Imprimir acórdão
Processo n.º 550/09
3ª Secção
Relator: Conselheira Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Num recurso interposto por A. para o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de
25 de Março de 2009 (a fls. 22 e seguintes), foi decidido manter a qualificação
jurídica fixada no tribunal então recorrido – a autoria de um crime de tráfico
comum de estupefacientes, previsto e punível no artigo 21º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro -, e condenar o arguido e recorrente na
pena de 4 anos e 6 meses de prisão. É a seguinte a fundamentação do acórdão, na
parte que releva:
“[…]
8. Questões a decidir:
1ª- Nulidade por falta de pronúncia sobre a invocação expressa do recorrente
sobre a inconstitucionalidade da interpretação que a 1ª instância fez do
disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
2º- Tráfico menor ou comum.
3º- Medida da pena e sua eventual suspensão.
8.1. O recorrente, no recurso que moveu para a Relação, invocou, além do mais, o
seguinte:
«6- Por outro lado, o tribunal ' a quo ' não examinou criticamente as provas
produzidas, não especificou os fundamentos, as razões de facto e de direito
porque não acreditou na versão dos ora recorrentes.
7- O dever de fundamentação, dever dos julgadores e direito dos cidadãos, como
foro constitucional e pedra de toque do julgamento justo e equitativo, não se
basta com a indicação das provas, há que explicitar fundamentadamente os
critérios lógicos, os passos do pensamento dos julgadores, para que o arguido os
compreenda e para que o tribunal superior os possa julgar;
8- É essa a exigência a que se reporta o art.º 205°, n.º 1 da C.R.P., e o art.º
374.º, n.º 2 do C.P P., bem como o art.º 97.°, n.º 4 do C.P.P.;
9- Por isso o Tribunal Constitucional se pronunciou da forma como o fez no
acórdão já citado, pois é necessário que o tribunal indique porque motivo se
convenceu num sentido e não noutro, quais as regras da experiência comum e da
lógica, para ter formado a sua convicção num sentido e não noutro, o que não é
possível com base na douta Sentença recorrida;
10- Por outro lado, a norma do art.º 374.°, n.º 2 do C.P.P. quando interpretada
no sentido que o tribunal ' a quo ' a interpretou, ou seja na interpretação
segundo a qual à fundamentação das decisões judiciais em matéria de facto se
basta com a simples indicação dos meios de prova em primeira instância, não
exigindo explicitação desenvolvida, do processo de formação da convicção do
tribunal, é materialmente inconstitucional, por violação da norma do art.º
205.°, n.º 1 e 32.°, n.º 1 da C.R.P., desconformidade constitucional que se
argui;
11- O Tribunal ' a quo ' interpretou as normas dos art.ºs. 7, n.º 4, 374°, n.º 2
do C.P.P. no sentido de não ter que analisar crítica e fundamentadamente a prova
produzida, explicitando todos os passos do raciocínio lógico-dedutivo em que
assentou a sua convicção, e deveria tê-las interpretado nesse sentido preciso,
de harmonia com o espírito, a ideia de direito ínsita no art.º 205°, n.º 1 e
art.º 320.º, n.º 1 da C.R.P.»
Diz agora, no recurso para o STJ, que a Relação ignorou esta invocação de
inconstitucionalidade e que, portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que
deveria conhecer.
Todavia, não lhe assiste razão, pois a Relação emitiu pronúncia sobre o tema:
«A impugnação que o recorrente dirige ao acórdão recorrido continua pela
invocação de nulidade da sentença, por falta de exame crítico da prova com
violação do disposto no art.º 374.º n.º 2 CPP.
Refere este preceito legal, a propósito dos requisitos da sentença, que 'Ao
relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados
e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda
que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com
indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do
tribunal.'
Conforme é jurisprudência corrente, da qual destacamos o acórdão do Tribunal da
Relação de Lisboa de 21.04.2004 proferido no P.º 4775/2003, in www.d_gsi.pt, 'A
motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo mais ou menos exigente
que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da
imediação no que tange à actividade de produção da prova, transformando-a em
documentação da oralidade da audiência, nem se propõe reflectir nela
exaustivamente todos os factores probatórios, argumentos, intuições, etc., que
fundamentam a convicção ou resultado probatório. Sem embargo, no nosso sistema
processual as decisões de facto não assentam puramente no íntimo convencimento
do julgador, num mero intuicionismo, antes se exigindo um convencimento
racional, devendo, pois, o juiz pesar com justo critério lógico o valor das
provas produzidas, o que está em conexão com o também neste aspecto chamado
«princípio da publicidade», definido por Castro Mendes «Do Conceito de Prova»,
pág. 302., como sendo «aquele segundo o qual o processo - e portanto a
actividade probatória e demonstrativa - deve ser conduzido de modo a permitir
que qualquer pessoa siga o juízo e presumivelmente se convença como o julgador
(...)», o que, no entanto, não exclui a intuição ou conhecimento por outros
sentidos, em si insusceptíveis de serem demonstrados exteriormente.
Ademais, diga-se, na motivação a que se vem aludindo, tanto no aspecto da
indicação das provas como da sua crítica, avultando neste último aspecto a
explicitação da credibilidade dos meios probatórios, trata-se de publicitar por
forma suficiente o processo probatório, não podendo esquecer-se, como vem notado
por Figueiredo Dias «Direito Processual Penal», pág. 205., que para a convicção
do juiz «desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva
mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g., a credibilidade que se
concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - no dizer
impressivo e incontornável do Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de
14-5-2003 (Proc. 3108/02 – 3ª Secção), in www.stpt..'
Revertendo ao caso.
Como resulta claro da transcrição supra, a decisão recorrida, no segmento
relativo à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, aporta a
enumeração dos meios de prova considerados, designadamente as declarações
prestadas pelos arguidos que se prestaram a efectuá-las em audiência, os
depoimentos prestados pelas testemunhas de acusação, agentes da PSP que
efectuaram vigilâncias e outras diligências na investigação efectuada nos autos,
mormente execução de mandados de busca domiciliária que se traduziram na
apreensão de estupefacientes, quantias monetárias e outros bens. E por
referência aos depoimentos destas testemunhas, o colectivo indica as vigilâncias
e outras diligências em que cada uma das testemunhas participou fazendo uma
remissão do conteúdo desses depoimentos para o modo como os factos foram dados
como provados, afirmando pela coincidência entre ambos.
Já relativamente aos demais meios de prova considerados pelo colectivo a menção
ali feita, apesar de representar uma enumeração e catalogação desses meios, a
efectiva não indicação de qual a concreta relevância de cada um deles para a
decisão fáctica do colectivo, também não se mostra necessária depois do modo
como é referida a influência das declarações das testemunhas de acusação e as
referências feitas em sede de matéria de facto às consequências dos mandados de
busca cumpridos nas várias residências dos arguidos, aliadas às considerações
tecidas no último parágrafo de fls. 35 que se estende para fls. 36 da decisão
recorrida. Pode-se, por este motivo, dizer que aquela indicação cumpre
minimamente as exigências de fundamentação e as finalidades inerentes ao exame
crítico da prova.
Decai, pelo exposto, esta argumentação do recorrente quando imputa o vício da
nulidade da sentença por omissão do exame crítico da prova.»
Portanto, houve da parte do Tribunal da Relação uma resposta à questão suscitada
pelo recorrente, embora não tenha sido a que este aguardava.
É certo que a Relação não se referiu expressamente à alegada
inconstitucionalidade, mas não o fez, obviamente, por entender que a 1ª
instância interpretou a norma contida no art.º 374.º, n.º 2, do CPP de outra
forma que não a que adiantou o recorrente, isto é, a 1ª instância não se limitou
a enumerar as provas, mas examinou-as e criticou-as com suficiência bastante,
cumprindo o preceituado na lei. Onde o recorrente viu uma clara violação da
Constituição por ter a 1ª instância feito uma determinada interpretação da norma
legal, a Relação entendeu que tal interpretação não tinha sido a adoptada e, por
isso, a questão da inconstitucionalidade ficou implicitamente prejudicada.
Não houve, pois, falta de pronúncia.
[…]”
Deste acórdão recorreu A. para o Tribunal Constitucional (a fls. 49 e seguinte),
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 374º, n° 2,
do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido segundo a qual a
fundamentação das decisões judiciais em matéria de facto se basta com a simples
indicação dos meios de prova em 1ª instancia, não exigindo a explicitação do
processo de formação da convicção do Tribunal, por violação dos artigos 205º, nº
1, e 32º, n° 1, da CRP, e, bem assim, a inconstitucionalidade da norma do artigo
97º, n° 4, do mesmo Código, quando interpretada no sentido de que o Tribunal não
tem que analisar crítica e fundadamente a prova produzida, explicitando todos os
passos de raciocínio lógico dedutivo em que assentou a sua convicção, neste
caso, por violação dos artigos 205º, n° 1, e 32º, n° 1, da CRP.
O recurso de constitucionalidade não foi, porém, admitido, por despacho do
seguinte teor (fls. 53):
“Não recebo o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, porquanto a
interpretação dos artigos 374°, n.° 2 e 97°, n.° 4 do CPP, que se diz violadora
das normas dos artigos 32°, n.° 1 e 205°, n.° 1, ambos da CRP, não foi a
adoptada na decisão, como, aliás, decorre do próprio trecho transcrito pelo
requerente.
Com efeito, a Relação de Lisboa e depois este Tribunal, em confirmação da
decisão daquela, não entenderam que «a fundamentação das decisões judiciais em
matéria de facto se basta com a simples indicação dos meios de prova, não
exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal», nem
que «o tribunal não tem que analisar crítica e fundamentadamente a prova
produzida», ao contrário do que, forçando as coisas, diz o requerente. Bem ao
contrário. Daí que o fundamento para o recurso não corresponda à realidade do
decidido.
O requerente pretende apenas, sob forma encapotada, visar o decidido, por no seu
entender, não ter sido cumprido o disposto nos referidos normativos do CPP.
Porém, o recurso para o Tribunal Constitucional não serve para esses objectivos.
O Tribunal Constitucional não é uma 4ª instância de recurso”.
Notificado do despacho que não lhe admitiu o recurso para o Tribunal
Constitucional, A. dele reclamou para a conferência, nos termos do artigo 76º,
n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo, na parte útil, o seguinte
(fls. 2 e seguintes):
“[…]
O fundamento do recurso interposto para o T.C. foi o previsto no art° 70 ° n° 1
alínea b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro (com as posteriores alterações) sendo
que a interpretação inconstitucional que o recorrente e ora reclamante entende
haver feito o Tribunal recorrido de tais normas
Desde a interposição de recurso em 1ª instância que o recorrente vem invocando a
existência nas sucessivas decisões condenatórias, de um “labour” de
interpretação inconstitucional das normas dos art° 374, n° 2 e 97, n° 4 do
C.P.P., quando interpretadas, com o sentido de que se basta para considerar
cumprido o disposto no primeiro (requisito de fundamentação da decisão), a
indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, e
uma análise sucinta e concisa, do raciocínio que levou a formar o sentido da
decisão, em violação do que dispõe o art° 205, n° 1, da CRP, com aplicação a
todas as decisões dos Tribunais e violando também o seu direito ao recurso art°
32, n° 1, da CRP
Tendo em conta que o Tribunal Constitucional está processualmente impedido de
conhecer de recurso de constitucionalidade enquanto o mesmo não for admitido
pelo Tribunal que tiver proferido a decisão recorrida e por este expedido ao
Tribunal Constitucional para apreciação de tal recurso. E que a admissibilidade
do recurso previsto no art. 280°, n° 1, al 1) da CRP depende da verificação
cumulativa dos seguintes requisitos: a) que se questione a constitucionalidade
de uma ou várias normas, e não simplesmente uma decisão judicial b) que essa
norma ou normas hajam sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida (ainda
que de modo implícito), em termos de constituírem a sua mesma ratio decidendi, e
não um qualquer seu obter dictum; c) que o recorrente haja suscitado uma tal
questão de constitucionalidade durante o processo, ou seja, perante o tribunal
recorrido e antes de esgotado o seu poder jurisdicional para conhecer da mesma
questão” . Requisitos que cumpre, sendo uma coisa a inconstitucionalidade de uma
norma (susceptível de abrir o recurso para o Tribunal Constitucional) e outra a
inconstitucionalidade de uma decisão judicial (insusceptível de abrir aquele
recurso) haverá que averiguar se quando se fala de inconstitucionalidade da
interpretação (v.g. da “interpretação das instancias”), é apenas a decisão
judicial que no fundo, se põe em causa, ou antes, realmente, a interpretação
dada a uma certa norma, tal que se possa dizer que é a inconstitucionalidade
desta norma, enquanto assim interpretada, que se questiona, pois só nesse último
caso há possibilidade de interpor ulteriormente o recurso do art° 280, nº 1, al.
b) da CRP.
Que em sede de reclamação, não se pode antecipar a apreciação do mérito de
recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não
constitui objecto da reclamação, avaliar a atendibilidade dos fundamentos do
recurso, mas antes apreciar a verificação das condições de admissibilidade do
recurso, que, em regra, possuem natureza formal, embora uma delas — a do recurso
não ser “manifestamente infundado”, tenha uma irrecusável componente
substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do
recurso.
E ainda o que dispõe o n°s 2 do art. 76° da Lei 28/82, que “o requerimento de
interposição de recurso para o TC deve ser indeferido quando não satisfaça os
requisitos do art° 75-A, mesmo após o suprimento previsto no seu n° 5, quando a
decisão não o admita, quando o recurso haja sido interposto fora do prazo,
quando o requerente careça de legitimidade ou ainda, no caso dos recursos
previstos nas al. b) e 1) do n 1 do art° 70, forem manifestamente infundados”
Ao não receber o recurso, e não indicando qual o fundamento legal desta
rejeição, o despacho ora reclamado, por nele se entender que “o fundamento para
o recurso não corresponde à realidade do decidido”, e salvaguardando sempre o
respeito devido por tal a nosso ver errada decisão, antecipa por esta via, da
admissibilidade/fundamento a apreciação da questão/objecto do recurso
interposto, que exactamente se pretende o Tribunal Constitucional venha a
conhecer e a proferir juízo de conformidade à Constituição e aos princípios nela
consagrados.
Diz o despacho reclamado “ Com efeito a Relação de Lisboa e depois este
Tribunal, em confirmação da decisão daquela, não entenderam que a fundamentação
das decisões judiciais em matéria de facto se basta com a simples indicação dos
meios de prova, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção
do tribunal”.
Ora não há na decisão condenatória (que nesse segmento, em sede de juízo de
constitucionalidade mereceu confirmação das instancias superiores), ao nível da
fundamentação da matéria de facto, da análise critica da prova recaída sobre a
mesma, uma explicitação de qual a valoração dos depoimentos e das provas
documentais contraditórios entre si, a opção por uns e não por outros, o sentido
da valoração de determinados meios de prova em desfavor de outros, igualmente
credíveis válidos e validamente produzidos, e qual a forma pela qual, na
valoração conjunta de toda a prova, que se diz fazer, graduou o Tribunal
elementos concretos trazidos à decisão condenatória por certas provas e não por
outras.
O Venerando Supremo Tribunal de Justiça mantendo o mesmo entendimento, sobre o
conteúdo e alcance da interpretação e aplicação, que afinal faz a Relação de
Lisboa sobre o art° 374, n° 2 do C.P.P., faz também, com o devido respeito,
interpretação contrária ao disposto no art° 205 da C. R.P., sobre fundamentação
das decisões dos Tribunais.
O recurso foi atempado (com pagamento de multa), interposto por quem detém
legitimidade, nos termos da Lei processual aplicável, com efeito suspensivo,
sendo que o fundamento legal do requerido o constante dos art° 70º n° 1 alínea
b) da Lei 28/82 de 15 de Novembro (com as posteriores alterações)
Com a alegação de que a interpretação inconstitucional que se entende haver o
Tribunal feito das normas (art° 374 n° 2 e art° 97 n°4 do C.P.PJ, foi suscitada
durante o processo — através das Motivações de Recurso atempadamente interposto
para este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, como os autos dão conta,
existindo o fundamento a que se refere a al. b) do n° 1 do artº 70-A da Lei
28/82 de 15 Nov.
Pelo exposto, porque cumpre todos os requisitos para a interposição do recurso
de “queixa constitucional”- processo de fiscalização concreta previsto no art°
280 da CR.P, deve a presente reclamação ser recebida e admitido o recurso
interposto para o Tribunal Constitucional, instruindo-se com as necessárias
peças processuais, nomeadamente Acórdão do STJ, interposição de recurso para o
T.C. e despacho de não admissão”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, dizendo, além do mais,
que na motivação do recurso apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o
reclamante não suscitou a questão de inconstitucionalidade, limitando-se a
invocar a nulidade do acórdão da Relação, por não se ter pronunciado sobre a
inconstitucionalidade de determinada interpretação do artigo 374º, nº 2, do
C.P.P.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Tendo o presente recurso de constitucionalidade sido interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui
seu pressuposto processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que este
Tribunal aprecie.
O recorrente, e ora reclamante, pretende, em primeiro lugar, que o Tribunal
Constitucional aprecie a conformidade constitucional do artigo 374º, n.º 2, do
Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação das
decisões judiciais em matéria de facto se basta com a simples indicação dos
meios de prova em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de
formação da convicção do Tribunal.
Ora, percorrendo a decisão recorrida, acima transcrita, nela não se encontra
qualquer referência ao acolhimento de tal interpretação: pelo contrário, nessa
decisão afirma-se que o preceituado na lei impõe o exame das provas e crítica
das mesmas com suficiência bastante.
O mesmo se diga em relação à segunda questão de constitucionalidade colocada
pelo recorrente, que diz respeito ao artigo 97º, n.º 4, do Código de Processo
Penal, na interpretação segundo a qual o tribunal não tem que analisar crítica e
fundadamente a prova produzida, explicitando todos os passos de raciocínio
lógico dedutivo em que assentou a sua convicção: na verdade, não alude o texto
da decisão recorrida à adopção de um tal entendimento, sendo certo que, para que
se pudesse concluir que tal entendimento fora adoptado, algum elemento literal
devia suportar tal conclusão.
Sob o ponto de vista do reclamante, porém, as coisas não se passam assim, uma
vez que considera que, na situação apreciada pelo tribunal recorrido,
efectivamente a fundamentação se bastara com uma simples indicação dos meios de
prova em 1ª instância e, bem assim, não ocorrera uma análise crítica e fundada
da prova produzida.
Mas, se se reparar, estas considerações mais não traduzem do que a censura da
fundamentação da decisão recorrida, não constituindo qualquer argumento no
sentido de que as interpretações normativas questionadas pelo recorrente foram
aplicadas nessa decisão: com efeito, e como se disse, para se poder concluir que
certa interpretação foi aplicada numa decisão judicial, é necessário que essa
interpretação se encontre alicerçada num qualquer elemento literal, sob pena de
não poder ser aferida, de modo objectivo, a verificação dos pressupostos
processuais do recurso de constitucionalidade.
Não tendo a decisão recorrida aplicado as interpretações normativas que o
recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, não pode tomar-se
conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, por falta de
preenchimento de um dos seus pressupostos processuais, pelo que é de manter a
decisão reclamada que não admitiu o recurso.
E não se torna sequer necessário verificar se, conforme sustentado pelo
Ministério Público, o recorrente não suscitou, durante o processo, as questões
de inconstitucionalidade normativas que pretende ver apreciadas (assim não
cumprindo o estatuído nos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do
Tribunal Constitucional) – não suscitação que parece resultar, aliás, da leitura
das conclusões da motivação do recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça
(cfr. fls. 12 e seguintes) -, pois que basta o não preenchimento de um dos
pressupostos processuais do recurso para que do mesmo não possa conhecer-se.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação e
mantém-se a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão