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Processo n.º 316/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. A Alta Autoridade para a Comunicação Social aplicou à A. SA uma coima de €
50.000,00, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 31-A/98,
de 14 de Julho (Lei da Televisão).
A A. impugnou este acto sancionatório, tendo o Tribunal Judicial da Comarca de
Oeiras julgado o recurso improcedente. A A. recorreu desta sentença. Por acórdão
de 4 de Março de 2009 o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao
recurso.
A A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC).
Neste Tribunal, o relator proferiu despacho, nos termos dos n.ºs 5, 6 e 7 do
artigo 75.º-A da LTC, a convidar a recorrente a indicar, de modo preciso, o
sentido normativo do n.º 1 do artigo 21.º da “Lei da Televisão” cuja
inconstitucionalidade pretende ver apreciada.
A recorrente respondeu nos seguintes termos
“A., S.A., recorrente nos autos à margem referenciados e neles devidamente
identificada, tendo sido notificado do despacho proferido pelo Exmo. Juiz
Conselheiro Relator, no qual se convidava a recorrente a “indicar, de modo
preciso, o sentido normativo do n.º 1, do art. 21.º da «Lei da Televisão» cuja
inconstitucionalidade pretende ver apreciada pelo Tribunal”, nos termos do n.º
5, 6 e 7 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, vem, cumprindo o
referido convite, dizer simplesmente o seguinte:
A recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo
70.º, n.º 1, al. b), da Lei do Tribunal Constitucional, por entender que no
presente processo foi aplicada norma – art. 21.º, n.º 1 da Lei nº 31-A/98, de 14
de Julho – cuja interpretação e consequente aplicação ao caso concreto se revela
flagrantemente inconstitucional, inconstitucionalidade essa que foi levantada ao
longo do presente processo conforme, aliás, pressupõe o artigo ao abrigo do qual
a recorrente apresentou o seu recurso.
Entende a recorrente que o artigo 21.º, da Lei nº 31-A/98, de 14 de Julho, é
inconstitucional, nomeadamente, quando interpretado em termos de limitar e
restringir, de modo absoluto e sem ponderar as circunstâncias do caso concreto,
a liberdade de expressão e o direito/dever de informar, vendo num caso como este
um atentado a algum direito fundamental — e então pergunta-se: qual?
Dispõe o art. 21.º, n.º 1, da Lei da Televisão, que “não é permitida qualquer
emissão [televisiva] que viole os direitos, liberdades e garantias fundamentais,
atente contra a dignidade da pessoa humana ou incite à prática de crimes”.
Pois bem, emitir a reportagem que se emitiu (e que consta dos autos), onde
simplesmente se entrevistam duas crianças sobre factos que as mesmas
presenciaram, não viola de modo algum “direitos, liberdades e garantias
fundamentais” ou sequer se atenta “contra a dignidade da pessoa humana” e muito
menos se incita “à prática de crimes”.
Menos ainda quando a referida reportagem foi consentida por quem exerce o poder
paternal, foi prestada de livre e espontânea vontade, tendo os jornalistas
previamente verificado a aptidão física e mental das crianças para prestarem o
aludido depoimento, as quais manifestaram tranquilidade, serenidade e
discernimento. Se os próprios visados – as crianças e os responsáveis pelo poder
paternal – consentiram na feitura da reportagem, quem mais e melhor pode aferir
se houve ou não atentado a algum seu direito fundamental?
A interpretação preconizada pelo Tribunal de Primeira Instância, bem como pelo
Tribunal da Relação (que concluiu pela inadmissibilidade e ilegalidade da
entrevista às crianças) é inconstitucional pois viola de forma directa e
escandalosa o preceituado no artigo 37.º, n.º 1 e 2 da CRP “Todos têm direito de
exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por
qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser
informados, sem impedimentos nem discriminações” (n.º 1); “o exercício destes
direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura
(n.º 2)” e no artigo 38.º n.º 1 e 2 alínea a) também da CRP “É garantida a
liberdade de imprensa” (n.º 1); “A liberdade de imprensa implica: a) a liberdade
de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção
dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação
social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional” (n.º 2, al.
a)).
Viola ainda o preceituado no art. 18.º, n.º 2 e 3 e 27.º, n.º 1 e 2 todos da
CRP, pois o referido artigo 21.º, n.º 1, interpretado como foi, restringe
direitos, liberdades e garantias, sem que essa restrição esteja
constitucionalmente prevista e faz diminuir o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais, designadamente os que prevêem o direito à liberdade
de expressão, informação e imprensa (art. 37.º e 38.º CRP). Tal interpretação
restringe, pois, em geral, a liberdade (em várias das suas vertentes) cf. art.
27.º CRP.
Ora, a interpretação genérica e abstracta preconizada pelos dois tribunais que
apreciaram a questão – a de que o art. 21.º, n.º 1, da Lei n.º 31-A/98, de 14 de
Julho, impede que seja levada a cabo qualquer entrevista a menor, mesmo quando
obtida a autorização de quem, no momento da recolha de sons e imagens, tinha a
seu cargo a guarda dos menores e ainda a posterior autorização expressa e
escrita da sua mãe, titular do poder paternal sobre os mesmos – é
inconstitucional pois conflitua com a liberdade de expressão e informação e
ainda com a liberdade de imprensa, direitos fundamentais, constitucionalmente
garantidos. Não pode vir uma qualquer interpretação normativa sobre um qualquer
preceito meramente legal arredar direitos constitucionalmente consagrados como
são os supra referidos. Não foi, pois, no presente caso posto em causa qualquer
direito ou interesse das crianças, ou será que as crianças não podem ser
entrevistadas na televisão sobre factos que presenciaram, se as próprias e os
seus pais o aceitam?
Foi no presente caso feita uma interpretação extremamente restritiva do referido
artigo 21.º, n.º 1, da Lei da Televisão, interpretação essa que não se coaduna
com os direitos e princípios fundamentais subjacentes ao Estado de Direito
Democrático onde, todos, ainda, julgamos viver!
Termos em que, por ter sido aplicada uma norma (art. 21.º, n.º 1, da Lei n.º
31.º-A/98 de 14 de Julho), cuja interpretação normativa é patentemente
inconstitucional, por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 3, 27.º n.ºs 1 e 2,
37.º, n.ºs 1 e 2 e 38.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) da Constituição da República
Portuguesa, inconstitucionalidade essa que foi suscitada no recurso pela ora
Recorrente interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo esta parte
legítima e o recurso ora interposto legal e tempestivo, se requer a sua
admissão, seguindo-se os demais termos até final.”
2. No sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputadas a normas jurídicas (incluindo neste conceito as
interpretações normativas que tenham sido adoptadas como critério da decisão,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional). Não cabe ao Tribunal
Constitucional apreciar questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, a admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa dos
seguintes requisitos específicos: (i) a questão de inconstitucionalidade haver
sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC); (ii) a decisão
recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões
normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Constitui ónus do recorrente indicar o objecto (em sentido material) do recurso.
Quando pretenda ver apreciada a conformidade constitucional de uma
interpretação normativa, deve identificar essa interpretação com o mínimo de
precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o uso de fórmulas como «na
interpretação dada pela decisão recorrida» ou similares. Com efeito, constitui
orientação pacífica deste Tribunal a de que (utilizando a formulação do
Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão‑só uma
interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido (essa dimensão
normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser
julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos
de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito
ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em
causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição.»
3. Ora, a recorrente não logrou, apesar do convite que lhe foi feito,
identificar uma questão de constitucionalidade relativamente à qual estejam
reunidos os requisitos e pressupostos para o exercício dos poderes cognitivos do
Tribunal Constitucional.
A recorrente foi sancionada com coima, em processo de contra-ordenação, por
infracção ao n.º 1 do artigo 21.º da “Lei da Televisão” que dispõe que “não é
permitida qualquer emissão [televisiva] que viole os direitos, liberdades e
garantias fundamentais, atente contra a dignidade da pessoa humana ou incite à
prática de crimes”.
A recorrente não questiona a validade constitucional desta disposição legal em
si mesma. O que critica é a interpretação que lhe foi dada pela sentença de 1.ª
instância e pelo acórdão recorrido que confirmou essa sentença. Incumbia-lhe
indicar esse sentido, de modo preciso, mediante uma proposição clara. E foi isso
que foi convidada a fazer pelo despacho de fls. 221. Respondeu com a peça que se
deixou transcrita. Desta, com utilidade para o referido efeito, retira-se que a
recorrente pretende submeter a apreciação de constitucionalidade uma norma
extraída do referido preceito “quando interpretado em termos de limitar e
restringir, de modo absoluto e sem ponderar as circunstâncias do caso concreto,
a liberdade de expressão e o direito/dever de informar”. Tudo o mais que o
requerimento acrescenta é a exposição de razões para a sua discordância, mas não
identifica uma “norma” que possa ser erigida em objecto do recurso, de acordo
com a referida jurisprudência do Tribunal.
Ora, o n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 31-A/98 não foi aplicado com esse
sentido, isto é, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto. Pelo
contrário, a fundamentação do acórdão mostra ter a norma sido interpretada como
exigindo uma ponderação entre os bens ou valores constitucionais em colisão,
como resulta, em especial, das seguintes passagens:
“A recorrente insurge-se contra esta qualificação jurídica dos factos por
considerar que a emissão em causa não viola quaisquer direitos, liberdades e
garantias fundamentais, nem atenta minimamente contra a dignidade da pessoa,
antes pretendeu demover potenciais comportamentos semelhantes e assumir uma
função pedagógica, defendendo ainda que os direitos em causa (direito à imagem e
à reserva da vida privada e familiar) são direitos disponíveis podendo, caso se
trate de menores, ser consentida a divulgação de sons ou imagens de menores por
quem exerce o poder paternal, salvaguardando sempre a dignidade e o bem estar
físico e psicológico dos menores, o que, no seu entender, ocorreu no caso dos
autos.
Tais argumentos foram já apreciados, e bem, pelo tribunal recorrido.
Estão em causa direitos fundamentais consagrados constitucionalmente - por um
lado o direito de liberdade de imprensa, de expressão e de informação (art.º 38º
da CRP) e, por outro, o direito à imagem, à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, in casu, de crianças, e à reserva da
intimidade da vida privada e familiar (art.º 26º, nº1 da CRP).
O tribunal recorrido decidiu pela prevalência do direito à imagem e ao
desenvolvimento harmonioso dos menores por considerar ter sido posta em causa a
sua dignidade pessoal, não dando qualquer relevância à alegada autorização a
posteriori dada pela mãe dos menores por, a ter existido, não ser de valorar em
nome do “superior interesse da criança, que impõe limites ao poder paternal”, e
“da inalienabilidade da dignidade da pessoa humana”.
Decisão com a qual não podemos deixar de concordar inteiramente e que é tutelada
pela Constituição da Republica Portuguesa, designadamente no seu art.º 18º, nº 2
quando permite a restrição de certos direitos fundamentais, apenas na medida do
necessário, sempre que esteja em causa a salvaguarda outros direitos
fundamentais constitucionalmente protegidos e considerados mais valiosos.
Com efeito, o direito de liberdade de imprensa, de expressão e de informação,
apesar de constitucionalmente consagrado no art.º 38º da CRP, como um direito
fundamental, não é um direito em si mesmo absoluto, nem pode prevalecer sobre a
dignidade pessoal dos menores, nem sobre o direito que os mesmos têm a um
desenvolvimento integral e harmonioso e à reserva da sua vida privada.
A própria lei ordinária, no que respeita às emissões televisivas estabelece, tal
como já estabelecia à data dos factos, regras limitativas desse direito ao
preceituar no art.º 27º da Lei nº 27/2007 de 30/07 (a que correspondia antes o
art.º 21º da Lei nº 31-A/98 de 14/07) limites à liberdade de programação.
Figurando, desde logo, como primeiro desses limites o do “respeito pela
dignidade da pessoa humana, os direitos, liberdades e garantias fundamentais”
(nº1 do art. 27º).
Que é de certa forma um princípio imanente ao exercício da própria actividade
televisiva e constitui um dos objectivos na cooperação que deve existir entre o
Estado, a concessionária do serviço público e os restantes operadores de
televisão, cabendo à entidade reguladora para a comunicação social promover e
incentivar a adopção de mecanismos de co-regulação, auto regulação e cooperação
que permitam alcançar esses objectivos. (art.º 6°, nºs 1 e 2 da referida Lei).
Decorrendo também daí a obrigação prevista no art.º 34º da mesma lei de que:
Todos os operadores de televisão devem garantir, na sua programação,
designadamente através de práticas de auto-regulação, a observância de uma ética
de antena, que assegure o respeito pela dignidade da pessoa humana, pelos
direitos fundamentais e demais valores constitucionais, em especial o
desenvolvimento da personalidade de crianças e adolescentes.
Do mesmo modo a lei de Imprensa nº 2/99 de 3/01, no seu art.º 3º, estabelece
como únicos limites “os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a
salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao
bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos
cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática”.
E o Estatuto dos Jornalistas no seu art.º 14º da Lei nº 1/99 de 13/01 (revista
pela Lei 64/2007 de 6/11) estabelece como deveres do jornalista, entre outros, o
de se abster de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das
pessoas através da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física, e o de
preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da
intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e
a condição das pessoas (als. d) e h) do nº2 do art.º 14º).
Tal como se escreveu no Ac. desta Relação de 19/04/07, proferido no Proc. 1798/
2007-3, acessível em http: / / www. dgsi.pt.jtrl “o direito fundamental de
liberdade de imprensa, de expressão e de informação decorre do princípio
universal e pilar primeiro da dignidade da pessoa humana, bem como do seu
direito a um tratamento que não desmereça também a sua dignidade”, não podendo
pois, em nosso entender, prevalecer nem ser usado para pôr em causa a dignidade
de outrem, o seu direito à imagem e a reserva da sua vida privada, sobretudo
quando o que está em causa, como no caso dos autos, é a protecção da dignidade
pessoal de crianças que, acabando de passar por uma situação altamente
traumática – de verem o pai agredir a mãe com ácido sulfúrico, estando esta
hospitalizada – se vêem expostos, através da entrevista, aos “olhos do mundo”,
sem qualquer disfarce de voz e imagem e obrigados a reviver essa experiência
traumática, o que em si mesmo constitui também uma vitimização dos menores e é
atentatório dos mais elementares direitos de qualquer criança.
[ Omitimos ]
O que está em causa é a utilização de uma menor de 7 anos, que foi sujeita à
violência de ver o pai agredir a mãe, de forma tão brutal (com ácido sulfúrico),
ter que relembrar esse facto e o relatar e ser exibida juntamente com o irmão,
também ele menor, “como elementos do cenário do crime” e não a transmissão da
notícia de violência doméstica, que era lícito à estação da recorrente emitir e
divulgar.
É que para atingir os objectivos que a recorrente pretendia, não precisava desse
sensacionalismo, nem de usar os menores sem qualquer distorção, quer quanto à
imagem, quer quanto à voz, o que permitiu a sua identificação por todos quantos
assistiram à dita entrevista, fazendo-os reviver uma experiência traumática, o
que, indubitavelmente, constitui urna grave ofensa à dignidade pessoal das
próprias crianças, ainda sem consciência ara interiorizarem como tal,
susceptível de causar graves distorções no desenvolvimento da sua personalidade,
traduzindo-se também numa devassa da vida privada dos menores e da sua família,
valores que aqui se sobrepõem para restringir, apenas em parte, o direito de
liberdade de informação e de emissão da recorrente.
b) Da relevância da alegada autorização a posteriori da mãe dos menores quanto à
ilicitude da conduta contra-ordenacional da recorrente
O que a este propósito se provou foi apenas que:
“A arguida, após o início da audiência, mais propriamente entre a primeira
sessão e a segunda sessão da audiência de julgamento, contactou a mãe da menor e
obteve uma declaração daquela, onde declara que autorizou os filhos a prestarem
depoimento à equipa de jornalistas da A. e a serem filmados.
Esta matéria de facto tem de ser entendida no sentido de a mãe, posteriormente
aos factos, ter declarado que, se lhe tivesse sido perguntado, nada teria tido a
opor, teria dado o seu acordo, e que na altura em que fez a declaração também
nada tinha a opor à entrevista e à filmagem (que constituem em si, é bom que não
se esqueça, uma segunda vitimização das crianças, fazendo uma delas reviver e
narrar aquilo que presenciara).
Sobre a irrelevância desta autorização ou do eventual consentimento, caso
tivesse existido, o tribunal recorrido decidiu:
A autorização da mãe só vem mostrar que a arguida reconheceu que prevaricou e o
remédio já não afasta a ilicitude, tanto mais que a mãe até estaria internada
por força das lesões que sofrera. Mas mesmo que a mãe autorizasse, neste caso,
continuava a não ser lícita a utilização da menor vítima de tal violência, sendo
que, como já se referiu, o poder paternal é um poder-dever cujos limites são os
“SUPERIORES INTERESSES DA CRIANÇA”, não susceptível de qualquer autorização.
Aliás, a norma fala em dignidade da pessoa humana e esta não é alienável com uma
declaração de vontade da mãe.
Esta fundamentação parece-nos totalmente correcta e a ela não podemos deixar de
aderir.
Tal como está consignado no princípio 2º da Declaração dos Direitos da Criança
de 1959: as crianças gozarão de protecção especial e deverão ser-lhe dadas
oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu
desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social num ambiente saudável e
normal e em condições de liberdade e dignidade, devendo, na elaboração das leis
com este propósito, o superior interesse da criança constituir a preocupação
fundamental.
O princípio do “interesse superior da criança” é fundamental no nosso País e
consta dos textos convencionais mais relevantes sobre a criança, considerada
hoje no nosso sistema jurídico sujeito de direitos.
O desenvolvimento integral da criança é um direito que a Constituição Portuguesa
protege no art.º 69º, como um dever do Estado de assegurar a sua protecção
contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão, e contra o
exercício abusivo da própria família.
“Está ultrapassada, hoje, a visão dos pais, como titulares de direitos soberanos
em relação aos filhos. O poder paternal deixa de significar posse ou domínio
para se transformar num conjunto de responsabilidades” (Maria Clara Sottomayor)
não podendo o seu exercício traduzir-se na disponibilidade e alienabilidade de
direitos dos filhos que são por natureza direitos indisponíveis, como é o da
dignidade pessoal.
De todo o modo, essa questão nem sequer se coloca pois na verdade a recorrente
vem invocar a falta de consciência da ilicitude (art. 9.º do DL 433/ 82) mas tem
por base factos não provados, ou seja, que existia consentimento mas este não
era, ao contrário do que pensava, relevante.
Para além de ser discutível se isto era um erro do art.º 9.º ou do n.º 2 do
art.º 8.º daquele diploma, o certo é que o argumento assenta em factos não
provados posto que o tribunal não deu como provada a existência de qualquer
consentimento por parte da mãe dos menores prévio à exibição e entrevista dos
menores na televisão, único que relevaria para os efeitos pretendidos, mas tão
só que a recorrente obteve uma declaração daquela onde declara que autorizou os
filhos a prestarem depoimento à equipa de jornalistas da A. e a serem filmados,
declaração essa que, aliás, está datada de 9/05/2004, quando os factos ocorreram
em 2/08/2002.”
Daqui decorre que o Tribunal da Relação procedeu à ponderação das circunstâncias
do caso, balanceando a dignidade da pessoa humana e o “interesse superior da
criança” , de um lado, e a liberdade de expressão e informação, por outro,
concluindo que para atingir os seus objectivos, a recorrente “não precisava
desse sensacionalismo, nem de usar os menores sem qualquer distorção, quer
quanto à imagem, quer quanto à voz, o que permitiu a sua identificação por todos
quantos assistiram à dita entrevista, fazendo-os reviver uma experiência
traumática, o que, indubitavelmente, constitui urna grave ofensa à dignidade
pessoal das próprias crianças, ainda sem consciência ara interiorizarem como
tal, susceptível de causar graves distorções no desenvolvimento da sua
personalidade, traduzindo-se também numa devassa da vida privada dos menores e
da sua família”.
Não interpretou, portanto, o n.º 1 do artigo 21.º no sentido de limitar e
restringir de modo absoluto e sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, a
liberdade de expressão e o direito/dever de informar. Se fez a ponderação mais
adequada nas circunstâncias do caso (ad hoc balance) já não é matéria da
competência do Tribunal Constitucional (que só pode controlar o categorical
balance). O erro será do tribunal, na aplicação de lei, não da lei que a decisão
aplica.
Assim, mesmo a admitir que o referido enunciado constitua uma “norma” para
efeitos do controlo de constitucionalidade em fiscalização concreta, o certo é
que esse enunciado não traduz o sentido com que o acórdão recorrido a aplicou.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
a recorrente nas custas, com 8 (oito) UC de taxa de justiça.”
2. A recorrente reclama para a conferência, ao abrigo do
n.º 3 do citado artigo 78.º-A da LTC, nos termos seguintes:
“A., S.A., recorrente nos autos à margem referenciados e neles devida mente
identificado, tendo sido notificado da decisão sumária proferida pelo Exmo.
Senhor Juiz Conselheiro Relator que decidiu “não tomar conhecimento do objecto
do recurso”, vem, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de
Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de
Setembro, e pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), apresentar RECLAMAÇÃO
PARA A CONFERÊNCIA o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Entendeu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator não conhecer do recurso
interposto pela ora reclamante por entender, por um lado, que aquela não
identificou «uma “norma” que possa ser erigida em objecto do recurso» e, por
outro lado, ainda que o tivesse feito, não poderia o recurso proceder perante o
enunciado pela recorrente, uma vez que o mesmo não corresponde ao sentido com
que o acórdão recorrido aplicou a norma.
2. Com o respeito que nos merece o despacho de Exmo. Senhor Juiz Conselheiro
Relator, não pode a ora reclamante com ele concordar e conformar-se.
3. Ao contrário do que sugeriu o despacho de que ora se reclama, a recorrente
não pretende ver apreciadas «questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas», mas antes
pretende ver apreciada a conformidade constitucional da norma contida no art.
21.º da Lei da Televisão, ou melhor, a conformidade da interpretação que daquele
normativo foi feita, i.e., a de que mesmo existindo autorização de quem é
detentor do poder paternal ou de representação de menor e ainda que
subjectivamente não se reconheça qualquer violação de direitos, liberdades e
garantias, poder-se-ia em abstracto verificar a violação referida no art. 21.º
da Lei da Televisão.
4. Como bem referiu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, é orientação
pacífica do Tribunal Constitucional a de que «ao suscitar-se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça» [sublinhado nosso]. Pois
foi precisamente isto que fez a ora recorrente, questionando a interpretação que
foi feita do preceituado no art. 21.º da Lei da Televisão.
5. Invocou expressamente a recorrente, quer no seu recurso para o Tribunal da
Relação, quer no seu recurso para o Tribunal Constitucional, quer ainda no
esclarecimento que prestou a este Tribunal quando tal lhe foi solicitado, que:
“o artigo 21.º, da Lei n.º 31‑A/98, de 14 de Julho é inconstitucional,
nomeadamente, quando interpretado em termos de limitar e restringir, de modo
absoluto e sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, a liberdade de
expressão e o direito/dever de informar, vendo num caso como este um atentado a
algum direito fundamental”.
6. Ou seja, a norma é a constante do art. 21.º da Lei da Televisão ou, melhor, o
sentido normativo que a ora reclamante pretende ver abordado e apreciada a
interpretação normativa que dele foi feita, uma vez que o artigo em causa foi
interpretado como se toda e qualquer emissão de imagens e vozes de crianças
violasse os direitos, liberdades e garantias fundamentais, atentando contra a
dignidade da pessoa humana, o que, em geral e em abstracto, não é compatível com
os preceitos constitucionais invocados pela ora recorrente no seu recurso.
7. O preceito prevê que “não é permitida qualquer emissão [televisiva] que viole
os direitos, liberdades e garantias fundamentais, atente contra a dignidade da
pessoa humana ou incite à prática de crimes”. O Tribunal da Relação, bem como o
Tribunal de Primeira Instância, aplicaram esta norma não apenas sem atender às
circunstâncias do caso concreto, aos menores que estavam em causa e à devida
autorização deles e de quem exercia a guarda de facto e o poder paternal,
8. Mas, sobretudo, partindo do princípio de que a norma do art. 21.º pode ser
interpretada e aplicada sem se apreciar se, no plano subjectivo, houve ou não
alguma violação de algum direito fundamental, isto é, sem que as pessoas em
questão – aquelas cuja dignidade [alegadamente] foi afectada – foram
[objectivamente] e se sentem [subjectivamente] real e efectivamente lesadas.
9. Um atentado aos direitos, liberdades e garantias pressupõe que efectivamente
essas pessoas tenham sido desconsideradas ou se sintam ofendidas. Afinal é ou
será consentâneo com a Constituição da República Portuguesa considerar,
ficcionando-as, violações aos direitos subjectivos de cada um fazendo uma
apreciação meramente especulativa?
10. A ponderação que foi feita viola a CRP, especialmente os seus arts. 18.º,
n.º 2 e 3, 27.º n.ºs 1 e 2, 37.º, n.ºs 1 e 2 e 38.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) da
Constituição da República Portuguesa.
11. A interpretação normativa que foi feita do art. 21.º é uma “porta aberta” à
censura. Uma censura ditatorial que, sem olhar ao caso em si e, tendo apenas em
conta o facto de se tratar de dois menores a falar sobre factos que
presenciaram, considera estar preenchido o normativo do art. 21.2 quando não
está. Não é, nem pode ser, sem mais, proibida toda e qualquer entrevista a menor
(cfr. arts. 37.º, n.º 1 e 2 e 38.º n.º 1 e 2 alínea a), ambos da CRP).
12. Foi referido na decisão de que ora se reclama que “a recorrente não
questiona a validade constitucional desta disposição legal em si mesma. O que
critica é a interpretação que lhe foi dada pela sentença de 1.ª instância e pelo
acórdão recorrido que confirmou essa sentença”. Ora, o que a recorrente
questiona é efectivamente a interpretação normativa que do preceituado no art.
21.º foi feita, conforme já ficou explicitado na presente reclamação.
13. E isso foi claramente invocado em dois segmentos de arguição de
inconstitucionalidade no recurso interposto para o Tribunal da Relação de
Lisboa, no qual expressamente se consignou e arguiu
a) a “inconstitucionalidade por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 27.º n.ºs 1 e
2 do artigo 37.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 38.ºe n.ºs 2 e 3 do artigo l8.º, todos da
Constituição da República Portuguesa, da interpretação feita pelo Tribunal
Judicial da Comarca de Oeiras, da norma prevista no art. 21.º, n.º 1, da Lei da
Televisão, quando interpretada em termos de limitar e restringir, de modo
absoluto e sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, a liberdade de
expressão e o direito/dever de informar” e
b) a inconstitucionalidade “...[d]o artigo 21.º da Lei da Televisão interpretado
de modo a que seja absolutamente proibida a difusão de qualquer entrevista a
menor, ainda por cima devidamente consentida por quem tinha a sua guarda de
facto e autorizada pela sua representante legal, [o que, em abstracto,] viola a
garantia constitucional da liberdade de expressão e de informação e a proibição
de censura prevista nos artigos 37.º, n.ºs 1 e 2 e 38.º, n.ºs 1 e 2, alínea a),
ambos da Constituição da República Portuguesa”.
Em suma, deve a questão de (in)constitucionalidade ser apreciada pelo Tribunal.
Termos em que se deve dar como procedente a presente reclamação, conhecendo-se e
decidindo-se o recurso que a recorrente oportuna e legitimamente apresentou.”
3. O Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da
reclamação deduzida no processo em epígrafe, vem responder-lhe nos termos
seguintes:
1º
Parece-nos evidente que a norma do nº 1 do artigo 21º da “Lei da Televisão” não
foi interpretada “em termos de limitar e restringir, de modo absoluto e sem
ponderar as circunstâncias do caso concreto, a liberdade de expressão e o
direito/dever de informar”, sendo esta interpretação que a recorrente pretendia
ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
2º
O essencial da decisão do Tribunal da Relação, o Tribunal recorrido, consiste,
precisamente, na ponderação das circunstâncias do caso.
3º
Quanto à inconstitucionalidade do artigo 21º, interpretado de modo a que seja
absolutamente proibida a difusão de qualquer entrevista a menor, além de ser
totalmente válido o que dissemos anteriormente, poderia ainda acrescentar-se que
é a própria reclamante que diz que essa interpretação seria inconstitucional “em
abstracto” (fls.242).
4º
Ora, em concreto, o que se diz no Acórdão é, entre o mais, o seguinte:
“O que está em causa é a utilização de uma menor de 7 anos que foi sujeita à
violência de ver o pai agredir a mãe, de forma tão brutal (com ácido sulfúrico),
ter que relembrar esse facto e o relatar e ser exibido juntamente com o irmão,
também ele menor, “como elementos do cenário do crime”...”.
Algo, portanto, completamente diferente do afirmado pelo reclamante.
5º
Pelo exposto, deve a reclamação ser indeferida.”
4. A reclamação em nada abala os fundamentos da decisão recorrida.
Relembram-se dois aspectos essenciais. O primeiro é que, no sistema
que decorre da Constituição (artigo 280.º da CRP) e da lei (artigo 70.º da LTC),
o Tribunal Constitucional não aprecia a violação, directa e individual, de
direitos fundamentais por decisões judiciais, mas a (des)conformidade a regras e
princípios constitucionais imputada a normas de que essas decisões tenham feito
(ou a que tenham recusado) aplicação. O segundo consiste em que o recorrente tem
o ónus de identificar a norma cuja inconstitucionalidade quer ver apreciada
(artigo 75.º-A, n.º 1, da LTC). O que, reduzindo a explicação aos recursos
interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, se faz
enunciando, numa proposição clara e precisa, o critério jurídico que constitui a
ratio decidendi e se tem por inconstitucional, e não discorrendo acerca da
ponderação efectuada pelos tribunais da causa, nas circunstâncias do caso
concreto, que o Tribunal Constitucional não tem competência para refazer.
Tudo isto, que já está dito na decisão do relator e se reitera,
impunha a decisão de não conhecimento do recurso, face aos termos do
requerimento de interposição de recurso e da resposta ao convite a completá-lo.
Apenas se acrescenta que, mesmo que se considerasse o objecto do recurso
definido nos termos referidos no n.º 13 da presente reclamação, nunca o recurso
poderia prosseguir.
Quanto à dimensão normativa enunciada na alínea a) desse n.º 13, que é a
considerada na “decisão sumária”, pelas razões que nesta decisão se expuseram.
Como se diz na resposta do Ministério Público à reclamação, o essencial do
acórdão recorrido consiste, precisamente e ao invés do que supõe esse enunciado,
na ponderação das circunstâncias do caso. Se o acórdão fez correcta determinação
dos factos relevantes e adequada ponderação, face a esses factos, entre os
direitos fundamentais de terceiros que considerou violados pela reportagem em
causa e a liberdade de expressão e o direito e dever de informar por parte da
recorrente, é matéria que já não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar.
Relativamente à norma enunciada na alínea b) do mesmo n.º 13 da reclamação, nem
é exacto, pelo que já se disse, que a decisão recorrida tenha considerado
“absolutamente proibida a difusão de qualquer entrevista a menor” nem que essa
difusão tivesse sido “ devidamente consentida por quem tinha a sua [dos menores]
guarda de facto e autorizada pela sua representante legal”.
O que o Tribunal considerou vedado foi a “utilização de uma menor de 7 anos, que
foi sujeita à violência de ver o pai agredir a mãe, de forma tão brutal (com
ácido sulfúrico), ter que relembrar esse facto e o relatar e ser exibida
juntamente com o irmão, também ele menor, “como elementos do cenário do crime” e
não a transmissão da notícia de violência doméstica, que era lícito à estação da
recorrente emitir e divulgar”. Mais considerou o acórdão “que para atingir os
objectivos que a recorrente pretendia, não precisava desse sensacionalismo, nem
de usar os menores sem qualquer distorção, quer quanto à imagem, quer quanto à
voz, o que permitiu a sua identificação por todos quantos assistiram à dita
entrevista, fazendo-os reviver uma experiência traumática, o que,
indubitavelmente, constitui uma grave ofensa à dignidade pessoal das próprias
crianças, ainda sem consciência ara interiorizarem como tal, susceptível de
causar graves distorções no desenvolvimento da sua personalidade, traduzindo-se
também numa devassa da vida privada dos menores e da sua família, valores que
aqui se sobrepõem para restringir, apenas em parte, o direito de liberdade de
informação e de emissão da recorrente”.
E não considerou que tivesse havido consentimento relevante. Pelo contrário,
afastou o argumento da recorrente de que teria havido consentimento relevante da
mãe
dos menores, não só no plano jurídico, mas também no plano fáctico, como se
resume na seguinte passagem: “De todo o modo o desenvolvimento integral da
criança é um direito que a Constituição Portuguesa protege no art.º 69º, como um
dever do Estado de assegurar a sua protecção contra todas as formas de abandono,
de discriminação e de opressão, e contra o exercício abusivo da própria família.
“Está ultrapassada, hoje, a visão dos pais, como titulares de direitos soberanos
em relação aos filhos. O poder paternal deixa de significar posse ou domínio
para se transformar num conjunto de responsabilidades” (Maria Clara Sottomayor)
não podendo o seu exercício traduzir-se na disponibilidade e alienabilidade de
direitos dos filhos que são por natureza direitos indisponíveis, como é o da
dignidade pessoal.
De todo o modo, essa questão nem sequer se coloca pois na verdade a recorrente
vem invocar a falta de consciência da ilicitude (art. 9.º do DL 433/ 82) mas tem
por base factos não provados, ou seja, que existia consentimento mas este não
era, ao contrário do que pensava, relevante.
Para além de ser discutível se isto era um erro do art.º 9.º ou do n.º 2 do
art.º 8.º daquele diploma, o certo é que o argumento assenta em factos não
provados posto que o tribunal não deu como provada a existência de qualquer
consentimento por parte da mãe dos menores prévio à exibição e entrevista dos
menores na televisão, único que relevaria para os efeitos pretendidos, mas tão
só que a recorrente obteve uma declaração daquela onde declara que autorizou os
filhos a prestarem depoimento à equipa de jornalistas da A. e a serem filmados,
declaração essa que, aliás, está datada de 9/05/2004, quando os factos ocorreram
em 2/08/2002”.
Em conclusão: nenhuma das interpretações propostas pelo recorrente para
apreciação de constitucionalidade corresponde ao sentido com que o acórdão
recorrido aplicou o artigo 21.º da Lei da Televisão.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UC.
Lx, 29/6/09
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão