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Processo nº 1061/07
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A 30 de Janeiro de 1997, em assembleia geral extraordinária da Liga
Portuguesa de Futebol Profissional, deliberou-se mandatar o Presidente e/ou
Comissão Executiva da Liga para que esta, na qualidade de gestora de negócios do
clubes nela filiados, requeresse a adesão ao processo extraordinário de
regularização das dívidas ao Fisco e à Segurança Social previsto no Decreto-lei
nº 124/96, emitido ao abrigo da autorização legislativa conferida pela Lei nº
10-B/96.
Na sequência desta deliberação, a Liga e a Federação Portuguesa de Futebol,
agindo em nome dos clubes e requerendo a adesão ao referido processo de
regularização, propuseram oferecer em dação em pagamento, e para liquidação das
dívidas ao Fisco existentes até 31 de Julho de 1996, as receitas futuras das
apostas mútuas desportivas a que os clubes tinham direito, pelo prazo máximo de
doze anos e meio, a contar de 1 de Julho de 1998 até 31 de Dezembro de 2010.
Considerando que a dação em pagamento se encontrava prevista tanto no Código
Civil quanto no Código de Processo Tributário, nos termos das alterações a este
último introduzidas pelo Decreto-Lei nº 125/96 (mormente, aos seus artigos nºs
109º-A, 284º e 284º-A), o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, com
delegação de competências do Ministro das Finanças, emitiu o Despacho nº
7/98-XIII, de 4 de Março de 1998, em que se aceitava, como forma de extinção das
dívidas fiscais globais dos clubes existentes até 31 de Julho de 1996, a
referida dação em pagamento das receitas das apostas mútuas desportivas
oferecidas pela Liga e pela Federação durante o período de 1 de Julho de 1998
até 31 de Dezembro de 2010, aceitando-se igualmente o valor de avaliação das
ditas receitas fixada por comissão técnica entretanto nomeada para o efeito.
Mais se determinava, no referido Despacho, que se nomeasse uma comissão de
acompanhamento “para análise da situação tributária dos clubes ao longo do
período referido (...)”, comissão à qual competiria, i.a. “avaliar, no segundo
semestre de 2004 e de 2010, o cumprimento [do presente despacho] e quantificar
as importâncias recebidas.”
2. Neste contexto, determinava o ponto 7 do Despacho do SEAF:
“No caso de metade do valor arrecadado ser insuficiente para o pagamento de
metade da dívida global ao fisco apurada no segundo semestre de 2004 e de 2010,
a Liga e a Federação deverão proceder ao pagamento da diferença até ao valor
dessas metades.”
3. Em 17 de Dezembro de 2004 foi a Liga Portuguesa de Futebol
Profissional notificada para proceder ao pagamento da quantia de 19.957.145.000
euros, resultante da diferença existente entre o valor arrecadado com as verbas
do totobola durante o período que mediara entre 1 de Julho de 1998 e Junho de
2004 e o valor de metade da dívida global que os clubes haviam pretendido
regularizar.
A Liga interpôs então, junto do Tribunal Administrativo Central Norte, acção
administrativa especial pedindo a declaração de nulidade do ponto 7 do Despacho
do SEAF. Não lhe deu razão o tribunal, que julgou totalmente improcedente a
acção. Recorreu a Liga para o Supremo Tribunal Administrativo que confirmou a
decisão do TCA.
4. Nas suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal, invocou a Liga
(tal, como aliás, já o fizera perante o Tribunal Administrativo Central) a
questão da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 109º-A, 284º, e
284º -A do Código de Procedimento Tributário, quando interpretadas no sentido
segundo o qual “seria possível à Administração Tributária endossar à recorrente
[Liga] a responsabilidade pelo pagamento de dívidas fiscais alheias em virtude
da sua participação (apenas na qualidade de gestora de negócios dos
contribuintes relapsos) num procedimento tributário de dação em pagamento.”
Fundamentos do juízo de inconstitucionalidade seriam, de acordo com a
recorrente, por um lado, a “a violação do princípio da especialidade das pessoas
colectivas, recebido no artigo 12º, nº 2 da CRP”; e, por outro, a violação do
disposto no artigo 103º, nºs 2 e 3 da CRP, bem como “ do princípio do Estado de
direito, ínsito no artigo 1º da CRP”. (fls. 536 dos autos).
À questão, assim colocada, respondeu o Supremo Tribunal em acórdão
datado de 23/5/07:
“[…]
Alega, por último, a recorrente que uma interpretação dos artigos 109.º-A, 284.º
e 284.º-A do CPT segundo a qual seria possível à AT endossar-lhe a
responsabilidade pelo pagamento de dívidas fiscais alheias em virtude da sua
participação, na qualidade de gestora de negócios dos contribuintes relapsos,
num procedimento tributário de dação em pagamento é manifestamente
inconstitucional por violação do princípio da especialidade das pessoas
colectivas, recebido no artigo 12.º, n.º 2 da CRP, e por violação do artigo
103.º, n.ºs 2 e 3 da CRP e do princípio do Estado de direito democrático, a que
corresponde o artigo 2.º da CRP.
Dispõe o n.º 2 do artigo 12.º da CRP que as pessoas colectivas gozam dos
direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
Como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP anotada, as pessoas
colectivas não podem ser titulares de todos os direitos e deveres fundamentais
mas sim apenas daqueles que sejam compatíveis com a sua natureza; saber quais
são eles só pode resolver-se casuisticamente. Assim, não serão aplicáveis, por
exemplo, o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir
família mas já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de
domicílio, o segredo de correspondência e o direito de propriedade.
Que o direito obrigacional não é incompatível com a natureza das pessoas
colectivas parece-nos evidente e que neste domínio não existe nenhuma proibição
absoluta de as pessoas colectivas celebrarem contratos também é verdade, pelo
que se não vê qualquer violação deste preceito constitucional.
Tanto mais que, como se deixou dito, o facto de a recorrente ter iniciado este
procedimento como gestora de negócios dos clubes e ter subscrito o auto de dação
como sua representante não significa que não pudesse ter assumido, como assumiu,
responsabilidades na garantia da dívida, ou seja, contrariamente ao que alega a
recorrente, esta assumiu, enquanto entidade responsável pelo cumprimento do
acordo de dação, subscrito em nome dos seus associados, cumulativamente com
estes, a obrigação de satisfazer as importâncias não susceptíveis de ser
cobradas pelas receitas das apostas mútuas desportivas.
E essa conduta não é proibida pelo texto constitucional.
[…]
Quanto ao invocado artigo 103.º da CRP, dispõem os seus números 2 e 3 que os
impostos são criados por lei, que determina a incidência, os benefícios fiscais
e as garantias dos contribuintes, não podendo ninguém ser obrigado a pagar
impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham
natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da
lei.
O princípio da legalidade contido neste preceito implica a tipicidade legal dos
elementos essenciais dos impostos que são a incidência, a taxa, os benefícios
fiscais e as garantias dos contribuintes.
Ora, a assunção de uma obrigação tributária por um terceiro não está abrangida
por essa reserva de lei nem a incidência subjectiva do imposto é alterada por
tal assunção, pelo que, estando a possibilidade de assunção de dívidas fiscais
por terceiros legalmente prevista na lei, designadamente no DL 124/96, não
ocorre a alegada inconstitucionalidade.
Finalmente, a conduta da AF que se limitou a actuar no uso das suas competências
e no respeito das disposições legais aplicáveis, tendo em vista o superior
interesse público da cobrança das receitas fiscais e da regularização da
situação de incumprimento dos clubes devedores, de modo algum violou o princípio
do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP, e em especial
o alegado princípio da segurança jurídica nele ínsito.
Razão por que também esta invocada inconstitucionalidades se não verifica.
[…].”
5. Veio então a Liga arguir a nulidade deste acórdão, invocando para
tanto o facto de não ter sido notificada do parecer que havia sido emitido pelo
Ministério Público ao abrigo do artigo 146º, nº 1 do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos.
A tal parecer se referira a decisão do STA nos seguintes termos:
“Notificado, para os efeitos do artigo 146º, nº 1, do CPTA, veio o MP, em defesa
dos interesses públicos especialmente relevantes no caso dos autos,
manifestar-se no sentido de que é de confirmar o acórdão recorrido, por nele se
ter feito boa interpretação e aplicação da lei, na linha do Parecer nº 45/98, de
15 de Junho, do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República.» ( fls.
602 dos autos).
Sustentou a Liga que, o facto de não ter sido ela própria notificada deste
parecer do Ministério Público, implicava uma violação do princípio do
contraditório que não poderia deixar de gerar nulidade processual. E alegou
ainda que seria inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade
ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2º da CRP) e dos direitos
fundamentais a uma tutela judicial efectiva e a um processo equitativo (artigo
20º, nºs 1 e 4 da CRP), interpretação diversa do disposto no artigo 201º, nº 1
do Código de Processo Civil, feita no sentido segundo a qual não constituiria
nulidade processual «a falta de notificação do parecer do MP emitido ao abrigo
do artigo 146º do CPTA».
A esta outra questão de constitucionalidade respondeu o STA, em acórdão datado
de 19/9/07:
“Como se vê, no seu parecer, o MP não levanta qualquer questão nova nem suscita
qualquer novo vício, antes se limitando a afirmar a sua concordância com o
acórdão recorrido por nele se ter feito boa interpretação e aplicação da lei na
linha do Parecer 45/98 da PGR abundantemente citado pelo tribunal a quo.
Aliás, a recorrente nem sequer pode dizer que foi surpreendida com a citação
deste parecer da PGR já que o mesmo se mostra, como o MP salienta,
abundantemente citado na decisão recorrida, pelo que, mesmo relativamente a ele,
a recorrente pôde exercer o seu direito de defesa e de contraditório quando
recorreu daquela decisão para este Tribunal.
Assim, o parecer que não foi notificado à recorrente não contém qualquer matéria
inovatória que pudesse surpreendê-la, pelo que a omissão da sua notificação não
teve qualquer influência no exame ou na decisão da causa.
Razão por que se não produziu a arguida nulidade.
Sem que tal entendimento viole qualquer princípio constitucional,
designadamente, o princípio da proporcionalidade ínsito no princípio do Estado
de direito democrático (artigo 2º da CRP) e dos direitos fundamentais a uma
tutela judicial efectiva e a um processo equitativo (art. 20º, nºs 1 e 4º, da
CRP).
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional, ainda que no âmbito da LPTA, se
pronunciou já no sentido de não ser inconstitucional a não notificação do
recorrente para se pronunciar sobre o parecer que o MP emitia, na vista final do
processo, no qual se não levantasse nenhuma questão nova que pudesse conduzir à
rejeição do recurso (Ac. 185/01, de 2/5).” (fls. 654 dos autos).
6. A Liga interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
No respectivo requerimento, identificou a recorrente duas questões de
constitucionalidade.
Na primeira, reportada ao acórdão do STA que indeferiria a arguição de nulidade,
pede-se que o Tribunal aprecie da constitucionalidade do “art. 201, nº 1 do CPC,
em articulação com o artigo 146º, nº 2 do CPTA, na interpretação segundo a qual
a falta de notificação do parecer do Mº Pº que, emitido ao abrigo daquele artigo
146º do CPTA, se pronuncia sobre o mérito do recurso jurisdicional, assim
impedindo a parte de exercer o direito processual de resposta ao referido
parecer, não constitui nulidade processual”. São invocadas, a fundamentar o
juízo de inconstitucionalidade, tanto a violação do princípio da
proporcionalidade e da justiça ínsitos no princípio do Estado de direito
democrático (artigo 2º da CRP), quanto a violação do direito fundamental a uma
tutela judicial efectiva e a um processo equitativo (artigo 20º, nº 1 e 4, da
CRP).
Na segunda, reportada ao acórdão do STA datado de 23 de Maio de 2007, pede-se
que o Tribunal aprecie da constitucionalidade do complexo normativo formado
pelos arts. 109º-A, 284ºe 284º-A do Código de Processo Tributário (na redacção
em vigor à data da emissão do despacho do SEAF), «na interpretação segundo a
qual a Administração Tributária pode, no âmbito de um procedimento de dação em
pagamento, atribuir a um terceiro que não o devedor a responsabilidade
subsidiária pelo pagamento das dívidas fiscais [em dívida], em virtude da
participação desse terceiro no respectivo procedimento tributário como gestor de
negócios, mandatário e representante dos contribuintes devedores.».
São aqui invocadas, a fundamentar o juízo de inconstitucionalidade, tanto a
violação do princípio da especialidade das pessoas colectivas (artigo 12º, nº 2
da CRP), quanto a violação do princípio da legalidade fiscal (arts. 103º, nºs 2
e 3) e do princípio do Estado de direito democrático, em especial na sua
dimensão de segurança jurídica (artigo 2º da CRP).
7. Notificados, apresentaram alegações a Liga, recorrente, e o
Ministério das Finanças, recorrido.
Concluiu a primeira do seguinte modo:
“[…]
1.ª Vem o presente recurso interposto de ambos os Acórdãos – a 23 de Maio de
2007 e a 19 de Setembro de 2007 – proferidos no recurso jurisdicional que correu
os seus termos, sob o n.º 233/07, na 2.ª Secção (Contencioso Tributário) do
Supremo Tribunal Administrativo.
Quanto ao Acórdão de 19 de Setembro de 2007,
2.ª À interpretação do art. 20.º da CRP não pode ser alheio o sentido com que o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vem interpretando o art. 6.º, n.º 1, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que é, de resto, a norma que está na
génese constitucional do direito fundamental a um processo equitativo tal como
ele foi consagrado no nosso ordenamento constitucional.
3.ª O princípio do contraditório, pedra angular do núcleo essencial do direito a
uma tutela judicial efectiva e a um processo equitativo, compreende pois o
direito a conhecer e comentar todas as opiniões e observações que tenham lugar
no processo e que visem aconselhar o tribunal ou influenciar a sua decisão,
mesmo quando essas observações sejam provenientes de terceiros supra-partes,
imparciais e objectivos, incluindo magistrados do M.º P.º
4.ª De resto, num processo como o dos presentes autos – em que está em causa um
acto administrativo em matéria tributária e, mediatamente, a cobrança de
tributos fiscais – não é de todo líquido sequer que o M.º P.º assuma as vestes
de um terceiro supra-partes, imparcial e objectivo.
5.ª O art. 146.º do CPTA introduziu, em matéria de notificação às partes dos
pareceres do M.º P.º, um regime inovador: este preceito institui um verdadeiro
direito processual das partes a se pronunciarem acerca daqueles pareceres.
6.ª No contexto do CPTA, existe sempre um direito das partes a emitir pronúncia
quanto ao parecer do M.º P.º, qualquer que seja o seu conteúdo ou sentido.
7.ª Não é, pois, imprescindível que a irregularidade cometida com a omissão de
notificação do parecer do M.º P.º emitido ao abrigo do art. 146.º do CPTA tenha
efectivamente influído no juízo do tribunal: é suficiente que ela seja apta a
influir nessa decisão para que a irregularidade assim cometida redunde numa
nulidade processual.
8.ª A omissão da notificação às partes do parecer do M.º P.º, e a
impossibilidade delas se pronunciarem acerca deste parecer, é manifestamente
apta a, em abstracto, influir na decisão do tribunal.
9.ª E, com efeito, mesmo que o M.º P.º tenha repescado argumentos já discutidos
nos autos, a verdade é que a sua invocação pelo M.º P.º - que não é parte na
causa e que tem por missão emitir pareceres objectivos e imparciais – constitui
um ascendente sobre o tribunal: o princípio do contraditório exige e impõe que
as partes possam refutar este parecer qualificado trazido aos autos.
10.ª É inequívoco que o direito fundamental a uma tutela judicial efectiva e a
um processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.os 1 e 4, da CRP e
interpretado à luz do art. 6.º, n.º 1, da CEDH e da jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem abrange, no seu núcleo mais essencial, o direito
das partes envolvidas num pleito judicial poderem conhecer e pronunciar-se sobre
todos os meios de prova e peças processuais constantes do respectivo processo,
mesmo relativamente àquelas que tenham sido oferecidas por um magistrado
independente no exercício de uma faculdade (ou dever funcional) de emissão de um
parecer objectivo e imparcial
11.ª Consequentemente, a garantia da efectividade desse direito implica,
inequivocamente, que a sua violação tenha por consequência o desvalor jurídico
dos actos processuais que lhe sejam consequentes e cujo conteúdo tenha sido
modelado, ainda que mediata ou indirectamente, por aquela irregularidade
processual.
12.ª Ao que fica dito acresce que no princípio da proporcionalidade em sentido
estrito joga-se uma relação de justeza e adequação entre duas realidades: por um
lado, a finalidade visada pela opção legislativa; por outro, o meio empregue
pelo legislador para a atingir.
13.ª Ora, a interpretação normativa impugnada nos presentes autos é
manifestamente desadequada e desproporcionada no sacrifício que impõe: com ela,
suprime-se como que por inteiro a garantia jurídica do princípio do
contraditório, retirando-se desse modo qualquer efectividade ao princípio do
contraditório – que representa, de resto, a concretização no plano do direito
ordinário de um direito, liberdade e garantia – e reduzindo-o, na prática, a uma
mera proclamação vácua e oca cujo acatamento, por não comportar qualquer sanção
jurídico-processual, tem uma natureza meramente voluntária.
14.ª Assim sendo, o art. 201.º, n.º 1, do CPC conjugado com o art 146.º, n.º 2,
do CPTA, na interpretação segundo a qual a falta de notificação do parecer do
M.º P.º que, emitido ao abrigo daquele art. 146.º do CPTA, se pronuncia sobre o
mérito do recurso jurisdicional, assim impedindo a parte de exercer o direito
processual de resposta ao referido parecer, não constitui nulidade processual
viola o princípio da proporcionalidade enquanto princípio constitucional ínsito
no princípio do Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP) e o direito
fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva e a um processo equitativo (art.
20.º, n.os 1 e 4, da CRP e art. 6.º, n.º 1, da CEDH).
Quanto ao Acórdão de 23 de Maio de 2007,
15.ª No art. 12.º, n.º 2, da CRP o legislador constituinte remete-nos para o
conceito, já muito trabalhado no direito civil, do princípio da especialidade
das pessoas colectivas, assim se procedendo ao reconhecimento, no plano
constitucional, da especificidade das pessoas colectivas, entendida como
limitação da capacidade destas ao concreto escopo e às finalidades específicas
por si prosseguidas.
16.ª Neste sentido, admitir-se que a Administração Tributária possa endossar a
uma pessoa colectiva responsabilidades tributárias alheias, apenas porque essa
pessoa colectiva, no prosseguimento aliás da sua finalidade estatutária
representativa, actuou como gestora de negócios e mandatária dos devedores
originários num procedimento fiscal de dação em pagamento viola o art. 12.º, n.º
2, da CRP na parte nessa disposição constitucional se recebe e se consagra o
princípio da especialidade das pessoas colectivas.
Por outro lado,
17.ª O princípio da legalidade fiscal consubstancia-se na exigência de
conformação, por parte da lei, dos elementos modeladores do tipo tributário,
abrangendo, assim, a incidência objectiva e subjectiva, a taxa, os benefícios
fiscais e as garantias dos contribuintes – deste modo, na sua acepção material
ou substancial, o princípio da legalidade fiscal postula a sujeição ao
subprincípio da tipicidade legal dos elementos de cujo concurso resulte a
modelação dos tipos tributários ou dos impostos ou, dito de outro modo, dos
elementos essenciais dos impostos (Ac. TC n.º 127/2004).
18.ª A responsabilidade tributária subsidiária deriva do preenchimento de um
pressuposto de facto de uma norma: é necessário, mais precisamente, que se
preencha um pressuposto de facto, em virtude do qual fica obrigado o sujeito
passivo; e, além disso, é necessário que se preencha o pressuposto de facto em
virtude do qual fica obrigado o responsável tributário subsidiário. Ou seja:
para que haja responsabilidade subsidiária é necessário que se preencham dois
pressupostos legais (Leite de Campos / Leite de Campos).
19.ª Daí que, enquanto garantia pelo pagamento de dívidas tributárias de outrem,
imposta pela lei a favor do credor tributário, a responsabilidade subsidiária
não pode deixar de ser tida como excepcional (Ac. TC n.º 311/2007).
20.ª Assim sendo, há-de entender-se que a definição dos pressupostos em virtude
dos quais o responsável subsidiário é chamado a cumprir a prestação tributária
alheia integra, ainda, o conceito de incidência tributária, relevado pela nossa
lei fundamental como elemento essencial dos impostos e, independentemente de um
tal entendimento, poderá ainda ver-se o estabelecimento de um regime de
responsabilidade tributária solidária ou subsidiária pelas dívidas tributárias
de outrem como implicando com as garantias dos contribuintes, elevadas
igualmente à categoria de elementos essenciais dos impostos pela norma
constitucional e sujeitas ao mesmo princípio da legalidade fiscal (Ac. TC n.º
311/2007).
21.ª Deste modo, não pode a Administração Tributária, por simples definição por
via unilateral administrativa ou contratual da situação jurídica de um
contribuinte, atribuir a qualquer particular a responsabilidade tributária
subsidiária pelo pagamento da dívida fiscal de outrem, quando o próprio
legislador não o previu expressamente e quando, de igual modo, não fixou, por
via legal, os respectivos pressupostos.
22.ª Ora, a interpretação das normas dos arts. 109.º-A, 284.º e 284.º do Código
de Processo Tributário que está em causa nos presentes autos implicaria
verdadeiramente que fosse conferido à Administração Tributária um poder
exorbitante de, por acto unilateral, ampliar o âmbito de incidência subjectiva
de impostos e de redefinição do quadro de garantias tributárias para além
daquele resultante da lei e, desse modo, instituir regimes de responsabilidade
tributária subsidiária que o legislador não previu, expressa ou implicitamente.
23.ª Finalmente, há que apelar ao princípio da segurança jurídica, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático, que não deixa de projectar
exigências dirigidas ao Estado, que vão desde as mais genéricas de
previsibilidade e calculabilidade da actuação estatal e de clareza e densidade
normativa das regras jurídicas (Jorge Reis Novais).
24.ª Assim sendo, o complexo normativo formado pelos arts. 109.º-A, 284.º e
284.º-A do Código de Processo Tributário (na redacção vigente à data de prolação
do acto administrativo originalmente impugnado nos presentes autos), na
interpretação segundo a qual a Administração Tributária pode, no âmbito de um
procedimento de dação em pagamento, atribuir a um terceiro que não o devedor
originário a responsabilidade subsidiária pelo pagamento das dívidas fiscais em
dívida em virtude da participação desse terceiro, como gestor de negócios,
mandatário e representantes dos contribuintes devedores, no mencionado
procedimento de dação em pagamento viola o princípio da especialidade das
pessoas colectivas (recebido no art. 12.º, n.º 2, da CRP), o princípio da
legalidade fiscal (art. 103.º, n.os e 2 e 3, da CRP) e o princípio da segurança
jurídica ínsito no princípio do Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP).
Termos em que, e nos demais de direito, na procedência do presente recurso de
constitucionalidade, deve ser julgada inconstitucional as normas aqui em crise,
nas interpretações normativas impugnadas.”
Concluiu assim o segundo:
“[…]
3. Conclusões
3.1. A interpretação dos artigos 201º do CPC e 146º do CPTA efectuada pelo
Acórdão recorrido não é inconstitucional porque:
a) Não impediu a parte de invocar nulidade processual por omissão de
notificação;
b) O Parecer do MP emitido no recurso interposto do Acórdão nº 2/05, do TCAN
limitou-se a apoiar o Parecer nº 45/98, de 15 de Junho de 1998, do CC da PGR
«abundantemente citado pelo Tribunal “a quo”»;
c) O STA verificou que, no caso concreto, tal omissão de notificação não
beliscou minimamente o direito da recorrente se defender;
d) Não se verificou qualquer violação do princípio do contraditório;
e) O mecanismo de arguição de nulidade é suficiente, não podendo ser posta em
causa a competência dos tribunais superiores para apreciar se a omissão foi ou
não relevante;
f) A tese da recorrente de que a omissão de notificação levaria sempre, e em
qualquer circunstância, à anulação do processado é que se traduziria num efeito
violador do princípio da proporcionalidade.
3.2. A interpretação dos artigos 109.º-A, 284.º e 284.º-A do CPT efectuada pelo
Acórdão recorrido não é inconstitucional porque:
a) A assunção de divida pode ocorrer no domínio das dívidas tributárias
(art.111.º, n.º 1, CPT; art. 41.º, n.º 1 da LGT);
b) Tal possibilidade encontra-se contemplada no DL 124/96 (art.7.º) ao abrigo do
qual se deu a regularização de dívida;
c) A imputação das dívidas dos clubes à recorrente, pelo Despacho nº 7 SEAF foi
uma exigência da entidade credora imposta como condição para a aceitação do
pedido de regularização das dívidas fiscais dos clubes de futebol ao abrigo do
regime previsto no DL 124/96 e da dação em pagamento proposta, tendo em vista
prevenir a eventual falta de pagamento integral das dívidas por insuficiência
dos créditos cedidos;
d) As dívidas em causa foram voluntariamente assumidas face ao teor do auto de
dação posteriormente lavrado, onde a recorrente se obrigou directamente para com
o credor, assumindo a obrigação de pagar o remanescente da dívida global que
fosse devida pelos clubes ao Fisco no segundo semestre de 2004 e 2010, tendo a
recorrente intervindo não só na qualidade de representante dos clubes aderentes
mas também, sem dúvida, em nome próprio;
e) Não constitui tal assunção violação do princípio da especialidade das pessoas
colectivas que é perfeitamente compatível com o direito obrigacional, não
existindo qualquer proibição absoluta de as pessoas colectivas celebrarem
contratos;
f) Apesar de a recorrente ter iniciado este procedimento como gestora de
negócios dos clubes e ter subscrito o auto de dação como sua representante não
significa que não pudesse ter assumido, como assumiu, responsabilidades na
garantia da dívida;
g) Essa atitude é até uma forma de defesa dos interesses comuns dos seus
associados tendo em vista uma boa gestão de um assunto inerente à organização e
prática do futebol profissional e das suas competições que sofreriam, sem a
resolução desse problema, grave perturbação, sendo que a promoção e a defesa dos
interesses comuns dos seus associados é um dos fins da recorrente (artigo 5.º
dos seus Estatutos);
h) A previsão de assunção de uma obrigação tributária por um terceiro em
diplomas como CPT, LGT e DL 124/96 não está constitui qualquer violação do
princípio da legalidade consagrado no artigo 103.º da CRP;
i) A AF limitou-se a cobrar legalmente as receitas fiscais devidas prosseguindo
o interesse público e sem violação dos princípios do Estado de direito
democrático e/ou da segurança jurídica.
Pelo que a presente acção deve ser considerada totalmente improcedente.”
II
Fundamentos
8. Sob a epígrafe «[i]ntervenção do Ministério Público, conclusão do
relator e aperfeiçoamento das alegações de recurso», determina o artigo 146º do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos:
1- Recebido o processo no tribunal de recurso e efectuada a distribuição, a
secretaria notifica o Ministério Público, quando este se não encontre na posição
de recorrente ou recorrido, para, querendo, se pronunciar, no prazo de 10 dias,
sobre o mérito do recurso, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de
interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens
referidos no nº 2 do artigo 9º.
2- No caso do Ministério Público exercer a faculdade que lhe é conferida no
número anterior, as partes são notificadas para responder no prazo de 10 dias.
3- …..
4- …….
Por seu turno, dispõe o artigo 201º nº 1, do Código de Processo Civil:
«Regras gerais sobre a nulidade dos actos
1- Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que
a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei
prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a
irregularidade cometida possa influir no exame da causa».
No caso dos autos – e como se depreende do relato atrás feito - o Ministério
Público, notificado para se pronunciar sobre o mérito do recurso nos termos do
disposto pelo nº 1 do artigo 146º do CPTA, emitiu um parecer com o seguinte
teor:
«Notificado (…) diz o Ministério Público, em defesa dos interesses públicos
especialmente relevantes presentes no caso dos autos, que é de confirmar o
acórdão recorrido, por nele se ter feito boa interpretação e aplicação da lei,
de resto na linha do Parecer nº 45/98, de 15 de Junho de 1998, publicado nos
PARECERES, Volume VIII, Direito e Desporto, pag. 193º e segs., abundantemente
citado pelo Tribunal pelo Tribunal “a quo”.»
Não foi notificada à recorrente esta opinião, pelo que se omitiu o acto previsto
no nº 2 do referido artigo 146º da CPTA.
Entendeu, no entanto, o Supremo Tribunal que, de acordo com o disposto no nº 1
do artigo 201º do CPC, tal omissão prefigurava uma mera irregularidade (não
constituindo razão bastante para sustentar a nulidade da sua decisão anterior),
por não ter podido ela influir no exame ou na decisão da causa: o parecer do
Ministério Público não colocara nenhuma questão nova, limitando-se a remeter
para outra peça (o parecer da Procuradoria Geral da República) já sobejamente
conhecida e discutida na instância de que se recorrera.
Considerou a recorrente, pelo contrário, não apenas que a omissão do acto
prescrito por lei deveria ser causa bastante da nulidade, como também que seria
inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça
(artigo 2º da CRP) e do direito fundamental a uma tutela judicial efectiva e a
um processo equitativo (artigo 20º, nºs 1 e 4 da CRP) a «norma», resultante da
articulação entre o nº 1 do artigo 201º do CPC e o nº 2 do artigo 146º do CPTA,
segundo a qual não constituiria nulidade processual a falta de notificação do
parecer do MP que, emitido ao abrigo do artigo 146º, se pronunciasse sobre o
mérito do recurso, “assim impedindo a parte de exercer o direito processual de
resposta [ao referido parecer]”.
A decisão recorrida, ao desatender a invocação de constitucionalidade,
estribou-se na jurisprudência do Tribunal Constitucional constante do Acórdão nº
185/2001.
9. A tese da inconstitucionalidade, mantida pela recorrente,
fundamenta-se em alguns argumentos essenciais.
Convoca o primeiro a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no
caso do Acórdão Lobo Machado contra Portugal de 20 de Fevereiro de 1996 (Recueil
des arrêts et des décisions 1996-I, p. 195 e ss) (ponto 5 das alegações),
sublinhando-se a importância que terá tido tal jurisprudência para a
interpretação e determinação de sentido do direito a um processo equitativo,
consagrado no nº 4 do artigo 20º da CRP. A este propósito, recorda-se o Acórdão
nº 345/99 do Tribunal Constitucional, onde expressamente se estabeleceu a
relação existente entre o conteúdo do direito fundamental na ordem jurídica
portuguesa e o conteúdo atribuído pelo Tribunal europeu ao homólogo direito
consagrado no nº 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Depois, salienta-se a posição detida pelo Ministério Público num processo como o
dos autos, relativo à discussão de um acto tributário e, portanto, à cobrança de
tributos fiscais.
Conclui-se que, embora formalmente exercida ao abrigo da norma correspondente do
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a intervenção, in casu, do MP
“não deixa de representar a atribuição ao Estado de uma oportunidade para se
pronunciar duplamente acerca do mérito do recurso jurisdicional (…) exercendo,
em clara violação do princípio do contraditório e da igualdade de armas, uma
influência preponderante sobre o legislador” (ponto 6 das alegações). Em seguida
procura demonstrar-se que não teve razão a decisão recorrida, quando invocou a
aplicação, ao caso, da jurisprudência do Tribunal Constitucional fixada no
Acórdão nº 185/2001, por incidir ela sobre um sistema normativo totalmente
distinto do agora em juízo, e constante, não do artigo 146 º do CPTA, mas do
artigo 53º da LPTA (ponto 7 das alegações). Finalmente (ponto 8) apresenta-se
uma certa tese quanto ao conteúdo a atribuir ao conceito legal de nulidade
processual, decorrente do nº 1 do artigo 201º do CPC. Apoiada na redacção
literal do preceito, sustenta a recorrente que tal conceito deve ser construído
tendo em conta critérios abstractos ou prospectivos, que atendam apenas à
aptidão ideal de um acto, ou de uma omissão, para influir no exame da causa, e
não a critérios casuísticos ou de efectividade fáctica, que atendam ao grau de
influência efectivo que a irregularidade cometida tenha exercido, in casu, na
decisão a proferir.
Neste sistema de alegações, o argumento apresentado em último lugar
detém alguma prioridade lógica.
Com efeito, e para a resolução da questão de constitucionalidade posta, o que
importa saber é o seguinte: impõe a Constituição (naturalmente entendida em
harmonia com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem) que toda e qualquer
preterição da formalidade prescrita pelo nº 2 do artigo 146º do CPTA implique
nulidade processual, nos termos do Código de Processo Civil, independentemente
da ponderação das circunstâncias do caso, ou permite ela que, atendendo à
ponderação dessas mesmas circunstâncias, se possa considerar a referida
preterição como uma mera irregularidade, não causadora de nulidade?
Toda a tese da recorrente – culminada com o seu conceito abstracto e prospectivo
de nulidade processual – aponta no primeiro sentido. A tese da decisão
recorrida, ao invocar o Acórdão do Tribunal nº 185/2001, sustenta o segundo.
10. No Acórdão nº 185/2001 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt),
disse o Tribunal que não era inconstitucional a norma segundo a qual, num
recurso contencioso interposto por um particular contra um acto praticado por um
órgão do Estado, não há que notificar o recorrente particular para se pronunciar
sobre o parecer que o Ministério Público emite, na vista final do processo, no
qual não levanta nenhuma questão nova que possa conduzir à rejeição do recurso.
É certo, como alega a recorrente, que esta jurisprudência foi emitida tendo em
conta a natureza da intervenção do Ministério Público no sistema da Lei de
Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-lei nº 267/85, de 16 de Julho),
intervenção essa substancialmente diversa da hoje constante dos artigos 85º e
146º do CPTA (sobre o sentido e alcance da diferença, vejam-se Mário Aroso de
Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos
Tribunais Administrativos, 2ª ed. 2007, pp. 838 e ss; José Carlos Vieira de
Andrade, Justiça Administrativa, 7ª ed., 2005, pp. 431; Mário Aroso de Almeida,
O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed. 2005, p. 252.)
Certo é também que – como mais uma vez alega a recorrente – nessa diferença se
inscreve, como algo de novo face ao modelo anterior, o dever de notificar as
partes do conteúdo da intervenção do Ministério Público, dever esse constituído
pelo nº 5 do artigo 85º e pelo nº 2 do artigo 146º do CPTA por inspiração,
aliás, da jurisprudência europeia no caso Lobo Machado (neste sentido, veja-se o
comentário de Aroso de Almeida e Carlos Cadilha ao artigo 85º do CPTA: ob. cit.,
p. 502).
Sendo tudo isto certo, fica no entanto por demonstrar que tenha perdido validade
a doutrina essencial que o Tribunal adoptou no Acórdão nº 185/2001.
Com efeito, tal doutrina baseou-se no seguinte critério: só ocorreria violação
dos princípios constitucionais pertinentes, mormente do princípio do
contraditório, se as partes ficassem impossibilitadas de controlar as (e,
portanto, de responder às) questões colocadas pelo Ministério Público aquando da
sua intervenção no processo, o que naturalmente não aconteceria sempre que de
tal intervenção não decorresse qualquer questão nova, ainda não conhecida das
partes e, portanto, por elas ainda não respondida. E acrescentou-se: «sendo o
parecer apresentado por escrito, sempre podem [as partes] questionar a
apreciação feita pelo tribunal sobre a existência, ou não, de uma questão nova
(…); em caso de discordância – ou seja, para o que aqui interessa, se o tribunal
tiver entendido não ter sido suscitada uma questão nova – sempre esta [a parte]
pode invocar nulidade justamente por falta de notificação, que origina,
naturalmente, uma violação do princípio do contraditório.»
Subjacente a esta doutrina – e pese embora a diferença existente entre o
contexto normativo infraconstitucional em que foi emitida e o actual – está uma
premissa essencial. E a premissa é a seguinte: nem o princípio do contraditório
nem a ideia mais vasta de processo equitativo obrigam a que se considere que
toda e qualquer preterição da formalidade hoje prevista no nº 2 do artigo 146º
do CPTA (notificação às partes do parecer do Ministério público) deva ser, ipso
facto, causa bastante de nulidade processual. É que ao contrário do que sustenta
a recorrente, a Constituição não impõe que o conceito legal de nulidade
processual seja construído apenas a partir de critérios abstractos, que tenham
somente em conta a aptidão potencial típica de certo acto (ou omissão) para
influenciar o exame da causa. A Constituição permite, ao invés, que na
interpretação das normas processuais em causa sejam tidas em conta as
características específicas dos casos concretos, e que a partir dessas
características se pondere a influência efectiva que a preterição da formalidade
tenha tido no proferir da decisão.
Ora, nada permite concluir que esta premissa essencial tenha hoje perdido
validade, como aliás o ilustra o caso dos autos.
Com efeito, o que nele se passou foi apenas o seguinte. Na sua intervenção,
efectuada ao abrigo do nº 2 do artigo 146º do CPTA, o Ministério Público
limitou-se (como já se viu) a recomendar que se confirmasse a decisão recorrida,
por ter ela feito boa interpretação e aplicação da lei em conformidade com o
parecer da Procuradoria Geral da República. Tal parecer formara uma chave
essencial no processo já decorrido perante a primeira instância. A decisão
proferida pelo TCA Norte fundara-se nos seus argumentos. Nas suas alegações
perante o Supremo, a própria recorrente rebatera a doutrina do parecer (fls. 496
e ss dos autos). Era portanto manifesto que a intervenção do Ministério Público
durante o recurso jurisdicional não colocara nenhuma questão nova, ainda não
controlada nem respondida pelas partes. Foi de acordo com esta ponderação – que
atendeu, não à aptidão abstracta que certo acto tenha para influenciar o exame
da causa, mas à efectiva influência que a sua prática, ou omissão da sua
prática, exerceu no proferir de certa e concreta decisão – que o Supremo
interpretou a “norma” decorrente da articulação do nº 1 do artigo 201º do CPC e
do nº 2 do artigo 146º do CPTA.
A Constituição não censura esta interpretação. Desde logo,
precisamente nos termos dos princípios da proporcionalidade e da justiça,
invocados pela recorrente e ínsitos no artigo 2º da CRP.
Tais princípios enformam o conteúdo do direito à tutela judicial
efectiva, consagrado no artigo 20º da CRP. Para que tal direito se torne
efectivo, é necessário que o Estado ponha à disposição dos particulares não
apenas instituições (a organização judiciária) mas também processos, conformados
e ordenados pelo legislador ordinário de forma tal que através deles se garanta
a obtenção de decisões “em prazo razoável e mediante um processo equitativo”
(artigo 20º, nº 4). Ora, face a estes vínculos constitucionais a que está
submetido o legislador ordinário na elaboração das normas de processo, civil ou
administrativo, seria manifestamente excessivo que se entendesse que a
Constituição impunha – em nome de um direito de defesa apenas abstractamente
tomado – uma interpretação de tais normas que fosse legitimadora da prática de
actos que, em certos casos, se revelassem manifestamente inúteis.
A esta conclusão se não opõe, nem a jurisprudência do Tribunal
firmada no Acórdão nº 345/99, nem a jurisprudência do Tribunal europeu no caso
Lobo Machado.
No Acórdão nº 345/99, julgou-se inconstitucional, por violação do º
4 do artigo 20º da CRP, a norma contida no artigo 15º da LPTA (Decreto-lei nº
267/85), que dispunha que «[n]o Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal
Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no
processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de
julgamento e é ouvido na discussão». A norma aqui em juízo diferia
substancialmente da julgada no presente caso. O mesmo se passou, aliás, no
acórdão Lobo Machado, em que a posição do Tribunal europeu se firmou perante uma
intervenção do Ministério Público que não só era constituída pela elaboração de
um parecer escrito – como na situação dos autos – mas ainda pela sua subsequente
participação na sessão de julgamento.
Por todos estes motivos, não procede a primeira questão de
constitucionalidade colocada pela recorrente ao Tribunal.
11. Na segunda questão que coloca ao Tribunal, pretende a recorrente que
se aprecie a constitucionalidade do “complexo normativo” formado pelos artigos
109º-A, 284º e 284º-A do Código de Processo Tributário, na redacção vigente ao
momento da emissão do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
impugnado nos autos. A questão reporta-se, como já se viu (supra ponto 6), ao
acórdão do Supremo Tribunal que, datado de 23/5/2007, veio a decidir do problema
de fundo.
As normas cuja constitucionalidade agora se discute resultaram das alterações ao
Código de Processo Tributário introduzidas pelo Decreto-lei nº 125/96, que,
emitido na sequência da vulgarmente chamada “lei Mateus” (o Decreto-lei nº
124/96, que, mediante autorização legislativa, definia as condições de
realização das operações de recuperação de créditos fiscais e da segurança
social), pretendia, segundo a sua própria exposição de motivos, alargar e
flexibilizar os pressupostos da dação em pagamento como forma excepcional de
extinção das dívidas fiscais. Neste contexto, estabelecia desde logo o nº 1 do
referido artigo 109º-A a admissibilidade da dação em pagamento antes da
instauração do processo de execução fiscal, desde que ela ocorresse no “no
âmbito de processo conducente à celebração de acordo de recuperação de créditos
do Estado”, prevendo-se nos restantes números procedimentos adequados. Idênticos
procedimentos eram também previstos no artigo 284º, esse relativo à dação de
bens móveis e imóveis nos processos de execução fiscal. Por seu turno, vinha o
artigo 284º-A, de acordo com os intuitos de “flexibilização” e “alargamento”
revelados na exposição de motivos do DL nº 125/96, dispor sobre os bens dados em
pagamento.
Entendeu a decisão recorrida, em acordo com a 1ª instância, que, face a estas
disposições, não era ilegal o ponto 7 do despacho do Secretário de Estado.
Recorde-se que nele se determinava (e para o que agora interessa) que, caso se
viesse a apurar, no segundo semestre de 2004, que o valor arrecadado com as
receitas mútuas desportivas – oferecidas pelos clubes devedores em dação em
pagamento – era inferior a metade da sua dívida global ao fisco, deveria a
recorrente proceder ao pagamento do montante em falta.
Vem agora a recorrente arguir a inconstitucionalidade da interpretação feita
pelas instâncias das disposições legais em causa, com fundamento quer em
violação do disposto no nº 2 do artigo 12º da Constituição quer em violação do
princípio da legalidade tributária, consagrado no nº 3 do seu artigo 103º. A
arguição já fora, assim mesmo, suscitada durante o processo (fls. 536 dos
autos).
Contudo, e atenta a resposta que a sentença do Supremo lhe confere (supra, ponto
4 do “relatório”), parece que na questão de constitucionalidade colocada se
contém uma dupla dimensão. A primeira, cuja resolução pede a interpretação do
princípio contido no artigo 12º, nº 2 da Constituição, é equacionável de modo
tal que se torna em si mesma independente da questão de saber como é que, no
caso, foi constituída a dívida tributária que impende sobre a recorrente. Ao
invés, a segunda, para cuja resolução se convoca o princípio da legalidade
tributária (artigo 103º, nº 3 da CRP), não é sequer formulável se se não tiver
em conta o modo pelo qual se formou a referida dívida.
Vejamos então.
12. Dispõe o artigo 12º da CRP
“Princípio da universalidade
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados
na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres
compatíveis com a sua natureza”.
O artigo abre o Título I da Parte I da Constituição, relativo aos princípios
gerais que ordenam o estatuto constitucional dos direitos e deveres
fundamentais. Segue-se-lhe, nomeadamente, a enunciação do princípio da
igualdade, e a definição da condição dos portugueses no estrangeiro e dos
estrangeiros em Portugal. A inserção sistemática do preceito deixa desde logo
antever que o sentido a atribuir ao disposto no seu número 2 não pode ser
entendido como o entende a recorrente, como mera constitucionalização do
princípio civilístico da especialidade das pessoas colectivas. Aliás, a sua
redacção é próxima da do nº 4 do artigo 19º da Lei Fundamental de Bona, que diz:
“Os direitos fundamentais valem para as pessoas jurídicas nacionais, na medida
em que pela sua essência sejam também aplicáveis às mesmas.”
Daqui resulta claro que o que se pretendeu consagrar no preceito constitucional
foi, não a repetição do princípio enunciado no artigo 160º do Código Civil, mas
a concepção segundo a qual os direitos fundamentais não serão apenas (como o
pretenderia um estrénuo entendimento liberal clássico) direitos dos indivíduos.
As pessoas colectivas serão também titulares destes direitos, na exacta medida
em que, pela sua essência, sejam eles compatíveis com a natureza da
personalidade jurídica, casuisticamente avaliada.
Sustenta a recorrente, basicamente, que a obrigação, que lhe terá sido imposta,
de proceder ao pagamento do montante em falta das dívidas fiscais dos clubes, é
algo que se situa para além da sua capacidade, por ser estranha aos seus fins
estatutários e, portanto, alheia aos legítimos interesses que presidiram à sua
formação enquanto ente colectivo. E como parte da premissa segundo a qual a CRP
terá recebido, no nº 2 do artigo 12º, o princípio que determina que as pessoas
colectivas disporão apenas da capacidade de gozo de direitos que seja necessária
à prossecução dos fins para que foram criadas, conclui, logicamente, que
qualquer interpretação das normas legais que contrarie (no seu entendimento) a
especialidade das pessoas colectivas será, por força do artigo 12º,
inconstitucional.
O que falha nesta argumentação é, porém – e como já se demonstrou – a segunda
premissa. Como a Constituição, ao consagrar a universalidade dos direitos
fundamentais – e ao estender a sua titularidade, na medida já enunciada, também
aos entes colectivos – fez algo de diverso do que simplesmente receber a
concepção civilística que preside à delimitação da capacidade das pessoas
jurídicas, cai na sua base a alegação apresentada.
Saber se, in casu, a obrigação assumida ou imposta à recorrente estará ou não
para além das suas próprias forças é, naturalmente, questão que não releva dos
poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. A questão que o Tribunal tem que
resolver é outra, e deve ser solucionada do seguinte modo: no elenco
constitucional dos direitos fundamentais, e no sistema de bens jurídicos por
eles protegidos, nada há que proíba (nos termos do nº 2 do artigo 12º) a
interpretação normativa feita pela sentença recorrida quanto ao disposto nos
artigos 190-A, 284º e 284º-A do Código de Processo Tributário. A obrigação
tributária que, mal ou bem, impendeu sobre a recorrente – e cuja formação o
tribunal a quo entendeu ser válida, face às normas legais atrás citadas – não se
inscreve, nem no âmbito de protecção de nenhuma norma jusfundamental que seja
incompatível com a natureza da sua personalidade colectiva, nem no âmbito de
protecção de nenhuma norma jusfundamental cuja aplicação, tendo em conta a
essência do bem tutelado, deva ser reservada apenas às pessoas físicas. Assim
sendo, torna-se constitucionalmente irrelevante a questão dos eventuais limites
que o escopo estatutário prosseguido pela recorrente trará, ou não, à sua
capacidade jurídica.
Também neste sentido decidiu a sentença de que se interpôs recurso, pelo que,
quanto a este ponto, não merecerá ela – na interpretação normativa que efectuou
– qualquer censura constitucional.
13. Alega por ultimo a recorrente que a interpretação feita, no caso, dos
artigos 109º-A, 284º e 284º-A do Código de Processo Tributário é
inconstitucional por ter sido lesiva do princípio da legalidade ou tipicidade
tributária, consagrado nos nºs. 2 e 3 do artigo 103º da CRP.
Contudo, como já se disse, e ao invés do que sucede com a questão
que acabou de analisar-se, a este outro problema de constitucionalidade não pode
o Tribunal responder se se não carrear para a resposta um dado prévio, relativo
ao modo pelo qual, no caso, se constituiu a dívida que impende sobre a
recorrente. É jurisprudência pacífica que o princípio da legalidade tributária
exige que se reserve à lei a definição dos elementos essenciais dos impostos;
que, dentro destes elementos, se incluem todos aqueles que são relativos à
incidência subjectiva; que, no âmbito deste último conceito, se incluem ainda as
obrigações tributárias que tenham sido assumidas pelos particulares a título de
responsabilidade tributária subsidiária (vejam-se, entre ouros, os Acórdãos nºs
233/94, 220/2007, 127/2004, 271/2005, e 311/2007, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt ). Sucede, porém, que não foi a esta conclusão – a
da existência, in casu, de uma obrigação constituída a título de
responsabilidade subsidiária tributária – que chegou a sentença de que se
interpôs recurso. Atente-se no seguinte excerto:
“Alega a recorrente ainda que do facto de ter assinado posteriormente um auto de
dação não se pode concluir que tenha assumido a dívida (…)
A assunção de dívida consiste no acto pelo qual um terceiro se vincula perante o
credor a efectuar a prestação devida por outrem (artigo 595.° CC) e pode ocorrer
no domínio das dívidas tributárias, conforme resulta expressamente dos artigos
111.º, n.° 1 CPT e 41.°, n.° 1 da LGT.
A possibilidade de assunção da dívida por um terceiro encontra-se, de resto,
contemplada no DL 124/96, cujo artigo 7.° determinava que poderiam beneficiar do
regime previsto nesse diploma os terceiros que assumissem a dívida.
Daí que se não veja qualquer ilegalidade na imputação das dívidas dos clubes à
ora recorrente nos termos impostos no ponto 7 do despacho impugnado.
Trata-se, aliás, de uma exigência da entidade credora que a impôs como condição
para a aceitação do pedido de regularização das dívidas fiscais dos clubes de
futebol ao abrigo do regime previsto no DL 124/96 e da dação em pagamento
proposta, tendo em vista prevenir a eventual falta de pagamento integral das
dívidas por insuficiência dos créditos cedidos.
E que as dívidas em causa foram voluntariamente assumidas não restam dúvidas
face ao teor do auto de dação posteriormente lavrado, onde a recorrente se
obrigou directamente para com o credor, assumindo a obrigação de pagar o
remanescente da dívida global que fosse devida pelos clubes ao Fisco no segundo
semestre de 2004 e 2010.
(…)”
Tendo sido esta a razão pela qual a sentença do tribunal a quo
decidiu como decidiu quanto à questão de legalidade do acto (negando por isso
provimento ao recurso), natural é que tenha sido ela de novo invocada na
“resolução” da questão de constitucionalidade: “ a assunção de uma obrigação
tributária por um terceiro não está abrangida por essa reserva de lei nem a
incidência subjectiva do imposto é alterada por tal assunção (…)”. Ao Tribunal
Constitucional, porém, o problema coloca-se de modo diferente.
Saber se, no caso, ocorreu, como diz a instância, uma assunção de
dívida ou se houve, como diz a recorrente, a imposição de uma responsabilidade
tributária é questão de que se não pode ocupar, pelos mais consabidos
motivos (artigo 280º, nº 6 da CRP), o Tribunal. Nos recursos de
constitucionalidade cabe-lhe apenas conhecer de decisões de tribunais que, ou
não tenham aplicado certa norma, ou a tenham aplicado, não obstante a questão da
sua constitucionalidade ter sido suscitada durante o processo.
É verdade que, durante o processo, foi suscitada a questão da
inconstitucionalidade de certas normas por violação do princípio constitucional
da legalidade ou tipicidade tributária. Sucede, porém, que ao decidir como
decidiu – e ao qualificar a situação do caso como “assunção de dívida” – a
sentença recorrida não aplicou as “normas” invocadas pela recorrente. Não julgou
com fundamento no sistema formado pelos artigos 109º-A, 284º. 284º-A do CPT.
Decidiu antes, como se depreende do excerto atrás transcrito, com base no
disposto nos artigos 111, nº 1 do CPT e 41º, nº1, da LGT. Como qualquer juízo
que incida sobre esta decisão excede o âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal
Constitucional, só lhe resta não conhecer, quanto a este ponto, do objecto do
recurso.
III
Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide:
Negar provimento ao recurso na parte em que dele se conhece.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 Ucs.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão