdição e do respeito pelo caso julgado, a faculdade hoje
conferida ao Director Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) pelo nº 1 do artigo
58º do Decreto-Lei nº 265/79, para colocar um recluso em regime aberto no
exterior, as mesmas dúvidas tornam-se ainda mais pertinentes a propósito da
norma constante da alínea b) do nº 6 do artigo 14º do Decreto n.º 366/X,
conjugada com as alíneas a) e b) do nº 1 e com a norma do nº 4 do mesmo artigo,
na medida em que a mesma alarga os requisitos que condicionam a decisão do DGSP.
10º
O paradigma em vigor em sede de execução das penas de privação de liberdade, em
sentido amplo[10], consiste na distinção entre um domínio material de controlo e
modelação da execução que é cometido à actividade jurisdicional desenvolvida
pelo tribunal de execução das penas - e, mais concretamente, pelo juiz desse
tribunal - e um domínio de organização e inspecção das instalações
penitenciárias voltado para o cumprimento da pena, que é atribuído à função
administrativa[11].
11º
Daí que, ao abrigo da mesma legislação, se tenha clarificado, no respeitante à
definição do âmbito da reserva de jurisdição em matéria de execução de penas,
que:
a) A execução de penas previstas na lei criminal só pode ter lugar mediante
decisão do tribunal competente transitada em julgado, dotada de força executiva
e pela forma prevista na lei (artigo 5º do Decreto-Lei nº 402/82);
b) Compete aos tribunais de execução de penas decidir sobre a cessação do estado
de perigosidade criminal, sobre a substituição das penas por liberdade vigiada
ou caução, sobre a concessão da liberdade condicional ou sobre a sua revogação e
sobre a reabilitação dos condenados em quaisquer penas (artigo 22º do
Decreto-Lei nº 783/76);
c) Compete ao juiz do tribunal de execução das penas conceder e revogar saídas
precárias prolongadas (nº 4 do artigo 23º do Decreto-Lei nº 783/76);
12º
O conteúdo e alcance da função jurisdicional retira-se do artigo 202º da CRP,
dela decorrendo que:
a) No plano orgânico, essa actividade é exercida exclusivamente pelos tribunais,
pois “Só aos tribunais compete administrar a justiça (reserva de juiz) não
podendo ser atribuídas funções jurisdicionais a outros órgãos, designadamente à
Administração Pública” (Acórdão nº 453/93 do Tribunal Constitucional);
b) A mesma função supõe a passividade, imparcialidade, irresponsabilidade e
independência dos tribunais (artigo 216º da CRP) atributos que são logicamente
extensíveis ao estatuto dos magistrados judiciais, traduzindo-se em especial, a
independência dos juízes, “(…) no dever de julgar apenas segundo a Constituição
e a lei, sem sujeição, portanto, a quaisquer ordens ou instruções”, pelo que na
“interpretação e aplicação das leis, hão-de (…) agir sem outra obediência que
não seja aos ditames da sua própria consciência” (Acórdão nº 393/89);
c) No plano substancial, de acordo com o artigo 202º da CRP, a “concretização da
reserva para administrar a justiça” em nome do povo, implica a atribuição de
competência aos tribunais para reprimirem a violação da legalidade democrática
(Acórdão nº 67/2006) mas também a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos e a composição de conflitos de interesses públicos e
privados;
d) Segundo o Tribunal Constitucional, ter-se-á atingido “uma definição
teleológica da função jurisdicional que atende ao desígnio da intervenção dos
órgãos do poder político do Estado, desígnio que é, na função jurisdicional (…)
estritamente jurídico, visando a realização do direito objectivo pela
composição de interesses conflituantes” (Acórdão nº 963/96);
e) No que respeita à delimitação entre a actividade jurisdicional e outras
funções do Estado, entende o Tribunal Constitucional que a “separação real entre
função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses
em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em
confronto são apenas os das partes, a administração, embora na presença de
interesses alheios, realiza o interesse público” (Acórdão nº 453/83) pelo que,
no primeiro caso, “a decisão situa-se num plano distinto do dos interesses em
conflito” (Acórdão nº 104/85).
13º
Em face do exposto nos números precedentes, haverá que reconhecer que a natureza
da competência para decidir sobre a colocação de um recluso em regime aberto no
exterior, nos termos do Decreto-Lei nº 265/79, integra uma delicada área de
fronteira entre a função administrativa e a função jurisdicional.
14º
Confrontando o regime aberto ao exterior previsto na legislação vigente com a
figura da liberdade condicional, verifica-se que se trata de dois institutos com
diferenças jurídicas estruturais, na medida em que:
a) Enquanto que o regime aberto ao exterior pode, em tese, ser configurado como
um regime prisional, com possibilidades limitadas de saída para um espaço livre,
a liberdade condicional consiste num regime de liberdade, com limites e
condicionamentos;
b) Enquanto o regime aberto ao exterior é concebido pela lei como um instrumento
de flexibilização de execução da pena, intrínseco à gestão da vida interna da
prisão e, como tal, pertencendo ao domínio da administração prisional, a
liberdade condicional consiste numa alteração ao conteúdo da sentença
condenatória que só pode ser decidida dos [pelos] tribunais;
c) Enquanto o regime aberto ao exterior assume carácter excepcional e supõe um
poder facultativo cometido ao DGSP para o exame discricionário de casos
individuais, a liberdade condicional implica, no caso previsto no nº 3 do artigo
61º do Código Penal uma decisão obrigatória do juiz (sempre que o detido cumpra
dois terços da pena) sendo, todavia, em regra, um poder-dever de exame de
legalidade e mérito da sua situação, depois de cumprida metade da pena.
15º
Existem, por outro lado figuras ecléticas ou híbridas, como a decisão relativa à
atribuição de licenças precárias prolongadas, que a legislação em vigor integra
no âmbito da função jurisdicional (nº 4 do artigo 23º do Decreto-Lei nº 783/76)
mas que um sector da doutrina considera como passível de atribuição à
administração penitenciária por consistir num domínio próprio da vida interna
das prisões[12].
16º
Sucede, porém, que a nova disciplina relativa ao regime aberto no exterior, que
consta do decreto sindicado, acabou por deixar materialmente a esfera intrínseca
da função administrativa para perpetrar uma incursão parcelar no domínio próprio
da actividade jurisdicional, aproximando-se do instituto da liberdade
condicional, a dois níveis.
Assim, em primeiro lugar,
17º
A apreciação da situação objectiva e subjectiva do detido pela administração
prisional, tendo em vista a possibilidade da sua colocação em regime aberto no
exterior deixa ser facultativa, excepcional e casuística[13], para passar a
constituir um poder-dever[14] da mesma administração, que deverá tomar uma
decisão sobre o acesso a esse regime por parte de todos os detidos que tenham já
cumprido um quarto da pena e reúnam um conjunto de outros requisitos de forma e
fundo.
18º
Todos os condenados passam a ser titulares do direito de, observados os
pressupostos devidos, poderem exigir da administração a apreciação da sua
situação detentiva, tendo em vista a sua colocação em regime aberto ao exterior,
afinal, em termos idênticos ao disposto no nº 2 do artigo 61º do Código Penal,
que impõe ao juiz uma apreciação formal e de fundo da situação de todos os
condenados que tenham cumprido metade da pena, tendo em vista a sua colocação em
liberdade condicional.
Ora,
19º
Se a nova obrigação conferida à administração, quanto à tomada de uma decisão
sobre a colocação do detido em regime aberto ao exterior, pressupõe o
reconhecimento da faculdade do detido em exigir o respectivo cumprimento, caso
estejam reunidos os requisitos previstos nos nºs 1 e 4 do artigo 14º do decreto
sindicado, tem-se então que a norma impugnada:
a) Envolve o reconhecimento de um novo direito dos detidos ao acesso restringido
a um meio livre pelo que, para tutela desse direito, que se encontra de algum
modo conexo com irradiações do direito à liberdade, encontram-se reunidos
idênticos requisitos em relação aos que determinaram que o acto de colocação do
condenado em liberdade condicional pertença à função jurisdicional;
b) Atento o reconhecimento desse direito, tem-se que a decisão de forma e de
fundo sobre a concessão do regime aberto ao exterior reclama um juízo imparcial
de tutela e composição de conflitos entre os direitos e interesses dos detidos e
o interesse público representado pela administração, conflitos que sempre
despontam com a alteração da execução da pena derivada da colocação do detido
nesse meio livre;
c) Semelhante tutela de direitos e composição de interesses contrapostos, que
inere ao processo de execução das penas deve respeitar, por conseguinte, ao
exercício da função jurisdicional e não à função administrativa, nos termos das
considerações expendidas nas alíneas c), d) e e) do nº 11º deste pedido.
Em segundo lugar
20º
A incursão perpetrada pela norma legal sindicada na reserva de jurisdição
ocorre, também, em sede dos requisitos de fundo que devem fundamentar a decisão
de colocação do detido em regime aberto ao exterior.
Na verdade
21º
De acordo com as normas constantes das duas alíneas do nº 1 do artigo 14º do
Decreto n.º 366/X, para além de terem sido mantidos dois requisitos de fundo,
idênticos aos que se encontram previstos na legislação vigente relativa ao
regime aberto ao exterior (ausência de receio que o recluso se subtraia à
execução da pena ou aproveite da aplicação do regime para voltar a delinquir)
necessário será que o DGSP formule, igualmente, um juízo de mérito sobre a
adequação desse regime:
a) Ao comportamento prisional do recluso;
b) À segurança e disciplina no estabelecimento prisional;
c) À protecção da vítima;
d) À defesa da ordem e paz social.
22º
Sem prejuízo de se entender que o juízo de mérito sobre a aferição dos dois
pressupostos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 14º do decreto impugnado
deveria, na dúvida, integrar, a reserva de jurisdição, pois envolve uma
apreciação sobre a personalidade e perigosidade do detido[15], estima-se que,
pelo menos, os juízos de fundo que têm por objecto a protecção da vítima e a
defesa da ordem e paz social incorporam, necessariamente, o âmbito material da
reserva jurisdicional.
Com efeito,
23º
Todo o tribunal condena em razão da teleologia que inere aos fins das penas,
pelo que, quer a protecção da vítima quer a exigência de garantia da ordem e paz
social constituem pressupostos de escolha da medida da pena a aplicar e supõem,
na qualidade de exigências de prevenção, a formulação de ponderações
garantísticas ligadas ao alarme social, determinando o conteúdo da sentença que
condena o arguido a uma dada pena de privação de liberdade (cfr. parte final do
nº 1 do artigo 71º do Código Penal).
Ora,
24º
Na medida em que o DGSP formule um juízo decisório de mérito sobre a adequação
do regime de abertura no exterior à protecção da vítima e à garantia da ordem em
paz social, do qual resulte a substituição da prisão efectiva à qual o arguido
foi condenado por um regime de acesso a um meio livre sem vigilância directa,
cujo conteúdo e limites o decreto impugnado se abstém de definir, verifica-se
que essa decisão administrativa modifica os pressupostos, os termos e o sentido
da sentença condenatória.
Cumpre recordar que,
25º
O Tribunal Constitucional considera que a liberdade condicional deve ser
“encarada como uma modificação substancial da condenação” (Acórdão nº 477/2007),
pelo que a competência para essa modificação só pode ser ditada pelo mesmo poder
do Estado que decide a condenação, ou seja, pelo juiz, integrando a competência
para decidir a liberdade condicional um domínio necessário da reserva da função
jurisdicional, nomeadamente através do tribunal de execução de penas.
Ora,
26º
As normas das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º do decreto impugnado
consagram pressupostos de fundo para a colocação do detido em regime aberto no
exterior que são análogos aos previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo
61º do Código Penal tendo em vista a concessão da liberdade condicional,
relevando nestes os requisitos de prevenção respeitantes à defesa da ordem e da
paz social, pelo que:
a) Se se reconhece que uma decisão de concessão de liberdade condicional implica
uma modificação da sentença condenatória em virtude da alteração das exigências
de prevenção que tinham relevado para a medida da pena, não poderá, por
identidade de razão, deixar de se reconhecer idênticos efeitos modificativos à
decisão fundada em requisitos análogos que coloca o detido em regime aberto ao
exterior;
b) A colocação em “meio livre” no exterior das pessoas condenadas a penas de
prisão que tenham cumprido um quarto da mesma, constitui uma modificação da
decisão condenatória transitada em julgado, pelo que a norma sindicada aproxima
esse regime ao instituto da liberdade condicional, tanto pela homologia de
pressupostos de escopo preventivo que podem fundamentar uma alteração material
da sentença condenatória, como pelo resultado social que visam garantir, e que
consiste na prevenção do risco e do alarme social;
d) Na medida em que o regime aberto no exterior implique uma modificação
substancial do sentido e dos termos da condenação, considera-se que a decisão
correspondente não pode, por força de uma inevitável analogia com os
pressupostos de fundo de ordem preventiva relativos à concessão da liberdade,
deixar de integrar a reserva de jurisdição, não sendo portanto admissível que
possa ser cometida à competência da Administração, como faz a norma impugnada;
e) Não compete, por outro lado, à administração prisional, sob pena de
inconstitucionalidade orgânica fundada em usurpação de poderes, alterar ou
substituir o sentido da condenação, ultrapassando o caso julgado que sela as
decisões jurisdicionais condenatórias, cuja força goza de protecção
constitucional à luz do princípio da segurança jurídica (artigo 2º, conjugado
com o nº 3 do artigo 282º, ambos da CRP).
27º
Não se diga, por outro lado, que a norma impugnada respeita o princípio da
separação de poderes, em virtude da solução interpretativa segundo a qual a
decisão do DGSP em colocar um condenado em regime aberto no exterior seria
sempre controlada no plano da legalidade pelo Ministério Público e, em caso de
impugnação, julgada pelo tribunal de execução de penas.
É que, neste caso
28º
A questão central da repartição de poderes radica no facto de a norma sindicada
reduzir o papel do tribunal a um controlo formal dos pressupostos legais da
concessão do regime livre, quando é, na verdade, ao tribunal que cabe formular
um juízo de mérito sobre a componente moduladora da execução da pena que envolva
uma alteração das exigências de prevenção que tinham relevado para a medida da
mesma pena, nomeadamente a defesa dos interesses da vítima e da garantia da
ordem e paz social.
29º
Nem se diga, finalmente, que a colocação em regime aberto ao exterior não
consiste numa libertação do detido, mas numa mera flexibilização da situação
detentiva deste, não alterando, por conseguinte, a sentença condenatória nem o
caso julgado.
30º
Na verdade, a colocação de um detido que tenha sido condenado, por exemplo, à
pena de vinte anos de prisão efectiva, em regime aberto ao exterior volvidos
apenas cinco anos após o inicio do cumprimento da mesma pena, autorizando-o, sem
vigilância directa, a aceder a um meio de liberdade que lhe permita,
potencialmente, privar com a sociedade e, eventualmente, aceder à vítima:
a) Implica materialmente a outorga ao condenado de um certo quinhão de liberdade
parcial, mas efectiva, que modifica o sentido da sentença que o condenou a uma
pena de prisão onde esse acesso a meio livre não se encontrava pressuposto;
b) Altera, também, o sentido da pena na medida em que o acesso a meio livre sem
vigilância directa pode criar uma situação de risco e de alarme social, que,
tendo estado presente como pressuposto da condenação, só pode ser reavaliada
pelo mesmo poder competente para condenar, ou seja, o poder dos tribunais.
Em suma,
31º
Importando precisar, conclusivamente, o problema da delimitação entre
administração e jurisdição que foi equacionado no nº 11º deste pedido,
considera-se que a decisão de colocação do condenado em regime aberto no
exterior prevista no Decreto n.º 366/X, apenas poderá integrar o âmbito material
da função jurisdicional, porque:
a) A decisão em causa implica não só a realização da justiça, a defesa da
legalidade e a tutela de direitos dos reclusos mas também a composição de
interesses conflituantes, mormente os do próprio recluso, da vítima, da
administração e da sociedade em geral, que emergem do acesso do condenado a um
espaço livre e sem vigilância directa, o qual torna indispensável a intervenção
de um órgão independente que julgue a questão de acordo com o Direito;
b) A decisão de colocação do recluso em regime aberto no exterior, atentos os
interesses contrapostos enunciados, não pode validamente ser cometida ao DGSP, o
qual, como órgão administrativo dependente do Governo, não assume uma posição
distinta dos direitos e interesses em conflito, já que se encontra vinculado à
prossecução do interesse público da administração, que pode não coincidir com o
do condenado ou com o da vítima;
c) Admitindo-se que o legislador possua uma margem de liberdade de conformação
para alterar a matriz do sistema de execução de penas e para configurar a
concessão do regime aberto ao exterior como matéria de competência da
administração, não pode o mesmo, todavia, proceder a essa configuração em termos
que impliquem uma incursão da administração na esfera da reserva de jurisdição e
o desrespeito pelo julgado penal.
32º
Atenta a motivação exposta no articulado deste pedido, requeiro que seja
apreciada a constitucionalidade da norma da alínea b) do nº 6 do artigo 14º do
Decreto n.º 366/X, conjugada com as normas das alíneas a) e b) do nº 1 do mesmo
artigo com fundamento em violação:
a) Da reserva de jurisdição, prevista no artigo 202º da CRP;
b) Do imperativo do respeito pelo caso julgado, por parte dos órgãos da
Administração Pública, nos termos do artigo 2º e do disposto no nº 3 do artigo
282º da CRP».
2. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 13 de Agosto de 2009 e o
pedido foi admitido na mesma data.
3. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da
Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
II. Fundamentação
1. O Presidente da República requer a apreciação da “norma da alínea b) do n.º 6
do artigo 14.º enquanto conjugada com as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do
mesmo artigo constante do Decreto n.º 366/X da Assembleia da República”, com
fundamento em violação da reserva de jurisdição, prevista no artigo 202.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP) e do imperativo do respeito do caso
julgado, por parte dos órgãos da Administração Pública, nos termos do artigo 2.º
e do disposto no n.º 3 do artigo 282.º da CRP.
A norma que é objecto deste processo de fiscalização preventiva insere-se no
Título IV do Livro I do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da
Liberdade, aprovado pelo Decreto n.º 366/X da Assembleia da República. O artigo
14.º tem a seguinte redacção:
«Artigo 14.º
Regime aberto
1- O recluso condenado é colocado em regime aberto, com o seu consentimento, se:
a) Não for de recear que se subtraia à execução da pena ou medida privativa da
liberdade ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe proporciona
para delinquir; e
b) O regime se mostrar adequado ao seu comportamento prisional, à salvaguarda da
ordem, segurança e disciplina no estabelecimento prisional, à protecção da
vítima e à defesa da ordem e da paz social.
2 - Verificados os pressupostos do número anterior, são colocados em
regime aberto no interior os reclusos condenados em pena de prisão de duração
igual ou inferior a um ano.
3 - Verificados os pressupostos do n.º 1, podem ser colocados em regime
aberto no interior os reclusos condenados em pena de prisão de duração superior
a um ano, desde que tenham cumprido um sexto da pena.
4 - A colocação em regime aberto no exterior depende ainda do cumprimento
de um quarto da pena, do gozo prévio de uma licença de saída jurisdicional com
êxito e de que não se verifique pendência de processo que implique a prisão
preventiva.
5 - A colocação do recluso em regime aberto cessa se deixarem de
verificar-se os pressupostos previstos nos números anteriores ou se o recluso
deixar de cumprir as condições estabelecidas aquando da sua concessão.
6 - A colocação do recluso em regime aberto e a sua cessação são da
competência:
a) Do director do estabelecimento prisional, no caso de regime aberto no
interior;
b) Do Director-Geral dos Serviços Prisionais, no caso de regime aberto no
exterior.
7 - As decisões de colocação em regime aberto no interior, bem como de cessação
deste, são comunicadas ao Director-Geral dos Serviços Prisionais.
8 - As decisões de colocação em regime aberto no exterior, bem como de cessação
deste, são comunicadas ao Ministério Público junto do Tribunal de Execução das
Penas para verificação da legalidade.
9 - Os reclusos colocados em regime aberto estão sujeitos à realização periódica
ou aleatória dos testes referidos na alínea g) do artigo 8.º» (itálico aditado).
2. De acordo com o artigo 12.º, n.ºs 1 e 3, do Código aprovado pelo Decreto n.º
366/X, também as medidas privativas da liberdade podem ser executadas em regime
aberto (no interior e no exterior), dispondo o artigo 127.º que “os regimes de
execução previstos no presente Código aplicam-se, com as necessárias adaptações,
ao inimputável e ao imputável internado em estabelecimento de inimputáveis”.
Considerando o teor do pedido é de concluir, no entanto, que o mesmo incide
estritamente sobre a colocação em regime aberto no exterior de condenados em
pena de prisão.
3. A norma que é objecto do pedido insere-se nas disposições que integram o
Regime aberto, enquanto modalidade dos Regimes de execução previstos: regime
comum (artigos 12.º e 13.º); regime aberto (artigos 12.º e 14.º); e regime de
segurança (artigos 12.º e 15.º). Para a determinação da modalidade do regime de
execução tem-se em conta a avaliação do recluso e a sua evolução ao longo da
execução, privilegiando-se o que mais favoreça a reinserção social,
salvaguardados os riscos para o recluso e para a comunidade e as necessidades de
ordem e segurança (artigo 12.º, n.º 1).
O regime aberto comporta duas modalidades: o regime aberto no interior e o
regime aberto no exterior (n.º 3 do artigo 12.º). Este último caracteriza-se
pelo desenvolvimento de actividades de ensino, formação profissional, trabalho
ou programas em meio livre, sem vigilância directa (alínea b) do n.º 3 do artigo
12.º).
A colocação do recluso condenado em regime aberto no exterior tem os seguintes
pressupostos (formais e materiais) de acordo com o disposto no artigo 14.º, n.ºs
1, alíneas a), e b), e 4, do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X:
a) Consentimento do recluso;
b) Não ser de recear que o recluso se subtraia à execução da pena ou medida
privativa da liberdade ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe
proporciona para delinquir;
c) O regime mostrar-se adequado ao comportamento prisional do recluso, à
salvaguarda da ordem, segurança e disciplina no estabelecimento prisional, à
protecção da vítima e à defesa da ordem e da paz social;
d) Cumprimento de um quarto da pena;
e) Gozo prévio de uma licença de saída jurisdicional com êxito;
e) Não verificação da pendência de processo que implique a prisão preventiva.
A colocação do recluso em regime aberto no exterior é da competência do
Director-Geral dos Serviços Prisionais (alínea b) do n.º 6 do artigo 14.º),
sendo a decisão comunicada ao Ministério Público, junto do Tribunal de Execução
das Penas, para verificação da legalidade da mesma (artigos 14.º, n.º 8, 134.º,
141.º, alínea b), 197.º, 198.º e 199.º). O Ministério Público proferirá despacho
liminar de arquivamento, quando conclua pela legalidade da decisão (alínea a) do
artigo 199.º) ou impugnará, nos próprios autos, a decisão, requerendo a
respectiva anulação, perante o Tribunal de Execução das Penas (artigos 199.º,
alínea b), e 200.º).
A colocação do recluso em regime aberto cessa se deixarem de se verificar
aqueles pressupostos ou se o condenado deixar de cumprir as condições
estabelecidas aquando da sua concessão, por decisão do Director-Geral dos
Serviços Prisionais, a qual é comunicada ao Ministério Público junto do Tribunal
de Execução das Penas para verificação da legalidade (artigo 14.º, n.ºs 5, 6,
alínea b), e 8).
4. A colocação do recluso condenado em regime aberto enquadra-se em orientações
político-criminais fundamentais vertidas em instrumentos internacionais sobre a
matéria da execução das sanções criminais privativas da liberdade, entre os
quais avultam a Recomendação Rec(2003)23 do Comité de Ministros do Conselho da
Europa relativa à Gestão pelas Administrações Penitenciárias dos Condenados a
Pena de Prisão Perpétua ou de Longa Duração e a Recomendação Rec(2006)2 do
Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre as Regras Penitenciárias
Europeias.
Na primeira, consagram-se, entre outros, os princípios da individualização, da
normalização (aproximação, tanto quanto possível, da vida na prisão à realidade
da vida em sociedade), da responsabilidade e da progressão, estabelecendo-se que
a execução da pena, objecto de planificação, deve ocorrer em condições
progressivamente menos restritivas até uma etapa final que, idealmente, ocorrerá
em meio aberto, de preferência no seio da sociedade. Na segunda, consagra-se,
entre o mais, que as restrições impostas às pessoas privadas de liberdade devem
ser limitadas ao que for estritamente necessário e proporcionadas aos objectivos
legítimos que as ditaram; que a vida na prisão se aproximará, na medida do
possível, dos aspectos positivos da vida fora da prisão; que a reclusão deve ser
orientada no sentido de facilitar a reintegração na sociedade livre; que os
reclusos condenados devem beneficiar, em tempo oportuno e antes de serem
libertados, de procedimentos e programas especiais que os ajudem a fazer a
transição da vida da prisão para uma vida de respeito à lei no seio da
comunidade; e que os reclusos condenados a penas de maior duração devem
beneficiar de medidas especiais que lhes visem assegurar o regresso gradual à
vida em meio livre, mediante programa de preparação para a liberdade ou mediante
a concessão de liberdade condicional.
A colocação do recluso condenado em regime aberto é tributária de duas opções
político-criminais fundamentais: a execução das sanções privativas da liberdade
deve estar orientada para a socialização do delinquente; a privação da liberdade
é a ultima ratio da política criminal. A primeira é ditada pelo princípio da
socialidade, segundo o qual incumbe ao Estado a tarefa de proporcionar ao
condenado as condições necessárias para a reintegração na sociedade, uma tarefa
que se extrai dos artigos 1.º, 2.º e 9.º, alínea d), da CRP (neste sentido,
Figueiredo Dias, “Os novos rumos da política criminal e o direito penal
português do futuro”, Revista da Ordem dos Advogados, 43, 1983, p. 29 e ss. Mais
recentemente, cf. Exposição de Motivos do Projecto de Proposta de Lei de
Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, Anabela Rodrigues, Novo
Olhar Sobre a Questão Penitenciária, Coimbra Editora, 2002, p. 188, e Relatório
da Comissão de Estudos e Debate da Reforma do Sistema Prisional. Presidida por
Diogo Freitas do Amaral, Almedina, 2005, p. 25). A segunda decorre do princípio
da necessidade da intervenção penal que se extrai dos artigos 27.º, n.º 1, e
18.º, n.º 2, da CRP (sobre isto, Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte geral,
tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 117 e ss., e, entre outros, Acórdãos do
Tribunal Constitucional n.ºs 59/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º
volume, p. 689 e ss., 426/91, 527/95, 108/99, 99/2002, 164/2008 e 101/2009,
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Por outras palavras, as medidas de flexibilização da execução da pena, de que é
exemplo o regime aberto, assentam em duas ideias fundamentais: a socialização do
recluso obedece a uma dinâmica progressiva de preparação para a liberdade; a
passagem para regimes cada vez menos restritivos de direitos dá cumprimento ao
princípio da necessidade da pena que comanda a limitação de direitos
fundamentais, adaptando-a da melhor forma possível à situação prisional concreta
de cada recluso (neste sentido, Relatório da Comissão para a Reforma do Sistema
de Execução de Penas e Medidas Relatório da Comissão para a Reforma do Sistema
de Execução de Penas e Medidas, ponto V. do 2.º Capítulo da Parte I.).
5. A colocação do condenado em regime aberto (voltado para o interior e voltado
para o exterior) não significa uma novidade no sistema penitenciário português
(para a evolução deste regime, cf. A Reinserção Social dos Reclusos. Um
Contributo para o Debate sobre a Reforma do Sistema Prisional, Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa, 2003, p. 165 e ss., e Pinto de Albuquerque,
Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006, p. 349 e ss.).
5.1. Em 1 de Agosto de 1979 foi publicado o Decreto-Lei n.º 265/79, que
reestrutura os serviços que têm a seu cargo as medidas privativas da liberdade.
A redacção originária foi alterada pelos Decretos-Lei n.ºs 49/80, de 22 de
Março, e 414/85, de 18 de Outubro, sendo certo que, para o tema que agora nos
ocupa, não são relevantes as alterações introduzidas pelo último diploma, o qual
alterou apenas um preceito relativo ao regime de execução da prisão preventiva.
De acordo com o texto publicado em 1979, o recluso é internado em dois tipos de
estabelecimentos: em estabelecimento ou secção de regime aberto, obtido o seu
consentimento, quando não seja de recear que ele se subtrai à execução da pena
ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe proporciona para
delinquir (artigo 14.º, n.º 2); em estabelecimento fechado quando não reúna
estas condições (artigo 14.º, n.º 1).
O recluso internado em estabelecimento ou secção de regime aberto pode ser
autorizado a sair do estabelecimento, com ou sem custódia, a fim de trabalhar ou
frequentar estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional, a fim de
tornar a execução das medidas privativas de liberdade mais flexível,
nomeadamente nos aspectos referentes ao restabelecimento de relações com a
sociedade, de forma geral e progressiva (alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º e
alínea b) do n.º 1 do artigo 15.º). Especificando, expressamente, que esta saída
do estabelecimento não é um direito do recluso, os n.ºs 2 e 3 do artigo 50.º
estabelecem as condições e critérios para a concessão desta medida de
flexibilidade na execução. Por um lado, é necessário o consentimento do recluso;
que não seja de recear que o mesmo se subtraia à execução da pena ou que se
aproveite das possibilidades que tal benefício lhe proporciona para delinquir; e
que a concessão da licença não prejudique seriamente a segurança e a ordem
públicas nem ponha em causa as razões de prevenção geral e especial que sempre
cumprem à execução das medidas privativas da liberdade. Por outro, na concessão
da saída deve tomar-se em conta a natureza e gravidade da infracção; a duração
da pena; o eventual perigo para a sociedade do insucesso da aplicação da medida;
a situação familiar do recluso e ambiente social em que este se vai integrar; e
a evolução da personalidade do recluso ao longo da execução da medida privativa
de liberdade. Ainda em relação ao recluso internado em estabelecimento ou secção
de regime aberto, o n.º 1 do artigo 66.º estabelece que, sem prejuízo do
disposto no n.º 1 do artigo 50.º, deve autorizar-se o recluso a trabalhar ou a
frequentar cursos de formação e aperfeiçoamento profissionais fora do
estabelecimento, em regime de livre emprego, se isso contribuir para criar,
manter ou desenvolver no recluso a capacidade de realizar uma actividade com que
possa ganhar normalmente a vida, após a libertação.
O Decreto-Lei n.º 49/80 mantém a redacção dos artigos 14.º (Estabelecimentos
abertos e fechados) e 66.º (Livre emprego e trabalho por conta própria),
reorganizando o Título relativo às Licenças de saída do estabelecimento (Título
V) em quatro capítulos: princípios comuns; licenças de saída de estabelecimento
ou secção de regime aberto; saída de estabelecimento ou secção de regime
fechado; e licenças de saída por motivos especiais e licenças de saída de
preparação para a liberdade. Desta reorganização e da clarificação de alguns
aspectos do regime de licenças de saída do estabelecimento resulta que se
consagra, de forma expressa, a competência da Direcção-Geral dos Serviços
Prisionais para a concessão da licença para o recluso trabalhar ou frequentar
estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional (artigos 49.º, n.º 3,
58.º, n.º 1, parte final, e 62.º-B); que esta medida de flexibilização tem lugar
quer a fim de preparar a libertação (artigos 15.º, n.º 1, alínea b), e 62.º-B)
quer a fim de tornar a execução das medidas privativas da liberdade mais
flexível, nomeadamente nos aspectos referentes ao restabelecimento de relações
com a sociedade, de forma geral e progressiva (artigo 58.º, n.º 1); que os
critérios e as condições de concessão da saída do estabelecimento a fim de o
recluso trabalhar ou frequentar estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento
profissional não foram alterados, dividindo-se agora pelos artigos 50.º, n.ºs 1
e 2, e 58.º, n.ºs 1 e 2.
5.2. A compreensão do regime aberto voltado para o exterior tal como se mantém
até hoje em funcionamento não pode prescindir da análise das circulares da
Direcção-Geral dos Serviços Prisionais sobre a matéria.
A primeira (Circular n.º 2/83/DCSDEPMS-I), editada já depois das alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 49/80, caracteriza o regime aberto; enquadra
legalmente o mesmo; especifica os estabelecimentos onde pode ser praticado;
enuncia as condições a que devem obedecer os reclusos a colocar neste regime;
determina a competência para a concessão e revogação da medida; elenca os
documentos que devem instruir o processo de concessão de regime aberto voltado
para o exterior; fixa os limites temporais desta modalidade do regime aberto;
estabelece regra de separação dos reclusos; e prevê comunicações obrigatórias à
Direcção-Geral dos Serviços Prisionais. Desta Circular importa destacar que, por
referência ao artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 265/79, nos
termos do qual a licença de saída do estabelecimento é com ou sem custódia, o
regime aberto passou a assumir duas modalidades: regime aberto “voltado para o
interior – actividades exercidas dentro dos limites do estabelecimento
prisional” (RAVI), isto é, licença de saída com custódia; regime aberto “voltado
para o exterior – actividades exercidas na comunidade livre” (RAVE), ou seja,
licença de saída sem custódia.
As circulares sucederam-se (a Circular n.º 8/98, de 30 de Dezembro de 1998,
menciona a alta taxa de sucessos e a significativa adesão da sociedade civil à
medida e regulamenta a possibilidade de aplicação do regime aberto no tratamento
de toxicodependentes a cargo do sistema prisional), valendo na presente data a
Circular n.º 3/GDG/06.
Neste documento caracteriza-se o regime aberto (voltado para o interior e
voltado para o exterior); enunciam-se as condições para a concessão do mesmo
(princípios gerais e condições especiais); determina-se a competência para a
concessão e a revogação do regime; especifica-se o estabelecimento onde pode ser
praticado; estabelecem-se regras em matéria de organização dos processos, de
acompanhamento do regime aberto voltado para o exterior, de transferências para
outro estabelecimento e de revogação do regime. Com relevo para os presentes
autos, destaque-se que a colocação de reclusos em regime aberto voltado para o
exterior – regime que a Circular caracteriza como aquele em que o recluso
frequenta estabelecimento de ensino, curso de formação profissional, exerce
actividade laboral dependente ou por conta própria, ou é admitido em programa de
tratamento de toxicodependência, em instituição oficial ou privada, devidamente
licenciada, fora do estabelecimento prisional (ponto 1.2) – depende da estrita
observância dos princípios legalmente consignados, designadamente no n.º 2 do
artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79: não se vislumbrar que o recluso aproveite
as possibilidades decorrentes do regime aberto para voltar a delinquir ou para
se subtrair à execução da pena; não serem postas em causa as razões de prevenção
geral e especial que sempre cabem às medidas privativas de liberdade e que, no
caso, ainda se mantenham actuais; não existir possível perigo para a segurança e
ordem públicas (ponto 2.1). Destaque-se também que a colocação depende, em
princípio, do cumprimento de um quarto da pena (ponto 2.1) e que se estabelecem
os seguintes requisitos cumulativos: que o recluso possua efectiva actividade
laboral ou escolar, que frequente curso de formação profissional ou que seja
admitido em programa de tratamento da toxicodependência, em instituição oficial
ou privada, devidamente licenciada; que esteja condenado por decisão transitada
em julgado; que não se verifique pendência de processo que implique a prisão
preventiva, podendo contudo, para viabilização de tratamento de
toxicodependentes, colocar-se a situação à consideração do Tribunal para
eventual reapreciação da medida de coacção (ponto 2.2.).
5.3. O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer
em 21 de Fevereiro de 1991, entretanto homologado (Parecer n.º 104/90, publicado
no Diário da República II Série, de 27 de Agosto de 1991), no sentido de a
decisão sobre a concessão da licença de saída do estabelecimento prevista no
artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, não se integrar no âmbito
constitucional da reserva da função jurisdicional definido no artigo 202.º, n.º
2, da Constituição (6.ª conclusão); de não ser inconstitucional, por violação do
princípio da reserva da função jurisdicional, a norma do artigo 49.º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 265/79 que atribui à Direcção-Geral dos Serviços Prisionais a
competência para conceder a licença prevista no artigo 58.º deste diploma (8.ª
conclusão).
5.4. Dados estatísticos fornecidos pela Direcção-Geral dos Serviços Prisionais
sobre a concessão e revogação do regime aberto voltado para o exterior (RAVE) –
artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto –
revelam o seguinte:
EVOLUÇÃO DA CONCESSÃO E REVOGAÇÃO DE
REGIME ABERTO VOLTADO PARA O EXTERIOR
ANO
POPULAÇÃO PRISIONAL MEDIA
NÚMERO DE
RAVE
CONCEDIDOS*
NÚMERO TOTAL
DE
REVOGAÇÕES
DE RAVE **
REVOGAÇÕES DE RAVE POR
AUSÊNCIA
ILEGÍTIMA OU
EVASÃO
200113 099244130
200213 63727960
200314 06024530
200413 54923670
200512 968251272
200612 762307201
200712 450311172
200811 191219132
2009
(até 17.08.2009)11 061110160
* Número de despachos de concessão de RAVE no ano em apreço.
** Revogação de RAVE com despacho exarado no ano em apreço.
«As revogações podem resultar de motivos diversos, nomeadamente: inadequação à
função, incumprimento de obrigações ou de horários, detecção de consumo de
álcool ou droga, informação negativa por parte da entidade parceira ou
incumprimento de regras não relacionadas com o RAVE (ex. incumprimento de regras
durante saídas precárias, cometimento de infracção disciplinar na prisão, etc.)
ou, ainda, incumprimentos por parte da entidade parceira.
O acompanhamento da execução do regime é feito por articulação entre os Serviços
Prisionais e a entidade parceira, por controlo directo pelos Serviços Prisionais
e, sempre que se justifica, com a colaboração da Direcção-Geral de Reinserção
Social e/ou das autoridades policiais.
O RAVE é executado ao abrigo de protocolos com entidades públicas e privadas».
Número de Parcerias existentes actualmente, por tipo de entidade, para reclusos
em regime aberto voltado para o exterior:
Tipo de EntidadeRAVE
Sector Público7
Sector Privado25
Autarquias25
Associações1
IPSS1
TOTAL59
6. A colocação em regime aberto no exterior figurava num projecto de proposta de
lei e numa proposta de lei, entretanto elaborados, sobre a matéria da execução
das medidas privativas da liberdade.
Na sequência do Relatório da Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de
Penas e Medidas, constituída nos termos do despacho 20/MJ/96, de 30 de Janeiro,
foi apresentado Projecto de Proposta de Lei de Execução das Penas e Medidas
Privativas da Liberdade, em Fevereiro de 2001, ao XIV Governo Constitucional
(cf. Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar… p. 179 e ss.). Neste Projecto
prevê-se o internamento do recluso em estabelecimento prisional ou secção
abertos, com a possibilidade de lhe serem concedidas licenças de saída do
estabelecimento, durante determinadas horas do dia, para trabalhar ou frequentar
estabelecimentos de ensino, formação e aperfeiçoamento profissionais (artigos
12.º e 13.º). O internamento em estabelecimento prisional ou secção abertos e as
medidas de flexibilização na execução, nomeadamente a licença de saída do
estabelecimento com aquela finalidade, constam do plano individual de
readaptação do recluso (artigo 10.º). Este plano e as suas modificações são
aprovados pelo Conselho de Socialização (artigo 10.º), órgão do estabelecimento
prisional que é presidido pelo respectivo director (artigos 129.º e 130.º), e
são comunicados ao Ministério Público do Tribunal de Execução de Penas (artigo
10.º, n.º 9). Em relação às decisões de internamento em estabelecimento
prisional ou secção abertos especifica-se também que são comunicadas ao Tribunal
competente (artigo 10.º, n.º 9). Note-se que no Relatório da Comissão,
apresentado ao Ministro da Justiça em Novembro de 1997, atribui-se ao Ministério
Público competência para a concessão da medida de flexibilização Regime Aberto
Virado para o Exterior (RAVE), por proposta do Núcleo de Acompanhamento a que o
recluso se encontra adstrito ou a requerimento do próprio recluso, ouvido o
parecer do Conselho de Socialização (cf. ponto V. do 2.º Capítulo e ponto II. da
2.ª Secção do 3.º Capítulo da Parte I).
Na sequência do Relatório da Comissão de Estudos e Debate da Reforma do Sistema
Prisional, criada pela Portaria n.º 183/2003, de 21 de Fevereiro, foi
apresentada à Assembleia da República a Proposta de lei n.º 153/IX – Lei-quadro
da reforma do sistema prisional (proposta convocada no debate na generalidade da
Proposta de lei n.º 252/X, que esteve na origem do Decreto n.º 366/X, para
sustentar que a colocação do recluso em regime aberto para o exterior deve ser
da competência do Tribunal da Execução das Penas, Diário da Assembleia da
República, I Série - Número 63, de 28 de Março de 2009). Segundo esta Proposta
de lei, a lei dos tribunais de execução das penas define a respectiva
competência, incluindo, nomeadamente, a intervenção na concessão e na revogação
do regime aberto no exterior e na colocação e manutenção em regime de segurança
(alínea d) do artigo 20.º). Como devia incluir também a concessão e revogação de
saídas jurisdicionais, da liberdade condicional, da liberdade para prova e de
outras modificações da execução da pena de prisão previstas na lei (alínea c) do
artigo 20.º), é de concluir que a proposta não é no sentido de competir aos
tribunais de execução das penas a concessão do regime aberto no exterior. A
proposta parece bastar-se com a intervenção destes tribunais na concessão deste
regime (neste mesmo sentido vai o artigo 21.º, alíneas c) e d), do articulado
que integra o Relatório final da Comissão, não obstante os juízes de execução
das penas se terem pronunciado no sentido de a concessão do RAVE ser “um acto
jurisdicional por excelência, na medida em que importa uma verdadeira
modificação da pena de prisão” e de dever, “por isso, ser atribuída ao TEP”. Cf.
Relatório da Comissão de Estudos e Debate da Reforma do Sistema Prisional.
Presidida por Diogo Freitas do Amaral, pp. 79 e 128).
7. O requerente pede a apreciação da constitucionalidade da norma da alínea b)
do n.º 6 do artigo 14.º, enquanto conjugada com as normas das alíneas a) e b) do
n.º 1 do mesmo artigo, constante do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X, com
fundamento em violação da reserva de jurisdição, prevista no artigo 202.º da
CRP.
Requer a apreciação da constitucionalidade da norma que atribui competência ao
Director-Geral dos Serviços Prisionais para, com o consentimento do recluso, o
colocar em regime aberto no exterior, se não for de recear que se subtraia à
execução da pena ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe
proporciona para delinquir e o regime se mostrar adequado ao seu comportamento
prisional, à salvaguarda da ordem, segurança e disciplina no estabelecimento
prisional, à protecção da vítima e à defesa da ordem e da paz social. Requer
esta apreciação invocando como primeiro fundamento a reserva de jurisdição,
prevista no artigo 202.º da CRP.
Para a questão a apreciar importa reter que esta norma constitucional (Função
jurisdicional) dispõe que:
«1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo.
2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e
privados.»
Do pedido resulta que para o requerente é decisiva a comparação entre “o modelo
vigente e o novo modelo legal de colocação do recluso em regime aberto ao
exterior”; a aproximação deste “novo modelo” ao instituto da liberdade
condicional; e a “definição do âmbito da reserva de jurisdição em matéria de
execução de penas” que decorre da legislação.
8. De acordo com o requerente, “se é um facto que os regimes abertos no interior
e no exterior das prisões se encontram acolhidos na legislação em vigor
(Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, e respectivas alterações), sendo a
correspondente autorização também cometida à competência da administração
penitenciária, verifica-se, contudo, que os pressupostos dessa autorização foram
modificados e alargados em termos que suscitam dúvidas quanto à sua
constitucionalidade”. Sem prejuízo de o Presidente da República entender que
“não é isenta de dúvidas de constitucionalidade, atenta a salvaguarda da reserva
de jurisdição e do respeito pelo caso julgado, a faculdade hoje conferida ao
Director Geral dos Serviços Prisionais (DGSP) pelo nº 1 do artigo 58º do
Decreto-Lei nº 265/79, para colocar um recluso em regime aberto no exterior”.
Questão de constitucionalidade que não cabe a este Tribunal apreciar no âmbito
deste processo.
8.1. Quando comparado o “modelo vigente” com o modelo constante do Código
aprovado pelo Decreto n.º 366/X é de concluir, contudo, que não há diferenças
significativas em matéria de pressupostos de autorização do regime aberto no
exterior, devendo assinalar-se, desde logo, que num e noutro modelo o legislador
prefere que a execução da pena de prisão ocorra no meio menos restritivo: de
acordo como o artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 265/79 (Estabelecimentos abertos e
fechados), o recluso é internado em estabelecimento fechado quando não reúna as
condições do internamento em estabelecimento ou secção de regime aberto; segundo
o artigo 13.º do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X (Regime fechado), o
recluso é colocado em regime comum quando a execução da pena privativa da
liberdade não possa decorrer em regime aberto.
O Director-Geral dos Serviços Prisionais já decide com base num conjunto de
pressupostos de fundo e de forma, constantes dos artigos 14.º, n.º 2, 50.º, n.ºs
1 e 2, e 58.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 265/79 e da Circular
n.º 3/GDG/06. Com relevo para a comparação, note-se que, no modelo vigente, os
pressupostos que fundamentam a concessão do regime aberto voltado para o
exterior não consistem apenas na ausência de receio que o condenado se subtraia
à execução da pena ou se aproveite da situação para delinquir (condições que o
n.º 2 do artigo 14.º estabelece para o internamento em estabelecimento ou secção
de regime aberto e que a primeira parte do n.º 2 do artigo 58.º repete enquanto
condições da concessão de licença de saída de estabelecimento ou secção de
regime aberto). Exige-se também que a concessão da licença de saída não
prejudique seriamente a segurança e a ordem públicas, nem ponha em causa as
razões de prevenção geral e especial que sempre cabem à execução das medidas
privativas da liberdade (parte final do n.º 2 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º
265/79, na redacção vigente); que, a concessão tome em conta, designadamente, o
eventual perigo para a sociedade do insucesso da aplicação da medida, bem como a
situação familiar do recluso e ambiente social em que este se vai integrar
(alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 265/79); que não se
verifique pendência de processo que implique a prisão preventiva, com
salvaguarda do caso especial de tratamento de toxicodependentes (ponto 2.2.3. da
Circular n.º 3/GDG/06); e que, em princípio, esteja cumprido um quarto da pena
(ponto 2.1. da Circular n.º 3/GDG/06).
A colocação de reclusos em regime aberto voltado para o exterior já hoje pode
ter lugar quando esteja cumprido um quarto da pena (ponto 2.1. da Circular n.º
3/GDG/06), o que significa que não lhe está associada a ideia de ser concedida
apenas “num momento de consolidação” da pena, “mormente em fase avançada de
preparação para a liberdade”. É verdade que o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º
265/79 associa a colocação em regime aberto virado para o exterior à finalidade
de preparar o recluso para a liberdade imediata (cf. alíneas a) e b) do n.º 1 e
artigo 62.º-B), mas é certo também que tal colocação pode ocorrer tendo em vista
a finalidade de preparar o recluso para uma liberdade ainda longínqua,
sujeitando-o a regimes cada vez menos restritivos em cumprimento do princípio da
necessidade da privação da liberdade (artigos 14.º, n.º 2, e 58.º, n.º 1,
primeira parte, do Decreto-Lei n.º 265/79).
Deve notar-se que, de todo o modo, o “novo modelo” não permite “a colocação de
um detido que tenha sido condenado, por exemplo, à pena de vinte anos de prisão
efectiva, em regime aberto ao exterior volvidos apenas cinco anos após o início
do cumprimento da mesma pena”, uma vez que um dos pressupostos da colocação em
regime aberto no exterior é o gozo prévio de uma licença de saída jurisdicional
com êxito (artigo 14.º, n.º 4) e que, no caso de pena superior a cinco anos,
esta licença só pode ser concedida após o cumprimento de um quarto da pena
(alínea a) do n.º 2 do artigo 79.º). Relevam também para o período mínimo de
cumprimento de pena de prisão no exterior as consequências previstas para os
casos em que não haja êxito na saída jurisdicional: se o recluso deixar de
cumprir as condições impostas pode ser determinada a impossibilidade de
apresentação de novo pedido durante seis meses ou ser revogada a licença de
saída, caso em que o juiz fixa um prazo, entre seis e doze meses a contar do
regresso ao estabelecimento prisional, durante o qual o recluso não pode
apresentar novo pedido (artigo 85.º, n.ºs 1 e 5).
Por outro lado, no “modelo vigente” o recluso colocado em regime aberto voltado
para o exterior sai sem custódia (cf. supra ponto 5.2.). O regime aberto voltado
para o interior, que se caracteriza por o recluso trabalhar no Estabelecimento,
dentro ou fora de muros, é que é submetido a vigilância descontínua (cf.
Circular n.º 3/GDG/06, ponto 1.1).
Acresce que, das disposições legais convocadas pelo requerente, não pode
concluir-se que, diferentemente do modelo constante do Código aprovado pelo
Decreto n.º 366/X, “o “modelo vigente” estabelece algumas regras sobre os termos
do cumprimento da pena em regime aberto”: o n.º 5 do artigo 14.º do Decreto-Lei
n.º 265/79, cuja epígrafe é Estabelecimentos abertos e fechados, não tem em
vista a medida de flexibilidade na execução que consiste em sair do
estabelecimento, com ou sem custódia, a fim de trabalhar ou frequentar
estabelecimentos de ensino e aperfeiçoamento profissional (alínea a) do n.º 1 do
artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 265/79), incidindo estritamente sobre o
internamento num ou noutro estabelecimento; a alínea d) do n.º 1 do artigo 15.º
do Decreto-Lei n.º 265/79 tem a ver com a autorização de saída do
estabelecimento – seis dias por mês, seguidos ou interpolados, sem custódia, nos
últimos nove meses do cumprimento da pena – que é dada aos reclusos que estão em
regime aberto virado para o exterior, ao abrigo do disposto na aliena a), do n.º
1, do artigo 58.º daquele diploma; o n.º 2 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º
265/79 já não é compatível com o que se dispõe no n.º 4 do artigo 61.º do Código
Penal, nos termos do qual o condenado a pena de prisão superior a seis anos é
colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena
(era compatível com o artigo 120.º do Código Penal anterior ao de 1982, o qual
não previa a denominada “liberdade condicional obrigatória” – sobre isto, cf. A.
M. Almeida Costa, Passado, presente e futuro da liberdade condicional no direito
português, separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, 1989, p. 35); a alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º
265/79 prevê uma medida de flexibilidade na execução distinta da prevista na
alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo.
É verdade que o Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da
Liberdade não regula todos os aspectos do regime da colocação do recluso em
regime aberto no exterior (até por comparação com a Circular n.º 3/GDG/06),
porém o artigo 1.º, n.º 2, daquele Código prevê que o Livro I (Da execução das
penas e medidas privativas da liberdade) seja regulamentado pelo Regulamento
Geral dos Estabelecimentos Prisionais.
Em suma, da mera comparação entre o “modelo vigente” e o “novo modelo” não
decorre que o regime aberto no exterior tenha deixado de ser “um instrumento de
flexibilização da execução da pena, intrínseco à gestão da vida interna da
prisão e, como tal, pertencendo ao domínio da administração prisional”.
8.2. Apesar do exposto, subsistem duas diferenças essenciais que, contudo, são
insusceptíveis de fundar um qualquer juízo de inconstitucionalidade,
inserindo-se, pelo contrário, numa preocupação de jurisdicionalização da
execução da pena de prisão (diferenças destacadas pelo Ministro da Justiça no
debate na generalidade da Proposta de lei n.º 252/X, que esteve na origem do
Decreto n.º 366/X – Diário da Assembleia da República, I Série - Número 63, de
28 de Março de 2009).
Primeira: de acordo com o n.º 4 do artigo 14.º, a colocação do recluso em regime
aberto no exterior tem como pressuposto o gozo prévio de uma licença de saída
jurisdicional com êxito. Devendo destacar-se que os requisitos e os critérios
gerais de concessão de tal licença coincidem, em larga medida, com os de
colocação naquele regime (artigos 14.º, n.º 1, 78.º, n.ºs 1 e 2, e 79.º, n.º 2,
alínea c), do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X), o que faz depender a
colocação em regime aberto no exterior de “um prévio «voto de confiança» do
tribunal” (a expressão é do Ministro da Justiça, aquando do debate na
generalidade da Proposta de lei n.º 252/X).
Segunda: de acordo com os artigos 14.º, n.º 8, 197.º, 198.º e 199.º, a decisão
de colocação do recluso em regime aberto no exterior é comunicada ao Ministério
Público junto do Tribunal de Execução das Penas para verificação da legalidade,
com possibilidade de impugnação da decisão perante o Tribunal de Execução das
Penas (artigos 199.º, alínea b), e 200.º). Solução que se harmoniza com as
funções constitucionalmente cometidas àquela magistratura de exercer a acção
penal (entendida em sentido lato) e de defender a legalidade democrática (artigo
219.º, n.º 1, da CRP).
9. Para o requerente a aproximação do “novo modelo” ao instituto da liberdade
condicional, cuja concessão é da competência dos tribunais de execução das
penas, dar-se-ia quer por via do “reconhecimento de um novo direito dos detidos
ao acesso restringido a um meio livre”, quer por causa “dos requisitos de fundo
que devem fundamentar a decisão de colocação do detido em regime aberto ao
exterior”. Um e outros apontariam para a natureza jurisdicional da colocação do
recluso em regime aberto no exterior.
9.1. Uma vez verificados os pressupostos (formais e materiais) de que depende, o
tribunal tem o poder-dever de conceder a liberdade condicional, quando se
encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses (artigo 61.º, n.ºs 1 e
2, alíneas a) e b), do Código Penal); ou quando se encontrarem cumpridos dois
terços da pena e no mínimo seis meses (artigo 61.º, n.ºs 1 e 3, do Código
Penal). Não havendo qualquer razão para distinguir esta última hipótese da
anterior e muito menos para considerar que se trata aqui de “decisão obrigatória
do juiz”. Em ambas as hipóteses trata-se de um poder-dever do juiz, de um poder
vinculado à verificação da totalidade dos pressupostos, formais e substanciais,
de que a lei faz depender a concessão da liberdade condicional (sobre isto, cf.
Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime,
Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p. 541, e Pinto de Albuquerque, Comentário
do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, comentário
ao artigo 61.º, ponto 10 e s.).
À circunstância de se tratar de um poder-dever nunca se associou a existência
de um direito à colocação em liberdade condicional. Este instituto tem a
natureza de um incidente da execução da pena de prisão, político-criminalmente
justificado por referência à “vertente social ou intervencionista do modelo de
Estado de direito material, implícito à C.R.P. de 1976”, inscrevendo-se neste
âmbito “a ressocialização dos criminosos como concretização do dever geral de
solidariedade e de auxílio às pessoas que deles se encontrem carecidas” (A. M.
Almeida Costa, ob. cit., p. 54); e por apelo ao princípio da necessidade da
intervenção penal que se extrai dos artigos 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.
Não é, seguramente, porque o condenado é titular do direito à colocação em
liberdade que compete a um tribunal conceder a liberdade condicional.
Ainda que “a apreciação da situação objectiva e subjectiva do detido pela
administração prisional, tendo em vista a possibilidade da sua colocação em
regime aberto no exterior”, passe a constituir um poder-dever da mesma
administração – não sendo decisiva para assim concluir a letra do n.º 2 do
artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 265/79, por comparação com a do n.º 1 do artigo
14.º do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X –, tal significa tão-só que o
Director-Geral dos Serviços Prisionais tem o poder-dever de colocar o recluso em
regime aberto no exterior, exercendo a competência que lhe está legalmente
cometida de garantir a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de
acordo com as respectivas finalidades (artigos 2.º, n.º 1, e 135.º, n.º 1,
alínea a), do Código aprovado pelo Decreto n.º 233/X e 42.º, n.º 1, do Código
Penal e, ainda, artigo 266.º, n.º 2, da CRP). Sem que isso signifique “o
reconhecimento de um novo direito dos detidos ao acesso restringido a um meio
livre”.
De todo o modo, ainda que assim seja – ou ainda que se veja aqui um interesse
legalmente protegido do recluso – a observância da reserva de juiz (artigo
202.º, n.º 2, primeiro segmento, da CRP) exigirá apenas que o tribunal diga a
última palavra e não a primeira (sobre esta compreensão da reserva de juiz, cf.
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 453/93, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, Parecer n.º 104/90 do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, já citado, e Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, anotação ao artigo 202.º, alínea b),
do ponto VII).
9.2. Relativamente aos “requisitos de fundo que devem fundamentar a decisão de
colocação do detido em regime aberto ao exterior”, a argumentação do requerente
assenta, fundamentalmente, no entendimento de que tais requisitos (seguramente
os constantes da parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do Código
aprovado pelo Decreto n.º 366/X e, com dúvidas, os estabelecidos na alínea a) do
n.º 1 do mesmo artigo), de que tais critérios de colocação do recluso em regime
aberto (no interior e no exterior) “incorporam necessariamente o âmbito material
da reserva jurisdicional”.
Convocando os critérios de determinação da medida da pena (artigo 71.º, n.º 1,
parte final, do Código Penal) e os critérios de concessão da liberdade
condicional, quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses
(artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal) e estabelecendo a
analogia entre estes e os critérios estabelecidos nas alíneas a) e b) do n.º 1
do artigo 14.º do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X, o requerente conclui
que a administração – porque decide a partir de critérios análogos àqueles –
modifica a sentença condenatória.
Importa notar que a concessão da liberdade condicional já não se traduz numa
modificação substancial da condenação. No direito vigente, face ao disposto nos
n.ºs 1 e 5 do artigo 61.º do Código Penal, o instituto da liberdade condicional
tem a natureza jurídica de incidente (ou de medida) de execução da pena
privativa da liberdade, sendo por isso mesmo até discutível se tal competência
se deve manter nos tribunais de execução das penas ou passar a ser do tribunal
da condenação (sobre a natureza jurídica do instituto, Anabela Rodrigues, Novo
Olhar…, p. 135, nota 17, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal…,
comentário ao artigo 61.º, ponto 1.; sobre a questão de saber qual o tribunal
competente para a concessão, cf., ainda, p. 135 e s. da obra citada em primeiro
lugar). A concessão da liberdade condicional traduz-se numa alteração ao
conteúdo da sentença condenatória (como bem se diz na alínea b) do artigo 14.º
do pedido), mas não numa modificação substancial da condenação. Diferentemente
do que sucedia na versão original do Código Penal, em que alguns aspectos do
regime de concessão e de revogação da liberdade condicional negavam ao instituto
a natureza de incidente de execução da pena de prisão, fazendo com que fosse
encarada como modificação substancial da condenação (neste sentido, Figueiredo
Dias, Direito Penal Português…, pp. 529 e s., 550 e s. e 553 e s.).
Por outro lado, importa recusar o entendimento de que os critérios de prevenção
(geral e especial) são privativos da actividade jurisdicional. Entendimento que,
afinal, suporta uma grande parte do pedido. Tais critérios, de harmonia com o
disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, são critérios que não podem
deixar de nortear também quer a actividade do legislador, quando, por exemplo,
estabelece as molduras penais, quer a actividade da administração prisional,
quando garante a execução das penas e medidas privativas da liberdade, de acordo
com as respectivas finalidades (artigo 135.º, n.º 1, alínea a), do Código
aprovado pelo Decreto n.º 366/X). De acordo com a finalidade de prevenção
especial, mas também com a de prevenção geral (artigos 40.º, n.º 1, e 42.º, n.º
1, do Código Penal e 2.º, n.º 2, do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X),
funcionando a exigência geral-preventiva de protecção de bens jurídicos e de
defesa da sociedade, é dizer, de defesa da ordem e da paz social, como limite da
finalidade socializadora primária (sobre a forma de compatibilizar as
finalidades de prevenção geral e de prevenção especial, cf. Anabela Miranda
Rodrigues, A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa da
liberdade, Coimbra 1982, p. 154 e ss.). São, por isso, injustificados os receios
de não haver “a salvaguarda efectiva dos bens jurídicos fundamentais que o
Direito Penal deve assegurar e a prevenção de situações causadoras de alarme
social geradas pela colocação” em regime aberto no exterior. Injustificados,
precisamente porque há sintonia entre os critérios de determinação da pena e os
critérios norteadores da execução da mesma pena.
10. Para o requerente a “definição do âmbito da reserva de jurisdição em matéria
de execução de penas” que decorre da legislação também aponta no sentido de a
colocação em regime aberto no exterior se incluir no “domínio material de
controlo e modelação da execução que é cometido à actividade jurisdicional
desenvolvida pelo tribunal de execução de penas”.
Apesar de as competências fixadas no artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 783/76, de
29 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 222/77, de 30 de Maio, não se
adequarem totalmente ao direito penal vigente, sempre se dirá, por referência ao
direito penal então em vigor, que a colocação em regime aberto no exterior não é
comparável aos exemplos dados na alínea b) do artigo 11.º do pedido. Estes têm a
ver com o estado de perigosidade criminal do delinquente (artigo 22.º, 5.º), com
a substituição de uma sanção por outra (artigo 22.º, 6.º e 8.º) e com a cessação
de efeitos penais (artigo 22.º, 9.º) – sobre isto, face a disposições
equivalentes do Decreto n.º 34.553, de 30 de Abril de 1945, Beleza dos Santos,
Os tribunais de execução das penas em Portugal (razões determinantes da sua
criação – estrutura – resultados e sugestões), Separata do Boletim da Faculdade
de Direito de Coimbra em honra do Prof. Dr. José Alberto dos Reis, 1953, p. 12 e
ss.
A colocação em regime aberto no exterior tão-pouco é comparável ao exemplo dado
na alínea c) do artigo 11.º do pedido (cf. infra ponto 13.), isto é à concessão
e revogação de saídas precárias prolongadas (artigos 23.º, 4.º, do Decreto-Lei
n.º 782/76, 92.º, alínea d), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e 125.º, alínea
d), da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto).
11. Muito embora a definição legal da competência dos tribunais de execução das
penas não contribua decisivamente para a densificação da reserva de juiz em
matéria de execução de sanções privativas da liberdade – nem todas as
intervenções judiciais são necessariamente impostas pelo artigo 202.º, n.º 2, da
CRP (cf. infra ponto 12.) – não é de recusar que para tal densificação contribui
também o que a lei inclui – e foi incluindo – na competência daqueles tribunais.
Para além dos actos que a CRP reserva expressamente ao juiz e da forma como a
doutrina e a jurisprudência vêm densificando a função jurisdicional, desde logo
por contraposição à função administrativa (para uma síntese, cf. Jorge
Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 202.º, ponto V). Devendo
salientar-se, relativamente àqueles actos que, em matéria de execução das
sanções privativas da liberdade, a CRP reserva expressamente ao juiz somente o
título de execução (ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em
consequência de sentença judicial condenatória – artigo 27.º, n.ºs 2) e a
prorrogação das medidas de segurança privativas da liberdade, em caso de
perigosidade baseada em grave anomalia psíquica (artigo 30.º, n.º 2).
12. Se há matérias onde é possível traçar uma linha evolutiva clara, uma delas
é, seguramente, a da jurisdicionalização da execução da pena de prisão (sobre
esta evolução, Anabela Rodrigues, Novo Olhar…, p. 129 e ss.). Mercê, certamente,
da posição jurídica que o recluso foi assumindo na execução desta sanção
privativa da liberdade, acompanhando a “nova concepção dos direitos fundamentais
como direitos de todas as pessoas, nas diversas circunstâncias da vida social,
relativamente a todos os poderes, quaisquer que sejam” (Vieira de Andrade, “O
internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspectiva dos
direitos fundamentais”, A Lei de Saúde Mental e o Internamento Compulsivo,
Coimbra Editora, p. 73, autor que se refere expressamente aos reclusos nas pp.
74 e 77). Concepção de que o artigo 30.º, n.º 5, da CRP é expressão acabada – os
condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da
liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações
inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva
execução.
O primeiro passo foi dado pela Lei n.º 2000, de 16 de Maio de 1944, e pelo
Decreto n.º 34.553, de 30 de Abril de 1945, com o objectivo assumido de caber
aos tribunais de execução das penas tomar “decisões destinadas a modificar ou
substituir as penas ou as medidas de segurança” (n.º 1 da Base I daquela Lei).
Aqui se incluindo a concessão da liberdade condicional (artigo 3.º, 3.º daquele
Decreto), em consonância com a natureza jurídica do instituto, que claramente
extravasava a de mero incidente na execução da pena. Um primeiro período que se
caracteriza, de um lado, por a jurisdicionalização estar directamente ligada a
um direito penal do agente e, de outro, por a jurisdicionalização ficar à porta
dos estabelecimentos prisionais por não dever caber ao tribunal decidir, “nem
sequer em recurso, quando é que um recluso ascende a um grau superior, por
exemplo, do período de experiência ao de confiança, ou quando deve regressar a
um período inferior. Todas as decisões a este respeito são reservadas à
Administração Penitenciária, isto é, ao Director do estabelecimento, ouvido o
Conselho Técnico. Entende-se que a ingerência de um tribunal nestas matérias
poderia diminuir a autoridade, o prestígio e a iniciativa da direcção do
estabelecimento prisional” (Beleza dos Santos, ob. cit., p. 10 e s.).
Esta orientação é claramente inflectida com o Decreto-Lei n.º 783/76, com as
alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 222/77 e pelo Decreto-Lei n.º
204/78, de 24 de Julho. A par da intervenção justificada pela “novidade” da
decisão (modificação ou substituição das penas ou das medidas de segurança), o
que continuava a incluir as decisões em matéria de liberdade condicional,
instituto cuja natureza jurídica continuava a resistir à de mero incidente na
execução da pena de prisão (artigo 22.º), o Tribunal de Execução das Penas
passou a exercer funções de garantia da posição jurídica do recluso (artigo
23.º). Nomeadamente, passou a competir ao juiz deste tribunal visitar, pelo
menos mensalmente, todos os estabelecimentos prisionais, a fim de tomar
conhecimento da forma como estão a ser executadas as condenações e a conceder e
revogar as saídas precária prolongadas (artigo 23.º, 1.º e 4.º).
Com este ponto de chegada é uma nova fase que se inicia, marcada pela tendência
para estender a intervenção jurisdicional a toda e qualquer questão relativa à
modelação da execução que possa contender com os direitos do recluso. O que
arrasta a necessidade de repensar a intervenção do juiz no âmbito da execução
das sanções privativas da liberdade. “Do que se trata, com efeito, é de
converter a intervenção jurisdicional em garante da execução das penas e medidas
de segurança privativas da liberdade, na medida em que a sua modelação afecte
directamente os direitos do recluso” (Anabela Rodrigues, Novo Olhar… p. 137,
itálico aditado).
Do que se trata, afinal, é de conter esta intervenção no âmbito da função
jurisdicional (artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da CRP), dando ao juiz da execução das
sanções privativas da liberdade o papel de juiz das liberdades, à semelhança do
que sucede em outros lugares do ordenamento jurídico (cf. artigo 32.º, n.º 4, da
CRP). Sem prejuízo de a reserva de juiz significar também que é da competência
de um tribunal tomar certas decisões no decurso da execução (por exemplo, as que
modificam, substituem ou complementam a sentença condenatória).
13. Partindo das disposições legais que definem a competência dos tribunais de
execução das penas, por referência ao direito penal vigente (artigos 91.º e 92.º
da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e 124.º e 125.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de
Agosto), é de concluir que a colocação do recluso em regime aberto no exterior
não é comparável às decisões que naquelas normas estão reservadas ao juiz.
Nomeadamente não é comparável à concessão da liberdade condicional e à concessão
de saídas precárias prolongadas (artigos 91.º, n.º 2, alínea a), e 92.º, alínea
d), da Lei n.º 3/99 e 124.º, n.º 2, alínea a), e 125.º, alínea d), da Lei n.º
52/2008). Institutos que o requerente refere expressamente.
Quando é concedida a liberdade condicional há uma alteração do conteúdo da
sentença condenatória. Isto é, a sentença condenatória “deixa de ser” de
privação da liberdade, já que a libertação condicional significa uma devolução
do condenado à liberdade (sem prejuízo do que se dispõe no artigo 64.º, nº 1,
primeira parte, do Código Penal). Por outro lado, à colocação em liberdade
condicional pode mesmo corresponder uma alteração do quantum de privação da
liberdade determinado na sentença condenatória, face ao que se dispõe nos
artigos 57.º, n.º 1, por remissão do n.º 1 do artigo 64.º, e 61.º, n.º 5, do
Código Penal. E corresponderá necessariamente a uma alteração do quantum de
privação da liberdade determinado na sentença condenatória para os que defendem
que, em caso de revogação, conta como cumprimento da pena de prisão o tempo em
que o condenado esteve em liberdade condicional.
O que acaba de ser dito vale também para as saídas precárias prolongadas,
tradicionalmente da competência dos tribunais de execução das penas (artigos
23.º, 3.º do Decreto-Lei n.º 783/79) e aí incluída no Código aprovado pelo
Decreto n.º 366/X (artigo 79.º, n.º 1 – Licenças de saída jurisdicionais). Neste
tipo de saída do estabelecimento há também uma alteração do conteúdo da sentença
condenatória, uma vez que o condenado é devolvido à liberdade durante uns dias.
Traduz-se mesmo numa alteração do quantum de privação da liberdade determinado
na sentença condenatória: o período de saída vale como tempo de execução da pena
(artigo 54.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 265/79, na medida que exclui o desconto)
e é descontado no cumprimento da sanção em caso de revogação (artigos 53.º, n.º
4, Decreto-Lei n.º 265/79).
Diversamente, quando o Director-Geral dos Serviços Prisionais coloca o recluso
em regime aberto no exterior não há qualquer alteração do conteúdo da sentença
condenatória. Esta decisão “continua a ser” de privação da liberdade, havendo,
tão-só, uma alteração do conteúdo da execução da pena de prisão,
político-criminalmente justificada por referência aos princípios
jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da intervenção penal
(cf. supra ponto 4.). Isto é: não extravasa a natureza de medida de
flexibilização da execução da pena de prisão (neste sentido, para o direito
vigente e por comparação com o regime de semidetenção – actualmente previsto no
artigo 46.º do Código Penal –, cf. Parecer n.º 104/90 do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, já citado).
A alteração traduz-se no desenvolvimento de actividades de ensino, formação
profissional, trabalho ou programas em meio livre (por exemplo, programas de
tratamento de situações de toxicodependência), sem vigilância directa, fora dos
muros do estabelecimento prisional, durante o período de tempo necessário ao
desenvolvimento de tais actividades. A colocação em regime aberto no exterior
não significa, de todo, uma devolução do condenado à liberdade. Daí que em ponto
algum do Código aprovado pelo Decreto 366/X se encontre disposição paralela à
contida no artigo 77.º, nº. 1, segundo a qual o período de saída é considerado
tempo de execução da pena; ou qualquer norma significativa de uma mudança do
estatuto jurídico do recluso, quer quanto aos direitos quer no que toca aos
deveres (artigos 7.º e 8.º). É de subscrever, por inteiro, o que se sustentou,
relativamente ao direito vigente, no Parecer n.º 104/90 do Conselho Consultivo
da Procuradoria-Geral da República, já citado:
«Fora do estabelecimento, o recluso não se assume, jurídica e materialmente, com
liberdade incondicionada. As condições em que trabalhe, e os estabelecimentos de
ensino que frequente, são consideradas necessariamente na aplicação do plano, e
o resultado obtido constitui elemento relevante da evolução posterior. Mantém-se
uma ligação jurídica e material entre o recluso e o estabelecimento prisional:
juridicamente, o recluso mantêm integralmente o respectivo estatuto, cumprindo
ainda, e nesta fase, uma medida privativa de liberdade (…).
Na licença de saída do estabelecimento (diga-se, semi-liberdade), o estado
detentivo continua a permanecer, ainda que diariamente intervalado pelo contacto
com o ambiente externo; constitui, por isso, uma especial modalidade de
execução, uma fase da execução da pena privativa de liberdade.»
Em suma: a colocação do recluso em regime aberto no exterior, uma vez
verificados os pressupostos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º do
Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X, traduz-se numa alteração do conteúdo da
execução da pena de prisão.
Sem que isso modifique o sentido da sentença condenatória, na medida em que a
pena de prisão é necessariamente modelada no decurso da execução, em obediência
aos princípios jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da
intervenção penal (cf. supra ponto 4.). A execução da pena de prisão orienta-se
pelo princípio da individualização do tratamento prisional, inevitavelmente
programado e faseado, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre,
através das necessárias alterações do regime de execução (artigos 5.º, n.ºs 1 e
3, 12.º, n.º 1, 22.º, n.º 3, e 76.º, n.ºs 2 e 3, do Código aprovado pelo Decreto
n.º 366/X e artigos 3.º, n.º 2, e 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 265/79). É de
Afonso Queiró a afirmação de que “as sanções criminais decretadas pelos
tribunais podem ser individualizadas na fase do seu cumprimento ou execução e,
de toda a maneira, a administração prisional reserva-se uma esfera de actuação
própria, livre em relação ao tribunal cuja acção culmina com a sentença
condenatória” (“A função administrativa”, Revista de Direito e de Estudos
Sociais, ano XXIV, n.ºs 1-2-3, p. 28).
Por outras palavras: como a execução das sanções privativas da liberdade é
necessariamente modelada na execução, o “acesso a meio livre” – a execução da
pena de prisão em regime aberto no exterior – encontra-se pressuposto (a) na
sentença que condenou a uma pena de prisão.
14. A colocação do recluso em regime aberto no exterior – uma das modalidades
dos regimes de execução da pena de prisão – não integra a actividade de
repressão da violação da legalidade democrática que o artigo 202.º, n.ºs 1 e 2,
da CRP reserva aos tribunais (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 205.º,
ponto IV., entendem que o segundo segmento do n.º 2 do artigo 202.º aponta
especialmente para a justiça criminal; no mesmo sentido, cf. Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 67/2006, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não integra a actividade de repressão da violação da legalidade democrática,
porque aquando da decisão de colocação em regime aberto no exterior não ressurge
o conflito jurídico-penal emergente da prática do crime, entretanto já resolvido
na sentença condenatória. É nesta decisão judicial que o agente da prática da
infracção criminal é privado da liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP) para
salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos
(artigo 18.º, n.º 2, da CRP). É aqui que se pondera o quantum de pena que é
necessário para a reafirmação da validade da norma que foi violada com o
cometimento do crime (para a protecção de bens jurídicos) e, na medida do
possível, para a reintegração do agente na sociedade (cf. artigos 40.º, n.ºs 1 e
2, e 71.º, n.º 1, do Código Penal; sobre isto cf. Figueiredo Dias, Direito Penal
Português…, p. 227 e ss.; no sentido de o conceito de legalidade democrática
estar utilizado “no sentido de ordem jurídica democraticamente instituída”, cf.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 205.º, ponto IV.).
Diferentemente se passa, por exemplo, com a pena relativamente indeterminada,
sanção em que a medida concreta da privação da liberdade é “determinada” já em
sede de execução (cf. artigos 83.º, n.º 2, 84.º, n.º 2, 86.º, n.º 2, e 90.º do
Código Penal e 509.º do Código de Processo Penal).
Por interpretação das disposições constantes do Código aprovado pelo Decreto n.º
366/X, é de concluir que quando coloca o recluso em regime aberto no exterior,
verificados os pressupostos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º do
Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X, o Director-Geral dos Serviços Prisionais
não resolve uma qualquer “questão de direito” nem o faz para a resolver, não
dirime um qualquer litígio em que os interesses em confronto são apenas os das
partes (para estes critérios de distinção da função jurisdicional da função
administrativa, cf. Afonso Queiró, loc. cit., p. 30 e s. e, entre outros,
Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 443/91 e 453/93, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
Quando coloca o recluso em regime aberto no exterior, verificados os
pressupostos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º daquele Código, o
Director-Geral dos Serviços Prisionais prossegue o interesse público de prevenir
a reincidência (artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea d), 30.º, n.º 5, e 266.º da CRP),
exercendo a competência que lhe está atribuída de garantir a execução da pena de
prisão de acordo com as respectivas finalidades (artigo 135.º, n.º 1, alínea a),
do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X). A finalidade socializadora da
execução “é também um objectivo da política penal do Estado – prevenção
(especial) da reincidência – e, enquanto tal, inscreve-se no programa da acção
estadual como fim heterónomo ao indivíduo” (Exposição de Motivos do Projecto de
Proposta de Lei de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, Anabela
Rodrigues, Novo Olhar…, p. 196).
15. O Presidente da República requer a apreciação da norma da alínea b) do n.º 6
do artigo 14.º, enquanto conjugada com as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do
mesmo artigo, constante do Código aprovado pelo Decreto n.º 366/X, também com
fundamento em violação do imperativo do respeito pelo caso julgado, por parte
dos órgãos da Administração Pública, nos termos do artigo 2.º e do disposto no
n.º 3 do artigo 282.º da CRP.
Requer a apreciação da constitucionalidade da norma que atribui competência ao
Director-Geral dos Serviços Prisionais para, com o consentimento do recluso, o
colocar em regime aberto no exterior, se não for de recear que se subtraia à
execução da pena ou que se aproveite das possibilidades que tal regime lhe
proporciona para delinquir e o regime se mostrar adequado ao seu comportamento
prisional, à salvaguarda da ordem, segurança e disciplina no estabelecimento
prisional, à protecção da vítima e à defesa da ordem e da paz social. Requer
esta apreciação invocando como segundo fundamento o imperativo do respeito pelo
caso julgado, por parte dos órgãos da Administração Pública, nos termos do
artigo 2.º (Estado de direito democrático) e do disposto no artigo 282.º
(Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade), n.º 3,
segundo o qual ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário
do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal (disciplinar
ou de ilícito de mera ordenação social) e for de conteúdo menos favorável ao
arguido.
Pelas razões já expostas, é de concluir que não se verificam os pressupostos de
que parte o requerente. Isto é, a administração prisional não modifica o sentido
da sentença que condenou a uma pena de prisão nem altera o sentido da pena,
quando coloca o recluso em regime aberto no exterior. Tanto basta para concluir
que a norma cuja apreciação foi requerida não viola o parâmetro constitucional
convocado pelo requerente.
III. Decisão
Face ao exposto, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela
inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 6 do artigo 14.º, enquanto
conjugada com as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo, constante
do Código da Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade aprovado
pelo Decreto n.º 366/X da Assembleia da República.
Lisboa, 28 de Agosto de 2009
Maria João Antunes
Ana Maria Guerra Martins
Mário José de Araújo Torres
Gil Galvão
Vítor Gomes
João Cura Mariano (vencido, conforme declaração de voto que junto)
Rui Manuel Moura Ramos (Vencido, nos
termos da declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido o presente acórdão por entender que a Constituição impõe que a
decisão sobre a colocação de um recluso em regime aberto no exterior seja
emitida por um juiz, pelas razões que sucintamente passo a expor.
O Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (C.E.P.M.P.L.),
aprovado pelo Decreto sob fiscalização (n.º 366/X), perseguindo a finalidade
socializadora da pena de prisão, e mais concretamente, preparando o recluso para
o regresso à comunidade (artigo 2.º, do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo referido
Decreto), prevê a possibilidade deste, após ter cumprido um quarto da pena, ser
colocado em regime aberto no exterior.
Este regime caracteriza-se pelo desenvolvimento de actividades de ensino,
formação profissional, trabalho ou programas em meio livre, sem vigilância
directa (artigo 12.º, n.º 3, b), do C.E.M.L.P.
Estamos perante um regime de semi-liberdade condicionada. “Semi”porque ela tem
apenas a duração do tempo estritamente necessário para o recluso estudar ou
trabalhar no exterior do estabelecimento prisional, e “condicionada” por que
esse tempo de liberdade só pode ser utilizado pelo recluso para desenvolver
essas actividades.
Este regime é materialmente idêntico àquele que pode desde logo ser determinado
pelo juiz do julgamento, relativamente às penas de prisão aplicadas em medida
não superior a um ano, que não devam ser substituídas por pena de outra espécie,
nem cumprida em dias livres. É o regime de semi-detenção previsto no artigo
46.º, n.º 1, do Código Penal.
Independentemente de se considerar a colocação do recluso em regime aberto no
exterior como uma alteração do conteúdo da sentença condenatória, ou apenas uma
flexibilização da pena aí aplicada, ou tão somente uma modalidade possível da
sua execução, o que é indiscutível é que a decisão sobre a aplicação deste
regime determina o conteúdo da pena de prisão na qual o recluso foi condenado,
numa fase do seu cumprimento.
Na verdade, esta decisão define os termos essenciais em que a pena de prisão na
qual o recluso foi condenado deve ser cumprida numa determinada fase da sua
execução.
Se a sentença condenatória definiu o tipo e a medida da pena aplicada, a
decisão sobre a colocação do recluso em regime aberto no exterior, define o
concreto regime daquela pena, pelo que desempenha um papel tão ou mais
importante que a primeira no modo de repressão penal da violação da legalidade
democrática.
Nessa decisão terão que ser ponderados o comportamento prisional anterior do
recluso, o perigo deste aproveitar o tempo de liberdade para se subtrair à
execução da pena ou delinquir, a protecção da vítima e a defesa da ordem e da
paz social (artigo 14.º, n.º 1, a) e b), do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo Decreto
n.º 366/X).
É mais uma vez a resolução do conflito entre os valores da liberdade e dos
direitos individuais e a defesa da sociedade vigente que está em jogo nesta
decisão.
Ora, se na divisão dos poderes estaduais não há dúvidas sobre a natureza
necessariamente judicial da sentença que aplica penas criminais, a qual é
especificamente imposta no nosso texto constitucional no n.º 2, do seu artigo
27.º, também a decisão de colocação dos reclusos em regime aberto no exterior,
por se traduzir numa determinação do conteúdo essencial duma pena de prisão
anteriormente imposta, deve comungar da mesma natureza.
Estão em causa direitos fundamentais individuais em contraposição com interesses
de defesa da ordem jurídica e da paz social, situando-se esse conflito num nível
de importância elevado, uma vez que as restrições impostas àqueles direitos são
particularmente severas, face à relevância dos interesses públicos em jogo.
Nesta matéria qualquer palavra decisiva tem de pertencer a um juiz, dotado das
qualidades de independência e imparcialidade que garantam uma justa e isenta
composição do conflito em questão.
Assim o exige o princípio da separação de poderes, em matéria tão sensível como
é a da definição do conteúdo das penas criminais.
Estamos, pois, perante uma decisão abrangida pela reserva constitucional de
juiz, consagrada no artigo 202.º, n.º 1 e 2, da C.R.P., pelo que a competência
para a proferir não pode ser atribuída pelo legislador ordinário ao
Director-Geral dos Serviços Prisionais que integra a administração directa do
Estado.
O facto do Decreto sob fiscalização prever a homologação pelo Tribunal de
Execução de Penas do plano individual de readaptação de cada recluso (artigo
21.º, n.º 7, do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo Decreto n.º 366/X), exigir como
requisito da colocação em regime aberto no exterior o gozo prévio de uma licença
de saída jurisdicional com êxito (artigo 14.º, n.º 5, do C.E.P.M.P.L., aprovado
pelo Decreto n.º 366/X) e obrigar à comunicação ao Ministério Público das
decisões positivas proferidas nesta matéria, o qual as poderá impugnar perante
o Tribunal de Execução de Penas mediante recurso com efeito meramente devolutivo
(artigos 14.º, n.º 7, 199.º, b) e 202.º, n.º 1, do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo
Decreto n.º 366/X) se revela a louvável preocupação do legislador em criar
alguns mecanismos de intervenção judicial no processo de colocação do recluso em
regime aberto no exterior, não é suficiente para satisfazer a exigência
constitucional de que essa decisão só possa ser tomada por um juiz.
Na previsão do C.E.P.M.P.L., aprovado pelo Decreto sob fiscalização, o juiz
apenas homologa genericamente um plano global de execução da pena, decide sobre
uma saída jurisdicional do recluso, que é condição prévia de sua colocação em
regime aberto no exterior, e pode pronunciar-se, em recurso, sobre uma
impugnação do Ministério Público da adopção deste regime, mas é ao
Director-Geral dos Serviços Prisionais a quem, nos termos do artigo 14.º, n.º 6,
b), é atribuída, em primeira linha, a competência para decidir sobre a colocação
dos reclusos em regime aberto no exterior.
Ao não atribuir a um juiz o monopólio desta decisão, a norma fiscalizada viola o
princípio constitucional da reserva de juiz, consagrado no artigo 202.º, n.º 1 e
2, da C.R.P., pelo que me pronunciei pela sua inconstitucionalidade.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergindo do entendimento perfilhado no acórdão, pronunciei-me pela
inconstitucionalidade da norma objecto do pedido por violação da reserva de
jurisdição prevista no artigo 202º da CRP. Na verdade, em meu juízo, a
colocação em regime aberto no exterior prevista no artigo 14º do Código aprovado
pelo artigo 1º do Decreto nº 366/X constitui uma modelação da execução de pena
de prisão que, pela importância de que se reveste para a ressocialização do
condenado, constitui algo mais que um mero instrumento de flexibilização da pena
de prisão intrínseco à gestão da vida interna da prisão.
Ao contrário, o desenho legal do instituto e a ponderação de interesses que
supõe e encerra (artigo 14º, nº1, alíneas a) e b)), aproximam a adopção desta
medida do exercício da função jurisdicional, pelo papel central que cabe à opção
em causa na execução das penas privativas da liberdade.
Com efeito, ao prescrever, no artigo 13º do Código, que “o recluso é colocado em
regime comum quando a execução de pena ou medida privativa da liberdade não
possa decorrer em regime aberto nem deva realizar-se em regime de segurança”, o
legislador parece assumir uma preferência por aquele segundo regime, atribuindo
ao primeiro um carácter residual, quando a escolha de um ou outro dos demais
deva considerar-se excluída. Como quer que seja, a eleição da modalidade de
execução a que se refere o pedido implica uma avaliação do recluso e da sua
evolução ao longo da execução da pena que envolve ponderações que escapam ao
puro domínio da administração prisional.
Esta visão das coisas pode aliás reclamar-se de um movimento de
jurisdicionalização da execução da pena de prisão que o acórdão (ponto 12),
reconhece e em que se louva. Conquanto não envolva uma devolução do condenado à
liberdade (como na liberdade condicional), a medida em causa não deixa de se
revestir de uma centralidade na execução da pena de prisão e, por ela, na
ressocialização do condenado, que continua a justificar que a competência para
decidir ou não da colocação de um recluso neste regime seja cometida ao juiz de
execução das penas. É pois a nosso ver a importância do instrumento de
modelação da execução da pena privativa de liberdade e o alcance que lhe é
reconhecido que impôem a intervenção judicial. Importância e alcance que não
são decerto menores, na perspectiva da ressocialização do condenado, que a de um
instituto como o das saídas precárias prolongadas, estas da competência do
tribunal de execução das penas, e cuja autorização, com êxito, constitui de
resto pressuposto da medida ora em consideração (e note-se que seria algo
estranho que a intervenção jurisdicional fosse dispensada para a adopção de um
regime quando não o é para a de um dos seus pressupostos).
E nem se diga, como o faz o acórdão, que o acesso a meio livre se encontra
pressuposto na sentença que condenou a uma pena de prisão ou que não integra a
actividade de repressão da violação da legalidade democrática. Assim é, de
facto, mas o argumento prova de mais, pois que o mesmo se pode sem dúvida
igualmente dizer em relação à colocação em liberdade condicional ou à referida
autorização de saídas precárias prolongadas – e no que a estas diz respeito é
pacificamente aceite a competência do tribunal de execução das penas.
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Cfr. nº 2 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 265/79.
[2] Cfr.ºs 1 e 4 do artigo 14º do decreto.
[3] Cfr. nº 2 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 265/79. Acrescem também as razões
gerais de flexibilização do regime de execução previstas no nº 2 do artigo 58º
do mesmo diploma
[4] Cfr. alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º do decreto.
[5] Cfr. artigo 15º do Decreto-Lei nº 265/79.
[6] Cfr. nº 4 do artigo 14º do decreto.
[7] Cfr. alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 58º do Decreto-Lei nº 265/79.
[8]Cfr. alínea b) do nº 3 do artigo 12º do decreto.
[9] Cfr. nº 5 do artigo 14º, alínea d) do nº 1 e nº 2 do artigo 15º e alínea b)
do nº 1 do artigo 58º do do Decreto-Lei nº 265/79.
[10] Decreto-Lei nº 783/76, de 29 de Outubro, com as alterações introduzidas
pelo Decreto-Lei nº 222/77, de 30 de Maio, pelo Decreto-Lei nº 204/78, de 24 de
Julho e pelo Decreto-Lei nº 402/82 de 23 de Setembro que dispôs igualmente
diversas regras em matéria de execução de penas e medidas de segurança.
[11] Cfr. ANABELA RODRIGUES “Novo Olhar Sobre a Questão
Penitenciária”-Coimbra-2000-p. 136 e seguintes.
[12] ANABELA RODRIGUES, “Da Afirmação de Direitos à Protecção de Direitos de
Reclusão: a jurisdicionalização da execução da pena de prisão”, Direito e
Justiça, Vol. Especial, Coimbra, 2004, pp. 191 e segs.
[13] O nº 2 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 265/79 reza que “O recluso pode ser
internado (…) num estabelecimento ou secção de regime aberto” [itálico
acrescentado]..
[14] O nº 1 do artigo 14º do decreto em exame determina que “O recluso condenado
é colocado em regime aberto (…)” [itálico acrescentado].
[15] Cfr. alíneas d) e f) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.