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Processo n.º 240/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1. A. pretendeu recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da
Relação de Lisboa que, negando provimento ao recurso interposto, confirmou
integralmente a decisão da 1.ª instância que a condenara pela prática de um
crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º n.º 1
do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 4 anos e 9 meses de
prisão.
O recurso, todavia, não foi admitido na Relação de Lisboa, com fundamento no
disposto nos artigos 400.º n.º 1 alínea f) e 414.º n.º 2 ambos do Código do
Processo Penal. A. reclamou então para o Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça, sustentando que o acórdão da Relação de Lisboa seria recorrível ao
abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código do Processo Penal, na
redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, regime
que lhe deveria ser aplicado por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do
artigo 5.º do mesmo Código, por ser aquele que vigorava à data da prática dos
factos e à data em que fora constituída arguida. Alegou, ainda, que a
interpretação do disposto no artigo 5.º e no artigo 400.º do Código do Processo
Penal no sentido de que a lei aplicável é a vigente no momento da prolação da
decisão em 1.ª instância seria inconstitucional, por limitar um direito
constitucionalmente consagrado no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
A reclamação foi indeferida essencialmente pelos seguintes fundamentos:
“ […]
No domínio dos recursos, e das normas que disciplinam a competência em razão da
hierarquia, a nova redacção do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, dispõe
que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis
proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), na nova redacção após a Lei n.º 48/2007,
determina a irrecorribilidade de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso,
pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de
prisão não superior a oito anos. Na redacção anterior, o critério da
recorribilidade em caso de idêntica decisão nas instâncias (“dupla conforme”)
partia da pena aplicável ao crime e não da pena concretamente aplicada.
A influência das modificações da lei de processo penal nos processos pendentes –
nos pressupostos, nos actos, na regulação sobre a prática e sobre as condições
de validade dos actos – pode ter consequências mais ou menos intensas,
requerendo fórmulas de resolução que permitam definir a lei aplicável.
O CPP contém norma – o artigo 5.º – que dispõe a este respeito que a nova lei se
aplica imediatamente (isto é, também aos processos iniciados anteriormente à sua
vigência), sem prejuízo, naturalmente, da validade dos actos realizados na
vigência da lei anterior – artigo 5º, n.º 1, tudo na decorrência do princípio
processual tempus regit actum.
Todavia, no respeito por princípios materiais ligados à posição do arguido, ou
por exigências de coerência sistemática e harmonia intra-processual, a lei nova
não se aplicará aos processos iniciados anteriormente quando da aplicabilidade
imediata possa resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação
processual do arguido ou quebra de harmonia e unidade dos vários actos do
processo.
Nesta confluência de princípios e de compatibilidade entre a regra tempus regit
actum e a posição processual de arguido, vista esta na perspectiva processual
material das garantias de defesa, a modificação do sistema de recursos, ou das
regras sobre a admissibilidade do recurso podem suscitar problemas específicos.
A instância (a fase) de recurso tem autonomia relativa, mas processualmente
relevante, na estrutura e na dinâmica do processo, tanto nos pressupostos em que
o recurso é admissível, como nas sequências estritamente procedimentais de
desenvolvimento e julgamento.
Estando, por isso, em causa o exercício de direitos processuais de um sujeito
processual, que são inerentes e se confundem com a própria fase de recurso, o
momento relevante a ter em conta para verificar a existência dos respectivos
pressupostos de exercício será aquele (ou a prática do acto) que primeiramente
define no processo a situação do sujeito interessado e que seja susceptível de
ser questionada como objecto do recurso com a abertura da respectiva fase.
No que respeita à arguida, o momento relevante do ponto de vista do titular do
direito ao recurso é coincidente com o momento em que é proferida a decisão de
que se pretende recorrer, pois é esta que contém e fixa os elementos
determinantes para a formulação do juízo de interessado sobre o direito e o
exercício do direito de recorrer.
Deste modo, a lei reguladora da admissibilidade do recurso – e, por
consequência, da definição do tribunal de recurso – será a que vigorar no
momento em que ficam definidas as condições e os pressupostos processuais do
próprio direito ao recurso, isto é, no momento em que for primeiramente
proferida uma decisão sobre a matéria da causa, ou seja, a decisão da primeira
instância.
No caso, a decisão que primeiro se pronunciou foi proferida, como se referiu, já
na vigência do regime de recursos após a entrada em vigor das alterações
introduzidas pela Lei n.º 48/2007.
Anteriormente a este acto não existia no processo situação processual definida
no que respeita aos pressupostos de direito de recorrer, seja na integração do
interesse em agir, legitimidade, seja nas condições objectivas dependentes da
natureza e conteúdo da decisão: decisão desfavorável, condenação e definição do
crime, pena aplicada.
Os pressupostos de recorribilidade são, pois, os definidos nesse momento, sem
campo de intervenção do artigo 5º, n.º 1, do CPP, por se não contemplar um caso
de confluência de regimes.
Esta solução resulta também da argumentação e decisão do Acórdão de Fixação de
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.02.09 – Proc. n.º
1957/08–3.ª, que apenas considerou aplicável a anterior redacção da alínea f) do
n.º 1 do art. 400.º do CPP, aos casos em que a decisão de 1.ª instância tivesse
sido proferida anteriormente ao início da vigência da Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto: “nos termos dos artigos 432º, n.º 1, alínea b), e 400º, n.º 1, alínea f)
do CPP, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação,
após a entrada em vigor da referida Lei, em processo por crime a que seja
aplicável pena de prisão superior a oito anos, que confirme decisão de 1.ª
instância anterior àquela data”.
E não se coloca, manifestamente, qualquer questão de constitucionalidade, porque
o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no artigo 32º, n.º 1, da
Constituição, se bastar com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição,
que a reclamante já utilizou ao recorrer para o tribunal da Relação.
O recurso não é, assim, admissível (artigos 432º, alínea b), e 400º, n.º 1,
alínea f) do CPP).
[…]”
2. Inconformada, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de
Novembro (LTC), “pretendendo com o mesmo ver apreciada a inconstitucionalidade
da norma contida na al. f) do n.º 1 do art. 410.º do Cod. Proc. Penal, quando
interpretada no sentido com que foi aplicada na decisão recorrida, ou seja, que,
nos termos dos art.ºs 432º, n.º 1, alínea b) e 400º, n.º 1, alínea f) do CPP, na
redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
(unicamente) é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela
relação, após a entrada em vigor da referida Lei, em processo por crime a que
seja aplicável pena de prisão de máximo superior a 8 anos, que confirme decisão
de 1.ª instância anterior àquela data.”
O recurso foi admitido no Tribunal recorrido.
No Tribunal Constitucional a recorrente foi convidada a especificar o objecto do
seu recurso, tendo respondido nos seguintes termos:
“ […]
Com efeito, o que na verdade a requerente visa no presente recurso, é ver
apreciada, por violação dos mais elementares direitos de defesa do arguido –
assegurados, designadamente, nos art.ºs 18º, n.ºs 2 e 3, 29º, n.º 4, 2ª parte e
32.º, n.º 1, todos da nossa Lei Fundamental – a inconstitucionalidade das normas
contidas nas disposições conjugadas dos art.ºs 5º, n.ºs 1 e 2, al. a), 400.º,
n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc. Penal, quando
interpretadas no sentido preconizado na douta decisão recorrida, a qual se dá
aqui como inteiramente reproduzida”.
[…] ”
Prosseguindo o recurso os seus trâmites, alegou a recorrente, concluindo:
“ […]
I – O presente recurso tem por objecto a fiscalização concreta da interpretação
normativa do preceituado nas disposições conjugadas dos art.ºs 5º, n.ºs 1 e 2,
al. a), 400º, n.º 1, al. f) e 432º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc Penal, na
redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, efectuada pela
decisão recorrida e
II – Proferida no seguimento do decretado no douto Acórdão de Fixação de
Jurisprudência do S.T.J., datado de 09.02.18, segundo o qual, nos termos dos
artºs 432º, n.º 1, al. b) e 400º, n.º 1, al. f), na redacção anterior à entrada
em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, (unicamente) é recorrível o
acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em
vigor da referida Lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão
superior a 8 anos, que confirme decisão de 1.ª instância anterior àquela data,
III – Por se entender ser a mesma inconstitucional, na medida em que constitui
uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo
penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de
acesso à justiça (art.ºs 18º, n.ºs 2 e 3, 20, n.º 1, 29º, n.º 4, 2.ª parte e
32º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa),
IV – Inconstitucionalidade que foi tempestiva, oportuna e adequadamente
suscitada pela arguida na reclamação por ela apresentada contra o despacho
proferido pelo Exmº Desembargador-Relator do processo que não admitiu, por
inadmissibilidade legal, nos termos conjugados dos art.ºs 400º, n.º 1, al. f) e
414º, n.º 2, ambos do Cod. Proc. Penal, a subida para o S.T.J. do recurso
interposto pela recorrente do Acórdão condenatório prolatado pelo Tribunal da
Relação de Lisboa.
V – Daqui que a douta decisão recorrida não deva proceder,
VI – Tendo-se em conta os motivos e fundamentos que atrás se deixaram aludidos
no seu lugar próprio,
VII – Pelo que, aplicando-se a redacção anterior do art.º 400º do Cod. Proc.
Penal, impõe-se tirar douto Acórdão que admita a subida para o S.T.J. do recurso
interposto nos autos pela arguida da sentença condenatória proferida pelo
Tribunal da Relação de Lisboa,
VIII – Sob pena de manifesta inconstitucionalidade, por violação dos mais
elementares direitos de defesa do arguido – constitucionalmente consagrados e
assegurados, nomeadamente, nos art.ºs 18º, n.ºs 2 e 3, 29º, n.º 4, 2.ª parte e
32º, n.º 1, todos da nossa Lei Fundamental – das normas contidas nos art.ºs 5º,
n.ºs 1 e 2, al. a), 400º, n.º 1, al. f), 414º, n.º 2, 417º, n.º 6, 420º, n.º 1 e
432º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc. Penal, quando interpretadas no sentido
preconizado na douta decisão em crise, segundo a qual mesmo em processos
iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não será
admissível recurso de Acórdãos condenatórios prolatados em recurso pelas
Relações que, a partir de 15 de Setembro de 2007, confirmem decisão de 1.ª
instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
[…] ”
O Ministério Público apresentou a sua contra-alegação, enunciando as seguintes
conclusões:
“ […]
1.º
Não estando constitucionalmente assegurado o direito do arguido a um triplo grau
de jurisdição, não pode considerar-se como “lei processual penal material” a que
define os pressupostos de admissibilidade do recurso que se pretende interpor
para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão, confirmatório da condenação,
proferido pela Relação – pelo que nada impede que possa ser imediatamente
aplicável a lei nova, que restringe o acesso ao Supremo.
2º
A interpretação normativa, constante do Acórdão uniformizador nº 4/09 – e a que
a decisão recorrida faz apelo – traduzida em considerar momento processualmente
relevante para aferir dos pressupostos da recorribilidade para o Supremo aquele
em que foi proferida a sentença condenatória da 1ª instância conforma-se
plenamente com a tutela e salvaguarda das legítimas expectativas do arguido –
que, ao recorrer para a Relação, já podia e devia saber que a lei nova em vigor
lhe vedava o acesso a um terceiro grau de jurisdição, moldando em função de tal
circunstância a sua estratégia processual e o objecto e fundamentação constante
da motivação do recurso para a Relação.
3º
Não existindo, em processo penal, qualquer tradição jurídica consolidada,
segundo a qual os pressupostos do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça seriam
sempre definidos pela lei vigente no momento em que o inquérito se iniciou, não
ocorre, com a dita interpretação normativa, qualquer frustração excessivamente
onerosa de expectativas fundadas do arguido, susceptíveis de enquadramento no
âmbito do princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Lei Fundamental.
4º
Termos em que deverá improceder o presente recurso.
[…] ”
II. Fundamentação
3. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem natureza
normativa, visando apreciar a conformidade constitucional das normas aplicadas
como ratio decidendi na decisão recorrida e identificadas pelo recorrente
aquando da interposição do recurso. Nessa fase, a recorrente esclareceu que
pretendia “ver apreciada (…) a inconstitucionalidade das normas contidas nas
disposições conjugadas dos art.ºs 5º, n.ºs 1 e 2, al. a), 400.º, n.º 1, al. f) e
432.º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc. Penal, (...)”.
No entanto, nas conclusões da sua alegação, não obstante reafirme que “o
presente recurso tem por objecto a fiscalização concreta da interpretação
normativa do preceituado nas disposições conjugadas dos art.ºs 5º, n.ºs 1 e 2,
al. a), 400º, n.º 1, al. f) e 432º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc Penal, na
redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, efectuada pela
decisão recorrida”, conclui pela “manifesta inconstitucionalidade, das normas
contidas nos art.ºs 5º, n.ºs 1 e 2, al. a), 400º, n.º 1, al. f), 414º, n.º 2,
417º, n.º 6, 420º, n.º 1 e 432º, n.º 1, al. b), todos do Cod. Proc. Penal,
quando interpretadas no sentido preconizado na douta decisão em crise, segundo a
qual mesmo em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007,
de 29 de Agosto, não será admissível recurso de Acórdãos condenatórios
prolatados em recurso pelas Relações que, a partir de 15 de Setembro de 2007,
confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8
anos”.
Ora, as normas dos artigos 414º n.º 2, 417º n.º 6 e 420º n.º 1 do Código do
Processo Penal estão excluídas da análise do Tribunal quer porque o objecto do
recurso se mostrava já fixado desde a fase da sua interposição, não podendo ser
posteriormente ampliado, quer ainda porque, atenta a natureza instrumental do
presente recurso, a apreciação da questão de inconstitucionalidade está
condicionada a uma efectiva aplicação da norma impugnada e o certo é que a
decisão recorrida não aplicou tais normativos.
Assim, o julgamento terá como objecto a norma dos artigos 432.º n.º 1 alínea b)
e 400.º n.º 1 alínea f) do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º
48/2007 de 29 de Agosto, em conjugação com o disposto no artigo 5.º n.º 1 e n.º
2 alínea a) do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos
iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso
de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão de 1.ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e
apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
4. A recorrente alega, em suma, que a interpretação normativa objecto do
presente recurso é inconstitucional na medida em que constitui uma limitação
desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal,
restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à
justiça (artigos 18.º n.ºs 2 e 3, 20.º n.º 1, 29.º n.º 4, 2.ª parte, e 32.º n.º
1, todos da Constituição).
O Tribunal Constitucional pronunciou-se já, por diversas vezes, sobre questão
semelhante a propósito da norma do artigo 400.º n.º 1 alínea f) do Código do
Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, que
estabelecia: “ 1. Não é admissível recurso: (…) f) De acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância,
em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito
anos, mesmo em caso de concurso de infracções; (...)”
No Acórdão n.º 189/2001 o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade da
norma do artigo 400.º n.º 1 alínea f) do Código do Processo Penal, interpretada
no sentido de que, em caso de concurso de infracções, relevantes para aferir da
(in)admissibilidade de recurso de acórdãos das relações que confirmem decisão
de 1.ª instância, são as penas abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes
cometidos e não a soma das molduras abstractas de cada um dos crimes em
concurso, entendimento este que foi sendo reiterado nos Acórdãos n.ºs 336/2001,
369/2001, 435/2001, 490/2003, 610/2004, 2/2006 e 36/2007 (todos disponíveis em
www. tribunalconstitucional.pt).
Ficou dito no primeiro dos referidos arestos:
“ […]
6. – A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas
normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os
processos das diferentes espécies.
Importa, todavia, averiguar em que medida a existência de um duplo grau de
jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os
que se reportam às garantias de defesa, ao direito de acesso ao direito e à
tutela judiciária efectiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional
tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Assim, a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito
ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal,
por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a
consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento
específico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de
1997, no artigo 32º, nº1 da Constituição, do direito ao recurso, mostra que o
legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional
expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal,
sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial
das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo
grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os
sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz
nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto ás
decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos
fundamentais (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 265/94, in “Acórdãos do
Tribunal Constitucional”, 27º V., pág. 751 e ss).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o
recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no nº1
do artigo 32º (O processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a
considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais
que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou
decisões proferidas na pendência do processo (v.g., quer de despachos
interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos nºs 118/90,259/88,353/91, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 15º,pg.397; 12º, pg.735 e 19º, pg.563,
respectivamente, e Acórdão nº 30/2001, sobre a irrecorribilidade da decisão
instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação
particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito),
como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não
tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se
garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo
STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº209/90, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 16º. V., pg. 553)
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a
instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões
de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta
limitação à recorribilidadade das decisões penais condenatórias tem, assim, um
fundamento razoável.[...]
Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao
legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer
acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como
decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de
defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do
qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal
limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido
consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não
abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma
instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos
graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância
superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de
pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um
fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos
objectivos da última reforma do processo penal.
Tem, por isso de se concluir que a norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do CPP
não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da
Constituição.”
O mesmo entendimento foi adoptado nos Acórdãos n.ºs 451/2003, 495/2003,
102/2004 e 640/04 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No Acórdão n.º 64/2006, tirado em Plenário (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), em recurso interposto pelo Ministério Público ao
abrigo do disposto no artigo 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o
Tribunal “reafirm[ou] o juízo de não inconstitucionalidade constante do acórdão
n.º 640/2004, nos termos e pelos fundamentos dele constantes”.
Escreveu-se neste último acórdão, na parte que para agora releva, o seguinte:
“ […]
4. Qualquer destas normas [as das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400º do
Código de Processo Penal] foi já sujeita ao escrutínio de constitucionalidade,
quanto à perspectiva da violação do direito ao recurso, questão que se reconduz
ao problema de saber se o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição impõe um triplo grau de jurisdição. Sempre sem sucesso, como
pode ver‑se nos acórdãos n.ºs 49/03 e 377/03 [no que toca à norma da alínea e)]
e nos acórdãos n.ºs 189/01, 336/01, 369/01, 495/03 e 102/04 [no que respeita à
alínea f)], todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.
Lembrando esta jurisprudência, disse-se no acórdão n.º 495/03 (que pode
consultar-se em http://www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
“Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que
«no nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em
processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas
a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo
recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a
oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de
facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de
jurisdição, ou ao duplo recurso” (acórdão nº 215/01, não publicado)».
Esta afirmação, feita no acórdão n.º 435/01 (disponível, tal como o acórdão n.º
215/01, em http://www.tribunalconstitucional.pt) foi proferida justamente a
propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da “norma do artigo
400º, nº1, alínea f) do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal
como, aliás, já fizera nos acórdãos n.ºs 189/01 e 369/01 (também disponíveis em
http://www.tribunalconstitucional.pt) que “ não viola o princípio das garantias
de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição”.
A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto
tal norma interpretada no sentido de que a mesma se “refere (...) claramente à
moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8
anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso
de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de
acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira
instância” (cit. acórdão n.º 189/01).
Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de
constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso
que interpôs, no acórdão n.º 451/03 (também disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes termos:
«É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi
apreciada no Acórdão n.º 189/01 – neste a questão tinha directamente a ver com a
pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º n.º 1 da Constituição, a
questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no
acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais
os limites de conformação que o artigo 32º n.º 1 da CRP impõe ao legislador
ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a
um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma
restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
[...]”
A norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo 400.º do Código de Processo
Penal voltou a ser apreciada da decisão confirmada pelo Acórdão n.º 162/2006
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), desta vez interpretada no sentido
de que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em
recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância que condenou o
arguido por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos,
mesmo que no processo o arguido tenha sido acusado, pronunciado e julgado por
crime a que é aplicável pena de prisão superior a oito anos.
5. A Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, alterou a redacção da alínea f) do n.º 1
do artigo 400.º do Código do Processo Penal, a qual dispõe agora que: “1. Não é
admissível recurso: (…) f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso,
pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão
não superior a 8 anos”, situação que, para além do mais, não prejudica – ao
contrário que podia suceder em casos anteriormente apreciados pelo Tribunal – a
determinação prévia do direito ao recurso e das condições do respectivo
exercício pelo arguido, uma vez que não o condiciona ao comportamento de outros
sujeitos processuais, nomeadamente ao comportamento do Ministério Público, pois
a admissibilidade do recurso é agora aferida objectivamente, em função da pena
concretamente aplicada ao caso.
A razão de ser desta norma continua a ser a necessidade de limitar a intervenção
do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade.
Assim, não obstante a interpretação normativa em questão no presente recurso não
coincidir exactamente com nenhuma das que foi objecto dos acórdãos supra
referidos nada impede que as razões aduzidas nestes arestos, designadamente no
Acórdão n.º 189/01, sejam transponíveis para o caso.
Na verdade, é no confronto da norma com as garantias de defesa do arguido em
processo penal, designadamente o direito ao recurso, e com garantia de acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efectiva, que a questão de
inconstitucionalidade se coloca. E a solução decorre, uma vez mais, dos limites
com que a Constituição vincula o legislador ordinário em matéria de processo
penal, e do reconhecimento de que, nesta área, lhe conferiu liberdade de
conformação, não impondo o estabelecimento de um triplo grau de jurisdição.
A restrição ao recurso é, em suma, constitucionalmente admissível, desde que não
se configure como desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
No entanto, a interpretação normativa sindicada apresenta-se como “racionalmente
justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de
questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso
concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o
direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a
pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto
à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03).
Aderindo à fundamentação dos mencionados acórdãos, haverá que concluir no
sentido de que a interpretação normativa sindicada não viola as garantias de
defesa do arguido em processo criminal, incluindo o direito ao recurso, nem o
direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
6. Sucede, porém, que na interpretação normativa sub judice está em causa a
aplicação da lei processual penal no tempo, tendo-se entendido ser aplicável a
norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na
redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, aos processos em que a sentença
condenatória de 1.ª instância tenha sido proferida depois da entrada em vigor
daquela lei, não obstante ser mais restritiva, quanto à admissibilidade de
recurso, do que a lei vigente no momento em que o processo se iniciou, o que
confronta a norma com o princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º da
Constituição.
Na verdade, na interpretação normativa sindicada, a inadmissibilidade de recurso
de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem
decisão da 1.ª instância e condenem em pena de prisão não superior a 8 anos,
decorre de se aplicar a nova redacção conferida à alínea f) do n.º 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal nos processos iniciados anteriormente à
vigência da Lei n.º 48/2007, em que a sentença de 1ª instância foi proferida
após a entrada em vigor dessa lei.
Deve entender-se o critério fixado no aludido artigo 29º da Constituição, quanto
à aplicação da lei de processo penal no tempo, em sintonia com o que se dispõe
no artigo 5º do Código de Processo Penal: a lei nova não se aplica aos processos
iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa aplicação,
uma limitação dos direitos de defesa do arguido. Todavia, o Tribunal também tem
entendido, como já se fez notar, que a garantia consagrada no n.º 1 do artigo
32º da Constituição, quanto ao recurso, não implica, obrigatoriamente, um duplo
grau de recurso, designadamente perante acórdãos condenatórios proferidos em
recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância na qual o
arguido foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos.
Deste modo, do aludido artigo 29º da Constituição não é possível retirar uma
proibição absoluta de aplicação imediata de lei 'nova', em matéria de recursos
em processo penal, da qual resulte a referida limitação, impedindo o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça de recursos de acórdãos condenatórios proferidos
pelas relações nas aludidas circunstâncias.
É certo que o aludido princípio constitucional proíbe que da aplicação da lei
nova possa resultar uma inesperada e imprevisível alteração do regime de
recursos, em processos pendentes, que afecte o exercício do direito de defesa do
arguido; mas o certo é que o momento relevante para o exercício do direito de
defesa do arguido, designadamente no que respeita à estratégia processual a
adoptar, coincide com a prolação da sentença condenatória em primeira instância
e a sua notificação ao arguido, pois só então se estabilizam os elementos
essenciais a atender no exercício do aludido direito de defesa. Mostra-se, por
isso, preservado, no essencial, o exercício do direito de defesa do arguido
quanto à oportunidade da estratégia processual a adoptar.
Não pode, por isso, afirmar-se que, a norma constitui uma desproporcionada
limitação das garantias de defesa do arguido, restringindo de forma inadmissível
o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.
III. Decisão
7. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao
recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 26 de Maio de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos