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Processo n.º 775/08
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2º, nº 3 do Decreto-Lei nº
198/95, de 29 de Julho, na redacção resultante do artigo único do Decreto-Lei nº
52/2000, de 7 de Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos
serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de
demonstração da titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias
subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde
prestados.
Fundamentou o seu pedido na circunstância de tal interpretação normativa ter
sido julgada materialmente inconstitucional, no âmbito da fiscalização concreta,
por violação das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º e 64º da
Constituição, através do acórdão nº 67/07 e das decisões sumárias nºs 557/07 e
274/08.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC,
o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
II. Fundamentação
2. A questão que vem discutida é a de saber se é conforme ao disposto nos
artigos 2º, 18º e 64º da Lei Fundamental, a exigência imposta pelo artigo 2º,
n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, alterado pelo artigo único do
Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, no sentido de ser efectuada a cobrança
do valor da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento ou serviço
integrado no Serviço Nacional de Saúde, quando o interessado, não tendo
apresentado o cartão de identificação de utente, não tenha feito a prova, no
prazo cominado naquela disposição, de que é dele titular ou requereu perante os
serviços competentes a sua emissão.
No acórdão n.º 67/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da
inconstitucionalidade material da referida disposição, concluindo que uma norma
que impõe ao utente economicamente carenciado o efectivo pagamento dos serviços
clínicos prestados como mera consequência do incumprimento de um ónus
procedimental ou formal, de natureza manifestamente secundária, é incompatível
com o princípio da proporcionalidade e com o carácter universal e
tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde, expressão da consagração
constitucional do direito à saúde, implicando a violação dos artigos 2.º, 18.º e
64.º da Constituição.
Para assim decidir, teve em linha de conta que o regime jurídico em causa tem
por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços
prestados, sem ter previsto a forma pela qual a interpelação para pagamento dos
encargos decorrentes dos serviços prestados vem a ter lugar e sem permitir
sequer a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento
do dever acessório em questão.
Esta jurisprudência foi depois reiterada pelas decisões sumárias n.ºs 557/07 e
278/08.
Sendo estes os termos em que a questão se coloca, cabe efectuar antes de mais o
necessário enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação
do juízo de constitucionalidade.
3. O Decreto-Lei n.º 198/95 criou o cartão de utente do Serviço Nacional de
Saúde, que é emitido pelos serviços competentes da administração regional de
saúde da área da residência do titular (artigo 4º), e que, fora certas situações
excepcionadas na lei, se destina a ser apresentado perante instituições ou
serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para efeito de prestação de
cuidados médicos, requisição e acesso a meios auxiliares de diagnóstico e
prescrição e aquisição de medicamentos (artigo 3º).
Na sua redacção originária, o artigo 2º desse diploma dispunha:
1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com
natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante as
instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades
privadas na área da saúde.
2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para
os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de
identificação do seu titular.
Como se depreende ainda do preâmbulo do diploma, a instituição do cartão de
utente, de emissão gratuita e natureza substitutiva, sendo idêntico aos já
existentes para utentes de subsistemas de saúde, constituía uma medida de
simplificação do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, sem pôr em
causa os princípios da universalidade e da equidade deste Serviço, e pretendia
assegurar uma mais fácil identificação pessoal nos serviços de saúde, eliminando
procedimentos burocráticos e facilitando a atribuição da isenção das taxas
moderadoras e o reconhecimento de situações de isenção, além de permitir uma
mais adequada articulação entre o Estado e as entidades privadas legal ou
contratualmente responsáveis por encargos decorrentes de prestações de saúde.
O citado Decreto-Lei n.º 52/2000 introduziu uma única alteração a esse diploma,
passando a conferir à referida disposição do artigo 2º a seguinte redacção:
1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os
utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema
Nacional de Saúde ou com ele convencionado.
2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em
caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.
3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando
devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente
identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias
seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde
prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de
identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde.
O objectivo da modificação legislativa, como também resulta da respectiva nota
preambular, foi o de promover a generalização do uso do cartão de utente no
sistema de saúde, implementando para tal desiderato duas condicionantes que são
assim explicitadas:
Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr
em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando
que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do
Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.
Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do
cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é
beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento
directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se
apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou
não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta
responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço
Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir
da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo
documento de identificação.
O Decreto-Lei n.º 52/2000 teve, pois, em vista incentivar o uso do cartão do
utente pela população, passando a sancionar com a sujeição ao pagamento dos
serviços de saúde prestados, a falta de prova da titularidade do direito, dentro
de um prazo curto e peremptório subsequente à interpelação para pagamento,
quando o interessado não tenha apresentado o cartão de identificação na ocasião
da utilização dos serviços.
Poderá assentar-se, por outro lado, sem que isso represente por agora um
qualquer comprometimento com a solução do caso, no conteúdo jurídico do direito
constitucional positivo que está especialmente em causa, bem como na natureza da
limitação que é imposta ao exercício desse direito quando se pretenda regular
legislativamente, como é o caso, o acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
A prestação de cuidados de saúde através dos estabelecimentos e serviços
integrados no Serviço Nacional de Saúde, entendido este como um serviço
universal quanto à população abrangida, destinado a prestar ou a garantir a
prestação de cuidados globais, e tendencialmente gratuito para os utentes, dá
concretização prática ao direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64º
da Constituição.
Nesta sua vertente, o direito à protecção da saúde adquire a natureza de um
direito social com um certo grau de vinculatividade normativa.
Como tem sido já sublinhado, os preceitos relativos a direitos sociais (como
outros referentes a direitos económicos e culturais) contêm normas jurídicas
vinculantes que impõem positivamente ao legislador a realização de determinadas
tarefas através das quais se pode concretizar o exercício desses direitos.
Por sua vez, o grau de conformação legislativa é variável consoante o carácter
mais ou menos determinado ou determinável da imposição constitucional
respectiva, pelo que o legislador fica sempre vinculado às directrizes materiais
que resultem expressamente ou por via interpretativa das normas que imponham,
nesse domínio, tarefas específicas (Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais
na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, págs. 397-401; no mesmo
sentido, ainda Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7ª edição, Coimbra, pág. 471).
Concretamente em relação à criação e manutenção de um serviço nacional de saúde,
como componente do direito à protecção à saúde, constitucionalmente consagrado
(artigo 64º, n.º 2, alínea a)), o Tribunal Constitucional teve já oportunidade
de afirmar que se trata aí de uma obrigação constitucional do Estado como meio
de realização de um direito fundamental, e não uma vaga e abstracta linha de
acção de natureza meramente programática (acórdão n.º 39/84, publicado no Diário
da República, I Série, de 5 de Maio de 1984).
Como norma constitucional impositiva, essa mesma disposição apresenta-se como
parâmetro de controlo de constitucionalidade quando estejam em causa medidas
legais ou regulamentares que afectem ou inutilizem o direito.
Nesse sentido, pode invocar-se a inconstitucionalidade de normas relativas a
prestações estaduais por ofensa do conteúdo mínimo determinável de um direito
social fundamental, ou ainda por violação dos princípios constitucionais ínsitos
no Estado de direito democrático, como sucede quando se restrinja
injustificadamente o âmbito dos beneficiários, através de um tratamento legal
discriminatório (Vieira de Andrade, ob. cit., págs. 402 e 415).
Nada parece, também, obstar a que o controlo das soluções legislativas
incidentes sobre direitos sociais se efectue por via da aplicação do princípio
da razoabilidade ou da proporcionalidade em sentido estrito (Gomes Canotilho, ob
cit., pág. 472).
4. No caso concreto, o legislador começou por introduzir o cartão de
identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde, como um meio alternativo
de comprovação da qualidade de beneficiário, que seria destinado a substituir
qualquer outro documento pelo qual fosse igualmente possível efectuar essa
prova. Por sua vez, a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 52/2000,
mediante a nova redacção dada ao artigo 2º, teve em vista impor o uso do cartão
de utente como o único meio de identificação perante os serviços de saúde,
estipulando concomitantemente a presunção de que o interessado não é
beneficiário do Serviço Nacional da Saúde, encontrando-se, por isso, sujeito ao
pagamento dos encargos com a assistência médica, quando não tenha feito a prova,
nos dez dias seguintes à interpelação para pagamento, de que é titular do cartão
de identificação ou requereu já nos serviços competentes a sua emissão.
À luz das normas e princípios constitucionais, nada pode obstar, no entanto, a
que o legislador implemente, por razões de política legislativa, um mecanismo de
identificação dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, em ordem a
assegurar a agilização do funcionamento das unidades prestadoras de cuidados de
saúde.
Por outro lado, face ao regime legal, a exigência da apresentação do cartão de
utente não põe em causa a obrigatoriedade da prestação dos cuidados médicos, tal
como desde logo resulta do disposto no n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
198/95, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 52/2000, que expressamente
determina que a não identificação dos utentes nos termos previstos «não pode, em
caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde».
Nestes termos, a sujeição dos utentes, segundo o disposto no n.º 3 do mesmo
preceito, à demonstração, dentro do prazo de dez dias seguintes à interpelação
feita pelos serviços de saúde, de que são titulares ou requereram a emissão do
cartão de identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde, como forma de se
eximirem ao pagamento dos encargos devidos com os cuidados de saúde prestados,
não afecta em si o direito à protecção da saúde tal como é garantido pelo artigo
64º, n.º 2, alínea b), da Lei Fundamental.
A exigência legal traduz antes um mero condicionamento de natureza procedimental
relativo ao exercício do direito e que, no imediato, permite aos centros de
saúde e estabelecimentos da rede hospitalar efectuar o controlo do acesso dos
cidadãos aos cuidados de saúde prestados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
5. Afigura-se, no entanto, que nenhuma das circunstâncias apontadas no acórdão
n.º 67/2007 poderá entender-se como indiciária de uma qualquer evidente violação
do princípio da proporcionalidade.
A interpelação a que alude o n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95, na
sua actual redacção, insere-se no âmbito de um procedimento administrativo
desencadeado pela prestação de assistência médica a um utente num
estabelecimento hospitalar, a que deverá aplicar-se, por se tratar de uma
formalidade que impõe ao destinatário um dever ou encargo, o regime de
notificação de actos administrativos a que se refere o artigo 70º do Código de
Procedimento Administrativo (CPA).
Estando normalmente excluídas as hipóteses consideradas nas alíneas c) e d) do
n.º 1 desse artigo (que se referem a situações em que há urgência na notificação
ou em que se justifica a notificação edital), a notificação é feita por via
postal ou pessoalmente, aplicando-se esta última modalidade se não prejudicar a
celeridade do procedimento ou se for inviável a notificação através dos serviços
de correio.
Esse é, em geral, o modo por que devem ser notificados aos interessados os actos
administrativos que decidam quaisquer pretensões por eles formuladas, que
imponham deveres, sujeições ou sanções ou causem prejuízos e que criem,
extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos ou
afectem as condições do seu exercício (artigo 66º do CPA).
A única exigência constitucional, neste plano, é a que resulta do artigo 268º,
n.º 3, primeira parte, da Lei Fundamental, pelo qual a Administração tem o dever
de dar conhecimento das suas decisões aos interessados, «na forma prevista na
lei».
O Tribunal Constitucional tem interpretado esta disposição no sentido de que a
notificação deve constituir um meio de comunicação autónomo e individualizado
que assegure o efectivo conhecimento do sentido e objecto do acto por parte do
seu destinatário (cfr. acórdão n.º 72/2009 que efectua uma recensão da
jurisprudência mais relevante nesta matéria). Os requisitos essenciais da
notificação são, nestes termos, a pessoalidade da comunicação e a
cognoscibilidade efectiva do acto notificando, o que permite reconduzir o
direito à notificação a um direito à recepção do acto na esfera de
perceptibilidade normal do destinatário [Pedro Gonçalves, Notificação dos Actos
Administrativos (Notas sobre a génese, âmbito, sentido e consequências de uma
imposição constitucional), em Ab Vno Ad Omnes – 75 Anos da Coimbra Editora –
1920‑1995, Coimbra, pág. 1115).
O artigo 68º do CPA pretende dar concretização prática a este imperativo
constitucional, ao estabelecer, sob a epígrafe «Conteúdo da notificação», que
dela devem constar o texto integral do acto (ou a indicação resumida do seu
conteúdo e objecto), a identificação do procedimento administrativo (incluindo a
indicação do autor do acto e a data deste), e o órgão competente para apreciar a
impugnação administrativa e o prazo para o efeito (quando não seja logo passível
de impugnação jurisdicional).
O mencionado preceito constitucional prende-se, no entanto, com os requisitos
materiais da notificação e não com o procedimento pelo qual a notificação deve
ser efectuada. Em relação a este último aspecto, a Constituição não prescreve
uma forma única de notificação, nada obstando a que a lei ordinária possa prever
como meios de comunicação do acto administrativo a notificação oral, por via
postal, mediante a entrega por funcionário, por meio de telecomunicações ou
informático. O que se torna exigível é que se trate de uma notificação
endereçada (salvo situações de excepção em que possam considerar-se
justificáveis como a dispensa ou presunção da notificação), o que desde logo
permite excluir que a notificação possa ser substituída pela publicação do acto
(idem, págs. 1116).
Em todo o caso, importa notar que, por força do dever de notificação que resulta
do artigo 268º, n.º 3, da Constituição, o ónus da prova do conhecimento do acto
cabe à Administração, pelo que a não previsão, na lei, de um específico
procedimento que garanta a efectiva recepção pelo destinatário da carta de
notificação (designadamente, o uso do correio registado com aviso de recepção)
não pode trazer qualquer consequência processual negativa para o interessado.
E nesse sentido aponta o disposto no artigo 5º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho, que, no âmbito das acções para cobrança de dívidas
referentes a cuidados de saúde, faz impender sobre o credor a alegação do facto
gerador da responsabilidade pelos encargos, e, por isso, a prova de que, uma vez
interpelado, o utente não demonstrou que era titular do cartão de identificação
ou que tinha já requerido a sua emissão.
Ora, em todo este contexto, não se vê nenhum motivo para que a interpelação a
que se refere o n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95 devesse ser
efectuada por forma mais exigente do que está geralmente previsto para a
notificação de actos administrativos que imponham deveres, sujeições ou sanções
ou causem prejuízos, e devesse por isso encontrar-se sujeita a uma forma
especialmente regulada na lei. E mal se compreende que a ausência dessa especial
previsão legal seja, em si, violadora do princípio da proporcionalidade, quando
daí não resulta que a Administração fique liberada do ónus da prova de que
efectuou a interpelação.
Por outro lado, apenas porque se não encontram especificados os termos em que
deve ser efectuada a interpelação, não é possível entrever na norma em causa um
qualquer critério normativo propiciador de práticas administrativas ilegais, que
se torne susceptível de ser confrontado com o parâmetro da proporcionalidade.
De facto, a interpelação, tal como está prevista na referida disposição,
constitui um procedimento vinculado da Administração, que, na falta de indicação
de um formalismo próprio, deve obedecer aos requisitos gerais da notificação dos
actos administrativos. De tal modo que a omissão ou o deficiente cumprimento do
dever de notificar, em cada caso concreto, mormente quando não tenha sido
explicitado o ónus que impende sobre o utente ou as consequências que resultam
do seu incumprimento, acarreta a inviabilidade da cobrança dos encargos
relativos às prestações de saúde, por inexistência do pressuposto de que
dependia essa exigência.
A eventual insuficiência do conteúdo da notificação é, assim, uma questão
atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte no juízo de
constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma considerada.
6. Outro argumento a que o acórdão n.º 67/2007 deu particular relevo assenta na
circunstância de os serviços de saúde terem possibilidade de realizar a prova,
através dos elementos que lhe são fornecidos no momento da prestação de cuidados
médicos, de que o utente é beneficiário do SNS.
Neste caso, parece ter-se pretendido pôr em causa a própria idoneidade ou
aptidão do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei.
No entanto, deve ter-se em conta, como observa Reis Novais, que o controlo da
idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da
proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objectiva e formal de um
meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade
intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é
útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado
pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos
correspondentes. E, assim, a medida só será susceptível de ser invalidada por
inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se
indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do
fim visado (Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa,
Coimbra, 2004, págs. 167-168).
Como se esclareceu, a norma em causa visa instituir uma medida de política
legislativa destinada, não apenas a assegurar a identificação pessoal dos
cidadãos no momento em que pretendam obter a prestação de cuidados de saúde, mas
também a incentivar o uso do cartão de utente por parte dos beneficiários por
forma a agilizar os procedimentos de acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
O legislador dispõe de liberdade de conformação legislativa para realizar esses
objectivos e não pode o intérprete, a pretexto do controlo da proporcionalidade,
pôr em causa o mérito da solução legislativa adoptada.
Por outro lado, a consideração – de que parte o citado acórdão n.º 67/2007 – de
que sempre seria possível a identificação do utente por uma via diversa daquela
que está legalmente prevista, representaria a própria inviabilização do
mecanismo de controlo e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis
legitimamente instituir, transformando um meio de identificação que se pretendeu
ser de uso obrigatório num meio de identificação meramente facultativo.
E a questão não pode sequer colocar-se à luz do princípio da necessidade ou da
indispensabilidade. Tendo o legislador pretendido implementar um sistema
uniforme de identificação do universo dos beneficiários que sirva de instrumento
regulador e racionalizador do acesso às prestações de saúde, não pode afirmar-se
que o meio efectivamente escolhido poderia ser substituído por qualquer outro
procedimento que permitisse efectuar ocasionalmente a prova da qualidade de
beneficiário.
A possível existência de um outro meio para obter a identificação dos utentes
não pode, pois, servir de fundamento para que se considere verificada a violação
do princípio da proporcionalidade.
7. Um outro elemento de ponderação que conduziu ao juízo de
inconstitucionalidade, no citado acórdão n.º 67/2007, radica na ideia de que a
lei não permite a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no
incumprimento do dever acessório de identificação.
A questão, porém, não pode colocar-se nestes termos.
O Serviço Nacional de Saúde, sendo constituído por um conjunto ordenado e
hierarquizado de instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, não
deixa de integrar um serviço público, que, como tal, está sujeito às suas
próprias regras de organização e funcionamento e que são modificáveis em função
da variabilidade quanto ao modo como se entende, em cada momento, dever ser
prosseguido o interesse público em presença.
Os utentes de um serviço público, independentemente do seu carácter gratuito ou
oneroso, ficam sujeitos às regras que estão legal e regulamentarmente definidas
relativamente às condições de acesso e utilização, de tal modo que para
beneficiarem das vantagens que são disponibilizadas pelo serviço carecem de
cumprir os correspondentes deveres, ónus e sujeições.
Não tem qualquer cabimento falar a este propósito de um princípio de culpa, como
se se tratasse de matéria de responsabilidade civil, criminal ou
contra-ordenacional.
Na verdade, os particulares que pretendam aceder aos bens ou serviços
proporcionados pela Administração colocam-se numa situação jurídica especial que
decorre da relação de utilização do serviço público, que pressupõe a
titularidade de direitos subjectivos mas também de posições jurídicas de
desvantagem que derivam da lei, de regulamento ou do mero exercício de poderes
jurídico-públicos de regulação, e que constituem o contraponto aos benefícios
que podem ser obtidos por via do exercício de uma actividade administrativa de
interesse geral (sobre estes aspectos, Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo, 2ª edição, I vol., Coimbra, págs. 628-629).
E, nestes termos, as consequências jurídicas que provêm do incumprimento, pelos
utentes, de qualquer dos deveres ou sujeições a que estão obrigados não está
dependente de qualquer prévio juízo de censura (a menos que a lei fixe ela
própria critérios de relevação da conduta do particular) e constituem mera
decorrência objectiva do regime de organização e funcionamento do serviço, tal
como está normativamente gizado.
E, nesse ponto, o condicionamento que tenha sido imposto por lei apenas pode
considerar-se constitucionalmente ilegítimo quando se mostre desadequado e
desproporcionado de modo a que possa dificultar gravemente o exercício concreto
do direito em causa (cfr. acórdão n.ºs 413/89, publicado no Diário da República,
II Série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi refirmada,
designadamente, no acórdão n.º 247/02).
No caso vertente, porém, nada permite concluir que a exigência constante do
artigo 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 198/95 seja excessiva ou intolerável em
termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade.
Isso porque se trata, como se viu, não de uma medida supérflua de identificação
pessoal do utente, mas de simplificação e harmonização de procedimentos,
designadamente em vista a assegurar um mais rigoroso controlo do acesso ao
serviço, facilitar o reconhecimento de situações de isenção de taxas moderadoras
e permitir uma mais adequada articulação entre as diversas instituições e
serviços envolvidos. E, por outro lado, porque representa um esforço mínimo por
parte do interessado, que poderá com toda a facilidade efectuar a prova da sua
qualidade de utente, ainda em tempo útil, bastando-lhe que demonstre ter já
solicitado a emissão do cartão de identificação ainda que à data da prestação de
cuidados de saúde não pudesse ser considerado seu titular.
Resta acrescentar que no sentido da não inconstitucionalidade da solução
legislativa em causa se pronunciou o acórdão n.º 512/2008.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade da norma do n.º 3
do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, na redacção dada pelo
artigo único do Decreto-Lei n.º 52/2000, de 7 de Abril, quando interpretada no
sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o
utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de
utente no prazo de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos
encargos com os cuidados de saúde.
Lisboa, 05 de Maio de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
Vítor Gomes
Maria João Antunes
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos
termos da declaração de voto junta)
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos
da declaração de voto junta)
João Cura Mariano (vencido nos
termos da
declaração de voto junta ).
Benjamim Rodrigues (vencido de
acordo com a
declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos (Vencido nos
termos da
declaração de voto junta).
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. A minha primeira discordância relativamente ao
precedente acórdão respeita à determinação da extensão dos poderes de cognição
do Tribunal Constitucional em processos de “generalização de juízos de
inconstitucionalidade”.
Como no recente Acórdão n.º 135/2009, do Plenário do
Tribunal, se assinalou:
“6. Diversamente do que ocorre nos processos de fiscalização
abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade originados em
pedidos formulados ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 281.º da CRP, em que
compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras de
interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da norma
questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo
requerente, nos processos de «generalização» de juízos concretos de
inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito
constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir,
insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa
que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade,
interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas
decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta,
onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio
(ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º,
n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito
ordinário efectuada pelas instâncias (cf. Acórdãos n.ºs 27/2006 e 63/2006).
Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde foram
emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja «generalização» agora se
pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a
interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora
do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o
critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto
dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas (…).”
Essa tem sido a conduta desde sempre adoptada por este
Tribunal perante pedidos de generalização de juízos de inconstitucionalidade,
mesmo em casos em que era óbvia a dúvida (e, nalguns casos, mesmo a certeza) de
que o critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões anteriores
do Tribunal Constitucional (coincidente com o critério normativo aplicado ou
recusado aplicar nas decisões das instâncias objecto de impugnação) não
correspondia à melhor interpretação do direito ordinário em causa.
Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 27/2006 – que decidiu
“declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma
constante do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na
redacção que lhe foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro,
conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre
que, em processo contra‑ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o
recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta” –, o Tribunal
Constitucional aceitou como um dado da questão o entendimento (que fora seguido
pelas decisões dos tribunais recorridos sobre que recaíram o Acórdão n.º
462/2003 e as Decisões Sumárias n.ºs 284/2004 e 318/2005, com base nos quais
fora deduzido o pedido de generalização) de que o prazo para a resposta ao
recurso da decisão proferida na impugnação judicial de uma decisão de aplicação
de uma coima era, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 413.º do
Código de Processo Penal, de 15 dias, enquanto que o prazo para o arguido
interpor e motivar esse recurso estava fixado em 10 dias pelo n.º 1 do artigo
74.º do Decreto‑Lei n.º 433/82. Mas, como se intuía da própria fundamentação do
Acórdão n.º 27/2006, a determinação daquele prazo de resposta foi assumido como
um dado (inalterável) da questão de constitucionalidade, sem que ao Tribunal
Constitucional, nessa sede, fosse lícito discutir a sua correcção, em termos
de interpretação de direito ordinário. E, consequentemente, sem qualquer
contradição, face a posteriores recursos de decisões das instâncias que seguiram
diversa interpretação – a interpretação que veio a ser consagrada no Acórdão de
fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2009, no sentido
de que “em processo de contra‑ordenação, é de dez dias quer o prazo de
interposição de recurso para a Relação quer o de apresentação da respectiva
resposta, nos termos dos artigos 74.º, n.ºs 1 e 4, e 41.º do Regime Geral de
Contra‑Ordenações (RGCO)” –, o Tribunal Constitucional viria, mesmo após a
prolação daquela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, a não conhecer de recursos interpostos ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, por falta de coincidência entre o critério normativo
anteriormente julgado (e declarado) inconstitucional pelo Tribunal
Constitucional e o critério normativo aplicado nas decisões então recorridas
(cf. Acórdãos n.ºs 573/2006, 20/2008 e 404/2008 e Decisões Sumárias n.ºs
250/2008, 330/2008, 386/2008, 106/2009 e 138/2009).
Similarmente, no Acórdão n.º 63/2006 – que, também em
processo de generalização de juízos de inconstitucionalidade, decidiu “declarar
a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante dos
artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao
Decreto‑Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na interpretação segundo a qual, sendo a
licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria
devida a contribuição especial por este instituída que, assim, incidiria sobre a
valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele
requerimento” – deixou‑se bem claro que, citando o Acórdão n.º 81/2005 (a
primeira das decisões de inconstitucionalidade cuja generalização era
solicitada): “(…) as normas dos preceitos transcritos serão analisadas numa
específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente
recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de
construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º
43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no
qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele
requerimento. Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal
interpretação, sob o prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei:
nomeadamente, não pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos
legais deviam ter sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o
foram, isto é, como sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção
tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.º 43/98, de 3 de
Março. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação
perfilhada (bem ou mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição,
particularmente o princípio da não retroactividade dos impostos.”
Diversamente do que tem sido a constante – e correcta –
prática do Tribunal Constitucional na apreciação dos pedidos de generalização de
juízos de inconstitucionalidade, o precedente Acórdão não se limitou, como lhe
cumpria, a apreciar se os critérios normativos definidos nas decisões das
instâncias como aplicáveis aos casos em apreço e por elas julgados
inconstitucionais – juízos de inconstitucionalidade estes que, com os contornos
assim definidos, foram confirmados nas três anteriores decisões do Tribunal
Constitucional –, padeciam, ou não, de inconstitucionalidade. Pelo contrário, o
precedente Acórdão desprezou o alcance específico dos anteriores juízos de
inconstitucionalidade e tratou de definir autonomamente a interpretação das
normas de direito ordinário em causa que reputava por mais correcta, como se de
um “normal” processo de fiscalização abstracta de constitucionalidade se
tratasse, o que, pelas razões expostas, representa a adopção de uma metodologia
que considero inaplicável ao tipo de processo em causa.
2. Se o objecto da pronúncia a proferir no presente
processo pelo Tribunal Constitucional tivesse sido – como devia ser – reportado
ao critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões em que se
fundou o pedido de generalização, a solução não podia deixar de ser a da
inconstitucionalidade, tão flagrante ela se apresenta.
Na verdade, não vejo como se possa considerar
respeitador do princípio da proporcionalidade e do direito à protecção da saúde
através de um serviço nacional de saúde, universal e geral, e tendencialmente
gratuito (artigos 18.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa), um
critério normativo segundo o qual o cidadão a quem foram prestados serviços de
saúde tem de suportar o seu custo apenas pela circunstância de, nos dez dias
posteriores à interpelação para pagamento, não ter demonstrado ser titular de
cartão de utente ou ter requerido a sua passagem, sendo de salientar que o
sistema legal não prevê que nessa interpelação para pagamento o visado seja
especificamente notificado para fazer a apresentação do cartão, com a cominação
de que, se o não fizer no aludido prazo, torna‑se‑lhe exigível o pagamento das
despesas com os cuidados médicos. Consequência esta que – segundo o critério
normativo em causa – decorre necessária e automaticamente da mera constatação
objectiva do decurso desse prazo de 10 dias sem apresentação da referida prova,
e sem possibilidade legal de ser atribuída relevância a eventual ausência de
culpa do interessado na falta de cumprimento desse dever procedimental
acessório. No caso sobre que recaiu o Acórdão n.º 67/2007 (e tudo leva a crer
que a situação se repetiu nos casos sobre que recaíram as Decisões Sumárias n.ºs
557/2007 e 274/2008), resulta do respectivo relatório que, para além de o réu na
acção não ter sido especificamente notificado para exibir o cartão de utente,
nem consequentemente advertido das consequências do incumprimento desse ónus,
nem sequer a carta contendo a interpelação para pagamento – ascendendo o
montante a pagar a € 4865,23, acrescido de € 322,71 de juros de mora já vencidos
e dos vincendos à taxa legal, até efectivo reembolso – chegou ao seu
conhecimento (o respectivo aviso de recepção foi assinado por outrem que não o
réu e este, ao tempo, encontrava‑se internado num centro de recuperação, não
contactando com o exterior, designadamente com familiares – factos provados C)
e E)), e deu‑se por provado que o réu era beneficiário da segurança social desde
Dezembro de 1990, sendo titular do cartão de beneficiário com o n.º 111363975
(facto provado F)).
Tal critério normativo viola flagrantemente o princípio
da proporcionalidade na definição das restrições ou condicionamentos ao direito
à protecção da saúde tendencialmente gratuito, constitucionalmente consagrado,
quer por não respeitar o requisito da necessidade (o controlo da titularidade do
réu às prestações do serviço nacional de saúde pode ser efectuado, com
facilidade e segurança, pela Administração, através de bases de dados
informatizadas, e, no caso apreciado no Acórdão n.º 67/2007, nenhuma dúvida
suscitava essa titularidade), quer por se revelar desproporcionado o carácter
extremamente gravoso das consequências (ter de suportar a integralidade das
despesas com a assistência hospitalar) em comparação com a natureza venial da
pretensa falta de colaboração procedimental do interessado.
3. O precedente acórdão optou, porém, por alterar o
objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, que deixou de ser o
critério normativo efectivamente julgado inconstitucional nas três anteriores
decisões do Tribunal, para passar a ser o critério normativo que se entendeu ser
o correspondente à mais correcta interpretação das normas legais em causa.
Mas, mesmo assim – e para além de, salvo o devido
respeito pela posição que logrou vencimento, considerar ilegítima essa alteração
do objecto do pedido –, não acompanhei a decisão de não inconstitucionalidade,
remetendo para as considerações a este respeito tecidas nas restantes
declarações de voto de vencido, que demonstram proficientemente a insubsistência
de tal decisão.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi do entendimento que fez maioria, pois considero que a norma do n.º 3 do
artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 198/85, de 29 de Julho, quando interpretada no
sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o
utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de
utente no prazo de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos
encargos com os cuidados de saúde é atentatória do princípio da
proporcionalidade, logo na medida em que a solução não se mostra indispensável
ou necessária à prossecução do fim tido em vista.
Na verdade, é minha opinião que o regime em apreciação não corresponde ao meio
mais suave ou menos gravoso, ao alcance do legislador, para atingir o resultado
pretendido de implementação de um sistema uniforme de identificação dos
beneficiários, através da apresentação do cartão de utente. Mesmo que se
considere a promoção e generalização do uso deste como o objectivo final da
mudança legislativa operada como o Decreto-Lei n.º 52/2000, e não apenas uma
medida intercalar, dirigida, em último termo, à simplificação e facilitação dos
procedimentos administrativos, ele poderia ser alcançado por uma via diversa da
legalmente prescrita, com uma sensivelmente menor afectação desvantajosa do
direito à prestação de cuidados de saúde, nas condições, constitucionalmente
devidas, de tendencial gratuitidade.
Contrariamente ao afirmado no acórdão, para negar a lesão do princípio da
proporcionalidade, tal não redundaria na opção por um qualquer outro meio de
identificação, representando “a própria inviabilização do mecanismo de controlo
e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis legitimamente instituir,
transformando um meio de identificação que se pretendeu de uso obrigatório num
meio de identificação puramente facultativo”. Nada disso se passaria, pois o que
está em causa não é a obrigatoriedade de apresentação do cartão, que seria
mantida incólume, mas a garantia de cognoscibilidade, pelo utente, do
cumprimento desse ónus, como condição de isenção do pagamento do serviço. E essa
garantia poderia ser perfeitamente assegurada, com idêntica (senão mesmo
superior, como veremos) eficácia na realização daquele fim.
De facto, o que está previsto na norma em causa é uma interpelação para
cumprimento, no sentido técnico-jurídico próprio do direito das obrigações, de
comunicação do credor ao devedor que tem por efeito tornar exigível uma
obrigação pura. Nada obriga a entidade interpelante a comunicar ao utente de que
goza da faculdade alternativa de, no prazo de 10 dias, apresentar o cartão ou
fazer prova da sua requisição, para, desta forma, ficar exonerado do referido
pagamento. Nessa medida, a exigência de pagamento é percebida, na óptica do
destinatário, mais como um facto consumado, uma cobrança de dívida já
definitivamente consolidada na esfera do credor. Só muito indirecta e
longinquamente se pode ver nessa exigência, em si, sem mais, sem a obrigação da
entidade hospitalar levar ao conhecimento do interessado a possibilidade de não
cumprir, através da satisfação do ónus probatório da titularidade (ou
requisição) do cartão de identificação de utente, um incentivo ao uso deste.
Por outras palavras: o procedimento é dirigido a obter o pagamento, deixando
oculto aquilo que, na óptica das finalidades do diploma, deveria constituir o
objecto principal da comunicação: a interpelação para exibir o cartão ou fazer
prova da sua requisição, sob pena de, não o fazendo, ficar sujeito ao pagamento
do serviço.
Refere o preâmbulo do diploma que as consequências associadas à não apresentação
do cartão “assentam no pressuposto que o utente não é beneficiário do Serviço
Nacional de Saúde”. Estranhamente, dada a universalidade do direito à utilização
tendencialmente gratuita do Serviço Nacional de Saúde (artigo 64.º, n.º 2,
alínea a) da CRP). “Levar a sério” esta prescrição constitucional implicaria a
pressuposição inversa, com a previsão de abertura de um procedimento próprio, de
carácter principal, com o sentido precípuo de conceder ao utente uma segunda
oportunidade de comprovar, pelo meio previsto (o que não comprometeria o
objectivo do diploma), que está inscrito ou já requereu a inscrição.
O acórdão esgrime argumentativamente com o regime geral do acto administrativo,
o qual, no entender dos seus subscritores, acautelaria suficientemente a
cognoscibilidade do ónus.
Em vão o faz, pois, se de acto administrativo se quer aqui falar, ele só pode
ser o acto determinativo do pagamento. Ora, este integra o conteúdo da
comunicação, pelo que não se detecta, neste plano, qualquer vício. A
explicitação cuja omissão está em causa tem outro objecto, diz respeito ao
regime legal que abre a hipótese inversa de não cobrança de qualquer quantia.
Não se vê, assim, como é que dos requisitos gerais de notificação dos actos
administrativos se possa retirar a conclusão de que a falta de menção ao ónus
“acarreta a inviabilidade da cobrança”.
Nem se diga, como se lê no acórdão, que, a haver défice de comunicação, essa é
uma questão “atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte
no juízo de constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma
considerada”.
O ponto é justamente esse, mas a valoração que me suscita é a oposta à
perfilhada. Sem prejuízo de práticas administrativas particularmente diligentes
e sensíveis aos justos interesses dos administrados poderem, ocasionalmente,
colmatar lacunas de previsão legislativa, é à lei que cabe, em matéria de
direitos fundamentais, adoptar conformações que os ponham ao abrigo de perdas de
efectividade injustificadas. Só dessa forma se respeita a garantia
constitucional.
Ora, no caso em análise, deparamos com o condicionamento do exercício de um
direito fundamental, através da imposição de um ónus procedimental, a cujo
incumprimento se liga, sem mais, a pura e simples inibição do seu exercício.
No regime estipulado, o não cumprimento da exigência de identificação por
cartão, tem, na verdade, uma consequência extremamente gravosa, consistente na
perda da faculdade de exercício do direito à utilização tendencialmente gratuita
do serviço a que a cobrança se refere. Outras soluções, mesmo dentro do domínio
das sanções pecuniárias, seriam conjecturáveis, em termos de se evitar a
variabilidade da perda patrimonial infligida (dependente, que ela fica, do preço
do serviço em questão), em consequência de uma mesma falta.
Mas, querendo associar-se a essa falta a obrigação de pagamento, tal só seria
admissível, por parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, com um regime
de tal modo configurado que deixasse seguro que a omissão do utente, a
verificar-se, só poderia ser atribuída a um qualificado desleixo ou incúria na
gestão dos interesses próprios, cabendo no âmbito da sua auto-responsabilidade.
Tal não acontece no regime em apreciação, pois dele decorre que apenas a não
exibição do cartão (para a obrigatoriedade da qual, em momento algum, o utente é
individualmente alertado), sem mais condições, legitima a cobrança do preço do
serviço. Para além de não garantir a cognoscibilidade do ónus, o regime do
artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 52/2000 não permite relevar qualquer
circunstância justificativa ou desculpabilizadora que, em concreto, tenha sido
causal do incumprimento.
A mais disso, o prazo peremptório estabelecido - os dez dias seguintes à
interpelação para pagamento - é curto (o que só potencia, diga-se de passagem, a
eficácia obstativa de circunstâncias justificadamente impeditivas do
cumprimento). Tão curto que acaba por ser muito inferior ao previsto para
pagamento – 30 dias a contar da interpelação, segundo prescreve o artigo 2.º do
Decreto-lei n.º 218/99, de 15 de Junho. Quer dizer: ainda se encontra a correr o
prazo dentro do qual o débito pode ser satisfeito, sem mora, mas o (pretenso)
devedor já se encontra inibido - pasme-se! - de vir provar que nada deve, mesmo
que disponha do único meio de prova admitido: o cartão de utente ou documento
certificativo da sua requisição. Não se descortina qual o interesse que
justifica esta disparidade de termos finais, verdadeiramente aberrante em face
dos padrões comuns – e, note-se, é pelo regime comum que é disciplinada e pelos
tribunais comuns dirimida (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, na
interpretação dominante) a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços
integrados no Serviço Nacional de Saúde, salva a aplicação do artigo 70.º do
Código de Procedimento Administrativo, para que expressamente remete o artigo
2.º daquele diploma.
Dispensável, pela existência de soluções alternativas menos intrusivas na esfera
protegida do direito à saúde, sem sobrecargas da actividade administrativa e sem
perda de eficácia para o fim intencionado, o regime em causa mostra-se, a meu
aviso, claramente excedente dos limites da proporcionalidade, mesmo por um
critério de evidência apertado, como aqui se requer, tendo em conta a maior
liberdade de conformação de que deve gozar o legislador em sede organizatória ou
procedimental. Em vez de adoptar os resguardos e as precauções condicionantes
que a garantia de efectividade do direito à utilização tendencialmente gratuita
do Serviço Nacional de Saúde exige, a normação estabelecida propicia a
inviabilização do exercício desse direito, sem benefícios associados.
Justificava-se, pois, um juízo de inconstitucionalidade. Nesse sentido votei.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
O Ministério Público propôs a declaração com força obrigatória geral da
inconstitucionalidade que havia sido já declarada no Acórdão n.º 67/07 e nas
decisões sumárias n.º 557/07 e 274/78, deste Tribunal, e que incidia sobre a
norma constante do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-lei n.º 52/2000, de 7 de
Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados
apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da
titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à
interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
Apesar da equivocidade da formulação desta interpretação, da leitura da
fundamentação do Acórdão n.º 67/07, à qual as decisões sumárias n.º 557/07 e
274/78 aderiram, resulta que a mesma se reporta ao entendimento de que o utente
está obrigado ao pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados,
mesmo que não tenha sido notificado que deveria demonstrar a titularidade do
cartão de utente no prazo de 10 dias após ter sido avisado para pagar aqueles
encargos, não sendo permitida a valoração de uma eventual ausência de culpa do
utente no incumprimento desse dever.
Foi este o sentido da interpretação que foi declarada inconstitucional em três
casos e, necessariamente, foi esse o sentido da interpretação cuja
inconstitucionalidade com força obrigatória geral foi requerida pelo Ministério
Público.
É à irrelevância daquelas situações (falta de notificação para apresentar o
cartão de utente e impossibilidade de demonstração de ausência de culpa no
incumprimento desse dever de apresentação) que deve ser atribuído o significado
do termo “apenas” quando na formulação da interpretação cuja
inconstitucionalidade com força obrigatória geral se requereu se refere que
“apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da
titularidade do cartão do utente, no prazo de 10 dias subsequentes à
interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados” o
utente fica obrigado a esse pagamento.
Não está, pois, aqui em questão a constitucionalidade da obrigatoriedade do
utente pagar esses serviços por não ter demonstrado que era titular do cartão do
utente num determinado prazo, mas sim a constitucionalidade dessa
obrigatoriedade se manter, mesmo que o utente não tenha sido notificado para
apresentar aquele cartão, não sendo permitida a valoração de uma eventual
ausência de culpa do utente no incumprimento desse dever.
Neste entendimento da interpretação normativa em questão, que não foi assumido
no presente acórdão, ressalta com evidência que estamos perante uma restrição
desproporcionada à garantia de um direito à saúde através de um Sistema Nacional
de Saúde tendencialmente gratuito (artigo 64.º da C.R.P.), uma vez que, para
promover a utilização do cartão de utente, se obriga a pagar o custo real dos
cuidados de saúde a quem não cumpriu um ónus de que não lhe foi dado
conhecimento, nem se lhe permitiu justificar o incumprimento.
Há uma manifesta desproporção entre a importância dos fins visados com a medida
restritiva de um direito social fundamental e a severidade da restrição que
resulta dos meios utilizados para alcançar aqueles fins.
Por isso votei favoravelmente à declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral requerida, reportada à interpretação normativa com o alcance
acima indicado.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votámos vencido, por não podermos acompanhar a aplicação feita no
acórdão do princípio da proporcionalidade.
Subscrevemos o Acórdão n.º 67/2007 e continuamos a entender que o
essencial da sua fundamentação é cientificamente consistente.
Referimo-nos ao princípio da proporcionalidade, em sentido restrito,
ou de justa medida. Na verdade, o legislador não tem o mesmo grau de
discricionariedade constitutiva em todas as medidas que toma. Esse âmbito é mais
ou menos lato consoante a natureza dos direitos fundamentais que são afectados e
o tipo de medidas que interferem com os bens ou direitos fundamentais.
Ora, não vemos que o legislador, para obrigar os utentes do Serviço
Nacional de Saúde a obterem um cartão, cuja função é apenas – no que se diverge
desde logo dos fins considerados no Acórdão –, a de obrigar as pessoas a ficarem
agregadas a determinado Centro de Saúde local, para o efeito da organização da
prestação dos serviços de saúde primários, vir constitucionalmente a sancionar o
utente com o pagamento dos serviços prestados a outro nível, como são os
hospitalares. A medida tem uma natureza e função essencialmente procedimental ou
organizacional, atingindo os seus efeitos apenas dentro do leque dos interesses
directos do Estado.
É que não pode desconhecer-se que o sistema que garante o custeio
dos encargos hospitalares com os seus utentes não está minimamente associado ao
cartão de utente, mas aos regimes dos subsistemas de saúde – Segurança Social,
ADSE, ADMG, Serviços Sociais do Ministério da Justiça e outros, como o
financiamento directo do Estado, sendo de tais serviços que os hospitais
reclamam, em caso de prestação de cuidados de saúde não cobertos por
responsabilidade privada, o pagamento do valor desses cuidados.
Se demonstrada está a titularidade de beneficiário de um desses
regimes, cuja prova o cartão de utente não garante, dificilmente se pode
entender que o Estado, para alcançar algumas vantagens num plano organizacional
completamente diferente, atinja o utente com um ónus de tanta gravidade: o
pagamento dos serviços hospitalares prestados apenas pelo facto de o utente não
ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo
de dez dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os
cuidados de saúde.
E o excesso é tanto mais evidente quando se considere três
circunstâncias: a primeira, é a de que o utente não é notificado sequer da
existência desse ónus legal ou seja, de que, caso não demonstre a titularidade
do cartão de utente no prazo estabelecido, terá de suportar os custos dos
serviços de saúde prestados nos hospitais; a segunda, é a de que, sendo o
emitente do cartão de utente o próprio Estado, não se visiona que “os
fundamentos materiais que justificam o Simplex”, não estejam presentes na
demonstração da qualidade de utente, pois para tanto bastaria que o Estado
organizasse os seus serviços em regime de comunicabilidade de dados; a última, é
a de que, estando demonstrada a titularidade de um subsistema de saúde
garantidor desses encargos, a quando do internamento, deixa a exigência do
pagamento com base num mero dever procedimental funcionalizado para outros fins
de poder acobertar-se no princípio do Estado de direito democráticos e da
Justiça material que o suporta.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da presente decisão pelas razões constantes do acórdão nº 67/2007, que
subscrevi, e que entendo manterem a sua validade. Na verdade, continuo a pensar
que viola o princípio da proporcionalidade a solução legal que faculta à
Administração exigir de um cidadão o pagamento integral dos cuidados de saúde
prestados como consequência automática do incumprimento de um ónus procedimental
– a demonstração da titularidade do cartão de utente do Serviço Nacional de
Saúde no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos
encargos com os cuidados de saúde recebidos. Tendo em conta o carácter universal
e tendencialmente gratuito daquele serviço, a exigibilidade do pagamento
integral do custo dos cuidados de saúde recebidos como consequência da não
satisfação daquele ónus, quando a Administração não notificou do referido ónus o
destinatário dos serviços prestados e das consequências que estavam ligadas ao
seu incumprimento, tendo-se limitado a dirigir-lhe, sem mais, uma interpelação
para pagamento dos encargos com a prestação daqueles cuidados de saúde,
afigura-se-me constituir uma exigência manifestamente desproporcionada,
sobretudo quando a Administração tinha na sua posse os elementos necessários
para documentar a condição de beneficiário do Serviço Nacional de Saúde do
destinatário dos cuidados de saúde, e a aplicação da consequência cominada é
indiferente à circunstância de o particular poder não ter, sem culpa sua,
recebido a interpelação. Nas circunstâncias descritas, que foram aquelas em que
teve lugar a recusa de aplicação, no processo em que foi tirado o acórdão nº
67/2007, da dimensão normativa considerada, o fim prosseguido pela norma
apresenta-se vazio de sentido quando a Administração exige ao beneficiário a
prova de factos de que tem efectivo conhecimento e quando restringe tal prova a
um único meio. E o carácter eventualmente pouco gravoso do comportamento exigido
ao beneficiário dos cuidados médicos prestados não retira às consequências do
incumprimento do ónus instituído pelo preceito o carácter desproporcionado,
maxime quando daquelas consequências não é dado conhecimento àquele e quando
existe prova da não recepção, sem culpa do seu destinatário, da interpelação
para pagamento.
Termos em que, face à dimensão normativa recortada no pedido de generalização,
reiteraria o juízo de inconstitucionalidade formulada no acórdão nº 67/2007.
Rui Manuel Moura Ramos