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Processo n.º 299/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Portimão, o Ministério
Público interpôs recurso obrigatório de fiscalização concreta de
constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal, de 25.3.2009, para
apreciação da inconstitucionalidade:
i) da norma constante do artigo 17.°, n.° 1, da Portaria n.° 114/2008, de 6 de
Fevereiro (alterada pelas Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho e n.°
1538/2008, de 30 de Dezembro), cuja aplicação foi recusada no referido despacho
com fundamento em que tal norma é orgânica e materialmente inconstitucional por
violação dos artigos 2.°, 164.°, alínea m), 203.° e 215.°, n.º 1, todos da
Constituição da República Portuguesa;
ii) da norma constante do artigo 138.°-A do Código de Processo Civil,
interpretada no sentido em que a mesma remete para Portaria do Ministro da
Justiça a regulação das disposições processuais relativas a actos dos
magistrados nos termos depois regulados no art. 17.°, n.°1 da Portaria n.°
114/2008, cuja aplicação foi recusada no referido despacho com fundamento em que
tal norma é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo
112.°, n.° 5 (tipicidade) da Constituição da República Portuguesa;
E, ainda, para apreciação da ilegalidade:
iii) da norma constante do art. 17.°, n.°3 da Portaria n.° 114/2008,
interpretada à luz do art. 2.° al. c) do Decreto Lei n.° 290-D/99, de 2/8
(substituição da assinatura autógrafa pela assinatura electrónica), por violação
do disposto no art. 157.°, n.°s 1 e 3 do Código de Processo Civil.
2. Por despacho de fls. 27 foi o recorrente notificado para alegações, bem como
para se pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso na parte
fundada em ilegalidade da norma, por não estar em causa a violação de lei com
valor reforçado.
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
apresentou alegações, onde conclui pelo não conhecimento da questão da
ilegalidade nos seguintes termos:
«Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, a recusa de aplicação de norma tem de ser
exclusivamente com fundamento na sua inconstitucionalidade e já não ilegalidade.
Por outro lado, mesmo que se entendesse que se estava perante o recurso previsto
na alínea c) do nº 1 daquele artigo 70º, no caso, como se vê pela decisão
recorrida e pelo requerimento de interposição do recurso, a ilegalidade
consistiria na violação de uma norma do Código de Processo Civil.
Ora, como tal diploma não constitui uma lei de valor reforçado, não se verificam
os pressupostos de admissibilidade desta modalidade de recurso.
Quanto à ilegalidade não deve, pois, tomar-se conhecimento do recurso.»
E quanto ao mérito do recurso de constitucionalidade conclui o seguinte:
«1º
A norma constante do artigo 138º-A, do Código de Processo Civil, ao admitir que
constem de diploma meramente regulamentar – portaria do Ministério da Justiça –
aspectos atinentes ao regime dos actos processuais, nomeadamente a previsão da
sua prática em suporte electrónico e a respectiva regulamentação adjectiva, não
viola o princípio constante do artigo 112º, nº 5, da Constituição da República
Portuguesa.
2º
A norma constante do nº 1 do artigo 17º da Portaria nº 114/08, alterada pelas
Portarias nºs 457/08 e 1538/08, ao prever que os actos dos magistrados devam ser
praticados em suporte electrónico, através do sistema CITIUS (sem,
naturalmente, precludir ou pôr em causa os princípios estruturante, afirmados,
nomeadamente, pelos artigos 265º e 265º-A do Código de Processo Civil) não tem
natureza estatutária, versando apenas sobre a matéria da forma de actos
processuais, não pondo em causa os princípios constitucionais da independência
dos tribunais, da separação de poderes e da unidade estatutária dos juízes dos
tribunais judiciais.
3º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
II − Fundamentação
4. Nas suas alegações o Ministério Público pronunciou-se pelo não conhecimento
do objecto do recurso no que respeita à questão da legalidade, restringindo
assim o seu objecto à apreciação da constitucionalidade das normas constantes do
artigo 138.º-A do Código de Processo Civil (com a redacção resultante do
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto) e do artigo 17.º, n.º 1, da Portaria
n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro.
Sobre tais normas já se pronunciou o Tribunal Constitucional no recente Acórdão
n.º 293/2009, tirado em Plenário, por unanimidade, no qual se decidiu:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 138.º- A, do Código
de Processo Civil, com a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24
de Agosto, na parte em que remete para portaria a regulação das disposições
processuais relativas a actos dos magistrados;
b) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 17.º, n.º 1, da
Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro.
A jurisprudência fixada no Acórdão n.º 293/2009 pode resumir-se da seguinte
forma:
I − O artigo 138.°- A, do Código de Processo Civil, introduzido neste diploma
pelo artigo 2.º, da Lei n.º 14/2006, com a redacção resultante do Decreto-lei
n.º 303/2007, de 24 de Agosto, passou a dispor no seu n.º 1, que 'a tramitação
dos processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do
Ministro da Justiça'. Este novo dispositivo consagrou uma importante mudança na
forma de registo dos actos praticados em processo civil, preterindo-se o suporte
em papel, em favor de um sistema informático, denominado CITIUS, no
prosseguimento duma política visando uma progressiva desmaterialização dos
processos judiciais. No seguimento do disposto no artigo 138.º - A, do CPC, veio
a ser aprovada a Portaria n.° 114/2008, de 6 de Fevereiro − entretanto, já
alterada pelas Portarias n.° 457/2008, de 20 de Junho, e n.º 1538/2008, de 30 de
Dezembro −, a qual veio dispor sobre várias matérias atinentes à tramitação
electrónica dos processos civis.
II − A decisão recorrida recusou a aplicação da norma invocando que se trata de
matéria pertencente ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, pelo que está sujeita
à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (artigo
164º, m), da CRP). Ora, o estatuto dos Magistrados Judiciais constitui um
instrumento legislativo material concretizador do princípio do Estado de
direito, na medida em que se destina a garantir a independência e a
imparcialidade dos juízes no exercício da função jurisdicional. Por isso devem
aí constar as normas relativas às condições de exercício do cargo de juiz, com
influência na sua independência e imparcialidade, nomeadamente as que definem os
respectivos deveres, incompatibilidades, direitos e regalias, forma de
provimento e de progressão na carreira, assim como as regras relativas ao
procedimento disciplinar e cessação de funções.
III − Ora, a forma que devem revestir os actos escritos praticados pelos
magistrados judiciais nos processos civis tramitados electronicamente não é
matéria que integre as condições de exercício do cargo de juiz com influência na
sua independência e imparcialidade, pelo que não é matéria que deva integrar o
seu estatuto. Não se vê assim razão para estar abrangida pela reserva de lei,
pelo que a sua remissão para portaria, não constitui um acto de 'deslegalização'
proibido pelo artigo 112.º, n.º 5, da CRP.
IV − O artigo 17.º, n.º 1, da Portaria n.º 114/08, de 6 de Fevereiro, dispõe que
'os actos dos magistrados judiciais são sempre praticados em suporte informático
através do sistema informático CITIUS - Magistrados Judiciais, com aposição de
assinatura electrónica qualificada ou avançada'. Tendo o artigo 138.º - A, do
C.P.C., determinado que a tramitação dos processos civis é efectuada
electronicamente, este preceito regulamentador dessa forma de tramitação veio
impor que os juízes praticassem os actos escritos nesses processos em suporte
informático, através de uma determinada aplicação informática. Ora, como já
acima se concluiu, a forma pela qual os juízes devem praticar os seus actos nos
processos civis não é matéria estatutária, pelo que a sua inclusão em portaria
não resulta em qualquer inconstitucionalidade orgânica e não se vê como aquela
imposição possa comprometer o princípio da separação de poderes ou a liberdade
do acto de julgar, na medida em que se limitam a indicar o meio técnico através
do qual os juízes devem realizar as suas intervenções escritas no processo, sem
qualquer influência no seu sentido e conteúdo. Nem a definição dos meios que
devem ser utilizados para os juízes praticarem os seus actos no processo civil
se insere na área reservada à função jurisdicional, nem essa definição pelo
poder legislativo é susceptível de afectar a independência dos juízes.
V − O controlo da rede onde opera a aplicação informática através da qual os
juízes praticam os seus actos no processo civil, ainda que possa ter influência
na maior ou menor eficácia ou segurança da tramitação electrónica dos processos,
não se traduz em qualquer interferência na área reservada ao poder
jurisdicional, uma vez que não estamos perante uma actividade materialmente
jurisdicional, nem é susceptível de por em risco a independência dos juízes, uma
vez que esse controle em nada condiciona ou interfere com a liberdade de julgar.
5. Esta fundamentação é inteiramente aplicável ao caso em apreço que é, em tudo,
idêntico ao apreciado no acórdão citado.
Reitera-se, assim, pelos fundamentos citados, o juízo de não
inconstitucionalidade das normas em causa.
III − Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 138.º- A, do Código de Processo Civil, com a redacção resultante do
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, na parte em que remete para portaria
a regulação das disposições processuais relativas a actos dos magistrados;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do
artigo 17.º, n.º 1, da Portaria n.º 114/2008, de 6 de Fevereiro;
c) Consequentemente, conceder provimento ao
recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o
presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem Custas.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário Torres
Rui Manuel Moura Ramos