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Processo n.º 215/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por sentença de 18 de Novembro de 2008, o 2º Juízo do Tribunal Judicial da
Comarca de Ourém recusou a aplicação da norma do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º
75/98, de 19 de Novembro, por ser contrária ao estabelecido nos artigos l3º, 26º
e 69º, da Constituição da República, e, em consequência, fixou a prestação a
pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, nos termos dessa
disposição e ainda do artigo 3º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do Decreto-Lei
n.º 164/99, de 13 de Maio, em € 125,00 para cada menor.
Considerou, em síntese, que, sendo imposto ao Estado o dever de assegurar a
garantia da dignidade da criança e a sua protecção em vista a um desenvolvimento
integral, a norma do artigo 2º, nº l, da Lei n.º 75/98, ao estabelecer uma
limitação nas prestações mensais em 4 UC por devedor, viola os referidos
preceitos constitucionais, e desde logo, o princípio da igualdade previsto no
artigo 13º, ao discriminar as crianças cujo progenitor infractor tenha um maior
número de filhos ou dependentes menores.
O Ministério Público interpôs recurso obrigatório ao abrigo do disposto no
artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, vindo, no
seguimento do processo, a apresentar as seguintes alegações:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da
decisão, proferida no Tribunal Judicial de Ourém, nos autos de incumprimento do
poder paternal, na parte em que foi recusada aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade material, à norma constante do artigo 2º, nº 1, da Lei nº
75/98, de 19 de Novembro na parte em que estabelece um limite, por cada devedor,
às prestações em que se consubstancia a garantia dos alimentos devidos a menores
Ao presente recurso foi atribuído o regime de subida em separado e com efeito
meramente devolutivo, com invocação do disposto no artigo 78º, nº 2, da Lei do
Tribunal Constitucional, conjugada com as normas adjectivos reguladores do
recurso de agravo aos procedimentos regidos pela Organização Tutelar de Menores.
Não nos parece, porém, que a norma do citado nº 2 do artigo 78º seja invocável
no âmbito de um recurso obrigatório, fundado na alínea a) do nº 1 do artigo 75º:
na verdade, como é inquestionável, tal recurso tem de ser interposto, logo e
directamente, para o Tribunal Constitucional, não havendo, deste modo, que
considerar relevante o recurso ordinário “ não interposto ou declarado extinto”,
cuja interposição estava vedada ao Ministério Público recorrente (a nosso ver,
tal norma conexiona-se, não com os recursos obrigatórios, mas com os recursos
fundados na alínea b) do nº 1 daquele artigo 70º, face ao preceituado no nº 4
desse preceito, que se basta com a exaustão ou preclusão dos normais meios
impugnatórios existentes).
Tal implica a aplicabilidade da regra constante do nº4 do artigo 78º da Lei do
Tribunal Constitucional, devendo fixar-se ao presente recurso obrigatório o
regime de subida nos próprios autos e o efeito suspensivo.
Nos casos em que a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor não
satisfizer as quantias em dívida e o alimentado não puder beneficiar de
rendimento líquido superior ao salário mínimo, o Estado assegura as prestações
em débito, sendo estas fixadas pelo tribunal – mas não podendo exceder,
mensalmente, por cada devedor o montante de 4 UC, independentemente do número de
menores credores da prestação alimentar.
Violará esta limitação legal, como sustenta a decisão recorrida, os princípios
constitucionais da igualdade e da garantia de um mínimo de existência condigna,
inferivel, desde logo, do artigo 69º da Constituição da República Portuguesa?
Parece-nos claramente improcedente o argumento constante em invocar a violação
do princípio da igualdade, já que a restrição dos montantes pecuniários
disponíveis, no caso de pluralidade de menores titulares activos do direito a
alimentos, radica, por assim dizer, na própria “natureza das coisas” – não
traduzindo situação substancialmente diversa da que ocorre nos casos em que o
progenitor preste, ele próprio, os alimentos, sendo a medida destes condicionada
pelos meios pecuniários ao dispor daquele que houver de prestá-los: não sendo
obviamente ilimitadas as capacidades financeiras do devedor de alimentos, é
evidente que a circunstância de serem plúrimos os titulares do direito alimentar
acabará por influenciar os valores efectivamente disponíveis por cada um dos
co-interessados, sem que tal traduza qualquer discriminação constitucionalmente
censurável.
Mais complexa é a questão da compatibilização da dita restrição legal com o
direito a um mínimo de existência condigna, inferível, neste caso, da norma do
artigo 69º da Constituição da República Portuguesa, na parte em que prescreve
que os menores têm direito à protecção da sociedade do Estado, com vista ao seu
desenvolvimento integral, sendo devida “especial protecção” às crianças por
qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.
Implicará tal direito “social” a possibilidade de exigir do Estado um conteúdo
prestacional, inviabilizador da aplicabilidade da restrição quantitativa
constante da norma desaplicada?
Propendemos para uma resposta negativa, afigurando-se ser necessária uma
especial cautela do aplicador do direito na área dos direitos sociais,
envolvendo prestações pecuniárias directas do Estado – uma vez que, como é
evidente, o cumprimento do programa constitucional ínsito, no caso, no citado
artigo 69º depende fundamentalmente de factores financeiros e materiais que o
Estado está longe de dominar integralmente, valendo aqui a “cláusula do
possível”.
Ou seja: mesmo admitindo que o direito a um mínimo de existência condigna
comporta também uma vertente prestacional, direccionada contra o Estado (como
parece admitir o Acórdão nº 509/02, a propósito da figura do rendimento social
de inserção) – o que nos conduzirá a outorgar tutela e assento constitucional ao
regime genérico da garantia dos alimentos devidos a menores – não parece viável
extrair de tal direito social uma concreta determinação dos montantes
aplicáveis, bem como a proscrição da inexistência de qualquer limite máximo às
prestações pecuniárias a cargo do Estado.
Não pode, na realidade, o intérprete e aplicador da lei sobrepor os seus
próprios e pessoais critérios às valorações realizadas pelo legislador,
democraticamente legitimado, e a que incumbe naturalmente – face à natural
insuficiência dos meios financeiros públicos para ocorrer a todas as situações
de necessidade ou carência – realizar as opções legislativas fundamentais,
articulando ou “rateando” os montantes disponíveis pelo universo dos
carenciados.
A opção legislativa plasmada na norma desaplicada não se revela, deste modo,
violadora do referido direito, cabendo ainda o estabelecimento de um limite
máximo à responsabilidade subsidiária do Estado pelo débitos alimentares não
espontaneamente satisfeitos, no âmbito das opções político-legislativas
consentidas pela Lei Fundamental.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º Não é aplicável a um recurso obrigatório do Ministério Público – sujeito ao
regime de imediata e necessária interposição directa para o Tribunal
Constitucional – o estatuído no nº 2 do artigo 78º da Lei nº 28/82, cabendo tal
situação na regra enunciada no nº 4 de tal preceito.
2º A norma constante do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro,
enquanto prescreve um limite máximo à responsabilidade subsidiária do Estado
pelas prestações alimentares a menores, não espontaneamente satisfeitas pelo
obrigado, estabelecido em função da identidade do devedor (e independentemente
do número de interessados, titulares de alimentos), não viola o princípio da
igualdade nem o direito a um mínimo de existência condigna, situando-se ainda no
âmbito da livre discricionariedade legislativa.
3º Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Efeito do recurso
2. O tribunal recorrido atribuiu ao recurso efeito meramente devolutivo, com
invocação do disposto no artigo 78º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, e
no artigo 185º, n.º 1, da Lei Tutelar de Menores.
O Ministério Público, na sua alegação, considerou que a norma que rege o efeito
do recurso é, no caso, a do n.º 4 do citado artigo 78º, por se tratar de recurso
de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), que não está dependente da prévia
exaustão dos recursos ordinários, e requereu, nesse sentido, a fixação de efeito
suspensivo.
De facto, a norma do artigo 185º, n.º 1, da Lei Tutelar de Menores atribui aos
recursos de quaisquer decisões proferidas nos processos previstos nessa lei,
incluindo os relativos a alimentos devidos a menores, o efeito meramente
devolutivo. E o artigo 78º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional manda
seguir, no recurso para o Tribunal Constitucional «interposto de decisão da qual
coubesse recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto», o efeito que
deva ser atribuído a esse recurso. O que poderia conduzir, por interpretação
literal desse preceito, a que se devesse manter, no recurso de
constitucionalidade, o efeito meramente devolutivo que caberia ao recurso
ordinário, caso este fosse interposto.
A norma, no entanto, pretende referir-se aos recursos previstos nas alíneas b) e
f) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, relativamente aos quais se exige o prévio
esgotamento dos recursos ordinários, e que abarca as situações em que, havendo
recurso ordinário, tenha havido renúncia, ou haja decorrido o respectivo prazo
de interposição, ou o recurso não tenha tido seguimento por razões de ordem
processual (cfr. artigo 70º, n.ºs 2 e 4).
No caso, porém, de recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade, e em todos os outros casos em que o recurso para o
Tribunal Constitucional é obrigatório (artigos 70º, n.º 1, alíneas a), c), g),
h) e i), e 72º, n.º 2, da LTC), não funciona a regra da exaustão dos recursos
ordinários (nem se justifica que se aguarde o decurso do prazo de interposição
do recurso ordinário ou a ocorrência de qualquer causa extintiva), sendo desde
logo exigível que o recurso seja imediata e directamente interposto para o
Tribunal Constitucional.
Neste contexto, a alusão, no artigo 78º, n.º 2, a recurso ordinário não
interposto ou declarado extinto apenas faz sentido se se reportar a um recurso
de constitucionalidade que apenas pudesse ser admitido após o esgotamento dos
recursos ordinários (aqui se incluindo, por força da citada regra do n.º 4 desse
artigo 70º, as situações de não interposição ou extinção do recurso por razões
processuais).
Em qualquer outra situação (não contemplada no artigo 78º, n.º 2), em que haja
lugar a recurso ordinário, e ele tenha prosseguido, o efeito do recurso de
constitucionalidade da decisão proferida nessa instância de recurso é o previsto
no artigo 78º, n.º 3, correspondendo-lhe o efeito que tiver sido atribuído ao
recurso ordinário que teve seguimento.
O caso dos recursos obrigatórios cai na regra residual do n.º 4 do artigo 78º,
sendo aplicável o efeito suspensivo com subida nos próprios autos; o que é
consentâneo com a circunstância de a lei prever a interposição imediata do
recurso em vista à apreciação da questão de constitucionalidade, diferindo para
momento ulterior a prolação de decisão definitiva, na ordem judiciária comum,
sobre a matéria da causa.
Justifica-se, por isso, alterar, conforme o requerido, o efeito atribuído ao
recurso, no exercício dos poderes atribuídos ao tribunal superior pelo artigo
703º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável.
Mérito do recurso
3. A questão que vem discutida é a de saber se o limite superior de 4 Unidades
de Conta estabelecido no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro,
relativamente ao montante das prestações de alimentos que ao Fundo de Garantia
dos Alimentos Devidos a Menores cabe assegurar, é desconforme à Constituição por
violação do disposto nos artigos 13º, 26º e 69º da Lei Fundamental, tal como se
considerou na decisão recorrida.
O regime jurídico de garantia dos alimentos devidos a menores foi instituído
pela referida Lei n.º 75/98 e regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13
de Maio, e tem em vista, através de um Fundo constituído no âmbito do Ministério
do Trabalho e da Solidariedade, assegurar o pagamento de alimentos a menor
residente em território nacional, quando a pessoa judicialmente obrigada a
prestar alimentos não satisfizer coactivamente essa obrigação, e se verifique,
cumulativamente, que o alimentado não tem rendimento líquido superior ao
salário mínimo nacional nem beneficia nessa medida de rendimentos de outrem a
cuja guarda se encontre (artigos 1º da Lei n.º 75/98 e 3º do Decreto-Lei n.º
164/99).
É ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser
entregue que compete requerer nos respectivos autos de incumprimento que o
tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar,
cabendo ao tribunal, para esse efeito, proceder às diligências que entenda
indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor (artigo 3º, n.ºs 1,
2 e 3, da Lei n.º 75/98).
Por sua vez, o montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as
circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o
devedor originário se encontra obrigado (artigo 3º, n.º 4, da Lei n.º 75/98),
ficando o Fundo subrogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas
as prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso (artigo 5º do
Decreto-Lei n.º 164/99).
A norma aqui particularmente em foco é, porém, a do artigo 2º da Lei n.º 75/98,
que, sob a epígrafe «fixação e montante das prestações», estabelece o seguinte:
1 — As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo
tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.
2 — Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal
atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação
de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
Entretanto, o artigo 3º do Decreto-Lei n.º 164/99, que regulamentou os
pressupostos e requisitos de atribuição da prestação, no seu n.º 3, reproduziu
praticamente o que consta daquele artigo 2º.
4. Como se deixou entrever através do contexto legal esquematicamente descrito,
a garantia de alimentos devidos a menor surge como uma prestação social do
regime não contributivo, a cargo do Estado, destinada a suprir o incumprimento
por parte daquele que se encontre sujeito à obrigação alimentar familiar,
traduzindo-se, por isso, numa prestação social de natureza subsidiária, que visa
concretizar, no plano legislativo, o direito das crianças à protecção, tal como
consagrado no artigo 69º, n.º 1, da Constituição.
É isso mesmo que é reconhecido no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99, em que se
faz expressa menção à exigência constitucional do artigo 69º, como implicando,
em especial no caso das crianças, «a faculdade de requerer à sociedade e, em
última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem
as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna», e em que se
caracteriza a garantia de alimentos devidos a menores, instituída pela Lei n.º
75/98, como uma nova prestação social, «que traduz um avanço qualitativo
inovador na política social desenvolvida pelo Estado» e que «dá cumprimento ao
objectivo de reforço da protecção social devida a menores».
Bem se compreende, neste plano, que as prestações sociais assim caracterizadas
não constituam um direito subjectivo prima facie dos menores a quem se dirigem
(ao contrário do que sucede com todas as demais prestações sociais do regime
contributivo), mas representem antes um recurso subsidiário, fundado na
solidariedade estadual, que se destina a dar resposta imediata à satisfação de
necessidades de menores que se encontrem numa situação de carência, e que, por
isso, não pode, desligar-se da concreta situação familiar do titular da
prestação (neste sentido, Remédio Marques, Algumas notas sobre alimentos
(devidos a menores), 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 214-215).
Como se fez notar num recente aresto do Supremo Tribunal de Justiça, o
incumprimento da prestação de alimentos por parte do primitivo devedor é que
funciona como pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado
para satisfação de uma necessidade actual do menor, e, consequentemente, o
Estado não se substitui incondicionalmente ao devedor originário dos alimentos e
apenas se limita a assegurar os alimentos de que o menor carece, enquanto o
devedor primitivo não pague, devendo ser reembolsado do que pagar (acórdão de 10
de Julho de 2008, no Processo n.º 1860/08).
Assim se explica que, para a determinação do montante da prestação social, como
determina o transcrito artigo 2º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, o tribunal deva
atender, não só à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades
específicas do menor, mas também ao montante da prestação de alimentos que fora
anteriormente fixada e que está em dívida. Certo é que o tribunal, por efeito da
actividade jurisdicional que é levado a realizar na sequência do pedido
formulado nos termos desse diploma, não está impedido de fixar um montante
superior ou inferior à prestação de alimentos que impendia sobre o devedor
(ainda que com o questionado limite de 4 UC), mas isso deve-se apenas ao facto
de o legislador ter considerado ser exigível, nessa circunstância, uma
reponderação pelo juiz da situação do menor à luz da qual foi fixada a pensão de
alimentos.
Em todo o caso, não há dúvida de que o montante da prestação de alimentos
incumprida constitui um índice para o julgador fixar a prestação social a cargo
do Fundo e esta será em regra equivalente à anteriomente fixada (Remédio
Marques, ob. cit., págs. 234 e 239). Isso porque o que está essencialmente em
causa é a reposição do rendimento que deixou de ser auferido por falta de
pagamento voluntário de alimentos por parte de quem se encontrava obrigado a
prestá-los.
Numa aproximação à resolução da questão de constitucionalidade suscitada, deve
começar por dizer-se que estamos aqui perante um direito social, cuja
concretização e actualização depende de certos condicionalismos
sócio-económicos, culturais e políticos que só o legislador poderá, em primeira
linha, avaliar, e que não pode ser efectivado pelo juiz por simples
interpretação aplicativa do direito (cfr. Vieira de Andrade, Os direitos
fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, pág. 192).
Como refere o autor agora citado, «a escassez dos recursos à disposição
(material e também jurídica) do Estado para satisfazer as necessidades
económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado da experiência
nas sociedades livres, pelo que não está em causa a mera repartição desses
recursos segundo um princípio da igualdade, mas sim uma verdadeira opção quanto
à respectiva afectação material». Por outro lado, essa opção decorre de uma
ampla liberdade de conformação legislativa, não sendo possível definir através
da Constituição o conteúdo exacto da prestação e o modo e condições ou
pressupostos da sua atribuição, ou imputar-lhe uma intencionalidade que vá além
de um conteúdo mínimo que possa directamente resultar das directrizes
constitucionais (idem, págs. 190-191 e 398).
Estando em causa, no caso concreto, uma prestação estadual subsidiária destinada
a suprir o incumprimento da obrigação de alimentos familiar, afigura-se não ser
possível invocar a violação do princípio da igualdade, a partir da fixação do
limite estabelecido para o montante superior da prestação, com base na
discriminação que possa existir entre as diversas situações concretas,
designadamente em razão do maior ou menor número de menores a cargo daquele que
estava obrigado à prestação de alimentos.
Importa notar que a determinação da medida ou extensão dos alimentos, por força
do próprio critério legal consignado no artigo 2004º do Código Civil, varia em
função das possibilidades daquele que houver de prestá-los e das necessidades
daquele que houver de recebê-los, pelo que a fixação do seu montante não pode
basear-se no custo médio normal de subsistência do alimentando, mas em diversos
outros factores em que entra em linha de conta, com especial relevo, a condição
económica e social do obrigado. E não é indiferente, para esse efeito, que o
vínculo respeite não a um único, mas a vários menores carecidos de alimentos,
como ocorre no caso vertente.
Nestes termos, a capacidade económica do progenitor em função do número de
menores a quem deve prover ao sustento não pode deixar de constituir um critério
objectivo de quantificação dos alimentos, e influenciar o montante da pensão a
atribuir a cada um dos alimentandos.
E, como vimos, a prestação social prevista na Lei n.º 75/98, visando substituir
a obrigação legal de alimentos em caso de incumprimento, corresponde
tendencialmente àquela que foi judicialmente fixada e deixou de ser paga, e
reflecte, nessa medida, as particularidades do caso concreto e as vicissitudes
que condicionaram a fixação do montante da obrigação alimentar originária.
Tratando-se uma prestação autónoma de segurança social, não há dúvida que ela é
atribuída de acordo com certos critérios objectivos que são aplicáveis a todas
as crianças que se encontrem na mesma situação: existência de sentença que fixe
os alimentos; residência do devedor em território nacional; inexistência de
rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional de que o menor possa
beneficiar; não pagamento pelo devedor da obrigação de alimentos. Mas pelo seu
carácter de subsidiariedade, o montante da prestação substitutiva do Estado está
necessariamente dependente da situação económica e familiar em que se encontra
inserido o menor, aí relevando, também, o valor da prestação de alimentos que
foi fixada judicialmente, as possibilidades económicas do progenitor e a
possível pluralidade de vínculos.
Em todo este contexto, a situação de desigualdade gerada pela limitação do
montante da prestação social a 4 UC por cada devedor, quando se torne necessário
efectuar o rateio desse valor máximo entre diversos menores que sejam filhos de
um mesmo devedor (no confronto com quaisquer outros casos em que a um devedor
corrresponda um único credor), decorre da própria situação de vida concretamente
considerada, e não propriamente de um critério normativo fixado
legislativamente.
O que poderia discutir-se é se é constitucionalmente aceitável o estabelecimento
desse limite ou se o critério de determinação do montante máximo da prestação
não deveria antes ter por base a pessoa do credor dos alimentos, e não a do
devedor.
Valem aqui, no entanto, as considerações já anteriormente expendidas sobre a
tutela jurídico-constitucional dos direitos sociais. Estando em causa direitos a
prestações, que, como tal, devam caracterizar-se como actuações positivas do
Estado, a sua concretização, para além de um conteúdo mínimo que se torne
determinável através dos próprios preceitos constitucionais, depende de
conformação político-legislativa e, em muitos casos, da existência e
disponibilidade de meios materiais, que, em qualquer caso, não pode ser objecto
de reexame ou controlo jurisdicional.
Não se vê, por outro lado, em que termos podem considerar-se violadas, no caso,
as disposições dos artigos 26º e 69º da Constituição.
Este último preceito consagra um direito das crianças à protecção da sociedade e
do Estado, que se dirige não apenas aos poderes públicos, em geral, mas também
aos cidadãos e às instituições sociais, e que necessariamente envolve, antes de
mais, o dever de protecção pela própria família, incluindo os progenitores. Em
articulação com esse princípio, o artigo 36º, n.º 5, consigna o direito e o
dever dos pais em relação à educação e manutenção dos filhos, permitindo
caracterizar um verdadeiro direito-dever subjectivo, e que implica especialmente
o dever de prover ao sustento dos filhos. Qualquer dessas disposições
destinam-se a assegurar o desenvolvimento integral da criança e, nessa medida,
dão cobertura ao direito ao desenvolvimento da personalidade a que se refere o
artigo 26º, n.º 1, da Constituição (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 565 e 869).
No caso, o Estado, através da Lei n.º 75/98 e do seu diploma regulamentar, veio
justamente instituir uma garantia dos alimentos devidos a menores, atribuindo
uma prestação social destinada a suprir as situações de carência decorrentes do
incumprimento por parte da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos,
dando assim concretização prática ao direito de protecção às crianças que deriva
daquele artigo 69º e, mediatamente, ao direito ao desenvolvimento da
personalidade a que alude o também citado artigo 26º.
Não é possível, por isso, imputar à questionada norma do artigo 2º, n.º 1, a
violação de qualquer dos referidos preceitos constitucionais.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Atribuir efeito suspensivo ao recurso de constitucionalidade, nos termos
do artigo 78º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional;
b) não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 2º da Lei n.º
75/98, de 19 de Novembro, com fundamento em violação do disposto nos artigos
13º, 26º e 69º da Constituição;
c) e, consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma
da sentença recorrida em conformidade com o julgado quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Junho de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão