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Processo n.º 641/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. propôs, no Tribunal da Comarca de Leiria, acção declarativa contra B. e o
Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto conduzia um motociclo na via
pública, fora vítima de um acidente de viação exclusivamente causado pelo
primeiro réu, que na altura circulava, sem beneficiar de qualquer seguro válido
e eficaz, com um motocultivador com reboque; pediu, em consequência, que os réus
fossem condenados a pagar solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos
juros legais que se vencessem após a citação, a título de indemnização pelos
danos por si sofridos, entre os quais se incluía a amputação traumática pelo
terço superior da perna direita e a incapacidade permanente global de 70%.
Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente
procedente. Para tanto, a sentença recusou aplicação, por violação do princípio
da igualdade, à norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de
Dezembro, interpretada no sentido de que exclui a responsabilidade civil do
Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura
agrícola, não sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado
da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Desta sentença interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (fls. 571).
Pelo acórdão n.º 202/2008, o Tribunal Constitucional concedeu provimento ao
recurso, não julgando inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na referida interpretação,
determinando-se a reformulação da decisão recorrida de acordo com o juízo de não
inconstitucionalidade.
2. Foi, então, proferida nova sentença (fls. 650 e segs. – em
17/6/2008), na qual se manteve o julgamento de procedência parcial da acção e a
consequente condenação dos réus, incluindo o Fundo de Garantia Automóvel.
Desta vez, o tribunal a quo recusou aplicação à norma do n.º 2 do
artigo 1.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do
princípio da igualdade, com a seguinte fundamentação:
“Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a
obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o
segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).
Ora, no caso vertente o Réu B. não tinha a responsabilidade por acidentes de
viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer C de
Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde opinião,
intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do art 21º do
DL 522/85, de 3 1-12 que se transcreve:
1- Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer... as indemnizações
decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório
e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à
Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou
cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes
nacionais.
2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos
referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:
a) morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não
beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da
seguradora;b) lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não
beneficie de seguro válido ou eficaz.
3- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de €
299,28 a deduzir no montante a cargo do Fundo.
Com efeito, exigia-se, na altura do acidente, cumulativamente, para que o FGA
fosse responsabilizado que o veículo causador do acidente fosse:
1º: sujeito ao seguro obrigatório
2º e que fosse matriculado...
O motocultivador; à altura, como máquina agrícola, não estava sujeito a seguro
obrigatório nem a matrícula uma vez que tal situação não tinha, ainda, sido
regulamentada, conforme o impunha o artigo 117º nº 3 do CE, vigente à altura.
Com efeito, preceituava-se no art 1º do DL 522/85 de 31 de Dezembro: “Toda a
pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais
e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a
terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques,
deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do
presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma
responsabilidade.” (nº 1); “A obrigação referida no número anterior não se
aplica aos responsáveis pela circulação de veículos de caminho de ferro, bem
como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula” (nº 2).
Ora, os motocultivadores circulam, frequentemente, nas vias públicas, com os
riscos inerentes à própria “perigosidade” de veículo desta natureza.
A dispensa da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil (imposta à
generalidade dos veículos) implica uma desprotecção dos utentes da via pública
que sejam intervenientes em acidente de viação provocado por aqueles, uma vez
que se isentaria o FGA de responsabilidade pela indemnização devida aos lesados,
obrigando estes a accionar exclusivamente o responsável directo pelo acidente,
com a possibilidade da “insolvabilidade” do mesmo, o que conduziria à não
reparação dos danos sofridos.
Filipe Albuquerque Matos, in “O contrato de seguro obrigatório de
Responsabilidade Automóvel” (BDF 78, 2002, pág 336, nota 6), doutamente citado
pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional nas
alegações que apresentou, refere o seguinte (perdoe-se-nos o plágio): “Parece
ter sido propósito do legislador no art. 1º, nº 1, impor a obrigatoriedade
sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua
necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de
provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante
às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se
destinam a habitualmente circular na via pública (para, por exemplo, efectuarem
o transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as
pessoas eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no
círculo de sujeitos sobre que recai a obrigação de realizar o seguro. Na
verdade, em relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões
justificativas da obrigatoriedade do seguro subjacentes ao art 1º, nº 1 do
Decreto-Lei nº 522/85.”.
Assim, a unidade do ordenamento jurídico português e razões de justiça material
implicavam que tivesse sido estendida a estes veículos agrícolas que circulam na
via pública a obrigação de seguro.
Esta situação está salvaguardada, neste momento, pelo disposto no art 48º, nº 1,
alínea c) do Decreto Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que responsabiliza o FGA
pelas obrigações decorrentes de acidentes rodoviários originados por veículos
cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do
veículo em si mesmo.
Portanto, e concluindo estas considerações, entendemos que a norma do art 1º nº
2 do Dec Lei nº 522/85 está ferida de inconstitucionalidade, por violação do
princípio da igualdade consagrado na Constituição da República Portuguesa, pelo
que, por arrastamento (ou efeito dominó) está também o FGA obrigado a indemnizar
os danos causados por veículos agrícolas que circulem na via pública.
O princípio constitucional da igualdade, consagrado na CRP no seu artigo 13º nº
1, é um princípio estruturante do sistema constitucional global e inerente ao
conceito de Estado de Direito Democrático e Social, pelo que, com base na sua
violação pela redacção do art supra citado, que exclui da obrigatoriedade do
seguro os veículos agrícolas, se nega a aplicação do regime previsto no preceito
citado.
Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades
fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e
protecção reais de todos os cidadãos.
Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente
iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse “a desventura” de sofrer
acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a
matrícula.
Alias, podemos aqui considerar até, que o Estado Português ao não ter
regulamentado a situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o art
117º nº 3 do CE vigente à altura, cometeu omissão grave do seu dever de legislar
neste campo, como lhe era imposto pela Directiva 84/9/CEE do Conselho de
30-12-1983 no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode
incorrer em responsabilidade.”
3. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
na medida em que “recusou aplicação aos ditames do artigo 1.º n.º 2 do
Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do artigo 13.º n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa”.
Admitido o recurso, sustentou o representante do Ministério Público
junto do Tribunal Constitucional o seguinte:
“1.2. Neste processo, e na sequência de anterior recurso interposto pelo
Ministério Público, foi proferido o Acórdão nº 202/2008 que decidiu não julgar
inconstitucional a norma do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de
Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de
Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não
sujeita a matricula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação
de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Ora, quando no âmbito desse recurso foram apresentadas as alegações, a abordagem
da questão da exclusão de responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel
foi feita na sua globalilidade, não se tendo cingido exclusivamente à análise do
artigo 21º, nº 1, sendo, inclusive, e por várias vezes referido o artigo 1º, nº
2.
Deste modo, o que então se disse é, com as inevitáveis adaptações, perfeitamente
transponível para os presentes autos, pelo que nos limitaremos a transcrever
essas alegações:
[Omitido por já reproduzido no acórdão nº 202/2008].
Acresce que o próprio Tribunal Constitucional (Acórdão nº 202/2008) parece
apontar no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso, quando,
após concluir pela não inconstitucionalidade do n 1 do artigo 21°, afirma
expressamente o seguinte:
“Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador
do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel é constitucionalmente justificável “.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1º
A norma do nº 1, do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 525/85, de 31 de Dezembro, na
medida em que não sujeita a matricula as máquinas agrícolas que podem legal e
livremente circular nas vias públicas, o que implica a sua não sujeição a seguro
obrigatório, – levando à exclusão da responsabilidade civil do Fundo de Garantia
Automóvel pelos danos causados a terceiros – é inconstitucional por violação do
princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição).
2º
Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Os recorridos não contra-alegaram.
II. Fundamentação
4. O acidente consistiu numa colisão entre um motociclo conduzido pelo autor, e
um motocultivador sem matrícula, tripulado pelo réu B.. Em resultado do embate,
o autor sofreu lesões corporais, bem como danos materiais.
A sentença recorrida deu como assente que o acidente ficou a dever-se a culpa
exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as regras
estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo
31.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, então vigente.
Tendo considerado inconstitucional a norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei
n.º 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a obrigação de
cobrir com um contrato de seguro a responsabilidade civil por danos causados a
terceiros por veículo terrestre a motor não se aplica às máquinas agrícolas não
sujeitas a matrícula mas admitidas a circular na via pública, a sentença
recorrida concluiu que, por arrastamento, o Fundo de Garantia Automóvel está
também obrigado a indemnizar pelos danos causados por tais máquinas quando
circulem na via pública, ao abrigo do n.º 2 do art.º 21.º do citado diploma
legal ( Salienta-se que no presente recurso não cabe apreciar o modo como foi
dada execução ao anterior julgamento de constitucionalidade, mas apenas decidir
a nova questão de constitucionalidade suscitada).
5. O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, entretanto substituído pelo
Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, disciplinava o chamado seguro
obrigatório de responsabilidade civil automóvel, num sistema de protecção dos
lesados por
acidentes de viação assente em dois pilares principais: 1º) a obrigação de
efectuar seguro de responsabilidade para que o veículo pudesse circular na via
pública; 2º) e a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel quando essa
obrigação não fosse cumprida (o seguro inexistisse, fosse inválido ou ineficaz)
ou o responsável fosse desconhecido.
Quanto ao primeiro aspecto, dispunha o artigo 1.º deste diploma, o seguinte:
“Artigo 1.º
(Da obrigação de segurar)
1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos
patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais
causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou
semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos
termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma
responsabilidade.
2 - A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela
circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não
sujeitas a matrícula.”
E, quanto ao segundo, o artigo 21.º do mesmo diploma legal, inserido nas
disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e possuindo como
epígrafe “Âmbito do Fundo”, dispunha no seu n.º 1, o seguinte:
“1 – Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente
capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos
sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países
terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete
nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar
entre Gabinetes Nacionais”.
O veículo cujo condutor e proprietário a sentença considerou
responsável pelo acidente era um motocultivador, espécie de veículo agrícola que
o n.º 3 do artigo 108.º do Código da Estrada (ao tempo do acidente, na versão
resultante do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) definia como 'o veículo com
motor de propulsão, de um só eixo, destinado à execução de trabalhos agrícolas
ligeiros, que pode ser dirigido por um condutor a pé ou em semi-reboque ou
retrotrem atrelado ao referido veículo”.
À obrigatoriedade de matrícula deste tipo de veículo se referia o artigo 117.º,
n.º 3, do Código da Estrada que estatuía o seguinte:
“3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e
os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento” (itálico
acrescentado).”
Este regulamento não chegou a ser publicado, pelo que nada foi determinado
quanto à necessidade de as máquinas agrícolas (lato sensu), incluindo os
motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidos à circulação
na via pública.
Deste modo, face à excepção constante do citado artigo 1.º, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 522/85, os motocultivadores poderiam circular na via pública,
ainda que o respectivo proprietário não tivesse coberto por um contrato de
seguro a responsabilidade civil por danos que pudessem resultar para terceiros
de acidentes em que o veículo estivesse envolvido. Com a consequência de, por
efeito do já mencionado artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma, as indemnizações
por acidentes causados por esse tipo de veículos não se encontrarem garantidas
pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas está obrigado a
satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos
sujeitos ao seguro obrigatório».
6. Convirá começar por lembrar o enquadramento histórico da solução legislativa
em presença, repetindo o que se disse no acórdão n.º 202/2008.
O Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório
de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20º que «[o]s
direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro
obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser
estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do
Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja
desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for
declarada a falência do segurador».
O Fundo de Garantia Automóvel – reconhecendo-se ter constituído um contributo
importante no sentido da socialização do risco (cfr. Filipe Albuquerque Matos,
ob. cit., pág. 361) – foi instituído pelo Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25
de Setembro, que, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, lhe atribuiu a competência
para «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais consequentes de
acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos
previstos no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 408/79».
Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo Fundo de Garantia:
para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção
(indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem
intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa
a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo
2.º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao
condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos
autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer
veículo que intervenha no acidente (artigo 3º); e determinava que só
aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes ocorridos em
Portugal (artigo 4.º).
À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como
estava aos acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não
será alheio o próprio regime de financiamento, sabendo-se que constituía receita
do Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de
uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros
directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e
anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus
segurados do ramo “Automóvel” um adicional, calculado sobre os prémios simples
(líquidos de adicionais) […]» (artigo 6.º, n.º s 1 e 4). E só em situações
excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação
correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do
Fundo” (n.º 5 do mesmo artigo).
A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a
actividade seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7.º, n.º
1, do Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo
a solver eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de
tesouraria mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao
limite de 0,25% da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados
no ano anterior.
O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado
pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro – o diploma que agora está
particularmente em foco –, que, através do seu artigo 40º, revogou os
mencionados Decreto-Lei n.º 408/79 e Decreto Regulamentar n.º 58/79, de 25 de
Setembro.
O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento
do âmbito de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o
ressarcimento de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável,
sendo conhecido, não seja portador de seguro válido e eficaz (cfr. o preâmbulo
do diploma e o seu artigo 21.º, n.º 2, alínea b)).
Já depois do acidente em causa, mediante o Decreto-Lei n.º 291/2007,
de 21 de Agosto, o legislador aproveitou o ensejo proporcionado pela necessidade
de transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE,
88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao
seguro de responsabilidade resultante da circulação de veículos automóveis (a
chamada “5ª Directiva sobre o Seguro Automóvel”) para proceder à actualização do
regime de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado neste seguro.
Merece referência o facto de o novo regime manter a exclusão da
obrigatoriedade do seguro quanto às máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula
(artigo 4.º, n.º 2). Mas sobretudo importa destacar que o diploma instituiu, no
seu artigo 48.º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia
Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários
ocorridos em Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela
circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo
[…]». Essa é uma solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é
acompanhada de outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como
seja a extensão da cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por
responsável desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido
abandonado no local do acidente (artigo 49.º, alínea c)), e que se integra num
mais amplo conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição
da Directiva n.º 2005/14/CE (cfr. preâmbulo do diploma).
7. No acórdão n.º 202/2008, o Tribunal decidiu não julgar
inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31
de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de
Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola não
sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação
de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. Na
delimitação do objecto do recurso o Tribunal sublinhou que não estava em causa a
norma que dispensa o proprietário de máquinas deste tipo da celebração de
contrato de seguro para poder circular na via pública.
Agora, a norma que constitui objecto do recurso de constitucionalidade passou a
ser essa mesmo que o Tribunal expressamente salientara estar excluída do âmbito
do recurso anterior: a norma do n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 522/85, na
medida em que excepciona as máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula da
obrigação de segurar.
Mais propriamente, considerando a natureza instrumental do recurso de
constitucionalidade e que existem diversos tipos de máquinas agrícolas,
susceptíveis de diferir entre si na aptidão para circular na via pública e na
frequência com que aí são habitualmente utilizadas, a questão que agora se
coloca é a de saber se é constitucionalmente conforme a própria dispensa da
obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel em
relação a motocultivadores com atrelado. Note-se que o isolamento deste segmento
normativo ideal para efeito da delimitação do recurso se justifica também
sistematicamente pelo facto de no Código da Estrada, dentro da classe dos
veículos agrícolas, os motocultivadores serem objecto de normação específica.
Sublinhe-se que é a dispensa objectiva da obrigação de segurar a
responsabilidade civil emergente de acidentes de circulação em que o veículo
esteja envolvido e não o facto de a máquina não estar sujeita a matrícula que
fundamentalmente interessa à questão de constitucionalidade. A matrícula (ou a
sua não exigência) é apenas o pressuposto ou o elemento que a lei utiliza para
delimitar no conjunto das máquinas agrícolas ou industriais aquelas cujo
proprietário está obrigado ao seguro (matrícula -> obrigação de seguro ->
responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel). Mas o nó do problema de
constitucionalidade agora colocado, a deficiência ou a desigualdade de protecção
dos lesados em acidentes de viação que envolvam máquinas nesta situação, é a
falta do pilar de socialização do risco que o seguro obrigatório constitui.
8. Importa, portanto, saber se a exclusão da obrigação de cobrir por
contrato de seguro a responsabilidade que possa advir da circulação na via
pública de motocultivadores com atrelado viola o princípio da igualdade, o que
implica que se averigue se essa exclusão da obrigação de segurar poderá ser
entendida como medida razoável, racional ou objectivamente fundada.
Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
750/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«O princípio da igualdade reconduz-se […] a uma proibição de arbítrio
sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação
razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente
relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente
desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação
ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como
princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de
arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são
afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa
adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas
sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da
solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente
imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, II
Série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e I
Série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1993, pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e
garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de
Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira
Pinto, «Princípio da Igualdade — Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de
Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987;
Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d’equaglianza, Milão, 1965).»
Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico‑material
do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação
legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou
qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar
como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete
verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se
estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a
solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso);
compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto
insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão
Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de
1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95,
que vimos acompanhando).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma
medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade
dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes
precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no
mesmo sítio).
Vejamos, então, se a norma em causa passa este teste.
9. O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da
Constituição, tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente
objectivado e claramente enraizado na consciência jurídica geral segundo o qual
todo e qualquer autor de acto ilícito gerador de danos para terceiros se
constitui na obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria Lúcia Amaral,
Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E o
lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo ou
contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente imputável.
Porém, em muitos casos, este direito à reparação dos danos depara-se com uma
inultrapassável dificuldade de concretização prática: a inexistência de
património do obrigado à reparação susceptível de execução. É, por isso,
frequente que o legislador institua o dever de cobrir com um seguro de
responsabilidade civil a obrigação de indemnizar que possa estar ligada ao
exercício de determinadas actividades potencialmente geradoras de danos para
terceiros de modo a que, verificado o evento que obriga à reparação, os lesados
possam ter perante si uma entidade cuja solvabilidade esteja, em princípio,
garantida (a seguradora) e não (ou não apenas) o lesante cujos acasos de fortuna
podem esvaziar de conteúdo prático o direito à indemnização.
O seguro automóvel obrigatório é precisamente um destes institutos. As regras
gerais da responsabilidade civil tornaram-se inidóneas para dar resposta,
prática, equitativa e economicamente equilibrada, ao problema da reparação dos
danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a circulação rodoviária uma das
actividades em cujo desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes
susceptíveis de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao
estabelecer a obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da
circulação de veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos
responsáveis, o legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e
futuros titulares do direito à reparação. Protecção que se não resume à mera
instituição legal da obrigação de segurar, mas que é reforçada através dos
instrumentos destinados a tornar efectivo o cumprimento dessa obrigação,
designadamente a acção de fiscalização a cargo das autoridades de fiscalização
do trânsito e as correspondentes sanções e medidas cautelares quando o dever é
infringido. E que é rematada com a colectivização ou socialização do risco que
se obtém mediante a intervenção substitutiva do Fundo de Garantia Automóvel,
quando falhe ou não possa funcionar a protecção através do contrato de seguro
(Reduzimos a atenção ao essencial. A protecção dos lesados envolve outros
aspectos, tais como a “acção directa” contra a seguradora ou o “fundo de
garantia”, a inoponibilidade de excepções ou cláusulas limitadoras de
responsabilidadade e a instituição de meios céleres de composição ou de
efectivação do direito à indemnização).
Ora, como se refere nas alegações do Ministério Público e na
sentença recorrida, embora primacialmente destinadas a trabalhos agrícolas, as
máquinas do tipo que originou o acidente a que a acção se reporta circulam
frequentemente e sem restrições na via pública, a caminho dos locais onde essa
actividade se desenvolve ou, até, como meio de transporte de cargas ou produtos
agrícolas, constituindo-se em gravosos obstáculos à segurança e fluidez do
tráfego, podendo gerar acidentes com lesões graves e danos avultados, como o
caso demonstra. Não será assim quando o motocultivador é conduzido a pé pelo seu
manobrador, situação que a lei equipara ao trânsito de peões (artigo 104.º,
alínea e) do actual Código da Estrada). Mas já o é quando o veículo é ligado a
semi‑reboque ou retrotrem, composição que a lei faz equivaler, para efeitos de
circulação, a tractor agrícola (cf. artigo 108.º, n.º 4, do mesmo Código). Assim
utilizada, a máquina torna-se, pelas suas características intrínsecas de veículo
motorizado e pelas contingências de quem a conduz, potencialmente geradora de
danos para terceiros que tem um direito igual à utilização da via pública.
Nestas condições a dispensa da obrigação de celebrar contrato de seguro para que
tais máquinas possam circular na via pública deixa os lesados por acidentes
decorrentes da utilização desses veículos sem a protecção jurídica que o
legislador entendeu conceder aos restantes lesados por acidentes de viação
contra as insuficiências de fortuna do lesante.
E deixa-os sem essa protecção perante situações que em tudo correspondem, seja
pela potencialidade de risco de o veículo ser gerador de acidentes, seja de
possibilidade de insuficiência económica do responsável para fazer face à
obrigação de indemnizar, àquelas que são cobertas pelo regime do seguro
obrigatório ao abrigo da regra geral do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
522/85. O factor escolhido para afastar a sujeição ao seguro obrigatório – não
estar o veículo sujeito a matrícula – é estranho à aptidão do veículo para
causar danos inerentes à circulação da via pública ou ao risco de o direito à
indemnização não ter efectivação prática por insuficiência do património do
responsável, pelo que tem de haver-se a excepção por arbitrária e a norma em
causa como violadora do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo
13.º da Constituição.
E, embora a matrícula do veículo desempenhe, para vários fins, um papel
fundamental na configuração do regime jurídico do seguro obrigatório (no direito
nacional e da União Europeia), não pode sequer invocar-se uma dificuldade
prática insuperável ou uma ligação indissolúvel entre as duas realidades (o
seguro e a matrícula) porque sempre é possível eleger outro sinal identificador
que viabilize a celebração do contrato e a individualização da responsabilidade.
9. Não se ignora que esta dispensa da obrigação de celebrar contrato
de seguro de responsabilidade civil surgiu no Decreto-Lei n.º 165/75, de 28 de
Março em cujo preâmbulo se dizia que “…a sujeição ao seguro das máquinas e
tractores para serviço na agricultura iria onerar gravemente esta actividade
económica”. A ressalva passou para o Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro e
a razão de ser dela veio a ser reafirmada no texto do preâmbulo do Decreto-Lei
n.º 110/80 (que alterou o Decreto-Lei n.º 408/79) onde se alude à agricultura,
como um sector produtivo de grande relevância, cujo desenvolvimento deve
considerar-se prioritário, e, por isso, se passou a ressalvar também os
reboques, semi-reboques e atrelados “quando destinados exclusivamente a fins
agrícolas”.
Estas razões poderiam legitimar uma solução como a que actualmente consta do
Decreto-Lei n.º 291/2007, em que o facto de a admissão do veículo à circulação
na via pública não estar dependente da celebração de contrato de seguro
obrigatório não exclui a protecção que resulta da possibilidade concedida ao
lesado de chamar o Fundo de Garantia Automóvel a satisfazer a indemnização
(artigo 48.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007). Mas, o factor de
comparação é o âmbito de protecção concedido aos lesados por acidentes gerados
na via pública pela utilização desse tipo de veículos por confronto com outras
vítimas de acidentes de viação e, nesta perspectiva, a medida legislativa é
desproprocionada no âmbito global do regime do DL 522/85, onde tem como
consequência que o lesado também perde, por essa mesma razão, a acção contra o
Fundo.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no
n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 1.º do
Decreto-Lei 522/85, quando interpretada no sentido de a circulação na via
pública de motocultivadores com atrelado não estar dependente da celebração do
contrato de seguro obrigatório previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
c) Sem custas.
Lx. 27/5/2009
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração
em anexo)
Gil Galvão (vencido conforme declaração junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido pelas considerações a seguir sucintamente expostas.
A norma do artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, ao
isentar de seguro obrigatório as «máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula»
contém uma implícita remissão para o artigo 117º, n.º 3, do Código da Estrada,
onde se estabelece o regime de obrigatoriedade de matrícula nos seguintes
termos: «[o]s casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os
motocultivadores e os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em
regulamento».
O preceito não contém, em si, um critério normativo arbitrário, e tem antes como
pressuposto que a dispensa da obrigação de segurar apenas opera em relação a
máquinas agrícolas que não circulem na via pública ou não representem um
potencial risco para a circulação, e que, por isso, se encontrem isentas de
matrícula.
Neste contexto, a possível violação do princípio da igualdade, por diferenciação
de tratamento sem justificação razoável, apenas poderia incidir sobre os
dispositivos regulamentares que, em execução do disposto no artigo 117º, n.º 3,
do Código da Estrada, viessem afastar a exigência de matrícula (e, por via
disso, a obrigação de segurar) em relação a máquinas que possuíssem normal
aptidão para produzir danos em terceiros em resultado da sua circulação na via
pública.
Na própria lógica do acórdão, a violação da proibição do arbítrio decorre de o
legislador ter deixado sem protecção jurídica os lesados por acidentes de viação
causados por máquinas não sujeitas a matrícula, quando estas, por circularem na
via pública, possam potenciar um risco de lesão em igual medida à de qualquer
outro veículo matriculado. A questão é que, no preceito em causa, o legislador
se limitou a utilizar uma técnica legislativa de remissão intra-sistemática (que
permite caracterizar o artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85 como uma
norma indirecta), de tal modo o défice de constitucionalidade que possa existir
não é directamente imputável à própria norma remissiva, mas tão só, se for caso
disso, à norma ad quam, isto é, à estatuição para que tenha sido reenviada a
solução normativa do caso.
O factor escolhido pelo artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 522/85 – não
sujeição a matrícula - não comporta, em si, uma qualquer diferenciação entre
situações que devam merecer um tratamento igualitário. Essa eventualidade apenas
ocorreria caso a densificação do regime de obrigatoriedade de matrícula (a
efectuar por norma contida noutro diploma legal) viesse a consagrar soluções
jurídicas divergentes para veículos que pudessem potenciar, em iguais
circunstâncias, o risco de acidente e de produção de danos indemnizáveis.
E sublinhe-se que a invocação da remissão feita na referida norma para o direito
estradal, não implica uma qualquer alteração do objecto do recurso. A questão de
constitucionalidade não deixa de ser reportada à dispensa de obrigação de
segurar que resulta do estabelecido no artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º
522/85. O ponto é que, como se esclareceu, esta norma não contém um programa
legislativo completo, e antes pretende concretizar o regime jurídico de não
sujeição a seguro por remissão para um outro diploma legislativo que há-de
definir as situações em que é obrigatória a matrícula para que os veículos a
motor e os seus reboques sejam admitidos em circulação.
Por outro lado, nada permite concluir, no caso concreto, pela violação do
princípio da responsabilidade patrimonial, que se extrai do princípio de Estado
de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição. Na verdade, a situação de
indefinição relativamente à obrigação de segurar (e consequente intervenção do
Fundo de Garantia Automóvel) no tocante a máquinas agrícolas que possam circular
na via pública, como é o caso dos motocultivadores, deve-se à inércia
regulamentar do Estado, que não deu ainda execução ao comando contido no artigo
117º, n.º 3, do Código da Estrada. Por conseguinte, o dever indemnizatório é
imputável, em última instância, à ilegalidade decorrente da omissão
regulamentar.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à decisão, no essencial, por duas ordens de razões: em
primeiro lugar, por considerar que, não postulando a Constituição,
necessariamente, a existência de um seguro obrigatório para todos os veículos
que circulem na via pública, não me parecer possível considerar inconstitucional
uma norma apenas por não fazer depender a «circulação na via pública de
motocultivadores com atrelado» da celebração do contrato de seguro obrigatório;
por outro, por considerar que, havendo boas razões para excluir esses
motocultivadores do referido seguro obrigatório - como, aliás, sucede com o
regime actualmente em vigor -, não se me afigurar arbitrária, e consequentemente
violadora do princípio da igualdade, a não sujeição de tais motocultivadores ao
mencionado seguro.
Gil Galvão