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Processo n.º 239/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal
de Sintra, inconformado com a sentença aí proferida a 28 de Novembro de 2008, em
que se decidiu julgar procedente a impugnação judicial deduzida pela aqui
recorrida A., SA, contra o acto de liquidação da taxa de regulação e supervisão
efectuada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), relativa ao
ano de 2006, por considerar que a referida taxa prevista na alínea a) do n.º 3,
do artigo 3.º e artigo 4.º do Regime de Taxas da ERC (Anexo I do Decreto-Lei n.º
103/06, de 7 de Julho) “encontra-se ferida de inconstitucionalidade, por
violação do princípio da legalidade tributária expresso nos artigos 165.º, n.º
1, alínea i), e 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa”
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal
Constitucional).
2. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, notificado para
alegar, concluiu o seguinte:
“1.º
A parte final da alínea i) do nº 1, do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa prevê a existência de uma terceira categoria tributária, ao lado das
taxas ‘stricto sensu’ e dos impostos, permitindo incluir nas contribuições
financeiras a favor de entidades públicas as “taxas colectivas” que funcionam
como contrapartida do serviço prestado — embora em termos não estritamente
individualizáveis — por uma entidade pública a favor de um círculo ou categoria
de pessoas, que beneficiam colectivamente da actividade daquela.
2º
A taxa de regulação e supervisão, criada e regulada pelos artigos 50º, alínea
b), e 51.º dos Estatutos Anexos à Lei nº 53/05, de 08/11, e pelos artigos 3º, nº
3, alínea a), e 4.º do Regime de Taxas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/06, de
7 de Junho, insere-se na figura dos referidas ‘taxas colectivas’, estando
consequentemente sujeita a reserva de lei parlamentar apenas quanto ao
respectivo “regime geral”.
3º
Os traços fundamentais de tal taxa resultam, em termos bastantes, da Lei nº
53/05, suportando o respectivo desenvolvimento em diploma editado pelo Governo,
no exercício da sua competência legislativa própria.
4.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Esta questão foi já apreciada e decidida pelo Tribunal Constitucional não se
vislumbrando razões para afastar tal jurisprudência.
3.1. Com efeito, sobre a concreta questão de constitucionalidade que se perfila
nos autos exarou este Tribunal os Acórdãos n.ºs 365/2008 (publicado,
respectivamente, em Diário da República, II Série, de 12 de Agosto) e 613/2008
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), os quais julgaram não padecer de
inconstitucionalidade orgânica a taxa de regulação a que se refere o impugnado
artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, do Regime de Taxas da ERC aprovado pelo Decreto-Lei n.º
103/2006, de 7 de Junho.
Mais recentemente, e sobre este assunto, o Acórdão n.º 261/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) disse o seguinte:
“A questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso já
foi apreciada pelo Tribunal nos Acórdãos n.º s 365/08 de 2 de Julho e 613/08 de
10 de Dezembro (juízo depois reiterado nas Decisões Sumárias n.ºs 66/2009 e
87/2009) todos disponíveis para consulta em www.tribunalconstitucional.pt, tendo
sido claramente adoptado um juízo de não inconstitucionalidade de tais normas.
Pode ler-se no Acórdão n.º 613/08 o seguinte:
‘ [...]
6. Ora, o grau de autonomia financeira não pode deixar de se afigurar como um
dos critérios decisivos na aferição da efectiva independência de uma entidade
administrativa não sujeita a qualquer tipo de poderes de controlo por parte do
Governo. O regime de financiamento instituído pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, de
07 de Junho, traduz pois a própria natureza mista da ERC – Entidade Reguladora
para a Comunicação Social.
Na medida em que todos os membros da comunidade residente em território nacional
são beneficiários directos da actividade administrativa da ERC, enquanto pessoa
colectiva pública especialmente vocacionada para a protecção dos direitos,
liberdades e garantias nos meios de comunicação social, é a própria lei [cfr.
alínea a) do artigo 50º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de
8 de Novembro] que determina que uma parte substancial do orçamento próprio
daquela entidade seja assegurada mediante verbas a transferir do Orçamento de
Estado, de cada ano, ou ainda mediante a participação nas taxas de utilização do
espectro radioeléctrico pagas ao ICP-ANACOM, a título de remuneração por
utilização de um bem do domínio público [cfr. alínea a) do artigo 50º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro]. Como é
evidente, ao contrário do que sucede com outras entidades administrativas
reguladoras, não seria expectável – ou sequer compatível com o princípio da
proporcionalidade – que os regulados pela ERC fossem exclusivamente onerados com
os custos financeiros (‘excessive burden’) da sua actuação. Pelo contrário, no
caso da ERC, a actividade administrativa desempenhada vai muito para além de uma
clássica função de mera regulação e supervisão económica do mercado da
comunicação social, pelo que sempre será exigível que toda a comunidade
contribua, através dos impostos liquidados por cada contribuinte, para suprir os
custos financeiros da actividade daquela entidade administrativa independente.
Mas, para além de assumir a sua função de entidade administrativa de defesa dos
direitos e liberdades fundamentais, a ERC actua igualmente enquanto entidade
encarregue da regulação e da supervisão do sector económico da comunicação
social. Como tal, outra parcela significativa do orçamento próprio da ERC não
pode deixar de ser sustentada por taxas (e outras contribuições financeiras) a
cobrar junto das entidades que prosseguem actividades de comunicação social e,
como tal, se encontram sujeitas à actividade reguladora daquela entidade
administrativa independente. Na medida em que a actividade da ERC também visa
assegurar a promoção de um mercado mais eficiente, transparente e de sã
concorrência, torna-se inevitável que os próprios regulados participem nos
custos financeiros daquela actividade.
Resta assim verificar se, tal como entendido pela decisão recorrida, a
participação dos regulados não pode ser feita mediante pagamento de uma ‘taxa de
regulação e supervisão’, na medida em que as normas constantes dos artigos 3º,
n.º 3, alínea a), e 4º do Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º
103/2006, de 7 de Junho, são inconstitucionais, por violação do artigo 103º, nºs
2 e 3, e da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República
Portuguesa.
7. Antes de avançar, importa transcrever os preceitos legais em apreciação:
‘Artigo 3.º
(Natureza e espécies de taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação
Social)
(…)
3 - As taxas da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social integram-se
nas seguintes categorias:
a) Taxa de regulação e supervisão;
(…)
Artigo 4.º
(Taxa de regulação e supervisão)
1 - Ao abrigo da alínea b) do artigo 50.º e do n.º 1 do artigo 51.º dos
Estatutos da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovados pela
Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, a taxa de regulação e supervisão visa
remunerar os custos específicos incorridos pela ERC - Entidade Reguladora para a
Comunicação Social no exercício da sua actividade da regulação e supervisão
contínua e prudencial.
2 - Estão sujeitas à taxa de regulação e supervisão todas as entidades que
prossigam, sob jurisdição do Estado Português, actividades de comunicação
social, sendo o quantitativo da taxa calculado em conformidade com a categoria
em que se inserem e com a subcategoria de intensidade reguladora necessária.
Ora, a decisão recorrida afirmou que:
‘Dificilmente se poderá considerar o tributo em causa como uma taxa atent[a] a
falta de uma contrapartida específica e individualizada em relação ao seu
sujeito passivo e em concreto, na pessoa do respectivo operador da área da
comunicação social sua beneficiária. Efectivamente, aquela não tem por
fundamento a prestação concreta de um serviço público, antes visam assegurar os
interesses públicos postos a seu cargo pelo Estado, não se concretizando numa
utilização individualizada pelo sujeito passivo de bens públicos ou
semi-públicos, com contrapartida numa actividade do credor especialmente
dirigida ao mesmo.’ (fls. 189 a 190).
Tal concepção de ‘taxa’, exclusivamente ancorada na verificação de uma
contrapartida expressa através da prestação de um serviço público, aparenta
desconsiderar que o n.º 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária configura como
taxa não só aqueles tributos que visam retribuir a prestação de um serviço
público, mas também a utilização de um bem do domínio público ou a remoção de um
obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares. Porém, não cabe, neste
momento, aprofundar um juízo sobre a qualificação jurídico-tributária a atribuir
à ‘taxa de regulação e supervisão’, prevista artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º
do Anexo I relativo ao Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho.
Independentemente de tal qualificação ser susceptível de controvérsia – tendo,
aliás, sido colocada em causa pela recorrente ERC, em sede de alegações –, não
cabe, nos presentes autos, desenvolver este tema. É que, por força do artigo
79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a
constitucionalidade de normas que tenham sido efectivamente desaplicadas pelos
tribunais recorridos. Ora, neste caso concreto, a decisão recorrida apenas
desaplicou as normas constantes dos referidos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º,
quando interpretadas no sentido de que a referida ‘taxa de regulação e
supervisão’ se reconduz a uma ‘contribuição financeira’ a favor de uma entidade
pública e não a uma ‘taxa’.
Procede-se, então, ao conhecimento da questão de inconstitucionalidade suscitada
pela desaplicação normativa adoptada pela decisão recorrida.
8. Qualquer que seja a terminologia adoptada pelo Decreto-Lei n.º 103/2006, ou a
conclusão a que se chegue acerca da discussão sobre a natureza de ‘taxa’ – em
função da sua maior ou menor sinalagmaticidade –, importa notar que a actual
redacção da alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da CRP, após a revisão
constitucional de 1997, distingue claramente ‘impostos’, de uma parte, de
‘taxas’ e ‘demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas’, de
outra parte (para um maior desenvolvimento, veja-se o Acórdão n.º 365/2008,
disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Se quanto aos ‘impostos’, é fixada uma reserva de competência legislativa
parlamentar quanto à respectiva criação, já quanto às ‘contribuições financeiras
a favor das entidades públicas’ apenas é exigível a fixação parlamentar do
respectivo regime geral, aproximando-as, a final, do regime aplicável às
‘taxas’.
9. Ora, como já notado por este Tribunal (cfr. Acórdão n.º 365/2008, disponível
in www.tribunalconstitucional.pt), na falta de um regime geral fixado por lei
parlamentar, deve dar-se por suficientemente protector da reserva de lei
parlamentar o preceituado na própria lei de valor reforçado que criou a ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social. É que o legislador parlamentar,
através do n.º 1 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º
53/2005, de 8 de Novembro, não se limitou a remeter para o legislador
governamental a fixação das taxas (e demais contribuições financeiras –
acrescenta o Tribunal) devidas àquela ‘entidade administrativa independente’.
A criação de taxas e demais contribuições financeiras, para efeitos de inclusão
nas receitas da ERC, consta expressamente da alínea b) do artigo 50º dos
Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro. Sucedeu
apenas que, nos termos do já referido n.º 1 do artigo 51º do mesmo diploma, se
remeteu para decreto-lei do Governo a determinação de: i) critérios de
incidência; ii) requisitos de isenção; iii) valor das taxas. Daqui decorre que
foi a Assembleia da República quem, mediante lei de valor reforçado [cfr. n.º 3
do artigo 112º e alínea a) do n.º 6 do artigo 168º, ambos da CRP] criou
expressamente as taxas e demais contribuições financeiras a suportar pelas
entidades sujeitas à regulação e supervisão da ERC, remetendo para decreto-lei a
sua concretização.
Mas, ainda mais relevante, o próprio legislador parlamentar não se furtou a
fixar estritos limites de conteúdo ao diploma legal regulamentador das taxas e
demais contribuições financeiras. Pelo contrário, o legislador parlamentar fixa
os princípios fundamentais a respeitar pela legislação densificadora, a saber:
a) Critérios para fixação das taxas (e demais contribuições financeiras), de
acordo com princípios de objectividade, transparência e proporcionalidade – cfr.
n.º 2 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º 53/2005, de 08
de Novembro;
b) Delimitação dos sujeitos passivos das taxas (e demais contribuições
financeiras) – cfr. n.º 4 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei
n.º 53/2005, de 08 de Novembro;
c) Tendencial sinalagmaticidade entre a actividade de regulação gerada pelo
sujeito passivo e o montante da taxa (e demais contribuições financeiras) a
suportar – cfr. n.º 4 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei n.º
53/2005, de 08 de Novembro;
d) Periodicidade da liquidação e pagamento das taxas (e demais contribuições
financeiras) – cfr. n.º 5 do artigo 51º dos Estatutos da ERC, aprovados pela Lei
n.º 53/2005, de 08 de Novembro.
Em suma, da análise da concreta configuração da lei de valor reforçado que criou
a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social, resulta que deve dar-se
por preenchida a exigência de previsão parlamentar de um regime geral das
contribuições financeiras, sendo que – neste caso concreto – a definição
parlamentar dos princípios gerais aplicáveis ao regime de taxas e demais
contribuições financeiras se apresenta até mais pormenorizado do que seria
exigível a um regime geral fixado por lei parlamentar (neste sentido
pronunciou-se este Tribunal, no já citado Acórdão n.º 365/2008, disponível in
www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, independentemente da discussão sobre a natureza jurídico-tributária da
‘taxa de regulação e supervisão’, e apreciando exclusivamente a interpretação
normativa desaplicada pela decisão recorrida, que considerou que aquela
integraria a categoria de ‘contribuição financeira devida a entidade pública’,
conclui-se que as normas extraídas dos artigos 3º, n.º 3, alínea a) e 4º do
Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC – Entidade Reguladora para a
Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006, de 7 de Junho, não são
inconstitucionais, pois não violaram os nºs 2 e 3 do artigo 103º e da alínea i)
do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, nem se
vislumbram outros fundamentos de inconstitucionalidade, pelo que deve ser
concedido provimento aos recursos interpostos, com a necessária reforma da
decisão recorrida, nos termos do n.º 2 do artigo 80º da LTC.
[…]’
Não havendo razões para divergir da solução adoptada pelo Tribunal, é a esta
jurisprudência que se adere, concluindo-se também no sentido da não
inconstitucionalidade das normas que constituem o objecto do presente recurso.”
É esta a jurisprudência que cumpre agora reiterar, para ela se remetendo
inteiramente.
III – Decisão
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional julga
procedente o recurso e, em consequência, decide:
(a) Não julgar inconstitucionais as normas extraídas dos artigos 3.º, n.º 3
alínea a) e 4.º do Anexo I que consagra o Regime de Taxas da ERC – Entidade
Reguladora para a Comunicação Social, aprovado Decreto-Lei n.º 103/2006 de 7 de
Junho;
(b) Determinar a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Junho de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos