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Processo n.º 381/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No 1.º Juízo Criminal de Loulé, no processo comum colectivo n.º ../05.ZRFAR, o
arguido A. foi condenado pela prática de diversos crimes, em cúmulo jurídico, na
pena de 17 anos de prisão.
Este arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora que, por
acórdão proferido em 28 de Outubro de 2008, concedeu parcial provimento ao
recurso interposto, tendo alterado aquela pena para 12 anos de prisão.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por
acórdão proferido em 25 de Março de 2009, rejeitou conhecer o recurso
interposto relativamente às penas parcelares em que o arguido havia sido
condenado e ainda do segmento respeitante à matéria de facto, tendo negado
provimento à parte do recurso apreciada.
O arguido interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes
termos:
“O recurso é interposto ao abrigo da primeira parte da alínea a) do n° 1 do
art° 70° da LTC porquanto o Acórdão de que se recorre não aplicou, como deveria,
o princípio constitucional ínsito no art° 205° n° 1 CRP, o qual prescreve a
obrigatoriedade da decisão fundamentada, questão que o recorrente havia
levantado tanto no seu recurso para o Tribunal da Relação de Évora, como no seu
recurso para o STJ, designadamente nas suas conclusões ao STJ números 17 e 18 e
números 41 e 42 para o TRE, o que determinou a inconstitucionalidade da decisão
por falta de fundamentação, na interpretação combinada que fez do referido art°
205° da CRP com o art° 374º n°2 do CPP.
Mais ainda por violação do art° 32° da CRP (direito ao recurso) e dos artigos 6°
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do art° 14° do PIDCP, na
interpretação que destes fez com o art° 410° do CPP, que determinou a não
aplicação do preceito constitucional, alijando a renovação da prova requerida
pelo ora recorrente, traduzido em não conhecimento do objecto do recurso. Foi
tal questão suscitada pelo recorrente nas suas conclusões ao STJ.
designadamente números 1, 2 e 3.”.
Relativamente a este recurso foi proferida decisão sumária de não conhecimento
do mesmo, com a seguinte fundamentação:
“1. Dos requisitos de conhecimento do recurso de constitucionalidade
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional, e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea
b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
…
3. Do recurso interposto por A.
O Recorrente pretende que o Tribunal aprecie a constitucionalidade da decisão do
Supremo Tribunal de Justiça de não reconhecer que o acórdão proferido em 1ª
instância não se encontrava suficientemente fundamentado e de não conhecer a
correcção da decisão do Tribunal da Relação que indeferiu o seu pedido de
“renovação da prova pessoal”.
Em primeiro lugar cumpre referir que a competência deste Tribunal para apreciar
este recurso não se pode fundamentar no disposto na alínea a), do artigo 70.º,
da LTC, uma vez que o recorrente não invoca a recusa de aplicação de qualquer
norma pela decisão recorrida.
Conforme resulta, com evidência, o recorrente pede a verificação da
constitucionalidade das decisões tomadas pelo acórdão recorrido no sentido de
considerar que a decisão da 1ª instância se encontrava suficientemente
fundamentada e de não conhecer do recurso na parte em que se questionava a
correcção do indeferimento pelo Tribunal da Relação da “renovação da prova
pessoal”.
Conforme acima se disse o Tribunal Constitucional apenas verifica a
constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não da
constitucionalidade do sentido de decisões judiciais, não sendo acolhido pelo
nosso sistema de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade o
chamado “recurso de amparo”.
Por isso não pode também este Tribunal conhecer do recurso interposto por este
arguido, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do
artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.”
O recorrente reclamou desta decisão, com os seguintes argumentos:
“Uma das razões que, normalmente, fundamenta a decisão liminar de indeferimento
do recurso é a alegação do recorrente não ter suscitado adequadamente a questão
da inconstitucionalidade.
No nosso entendimento tal interpretação é subjectiva e é por isso que se fica
sem saber, afinal, de que forma, ou com que palavras deveria o recorrente ter
feito tal arguição
Uma outra razão é a circunstância apontada do recorrente pedir que se aprecie a
inconstitucionalidade da decisão e não de uma norma, razão pela qual o TC não
pode conhecer do objecto do recurso.
E a terceira razão de indeferimento é aquela que entende que o recorrente quer
que se aprecie o seu caso especifico e não um universo abstracto onde ele
próprio se insere.
Quanto à forma adequada de suscitar a inconstitucionalidade, tem o recorrente a
dizer o seguinte no caso sub judice:
Já no seu recurso para o tribunal da Relação o recorrente se queixara da
sentença (acórdão) não ser fundamentada, o que na sua perspectiva viola o
preceito constitucional, bem como o artº do CPC que obriga à fundamentação de
qualquer decisão, desde que não se trate de despacho de mero expediente.
No seu recurso ao STJ o recorrente volta a bater-se por este argumento
afirmando que o acórdão da Relação é também alheio à fundamentação e mantém o
seu propósito de que este ponto seja objecto do recurso.
Por isso, não vê como não pode ter sido adequado, na medida em que ele levantou
tal questão desde o recurso ao TRE e o manteve até agora.
O recorrente continua a afirmar que as diversas decisões contra si não têm tido
fundamento que lhe permita conhecer por que razão, ou por que provas, a sua
condenação justa, tendo em conta que sobram nos autos as provas que militam a
seu favor. Estas foram alijadas e às mesmas se não faz referência.
É disto que se queixa o recorrente, O QUAL ATÉ ESTE MOMENTO PERMANECE COM
ESTATUTO DE LIBERDADE, subordinado apenas ao TIR e às apresentações periódicas
ao
OPC.
Este facto é importante porque, a ter-se o agente do crime como perigoso,
membro de uma organização criminosa, condenado a 12 anos de prisão,
contraditório que o mesmo tenha respondido o julgamento em liberdade desde a
hora da primeira detenção.
Considerou-se na altura, aquando do início do Inquérito, que não se justificava
a sua prisão preventiva. Assim se continuou a considerar e mesmo quando o
processo foi à distribuição os magistrados titulares dos autos não viram motivos
para alterar ou agravar o seu estatuto.
Ora, este ponto há-de ser considerado no conjunto dos argumentos.
Por isso e depois deste devaneio sobre a condição de liberdade do recorrente,
que é uma condição humana porque estamos a determinar o destino de um homem, que
é primário, que nunca esteve no meio prisional e não se sabe o que este mesmo
meio fará de si após o contacto prolongado com o ambiente do crime, depois disso
dizemos que o recorrente entende ter bem levantado a questão inconstitucional da
decisão não estar fundamentada, motivo pelo qual a decisão sumária não pode
proceder, coarctando a este arguido o direito ao recurso.
O recorrente não disse apenas que levantava uma inconstitucionalidade. Ele
invocou-a e qualificou-a, invocando tal nulidade.
Quanto ainda ao facto da Relação ter alijado a renovação da prova, vai também
bem suscitada tal inconstitucionalidade, porque a decisão da Relação e clara ao
alijar tal prova, conhecendo do objecto do recurso do arguido apenas no que se
refere à medida da pena, não conhecendo se as provas bastam para os factos e se
estes são provados por aquelas.
Ora, tal é a ausência completa de justiça e de recurso, de direito ao mesmo e o
recorrente invocou-o adequadamente, disse-o por que razão.
E claro está que a decisão impugnada é inconstitucional, embora não seja isso
que o recorrente pretende ver apreciado. A decisão resulta ilegal porque, da
leitura que fez do normativo, ilegalmente, arrepiou os preceitos
constitucionais a interpretação errada, inconstitucional, que determina ser a
decisão também inconstitucional.
Se a interpretação do normativo fosse perfeita, não haveria decisão errada, ou
ferida de inconstitucionalidade.
E quando o julgador alija a renovação da prova está a não dar aplicação ao
preceito penal que permite ao arguido ver a renovação da mesma. É por isso que
se gravam as audiências.
E se tais gravações não forem eficazes opera a nulidade do julgamento.
Daí a importância da aplicação do normativo penal processual que obriga a
renovar a prova
O julgador não pode decidir se deve ou não renovar a prova. Deve fazê-lo se o
recorrente o requer.
No caso em apreço o recorrente solicitou tal renovação, indicando as passagens
das transcrições respectivas. Aí residia o seu direito ao recurso, plasmado na
Constituição. E consagrado no normativo processual penal que a tal obriga.
Por isso, o julgador deixou de aplicar a lei no que se refere a tais normativos.
Não colhe assim a decisão sumária do Sr. Relator que alega que o recorrente não
indicou a lei violada.
Como se vê o julgador anterior violou todos os normativos que garantem a todos o
recurso.
E ao violar é evidente que se recusou a aplicar a lei, no que se refere ao
direito ao recurso e à obrigatoriedade das decisões fundamentadas.
Outra coisa é a redacção da lei do TC, designadamente o artº 70º, o qual, por si
só, não faz caber na sua previsão, todas as possibilidades. Como dizia Manuel de
Andrade, sempre os factos haverão de ser mais que as normas.
E o referido artº 70º da LTC, permitam-nos Senhores Conselheiros, também não é
perfeito e deixa de lado os casos que mais acontecem, e que são aqueles em que o
julgador não aplica a lei, simplesmente não cumpre a lei.
Conforme sabemos, dispõe o artº 70º o seguinte:
Artigo 70º (Decisões de que pode recorrer-se)
1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos
tribunais:
a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em
inconstitucionalidade;
b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo;
c) Que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com
fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado;
d) Que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional, com
fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de
lei geral da República;
e) Que recusem a aplicação de norma emanada de um órgão de soberania, com
fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de uma região autónoma;
f) Que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo
com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e);
g) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo
próprio Tribunal Constitucional;
h) Que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pela Comissão
Constitucional, nos precisos termos em que seja requerido a sua apreciação ao
Tribunal Constitucional;
i) Que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com
fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, ou a apliquem
em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal
Constitucional.
Ora, da leitura acima não há uma alínea que diga que cabe recurso ao TC sempre
que o julgador ou a decisão se recuse a aplicar a lei ou normativo cujo direito
esteja constitucionalmente previsto e por isso garantido.
Não há razão nenhuma para que tal se não ache escrito na LTC.
E se o não está deve, por analogia, receber-se e conhecer-se do recurso nos
casos em que o recorrente venha dizer que o seu direito ao recurso não foi
respeitado e que por isso a Constituição foi violada.
Que a sentença que o condenou não justifica, fundamentalmente, a razão da sua
condenação e alija as provas que o inocentam, razão pela qual está violado o
normativo constitucional das decisões fundamentadas.
Só assim se pode garantir a todos um julgamento justo, garantindo-se a
Constituição, ao aplicá-la, a razão pela qual o recorrente requer a V. EXª a
revogação da decisão sumária, que seja substituída por outra que mande o
recorrente apresentar as suas alegações, só assim se fazendo Justiça e
permitindo-se ainda, a um indivíduo que está em liberdade, a possibilidade de se
manter livre por ser inocente face às provas que, a serem renovadas, ilibarão o
mesmo do erro judiciário nestes autos cometido.”
O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação
apresentada.
*
Fundamentação
O recorrente na reclamação apenas confirma que não pretende que o Tribunal
aprecie a constitucionalidade de qualquer norma ou qualquer critério normativo
aplicado pelo acórdão recorrido, mas apenas o sentido das suas próprias
decisões.
Ora, conforme se acentuou na decisão reclamada, não é da competência do Tribunal
Constitucional controlar a boa aplicação da lei pelos tribunais judiciais, mas
apenas, em sede de fiscalização sucessiva concreta, verificar a
constitucionalidade das normas e interpretações normativas aplicadas pelas
decisões recorridas.
Assim, deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária
proferida nestes autos em 18-5-2009.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 1 de Julho de 2009
João Cura Mariano
Mário Torres
Rui Manuel Moura Ramos