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Processo n.º 894/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do acórdão da Relação de Lisboa que negou provimento ao
recurso interposto da sentença proferida no processo sumário n.º 12/08.6ECLSB,
do 1.º Juízo de Pequena Instância Criminal da Comarca de Loures, que o condenou
pela prática de um crime de exploração de jogo ilegal, p. e p. nos termos do
art. 108.º, n.º 1, com referência aos artigos 1.º e 4.º, n.º 1, alínea g), todos
do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, na pena de 150 dias de prisão
substituídos por igual tempo de multa, à taxa diária de €25,00, e em 75 dias de
multa à mesma taxa, o que perfaz a multa global de €5 625,00, a que correspondem
200 dias de prisão.
2 – O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
constitucionalidade dos “artigos 355.º, n.º 7 do artigo 356.º e n.º 2 do artigo
357.º, todos do Código de Processo Penal, por violarem o artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa, quando sejam interpretados no sentido de
as declarações informais do arguido ou de quem seja provável vir a ser
constituído como tal serem reproduzidas em sede de audiência de julgamento sem
consentimento do próprio arguido ou do provável arguido”, cuja questão alega ter
suscitado nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação.
3 – No Tribunal Constitucional, o relator ordenou a notificação do
recorrente e recorrido para alegarem, “bem como para se pronunciarem, querendo,
sobre a possibilidade do não conhecimento do recurso, com base no entendimento
de falta de utilidade da decisão da questão de constitucionalidade, por a mesma
poder não se repercutir na decisão do julgado”.
4 – Nas suas alegações de recurso, o recorrente nada disse sobre a
questão prévia do não conhecimento do recurso, rematando o seu discurso
argumentativo com a formulação das seguintes conclusões:
«a) Não ficou demonstrado, nem provado que o recorrente era o
explorador do estabelecimento em causa e em consequência da máquina em causa
(factos dados como provados sob os n.ºs 1 e 13)
b) Tal verificação é elemento essencial para a condenação do
recorrente e não ficou demonstrado, pois tal facto só é provado por documento e
nos autos não existe qualquer documento que demonstre tal facto, nem podem ser
valoradas as declarações das testemunhas que afirmam que não têm conhecimento
pessoal e directo, mas sabem que o recorrente é o explorador de tal
estabelecimento, porque precisamente este lhes disse em conversa informal não
reduzida a escrito.
c) Não se provou que fosse proprietário do mesmo e não se provou que
obtivesse lucros com a máquina, assim como não se provou que tivesse acordado
seja com quem for a colocação de tais máquinas em qualquer estabelecimento.
d) Falece assim a verificação do elemento objectivo, e tal resulta
tão somente da leitura e análise da sentença recorrida, por verificação do erro
na apreciação da prova, por ausência absoluta de prova no que respeita à
possibilidade de se considerar como provados os factos assinalados sob o n.º 1 e
13.
e) Na sentença recorrida verifica assim a existência do vício de erro
na apreciação da prova, constituindo esta a 1ª questão a ser apreciada em sede
de recurso;
f) A 2ª questão a ser apreciada em sede de recurso é a
inconstitucionalidade arguida da interpretação conferida pelo tribunal “a quo”
aos art.°s 355.°, n.º 7 do art. 356.°, e n. 2 do art. 357.°, todos do C. P. P.,
em que o tribunal “a quo” entende que são válidas as declarações prestadas pelas
testemunhas em violação do direito ao silêncio da recorrente, porque as
testemunhas reproduziram conversas informais, não reduzidas a escrito, que lhes
foram, supostamente, transmitidas pelo recorrente, à data da fiscalização, em
violação do art. 32.° da C. R. P., pois em sede de julgamento não poderiam ter
sido reproduzidas essas conversas, atenta a proibição da leitura de eventuais
declarações do recorrente que viessem a ser reduzidas, posteriormente, a
escrito.
g) O recorrente formula a seguinte declaração de
inconstitucionalidade, para efeitos de recurso para o Tribunal Constitucional em
caso de não decisão pela não inconstitucionalidade da interpretação que a esses
mencionados artigos foi conferida pelo tribunal “a quo”: “Verifica-se serem
inconstitucionais os art.°s 355.º, n.º 7 do art. 356.° e n.º 2 do art. 357,
todos do C. P. P., por violarem o art. 32.° da C. R. P., quando sejam
interpretados no sentido de as declarações informais do arguido ou de quem seja
provável vir a ser constituído como tal, sem estarem reduzidas a auto, prestadas
perante órgãos de policia criminal, sejam reproduzidas em sede de audiência de
julgamento, sem consentimento do próprio arguido ou do provável arguido».
5 – Por seu lado, o Procurador-Geral Adjunto rematou as suas
contra-alegações nos seguintes termos:
«1°
Uma vez que a decisão recorrida não aplicou como sua ratio decidendi a dimensão
normativa reputada de inconstitucional, a decisão a proferir pelo Tribunal
Constitucional em nada influenciaria aquela decisão, pelo que atenta a natureza
instrumental do recurso de constitucionalidade, não deverá conhecer-se do
recurso.
2°
Para o caso de se conhecer deverá ser-lhe negado provimento, porque a dimensão
normativa efectivamente aplicada não viola qualquer das garantias de defesa
constantes no artigo 32° da Constituição.».
B – Fundamentação
6 – A primeira questão que urge enfrentar é a da impossibilidade do
conhecimento do objecto do recurso, por falta do pressuposto de recorribilidade
aventado no despacho do relator, no Tribunal Constitucional.
Como é consabido, o objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
apenas pode corporizar-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s)
de que a decisão recorrida haja feito efectiva aplicação ou que tenha
constituído o fundamento normativo do aí decidido (cf., entre muitos, os
Acórdãos deste Tribunal n.os 674/99, 155/2000, 157/2000 e 232/2002, publicados
no Diário da República II Série, respectivamente, de 25 de Fevereiro de 2000, 9
de Outubro de 2000, 9 de Outubro de 2000 e 15 de Julho de 2002).
Por outro lado, como tem sido reiterado pela jurisprudência
constitucional, os poderes de cognição deste Tribunal, no domínio da
fiscalização concreta, abarcam exclusivamente a sindicância de
inconstitucionalidades normativas, não lhe competindo o conhecimento de questões
de “constitucionalidade”, traduzidas na aplicação que a decisão haja feito,
directamente, de normas ou princípios constitucionais.
Porém, nada impede que, ao invés de se suscitar a
inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento
ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do
Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR, II Série, de 7
de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode
questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma
interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do
preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado
inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de,
tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a
saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sendo que, em tal
hipótese, é necessário que a norma controvertida perante o tribunal recorrido
tenha sido, efectivamente, aplicada in casu com a interpretação que se
considerou inconstitucional (e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo
proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º
197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de
1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 214/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
Está, pois, aqui em causa um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
desenhado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel Cardoso
da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3ª edição, Coimbra, 2007, pp.
76 e ss., e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da
República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo
jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de pensamento,
o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho
de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão n.º
192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).
Tal é a razão pela qual a intervenção do Tribunal Constitucional
apenas pode justificar-se naquelas situações em que a resolução da questão de
constitucionalidade possa, efectivamente, reflectir-se na decisão recorrida,
implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que só é
possível quando a norma cuja constitucionalidade se suscitou tenha efectivamente
constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento
normativo do aí decidido e não exista outro substrato normativo que a
justifique.
Nessa circunstância, então, o facto de a norma não ter sido aplicada
com o sentido questionado “determina, só por si, a falta de um dos requisitos do
recurso de constitucionalidade (a existência de uma possível interpretação
inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso quando essa
interpretação não tiver sido adoptada na decisão recorrida)” – cf. Acórdão n.º
197/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
7 – Ora, no caso dos autos, constata-se que o acórdão recorrido – e
é o fundamento normativo que o mesmo efectivamente aplicou que releva para
efeitos do recurso de constitucionalidade – não se abonou na interpretação dos
artigos 355.º, n.º 7 do artigo 356.º e n.º 2 do artigo 357.º, todos do Código de
Processo Penal que o recorrente sustenta.
Na verdade, na parte relevante afirma-se nele o seguinte:
«Ora, no essencial, as testemunhas, através dos seus depoimentos, limitaram-se a
confirmar o auto de notícia, cujo conteúdo retrata o que lhes foi dado ver e
observar.
E o facto de nesse auto se fazer alusão a uma ou outra afirmação do arguido,
tanto mais que produzida numa altura em que ainda não fora constituído como tal,
não conduz a que se devam ter por inadmissíveis aqueles depoimentos. E o mesmo
se diga, mutatis mutandis, com relação ao facto de nesses depoimentos as
testemunhas terem feito referência a esta ou aquela frase então proferida pelo
agora recorrente.[1]
De resto, a motivação de facto transcrita coloca o acento tónico não em
quaisquer conversas informais que possam ter existido entre o arguido e as
testemunhas, mas antes nos depoimentos destas e no auto de notícia, surgindo a
afirmação final do primeiro parágrafo [«...factos que apesar de já os conhecerem
também lhes foram relatados pelo arguido.»] como meramente residual e, no
contexto, destituída de qualquer relevância na fundamentação da matéria de
facto.
Em síntese, não tendo os depoimentos das testemunhas incidido sobre declarações
prestadas pelo agora recorrente, que ainda nem sequer fora constituído arguido
na altura em que terá proferido perante aquelas uma ou outra declaração, não
está vedado pelo n.º 7 do art. 356.° a inquirição das mesmas e,
consequentemente, a valoração desses depoimentos. ».
E após equacionar a inconstitucionalidade alegada pelo recorrente,
continuou o acórdão recorrido:
“Simplesmente, já se vê em face do que ficou exposto que não se
trata aqui de valorar declarações extraprocessuais feitas pelo arguido, antes se
está na presença de uma valoração dos depoimentos prestados em audiência”.
Resulta do exposto que enquanto a inconstitucionalidade alegada pelo
recorrente se consubstanciaria num critério que permitisse a reprodução em
julgamento de anteriores declarações informais do arguido, o acórdão recorrido
expressamente afirma que a valoração feita pelo tribunal não incidiu sobre
quaisquer declarações anteriormente prestadas pelo arguido, mas sobre o
depoimento, em si próprio, das pessoas que levantaram o auto de notícia e dele
fizeram constar a materialidade nele exposta.
Temos, portanto de concluir, que qualquer que fosse a decisão do
Tribunal Constitucional sobre a questão de constitucionalidade proposta, sempre
ela não teria a virtualidade de poder alterar a decisão recorrida.
Assim sendo, não se verifica o pressuposto da utilidade do recurso
de constitucionalidade.
Tirada esta conclusão, prejudicado se mostra o conhecimento do
mérito do recurso.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.
Lisboa, 12 de Maio de 2009
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Como é o caso, depois de ouvida a gravação da prova, da testemunha Joaquim
de Matos, a qual, em audiência, afirmou que, em relação aos factos, o arguido
terá dito que “sabia que era proibido, mas nunca pensou que fosse crime.”.