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Processo n.º 1024/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., S.A., ora Recorrente, interpôs anteriormente recurso para este Tribunal
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade de duas normas:
(i) a norma sobre a competência do Tribunal a quo em verificar da oposição de
acórdãos e, com base nessa apreciação em concreto, ser in casu o próprio
Tribunal Central Administrativo a decidir do prosseguimento de recurso com
fundamento nessa oposição, conforme decorre do artigo 284. °, n.° 5 do CPPT
introduzido pelo Decreto-Lei n.° 433/99, de 26 de Outubro, com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica, violação do princípio da proporcionalidade e do
direito à tutela jurisdicional efectiva, aplicada pelo TCA Sul na sua decisão de
22 de Janeiro de 2008 ( doc. n.° 4); e,
(ii) a norma do artigo 62.°, n.° 1 do Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Colectivas (“Código do IRC”), na versão vigente em 1996, na
interpretação segundo a qual a «a Administração Tributária encontra-se vinculada
a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando (..) o contribuinte não opte
pelo regime normal de tributação», com fundamento na violação dos princípios da
igualdade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé consagrados no artigos
13.°, 103.° e 266.°, n.° 2 da CRP, bem como, ao estabelecer-se uma presunção
absoluta da adopção de um regime de natureza especial pelo contribuinte, que
desvirtua o princípio da tributação pelo lucro real previsto no artigo 104.°,
n.° 2 da CRP, conforme interpretado e aplicado pelo TCA Sul na sua decisão de 26
de Setembro de 2006.
2. A Recorrente foi notificada em 29 de Fevereiro de 2008 pelo Tribunal Central
Administrativo-Sul (TCA-Sul) da admissão do recurso intentado e da sua subida
nos próprios autos ao Tribunal Constitucional.
3. Subsequentemente, a Recorrente foi notificada para alegações, bem como do
despacho proferido pelo Exm° Juiz-Conselheiro Relator de que «não deverá
tomar-se conhecimento do recurso da decisão do TCA Sul de 26 de Setembro de
2006, por a questão de constitucionalidade que aí é considerada [i.e., a
interpretação da norma do artigo 62. °, n. ° 1 do Código do IRC subjacente à
decisão do TCA Sul] poder ainda ser objecto da apreciação no recurso de
uniformização de jurisprudência, caso proceda o recurso de constitucionalidade
interposto da decisão do TCA Sul de 22 de Janeiro de 2008 [i.e., a questão de
constitucionalidade da norma do artigo 284. °, n. ° 5 do CPPT]». Razão pela qual
o Tribunal Constitucional, “tendo o objecto do recurso ficado circunscrito à
disposição do n.° 5 do artigo 284.º do CPPT”, “apenas apreci[ou], quanto ao
mérito, a falada questão de constitucionalidade da norma do n.° 5 do artigo
284.º do CPPT” (cf. Acórdão n.º 509/2008, de 22 de Outubro de 2008).
4. Em conformidade com a decisão ali proferida, que não julgou inconstitucional
a norma do artigo 284°, n.º 5 do CPPT, entendeu a Recorrente que deveria agora
proceder-se à apreciação da outra questão da constitucionalidade suscitada no
seu recurso, a saber a da interpretação da norma do artigo 62°, n.º 1 do Código
do IRC (CIRC) subjacente à decisão do TCA Sul de 26 de Setembro de 2006. Assim,
após a baixa do processo ao TCA–Sul, a Recorrente vem apresentar o presente
recurso de constitucionalidade do acórdão de 26 de Setembro de 2008, no que
respeita à constitucionalidade da norma do artigo 62°, n.º 1 (actual artigo
68°), do CIRC na interpretação efectuada pelo TCA–Sul.
Pretende então a Recorrente, de acordo com o presente requerimento de
interposição de recurso, que seja apreciada a inconstitucionalidade da norma do
artigo 62°, n.º 1 (actual artigo 68°) do Código do IRC, na versão vigente em
1996, na interpretação efectuada pelo Tribunal a quo da aplicação daquele regime
especial de neutralidade fiscal ao considerar que «a AT [se encontra] vinculada
a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando [...] o contribuinte não opte
pelo regime normal de tributação».
5. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo
concluído da seguinte forma:
“1ª A interpretação do Tribunal Central Administrativo — Sul de que a norma do
artigo 62. ° e segs. do CIRC, o qual estabelece um regime especial de
neutralidade fiscal, deve ser entendida no sentido de que «a AT encontra-se
vinculada a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando (...) o contribuinte
não opte pelo regime normal de tributação», é inconstitucional.
2.ª Essa interpretação é também contrária ao próprio direito comunitário, porque
o artigo 62. ° do CIRC transpõe para o ordenamento jurídico português o regime
da Directiva n.° 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990, que admite essa
neutralidade como regime especial e verificadas certas condições, pelo que, em
caso de dúvida sobre a sua correcta interpretação deve proceder-se a um reenvio
prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de modo a que
este Tribunal esteja em condições de poder ajuizar da inconstitucionalidade da
interpretação sufragada pelo Tribunal Central Administrativo–Sul, submetendo-lhe
as seguintes questões:
A) O artigo 4.° da Directiva n.° 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990,
é compatível com a aplicação de um regime nacional que exija a aplicação do
regime da neutralidade fiscal como regra, ainda que não se verifiquem as
condições aí previstas?
B) O artigo 4.° da Directiva n.° 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990,
admite a existência de um regime nacional que, não obstante prever a verificação
das condições previstas na Directiva e a emissão de uma declaração da nova
sociedade (no caso de uma cisão ou criação de nova sociedade) de que continuará
a cumprir com tais regras (e.g., regras de contabilização, previsões,
amortizações e saldo de mais e menos-valias), admite interpretação que permite
reconhecer neutralidade à cisão, mesmo na ausência da verificação de tais
condições e da emissão da declaração mencionada?
C) O artigo 4.° da Directiva n.° 90/434/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990,
preclude o entendimento de que é admissível o diferimento de tributação e a
transmissão do encargo fiscal de um para outro contribuinte (e.g., das
sociedades cindidas para a nova sociedade) quando este último não aceitou ou
anuiu expressamente nesta consequência e o primeiro, previamente à cisão, havia
reavaliado livremente os activos e procedido a uma operação de aumento de
capital social por incorporação dos valores de realização?
3ª A Recorrente entende que se viola flagrantemente o princípio da igualdade
perante a lei em matéria fiscal, protegido pelo artigo 13. ° da CRP, ao
aceitar-se a interpretação adoptada pelo Tribunal Central Administrativo — Sul,
pois assim se determina que caso o accionista de uma determinada sociedade
sujeita a IRC seja o Estado Português, este estará dispensado de um conjunto de
requisitos e exigências para beneficiar de um regime de neutralidade fiscal do
artigo 62.° do CIRC, enquanto os accionistas privados serão necessariamente
obrigados a cumprir com esses requisitos para que possam beneficiar do
mesmíssimo regime, escapando, assim, a sociedade cindida a pagar mais-valias no
momento da transmissão dos activos e da obtenção dos ganhos.
4ª A interpretação controvertida do Tribunal Central Administrativo — Sul viola
ainda os mais elementares princípios da boa fé e imparcialidade protegidos
constitucionalmente ao abrigo do artigo 266. ° da CRP, pois conduz
inelutavelmente a que o Estado Português possa eximir-se da suas obrigações
tributárias na qualidade de accionista de uma empresa, transmitindo essa
obrigação tributária a uma sociedade que passa a ser detida por accionistas
privados.
5ª Igualmente, os princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrentes
dos artigos 2. ° e 266.° da CRP, seriam também violados a admitir-se a
interpretação do Tribunal Central Administrativo ‑ Sul, porque a mesma impõe um
ónus aos contribuintes de “opção” pelo regime normal de tributação, sem que
exista qualquer norma legal que o imponha ou preveja, pelo que se pode
qualificar esse entendimento do Tribunal Central Administrativo — Sul como uma
verdadeira interpretação contra legem e, nessa medida, contra constitutionem.
6.ª Finalmente, deve a interpretação do Tribunal Central Administrativo — Sul
ser considerada inconstitucional por violação do princípio da tributação das
empresas pelo seu lucro real, ao abrigo do artigo 104. °, n.° 2 da CRP, por
aquela interpretação sujeitar a Recorrente a tributação num determinado
exercício (1996) sobre um rendimento que não foi obtido nesse mesmo exercício
[i.e., o rendimento foi auferido no momento da cisão (1991) quando o accionista
era precisamente o Estado Português] e assim impor uma tributação sobre um lucro
imaginário, que não corresponde ao lucro real da Recorrente”.
6. Notificada para responder à alegação da recorrente, disse a Fazenda Pública,
a concluir:
“a) A interpretação do artigo 62. ° e segs., em articulação com os artigos 42° e
43° do CIRC, e com outros dispositivos legais, efectuada pelo Acórdão recorrido,
não merece censura, não constituindo qualquer violação dos princípios
constitucionais invocados;
b) Tal interpretação não se encontra em contradição com o direito comunitário,
designadamente com a Directiva n.° 9014341CEE do Conselho, de 23 de Julho de
1990, que, alargando o benefício da neutralidade fiscal nas operações de
concentração no território do mercado comum, visa que o regime de adiamento, até
à sua realização efectiva, da tributação das mais-valias relativas aos bens
transferidos, aplicado aos bens que estejam afectos ao estabelecimento estável,
evite a tributação das mais-valias correspondentes, garantindo ao mesmo tempo a
sua tributação posterior pelo Estado da sociedade contribuidora, no momento da
sua realização;
c) De qualquer modo, ainda que pudesse ser invocada qualquer contradição, a
mesma deveria ter sido invocada na 1ª instância e respectivo recurso, com
eventual pedido, então, de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias;
d) Reenvio que o tribunal nacional não estava obrigado a aceitar se não
estivesse em causa, de forma evidente (não parece ser o caso, até porque se
trata de uma operação com reflexos apenas no espaço interno português), uma
questão de interpretação de direito comunitário mas meramente nacional;
e) Inegável parece que a invocação de reenvio prejudicial é agora, no presente
recurso para o Tribunal Constitucional, inoportuna;
f) A fiscalização concreta de constitucionalidade prevista apenas abrange a
contraditoriedade com convenção internacional e não, como vem invocado, com uma
Directiva (arts. 223°, 277° e 280º da CRP e art. 70° da LTC)”.
7. Dado que, não obstante ter sido determinada a elaboração de alegações, se
configurou como eventual solução do presente recurso o seu não conhecimento,
proferiu o Relator o seguinte despacho, nos termos dos artigos 69º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e 704º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
«1. Nos termos do requerimento de interposição do recurso refere a recorrente
pretender ver apreciada a inconstitucionalidade “[…] da norma do artigo 62.°,
n.º 1 (actual artigo 68.°) do Código do IRC, na versão vigente em 1996, na
interpretação efectuada pelo Tribunal a quo da aplicação daquele regime especial
de neutralidade fiscal ao considerar que «a AT encontra-se vinculada a aplicar o
regime da neutralidade fiscal, quando [...] o contribuinte não opte pelo regime
normal de tributação»”.
Afigura-se, porém, como plausível que se não possa conhecer do objecto do
recurso. Vejamos, sumariamente, porquê.
2. A questão de constitucionalidade normativa que a recorrente efectivamente
pretende ver apreciada por este Tribunal está indissociavelmente ligada à
questão de saber qual o valor de aquisição dos bens do activo imobilizado a ter
em conta para efeitos de determinação das mais ou menos valias fiscais, no caso
de um processo de cisão e em relação a bens que passaram para a nova sociedade
fruto desse processo. Como se refere na decisão recorrida a ora recorrente
“entende que o valor a ter em conta é o valor reavaliado pela empresa cindida
«RNIP», ao abrigo do Decreto-Lei n.º 12/90, enquanto que a Administração
Tributária entende que o valor a ter em conta é o valor por que a sociedade
cindida adquiriu os bens [em 1964 e 1973]”. Em suma: está em causa a questão de
saber se a reavaliação do activo imobilizado efectuada ao abrigo do Decreto-Lei
n.º 12/90, tem ou não carácter fiscal, designadamente para efeitos de apuramento
de mais valias. Em caso afirmativo, os elementos do referido activo passaram
para as sociedades fruto da cisão com os valores resultantes daquela
reavaliação. Em caso negativo, tais elementos terão o valor histórico, pago pela
sociedade cindida e não o valor obtido através da reavaliação. Para esta
discussão contribuem ainda os artigos 42º e 43º do CIRC, expressamente
convocados pela decisão recorrida para decidir como decidiu. Nesse sentido, pode
ler-se naquela decisão: “Atente-se que, nos termos do disposto nos artigos 42º e
43º do CIRC os valores reavaliados (valor de aquisição e amortizações
acumuladas) não relevam para apuramento dos ganhos e perdas, independentemente
do tipo de reserva de avaliação. As mais e menos valias são apuradas expurgando
os valores resultantes da avaliação. (…). Portanto, a nosso ver, para cálculo
das mais e menos valias o valor a ter em conta é o valor de aquisição, valor
histórico, pago pela sociedade cindida e não o valor da reavaliação, aquando da
decisão”.
Ora, assim sendo, não bastava à recorrente invocar a inconstitucionalidade da
interpretação sustentada pela Administração Fiscal e confirmada pelo Acórdão
recorrido no que toca ao sentido normativo retirado pelo TCA–Sul do disposto na
anterior versão do artigo 62º do CIRC. Deveria ainda invocar, em conjunto, a
inconstitucionalidade daqueles outros preceitos, pois que estes contribuem
decisivamente para a formação da norma cuja inconstitucionalidade a recorrente
verdadeiramente pretende ver apreciada. Com efeito, o sentido normativo que a
recorrente qualifica como inconstitucional não se pode extrair apenas a partir
do disposto no supra enunciado artigo 62º do CIRC, só se alcançando atendendo à
conjugação entre este e o regime decorrente quer do Decreto-Lei n.º 12/90 quer,
fundamentalmente, dos artigos 42º e 43º do CIRC. De facto, somente se a
reavaliação do activo imobilizado a que se procedeu não fosse considerada para
efeitos fiscais é que a aplicação, como o foi, do princípio da neutralidade
fiscal violaria, no dizer da recorrente, os princípios da igualdade, justiça,
segurança jurídica, imparcialidade, boa fé e tributação pelo lucro real.
Nesse sentido se pronuncia também a Fazenda Pública, ora recorrida, embora não
tire daí consequências em matéria de conhecimento do objecto do recurso, quando
refere, a dado passo: “Ora foi interpretando as normas do CIRC, não apenas o
artigo 62º mas também os artigos 42º e 43º, e tendo em conta outros dispositivos
legais, designadamente o DL 12/90 e os sucessivos diplomas de reestruturação
(incluindo de privatização) do grupo Rodoviária Nacional, que o acórdão
recorrido concluiu que, em 1996, data da alienação de imóveis do activo da
sociedade resultante da cisão, na determinação do lucro tributável da sociedade
para a qual haviam sido transmitidos os elementos patrimoniais da sociedade
cindida, o apuramento de resultados respeitantes aos elementos patrimoniais
transmitidos tinha que ser feito como se não tivesse havido cisão (alínea a) do
nº 3 do artigo 62º do CIRC”.
Há, pois, um bloco normativo, formado pelo artigo 62º do CIRC, na sua anterior
redacção, e pelo regime decorrente quer do Decreto-Lei n.º 12/90 quer,
fundamentalmente, dos artigos 42º e 43º do CIRC, cuja conjugação é essencial
para chegar à norma cuja constitucionalidade a recorrente pretende ver
apreciada. Acontece que a constitucionalidade destes outros preceitos não foi
suscitada nem perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, nem agora
perante o Tribunal Constitucional, o que impede o conhecimento do presente
recurso.
3. A ser assim, não estarão preenchidos os pressupostos de admissibilidade do
recurso exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, pelo que não se poderá, com estes fundamentos, conhecer do seu
objecto.
4. Nestes termos, em cumprimento do disposto no artigo 704º, n.º 1, do Código de
Processo Civil (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal
Constitucional), notifiquem-se as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a
questão prévia suscitada, no prazo de 10 (dez) dias».
8. A este despacho respondeu a recorrente nos seguintes termos:
«1. Afirma-se no despacho de 29 de Abril de 2009 que, no presente recurso, «está
em causa saber se a na avaliação do activo imobilizado efectuada ao abrigo do
Decreto-Lei n.º 12/90, tem ou não carácter fiscal, designadamente para efeitos
de apuramento de mais valias. Em caso afirmativo, os elementos do referido
activo passaram para as sociedades fruto da cisão com os valores resultantes
daquela avaliação. Em caso negativo, tais elementos terão o valor histórico,
pago pela sociedade cindida e não o valor obtido através da reavaliação. Para
esta discussão contribuem ainda os artigos 42. ° 43. ° CTRC, expressamente
convocados pela decisão recorrida para decidir como decidiu».
2. Nesta conformidade, afirma-se ainda no despacho sob resposta que «não bastava
à recorrente invocar a inconstitucionalidade da interpretação sustentada pela
Administração Fiscal e confirmada pelo Acórdão recorrido no que toca ao sentido
normativo retirado pelo TCA-Sul do disposto da anterior versão do artigo 62 do
CIRC. Deveria ainda invocar, em conjunto, a inconstitucionalidade daqueles
outros preceitos, pois que estes contribuem decisivamente para a formação da
norma cuja inconstitucionalidade a recorrente verdadeiramente pretende ver
apreciada. Com efeito, o sentido normativo que a recorrente qualifica como
inconstitucional não se pode extrair apenas a partir do disposto no supra
enunciado artigo 62 ° CIRC, só se alcançando atendendo à conjugação entre este e
o regime decorrente quer do Decreto-Lei n.º 12/90 quer, fundamentalmente, dos
artigos 42. “e 43.” do CIRC».
3. Ora, salvo o devido respeito, a questão de constitucionalidade normativa
suscitada pela Recorrente nada tem a ver com a relevância fiscal das
reavaliações efectuadas ao abrigo do disposto no artigo 9° do citado Decreto-Lei
n.º 12/90, de 6 de Janeiro, a qual deve ser, sem dúvida, determinada ao abrigo
do disposto nos artigos 42. ° e 43.° do CIRC. De resto, a Recorrente não põe em
causa que, de acordo com estes preceitos, os activos do imobilizado corpóreo
devessem passar para a sociedade resultante da cisão da RNIP — Rodoviária
Nacional, Investimentos e Participações, S. A., com os valores resultantes das
mencionadas reavaliações, mas sem que estas revestissem relevância fiscal.
4. Simplesmente, se isto é assim, então tal deveria significar que os resultados
gerados pela operação de cisão deveriam ser tributados imediatamente, aquando da
respectiva realização, de acordo com os disposto nas citadas normas, salvo se a
nova sociedade, resultante da cisão e a sociedade cindida tivessem optado pelo
regime especial de neutralidade, para o que deveriam satisfazer os requisitos
mencionados no artigo 62°, n.º 8, do CIRC na redacção em vigor à data dos
factos.
5. Não obstante os aludidos requisitos não se verificarem, segundo ficou
demonstrado nos autos, e, nessa conformidade, não ser aplicável o regime de
neutralidade, mas antes o regime geral de tributação, os resultados gerados pela
operação de cisão não foram tributados e vieram-no a ser apenas mais tarde,
aquando da transmissão dos mesmos bens da sociedade cindida, entretanto
adquirida pela Recorrente, para terceiros.
6. Resulta assim claro que a questão de constitucionalidade suscitada pela
Recorrente diz apenas respeito à interpretação da norma do artigo 62.° do CIRC,
na versão aplicável, pois foi ao abrigo dessa interpretação que a decisão
recorrida entendeu ser de aplicar o regime de neutralidade nela previsto,
isentando de tributação a transmissão dos bens da sociedade cindida para a
sociedade resultante da cisão, não obstante não se verificarem os requisitos
previstos na aludida disposição, fundando-se assim em interpretação claramente
violadora da Constituição.
7. Tal questão nada tem a ver com a invocação na decisão recorrida das normas
dos artigos 42° e 43° do CIRC, pois, sem prejuízo de ao abrigo das mesmas não
ser possível a reavaliação dos bens para efeitos fiscais — o que não se contesta
— o certo é que a tributação das mais valias que incidiu sobre a Recorrente teve
como único fundamento a aplicação, a montante, de um regime de neutralidade
aquando da transmissão dos bens em causa da sociedade cindida para a sociedade
resultante da cisão quando é certo que essa mesma transmissão deveria ter sido
sujeita ao regime geral.
8. É este, e tão só este, o segmento normativo posto em crise no presente
recurso e o mesmo nada tem a ver com o disposto nos artigos 42° e 43° do CIRC,
cuja invocação — aliás errada de um ponto de vista do direito ordinário — na
decisão recorrida se faz a título de mera obter dictum e não de verdadeira ratio
decidendi.
9. Afirma-se no despacho de 29 de Abril de 2009 que «somente se a reavaliação do
activo imobilizado a que se procedeu não fosse considerada para efeitos fiscais
é que a aplicação, como o foi, do princípio da neutralidade fiscal violaria, no
dizer da recorrente, os princípios da igualdade, justiça, segurança jurídica,
imparcialidade, boa fé e tributação pelo lucro real”. Salvo o devido respeito,
trata-se de questões distintas.
10. Com efeito, a violação dos aludidos princípios constitucionais pela
interpretação do princípio da neutralidade ocorreu independentemente da
reavaliação do activo imobilizado, nos termos do Decreto-Lei n.° 12/90, e da sua
relevância fiscal, nos termos dos artigos 42° e 43° do CIRC.
11. A diferença consiste em que, não estando a transmissão dos bens entre a
sociedade cindida e a sociedade resultante da cisão sujeita ao princípio da
neutralidade, como decorre dos princípios constitucionais invocados no presente
recurso, seria o Estado accionista, enquanto titular da sociedade resultante da
operação de cisão, que teria de liquidar o correspondente imposto de
mais-valias, e já não a Recorrente.
12. A Recorrente não estava, pois, vinculada a questionar a conformidade
constitucional dos artigos 42° e 43° do CIRC, que aliás nem sequer contesta, mas
apenas a norma que regula o momento em que deveriam ser tributadas as mais
valias realizadas de acordo com o disposto nestas disposições.
13. Ora, tal norma é única e exclusivamente a que consta do artigo 62° do CIRC,
na redacção aplicável e é essa a única disposição que constitui o objecto da
questão de constitucionalidade normativa discutida nos presentes autos.
14. De resto, tudo o que acaba de ser dito pode ser confirmado de modo muito
simples: se se entender que o princípio da neutralidade fiscal foi bem aplicado
não restam dúvidas que por força do disposto nos artigos 42° e 43° do CIRC cabe
à Recorrente pagar o imposto respeitante às mais valias, tomando como ponto de
referência o valor histórico dos bens do activo imobilizado; se se entender,
pelo contrário, que o princípio da neutralidade fiscal foi interpretado em
desconformidade com o disposto na Constituição, como sustenta a Recorrente,
deveria ter sido a sociedade cindida, ao tempo participada pelo Estado, a
suportar o imposto decorrente das mais valias apuradas com a transmissão dos
activos, igualmente nos termos dos artigos 42° e 43° do CIRC, com base no valor
histórico dos bens do activo imobilizado.
15. Em qualquer caso será de aplicar, nos mesmíssimos termos, o regime dos
artigos 42° e 43° do CIRC, sendo irrelevante o seu conteúdo na perspectiva da
questão de constitucionalidade objecto dos presentes autos.
16. Em face do exposto, parece claro que a norma do artigo 62° do CIRC, na
redacção aplicável, não forma qualquer bloco normativo com as normas quer do
regime do Decreto-Lei n.º 12/90 (sendo certo que não se indica sequer qual das
normas deste diploma seria relevante para os efeitos tidos em vista), quer dos
artigos 42° e 43° do CIRC, não se vislumbrando qualquer relação entre estas
normas e aquela cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada e não
integrando as aludidas normas, em qualquer caso, a ratio decidendi da decisão
recorrida no que toca à questão de constitucionalidade.
17. Aliás, caso a Recorrente tivesse de facto alargado o objecto do presente
recurso às citadas normas, a consequência não poderia ser outra que não a
redução do mesmo objecto com fundamento na não aplicação das normas em causa
para decidir a questão do âmbito de aplicação do princípio da neutralidade no
caso dos autos».
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
9. Questão prévia
Nos termos do requerimento de interposição de recurso, que, como o Tribunal tem
repetidamente afirmado, delimita o respectivo objecto, a ora Recorrente afirma
pretender ver apreciada a constitucionalidade do artigo 62°, n.º 1 (actual
artigo 68°) do Código do IRC, na versão vigente em 1996, quando interpretado em
termos de considerar que «a AT [se encontra] vinculada a aplicar o regime da
neutralidade fiscal, quando [...] o contribuinte não opte pelo regime normal de
tributação»”.
Notificada para alegar a recorrente veio, contudo, adiantar que considera que
aquela norma “viola flagrantemente o princípio da igualdade perante a lei em
matéria fiscal […] pois assim se determina que caso o accionista de uma
determinada sociedade sujeita a IRC seja o Estado Português, este estará
dispensado de um conjunto de requisitos e exigências para beneficiar de um
regime de neutralidade fiscal do artigo 62° do CIRC, enquanto os accionistas
privados serão necessariamente obrigados a cumprir com esses requisitos para que
possam beneficiar do mesmíssimo regime, escapando, assim, a sociedade cindida a
pagar mais-valias no momento da transmissão dos activos e da obtenção dos
ganhos”. Acrescentou ainda que a referida norma viola “os mais elementares
princípios da boa fé e imparcialidade protegidos constitucionalmente ao abrigo
do artigo 266° da CRP, pois conduz inelutavelmente a que o Estado Português
possa eximir-se da suas obrigações tributárias na qualidade de accionista de uma
empresa, transmitindo essa obrigação tributária a uma sociedade que passa a ser
detida por accionistas privados”. Também contende, no seu entendimento, com “os
princípios da segurança jurídica e da confiança, […] porque a mesma impõe um
ónus aos contribuintes de “opção” pelo regime normal de tributação, sem que
exista qualquer norma legal que o imponha ou preveja, pelo que se pode
qualificar esse entendimento do Tribunal Central Administrativo — Sul como uma
verdadeira interpretação contra legem e, nessa medida, contra constitutionem”.
Finalmente, alega que a norma em causa viola “o princípio da tributação das
empresas pelo seu lucro real […] por aquela interpretação sujeitar a Recorrente
a tributação num determinado exercício (1996) sobre um rendimento que não foi
obtido nesse mesmo exercício [i.e., o rendimento foi auferido no momento da
cisão (1991) quando o accionista era precisamente o Estado Português] e assim
impor uma tributação sobre um lucro imaginário, que não corresponde ao lucro
real da Recorrente”. (Negritos e sublinhados aditados).
Face ao teor das alegações da recorrente e parecendo ao Relator que a norma que
a mesma pretendia ver apreciada não podia extrair-se apenas do artigo 62º do
CIRC – o que, a ser verdade, inviabilizaria o conhecimento do objecto do recurso
– foi a mesma notificada para se pronunciar sobre esta questão prévia. A
recorrente respondeu nos termos supra transcritos onde, no essencial, afirma que
“a questão de constitucionalidade normativa suscitada pela Recorrente nada tem a
ver com a relevância fiscal das reavaliações efectuadas [...] De resto, a
Recorrente não põe em causa que [...] os activos do imobilizado corpóreo
devessem passar para a sociedade resultante da cisão [...] com os valores
resultantes das mencionadas reavaliações [...].Simplesmente, se isto é assim,
então tal deveria significar que os resultados gerados pela operação de cisão
deveriam ser tributados imediatamente, aquando da respectiva realização, de
acordo com os disposto nas citadas normas, salvo se a nova sociedade, resultante
da cisão e a sociedade cindida tivessem optado pelo regime especial de
neutralidade, para o que deveriam satisfazer os requisitos mencionados no artigo
62°, n.º 8, do CIRC na redacção em vigor à data dos factos. Não obstante os
aludidos requisitos não se verificarem, segundo ficou demonstrado nos autos, e,
nessa conformidade, não ser aplicável o regime de neutralidade, mas antes o
regime geral de tributação, os resultados gerados pela operação de cisão não
foram tributados e vieram-no a ser apenas mais tarde, aquando da transmissão dos
mesmos bens da sociedade cindida, entretanto adquirida pela Recorrente, para
terceiros. Resulta assim claro que a questão de constitucionalidade suscitada
pela Recorrente diz apenas respeito à interpretação da norma do artigo 62° do
CIRC (…) pois foi ao abrigo dessa interpretação que a decisão recorrida entendeu
ser de aplicar o regime de neutralidade nela previsto, isentando de tributação a
transmissão dos bens da sociedade cindida para a sociedade resultante da cisão,
não obstante não se verificarem os requisitos previstos na aludida disposição
[...]. A tributação das mais valias que incidiu sobre a Recorrente teve como
único fundamento a aplicação, a montante, de um regime de neutralidade aquando
da transmissão dos bens em causa da sociedade cindida para a sociedade
resultante da cisão quando é certo que essa mesma transmissão deveria ter sido
sujeita ao regime geral. É este, e tão só este, o segmento normativo posto em
crise no presente recurso (…). Não estando a transmissão dos bens entre a
sociedade cindida e a sociedade resultante da cisão sujeita ao princípio da
neutralidade, como decorre dos princípios constitucionais invocados no presente
recurso, seria o Estado accionista, enquanto titular da sociedade resultante da
operação de cisão, que teria de liquidar o correspondente imposto de
mais-valias, e já não a Recorrente [...]”. (Negrito aditado).
Face a tudo o que se acaba de expor parece evidente existir uma desconformidade
essencial entre a norma que, no requerimento de interposição do recurso, a
recorrente diz pretender ver apreciada – a norma segundo a qual “a AT [se
encontra] vinculada a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando [...] o
contribuinte não opte pelo regime normal de tributação” –, a norma indicada na
resposta ao despacho do Relator – segundo a qual “é de aplicar o regime de
neutralidade fiscal nela previsto, isentando de tributação a transmissão dos
bens da sociedade cindida para a sociedade resultante da cisão, não obstante não
se verificarem os requisitos previstos na aludida disposição” – e a norma que é
pressuposta na fundamentação do respectivo juízo de inconstitucionalidade,
constante das alegações de recurso, em que a recorrente incorpora um elemento
decisivo para a formulação do referido juízo de inconstitucionalidade mas que
não consta da dimensão normativa cuja constitucionalidade vem, nos termos do
requerimento de interposição do recurso, questionada; a saber: ser o Estado o
accionista da sociedade cindida ou resultante da cisão.
Em suma: ou a Recorrente, através do recurso de constitucionalidade, pretende
colocar à apreciação deste Tribunal a questão da desigualdade de tratamento
entre o Estado e os demais contribuintes que resultará, no seu entender, da
norma que, segundo sustenta, a decisão recorrida retira do disposto no artigo
62º do Código do IRC, nos termos da qual quando seja o Estado um dos
intervenientes no processo de cisão o regime de neutralidade fiscal funcionará
mesmo que não estejam reunidos os requisitos do referido artigo 62º; ou,
diferentemente, a norma cuja apreciação está em causa nada tem a ver com o facto
de existir um regime diferente (em matéria de aplicação do princípio da
neutralidade fiscal) resultante da circunstância de ser o Estado o titular da
empresa cindida e/ou da resultante da cisão; e, nesse caso, a questão de
constitucionalidade é pura e simplesmente, tal como foi delimitada no
requerimento de interposição do recurso, reportada à norma que se extrai daquele
artigo 62º quando interpretado em termos de a Administração Tributária se
encontrar vinculada “a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando [...] o
contribuinte não opte pelo regime normal de tributação”.
No primeiro caso, porém, não poderá conhecer-se do objecto do recurso, pois não
existe qualquer suporte no artigo 62º do CIRC – nem a decisão recorrida o afirma
– para permitir concluir que o regime de neutralidade fiscal nele previsto é
diferente (i.e., funcionando ou como regra ou como excepção e apenas verificados
certos requisitos) consoante o titular da empresa cindida ou da resultante da
cisão seja o Estado ou estejam em causa empresas de que sejam titulares apenas
contribuintes particulares. É que, se a Administração Fiscal se encontra
vinculada a aplicar o princípio da neutralidade como regime normal de tributação
para as operações de cisão/fusão de sociedades, quando o contribuinte não opte
pelo regime normal de tributação, o que, segundo a Recorrente, é a norma que
decorre implicitamente da decisão recorrida, daí não decorre, por si só,
qualquer diferença de regime entre o contribuinte Estado e os demais
contribuintes. Isto é, ainda que, no caso concreto, a Recorrente possa sentir-se
em situação de desigualdade como contribuinte perante o Estado igualmente
contribuinte, não é por causa da norma pretensamente resultante do entendimento
sufragado pela decisão recorrida que tal conclusão se obtém. Efectivamente, dela
não resulta, nem a decisão recorrida dela retirou, que o referido princípio da
neutralidade fiscal se aplique ou se deixe de aplicar em termos diferentes (como
regra ou como excepção verificados certos requisitos) em função de o Estado ser
um dos intervenientes no processo de cisão (por força da titularidade das
empresas envolvidas na mesma) ou em função de o processo envolver apenas
contribuintes particulares. Ou seja: a existir um tal regime de excepção em
matéria de aplicação do princípio da neutralidade fiscal quando a empresa
cindida e/ou resultante da cisão fosse da titularidade do Estado, ele nunca
resultaria do artigo 62º – que nenhum suporte fornece a tal interpretação – mas,
quando muito, no caso concreto, da interpretação do preceituado no Decreto-Lei
n.º 12/90, de 6 de Janeiro (ou do artigo 62º conjugado com os preceitos deste
Decreto-Lei), sendo certo que este não vem questionado pela recorrente. Razão
pela qual não pode este Tribunal conhecer do objecto do recurso.
Aliás, se, pelo contrário, a questão de constitucionalidade pudesse ser
desligada da circunstância de a empresa cindida e/ou resultante da cisão ser
titularidade do Estado, como ela vem, afinal, enunciada no requerimento de
interposição do recurso, reportada apenas à norma que se extrai do referido
artigo 62º, quando interpretado em termos de a Administração Tributária se
encontrar vinculada “a aplicar o regime da neutralidade fiscal, quando [...] o
contribuinte não opte pelo regime normal de tributação”, então tal questão não
poderia deixar de ser considerada manifestamente improcedente, não tendo,
outrossim, qualquer suporte na alegação que foi produzida, essencialmente
assente, como se viu, na circunstância de um dos intervenientes no processo de
cisão ser, precisamente, o Estado, o que, igualmente, conduz a uma decisão de
não conhecimento do recurso.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Junho de 2009
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos