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Processo n.º 468/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. pretendeu interpor recurso de constitucionalidade na sequência do Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2009 que julgou prejudicado o
conhecimento da revista que havia interposto após procedência da revista
igualmente interposta pela Ré, ora Reclamada, Fundação B.. Nesse aresto aquele
Alto Tribunal revogou a decisão que havia sido proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, assentando na não existência de um contrato de trabalho entre
a Reclamante e a Reclamada. O requerimento interpositório do mencionado recurso
de constitucionalidade apresentou o seguinte teor:
“O recurso é interposto nos termos dos arts. 71°, 75° e 75°-A, da Lei 28/82 e
tem por fundamento a alínea b) do art. 70° da mesma Lei, com os seguintes
fundamentos:
1° No caso dos autos está em análise a situação contratual de uma docente
universitária num estabelecimento universitário particular.
2° O Acórdão recorrido defende que não se está perante um regime contratual de
trabalho subordinado, porquanto a retribuição é um dos elementos essenciais
deste tipo de contrato e não resulta dos autos que as partes se tivessem
vinculado a uma prestação de trabalho mínima a que corresponderia um mínimo
remuneratório, antes podendo a retribuição variar consoante o serviço docente
atribuído e no limite deixar de existir por não haver serviço docente atribuído.
3° No caso dos autos, reúnem-se um conjunto de características dominantes que
permitem caracterizar o vínculo existente entre as partes como emergente de um
contrato de trabalho.
4º E quanto ao elemento da retribuição, releva a seguinte matéria de facto dada
por provada em 1.ª instância:
a) A A. celebrou com a R. contratos denominados de docência de duração anual e
renovação automática espelhando esses contratos uma variabilidade da carga
horária atribuída à A. — factos dados por provados sob os n°s 17a 21;
b) A remuneração mensal de cada docente era determinada pelo número de horas de
leccionação por semana, as quais resultavam da distribuição do serviço docente
entre os docentes dos respectivos departamentos — facto dado por provado sob o
n°35;
c) A carga horária dos docentes está directa e intrinsecamente relacionada com o
número de discentes que se inscrevem em cada disciplina, em cada ano ou em cada
semestre e com a distribuição de serviço docente efectuada pelo respectivo
Departamento — facto dado por provado sob o n°39;
d) Todos os docentes da Universidade Lusíada, incluindo a A., sabiam que o
número de alunos em cada disciplina varia conforme os anos e semestres — facto
provado sob o n°40;
e) A A. sabia que a sua carga horária poderia ser aumentada, reduzida, ou
excluída, e consequentemente respectivamente aumentada, reduzida ou excluída a
sua retribuição — facto dado por provado sob o n° 41.
5.º Verifica-se por outro lado nos factos dados por provados sob o n°15 que as
horas de docência da A. variaram entre 4 e 8 horas semanais de 1987 a 1993, de
1993 a 1999 foram sempre de 12 horas semanais ou superiores (com excepção do 1°
semestre do ano lectivo de 1996/199 7 em que foram de 8 horas) e que, a partir
de Setembro de 2000 foram diminuindo progressivamente até Setembro de 2004 em
que deixou de haver serviço docente atribuído.
6° A essas variações terá correspondido uma variabilidade proporcional da
retribuição.
7º Ao contrário do decidido no Acórdão recorrido, entende-se que a questão não
se resolve pelo recurso à liberdade contratual, de onde se retira que se as
partes não convencionaram contratualmente uma retribuição mínima e uma
necessária disponibilidade mínima do trabalhador houvesse ou não trabalho, não
existe contrato de trabalho subordinado.
8° Na verdade, os denominados direitos sociais integram aquilo que se denomina
como ‘Ordem Pública Económica de Protecção’, estando retiradas á liberdade
contratual um conjunto de matérias que são reguladas por forma a não poderem ser
afastadas pela vontade contratual das partes.
9° Reconhecendo-se pois que as características dominantes que se reúnem na
relação jurídica existente entre A. e R. caracterizam o contrato como um
contrato de trabalho subordinado há que acautelar o cumprimento do direito à
retribuição previsto no art. 59°, n°1, a), e n°3, da Constituição.
10° E esse direito à retribuição está garantido legalmente por três vias, quais
sejam:
a) A proibição de diminuição da retribuição, nos termos previstos nos arts. 21°,
n° 1, e), do RJCIT aprovado pelo Dec.-Lei 49.408, e 122°, d), do Código do
Trabalho;
b) A regra do cálculo da retribuição mensal quando existe retribuição variável,
nos termos previstos nos arts. 84° do RCIT aprovado pelo Dec.-Lei 49.408 e 252°
do Código do Trabalho;
e) O direito à fixação judicial da retribuição quando as partes não o tenham
estabelecido, nos termos previstos nos arts. 90° do RJCIT aprovado pelo Dec.-Lei
49.408 e 265° do Código do Trabalho.
11° A conjugação das normas impeditivas da diminuição da retribuição com as
normas reguladoras da fixação da retribuição variável, afasta em nosso entender
a possibilidade de “desaparecimento” da retribuição nos períodos em que não
existe prestação da actividade.
12° Na verdade, nenhum sentido faria a regra dos arts. 84°, n°2, do RJCIT e
252°, n 2 e 3, do Código do Trabalho, ao estabelecer regras para o
estabelecimento da retribuição mensal quando esta é variável, se não existisse o
principio de que nunca pode deixar de existir retribuição a não ser nas
situações claramente definidas na lei em que existe suspensão do contrato de
trabalho.
13° A entender-se que, no caso dos autos existia uma retribuição variável,
sempre haveria de aplicar aquelas normas para determinação do quantum
remuneratório devido à A. nos períodos em que não existiu atribuição de serviço
docente.
14° Tanto mais quando é certo que a cessação da atribuição do serviço docente
ocorreu no início do ano lectivo de 2004/2005, altura em que já estava em vigor
o Código do Trabalho, o qual, no seu art. 252°, veio clarificar de vez a questão
ao estabelecer a obrigatoriedade de uma retribuição mínima garantida nos casos
de retribuição variável.
15° E o art. 8° da Lei 99/2003, de modo expresso impõe a aplicação das normas do
Código do Trabalho aos contratos de trabalho que estejam em vigor, e no art. 9°
da mesma lei não se prevê a retribuição ou os contratos de trabalho já
celebrados como inseridos nas circunstâncias excepcionais a que se aplicaria o
direito anterior.
16° A norma do art. 252° do Código do Trabalho era pois aplicável às partes, não
obstante a existência de disposição contratual.
17° E, quando num contrato de trabalho se conclui que não foi estabelecida a
retribuição, ainda que somente em determinado período, a mesma terá de ser
estabelecida judicialmente — arts. 90° do RJCIT aprovado pelo Dec.-Lei 49.408 e
265° do Código do Trabalho – Ver Monteiro Fernandes (in ‘Direito do Trabalho’,
11.ª edição, a pág. 458).
18° E o Acórdão recorrido, perante uma situação em que se reuniam de forma
dominante os elementos do contrato de trabalho subordinado, não podia ter
decidido pela existência de um contrato de prestação de serviços atenta a falta
do elemento essencial que a retribuição representa, mas resultando dos autos que
o contrato não era gratuito, deveria ter fixado a retribuição em obediência aos
citados normativos legais.
19° A lese do Acórdão recorrido viola pois os arts. 252°, n°s 2, 3 e 4, e 265°,
do Código do Trabalho e o art. 59°, n° 1, a), e n°3, da Constituição.
20° A recorrente suscitou aquela inconstitucionalidade nos n°s 20 a 37 das
conclusões das contra-alegações apresentadas em resposta ao recurso de revista
interposto pela R.”
Vejamos agora os termos do despacho reclamado que rejeitou a admissão do
recurso:
“(…)
Nesse mesmo requerimento, em parte alguma se encontra qualquer asserção da qual
decorra que o intento da ora recorrente é o de submeter ao veredicto daquele
órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa a apreciação
da compatibilidade com a Lei Fundamental por banda de um determinado normativo
(ou de determinados normativos) ínsito (ou ínsitos) no ordenamento jurídico
infra-constitucional.
Aliás, percorrida essa peça processual, torna-se patente que o desiderato da
recorrente é o de sindicar o acórdão agora pretendido impugnar, em face da
decisão que no mesmo foi tomada.
De outro lado, seja na alegação que produziu na revista por si interposta (Fls.
686 a 698), seja na resposta à alegação formulada na revista interposta pela
Fundação B. (Fls. 612 a 661), também não se lobriga que, precedentemente ao
acórdão em causa, a recorrente tivesse sustentado a incompatibilidade
constitucional de qualquer norma do ordenamento jurídico ordinário (ainda que
alcançada por via de um método interpretativo).
Ora, sendo certo que os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade
têm por objecto normas jurídicas e não quaisquer outros actos do poder público,
tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas, torna-se
claro que a impugnação agora querida não pode ser admitida, já que o respectivo
objecto é a decisão tomada no acórdão em si e não um normativo (ou uns
normativos) que fosse convocado (ou fossem convocados) como suporte dessa
decisão.
E não podendo deixar de considerar-se que em causa estaria, e tão-somente, um
recurso ancorado na alínea b) do n° 1 do art° 70° da Lei n° 28/82 (já que as
restantes situações permissoras do recurso a que se reporta aquele número, de
todo em todo, se não congregam in casu), não só porque não foi suscitada, antes
da prolação da decisão querida recorrer, a inconstitucionalidade de qualquer
norma, como ainda não é esta a visada no requerimento de interposição do
recurso, não admito o mesmo.”
Notificada deste despacho, foi então deduzida a presente reclamação, ao abrigo
do disposto no artigo 76.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) nos
termos que se passam a transcrever:
“l.º O despacho de não admissão do recurso sustenta que a ora reclamante não
indicou nas peças processuais que fora aplicada qualquer norma violadora de
preceitos constitucionais e que o que a ora recorrente punha em causa era a
própria decisão judicial constante do Acórdão recorrido, e esta, enquanto tal
não era susceptível de apreciação por via da fiscalização concreta da
constitucionalidade.
2.º Entende a ora reclamante que assim não sucede. Na verdade,
3° O que está em causa nos autos é o Acórdão recorrido, quando este, partindo da
análise dos arts. 1° da LCT, 10.º do Código do Trabalho e 1152° do Código Civil,
defende a tese de que o contrato de trabalho subordinado é por natureza oneroso,
e que por isso tem de existir sempre uma retribuição mínima por imperativo do
art. 59°, n° 1, da Constituição, no caso em apreço que configurava uma situação
contratual onde tudo aponta para a caracterização do contrato vigente entre as
partes como um contrato de trabalho subordinado, e perante a violação pela
entidade empregadora das regras que impõem a obrigatoriedade de pagamento da
retribuição, vem a decidir no sentido da inexistência de um contrato de trabalho
atenta a variabilidade da retribuição que entendeu aceite pelas partes ao longo
do tempo em que a relação contratual perdurou.
4° Argumentar-se-á que se trata de mera interpretação do direito e a sua
aplicação aos factos dados por provados nos autos e, por isso, sujeita ou não a
interpretações divergentes, mas nunca uma questão de recurso com fundamento em
inconstitucionalidade atentos os limites do art. 70°, n°1, da Lei 28/82.
5° Discorda-se de tal entendimento. Na verdade,
6° Tendo o contrato celebrado entre as partes as características dominantes de
um contrato de trabalho subordinado, e tendo sido estabelecida uma retribuição
pelo trabalho prestado, impunha-se a aplicação das regras dos arts. 90° da RJCIT
e 265° do Código do Trabalho, ou seja impunha-se a fixação judicial do quantum
remuneratório que à ora reclamante era devido nos momentos em que a R. reduzira
a prestação de trabalho ou a eliminara, como o havia feito já o Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa proferido nos autos.
7° Não se podendo concluir pela inexistência entre as partes de um contrato de
trabalho subordinado atenta a variabilidade da retribuição.
8° Entende pois a ora reclamante que o Acórdão recorrido não está posto em causa
no recurso acerca da constitucionalidade só por uma questão de interpretação do
direito mas principalmente por ter afastado a aplicação dos mencionados arts.
90° da RJCIT e 265° do Código do Trabalho, afastamento de aplicação esse que
traduz uma sobrevaloração da prática contratual alegadamente consentida pela ora
reclamante e que implica um entendimento da aplicabilidade daqueles normativos
legais que viola o art. 59°, n°s 1, a), e 3, da Constituição.
9° Tendo a questão só sido suscitada pelo recurso interposto pela R. do Acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa e, por essa razão só vertida pela ora
reclamante nas conclusões 20 a 37 das contra — alegações então apresentadas pela
ora reclamante.
10.º O Acórdão recorrido sustenta aliás que tal violação das normas legais e
constitucionais citadas não existe porquanto a exclusão da existência de um
contrato de trabalho subordinado entre as partes se fez por recurso ao método
subsuntivo afastando pois a análise através do método tipológico.
11.º São conhecidas as criticas fritas à aplicação do método subsuntivo na
caracterização dos contratos de trabalho subordinado e as vantagens menos
estanques que decorrem da aplicação do método tipológico, tendo sido esta última
orientação que presidiu à redacção constante do art. 12° do mais recente Código
do Trabalho.
No entanto,
12° Mesmo por recurso ao método subsuntivo as normas citadas dos arts. 90° da
RJCIT e 265° do Código do Trabalho, impõem sempre, no que à retribuição refere,
o recurso ao método tipológico sob pena das regras da necessária
determinabilidade da retribuição não virem a ser aplicáveis.
13° No entender da ora reclamante, o recurso é pois admissível por não terem
sido aplicadas as normas dos arts. 90.º da RJCIT e 265° do Código do Trabalho em
violação do art. 59°, n° 1, a), e 3, da Constituição.”
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal
pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação, dizendo:
“Efectivamente, como se afirma na decisão reclamada, no requerimento de
interposição do recurso não vem delineada qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, limitando-se o reclamante a dizer – após uma
longa dissertação sobre a situação que se verificava nos autos – que a tese do
acórdão recorrido violava os artigos 252.º, n.ºs 2, 3 e 4, e 265.º do Código de
Trabalho e artigos 59.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Constituição. Também é em
termos e num contexto em tudo idênticos, que o artigo 59.º é referido
anteriormente na Contra-Alegação apresentada em resposta ao recurso interposto
pela Ré, a peça processual onde, segundo o reclamante, é suscitada a questão.
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Notificada desse parecer, a Reclamante nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento. Com efeito, tendo
o recurso sido interposto com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b, da
LTC, não se verificam preenchidos nos autos os requisitos processuais de que
depende a admissão e conhecimento do mesmo. Tal preceito respeita aos recursos
de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
adequadamente suscitada durante o processo. O certo é que, confrontado desde
logo o teor da reclamação, verifica-se que o que a Reclamante contesta não
consubstancia, como se impunha em vista ao conhecimento do objecto da impugnação
que pretendeu intentar, uma questão de constitucionalidade normativa. Com
efeito, a Reclamante discorda da interpretação atribuída ao direito
infra-constitucional (nomeadamente aos artigos 90.º do RJCIT e 265.º do Código
do Trabalho), na sequência da qual se concluiu pela inexistência de um contrato
de trabalho subordinado, e não de qualquer norma ou interpretação normativa
eventualmente violadora da Constituição. O objecto do recurso que tentou
interpor não assentou, por conseguinte, em qualquer norma ou interpretação
normativa que, tendo constituído a ratio decidendi da decisão judicial, tivesse
sido anteriormente contestada durante os autos nos moldes prescritos pelo artigo
72.º, n.º 2 da LTC.
Deste modo, assentando o desacordo da Reclamante prima facie na interpretação
conferida ao direito infra-constitucional, daí derivando, de modo mediato, a
inconstitucionalidade da própria decisão, resta concluir pela manifesta
improcedência da reclamação apresentada.
III – Decisão
4. Nestes termos, acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional, indeferir a presente reclamação.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC.
Lisboa, 23 de Julho de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos