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Processo n.º 250/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 14 de Abril de 2009, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito: (i) não
conhecer do recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC; (ii) não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 14.º e 105.º, n.ºs
1 e 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado
pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, a última na redacção dada pelo artigo 95.º
da Lei n.º 53‑A/2006, de 19 de Dezembro; e, consequentemente, (iii) negar
provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas
b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto (TRP), de 21 de Janeiro de 2009, que negou provimento ao
recurso por ele interposto contra a sentença do 1.º Juízo Criminal do Tribunal
Judicial da Comarca de Santo Tirso, de 12 de Maio de 2008, que o condenara, pela
prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto
e punido pelo artigos 105.º, n.ºs 1, 2 e 5, do Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e 30.º, n.º 2,
e 79.º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão, com suspensão da sua
execução pelo período de 18 meses, sob condição de, no mesmo período, ser
efectuado o pagamento de € 451 889,32 e legais acréscimos, referindo no
requerimento de interposição de recurso:
«1. Se tivermos em conta a constância da jurisprudência do Tribunal
Constitucional, é caso para se dizer que este recurso está condenado ao
fracasso e, por isso, não deverá ser intentado.
2. Sendo certo que algum dos aspectos que o recorrente invoca como
causa da inconstitucionalidade dos artigos 24.º do RJIFNA e 105.º do RGIT já
foram objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, e que este Tribunal
neles não viu razões para declarar a sua inconstitucionalidade, não é menos
verdade que o recorrente lançou neste processo novos aspectos, uns respeitantes
àquelas normas – ao tipo em si –, outras respeitantes ao caso específico da
alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, e outras respeitantes ao artigo 14.º
deste diploma.
3. Esses aspectos, mormente no que respeita ao tipo,
correlacionam‑se com o seguinte:
– o tipo obnubila mas supõe a instituição, nas relações tributárias
por substituição, de uma relação de trabalho imposto, não escolhido e não
remunerado;
– o tipo pressupõe, para que haja abuso de confiança, uma relação
fundada num consenso de confiança, manifestamente não firmado;
– as relações tributárias por substituição, mormente as de IVA, têm
características de contrato administrativo imposto por lei (como outros mais
que existem);
– essas relações por substituição constituem‑se por incrustação nas
demais relações de crédito do devedor substituto;
– por esta última razão, os créditos do credor tributário passam a
comungar dos riscos das relações a que são incrustadas as relações por que se
constituem.
4. No que respeita à alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a
violação do princípio da separação de poderes não pode deixar de merecer uma
especial revisão.
5. E no que tange ao disposto do artigo 14.º do RGIT, na
perspectiva da suspensão da pena condicionada imperativamente ao pagamento da
dívida, não poderá deixar de merecer uma especial análise a natureza dessa
norma que, mais que norma jurídica, configura um despacho normativo.
6. Como a realidade nunca é perceptível pela análise (que seria
atomismo) parcelar dos seus elementos constituintes, as normas em causa são
inconstitucionais pelas razões invocadas nas conclusões 24.º a 28.º das
alegações de recurso, que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, onde se
procura, ainda que em síntese, determinar as inconstitucionalidades do artigo
105.º, quanto à tipificação, da alínea b) do n.º 4 deste artigo e do artigo 14.º
do RGIT, e onde se indicam as normas constitucionais e legais (estas de direito
internacional) violadas.
7. As inconstitucionalidades foram suscitadas na contestação da
acusação e, sobretudo, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do
Porto, nas conclusões referidas atrás (24.º a 28.º) e parágrafos 91 a 216.
8. Este recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.»
2. O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do TRP, decisão
que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3,
da LTC).
2.1. Ora, o presente recurso surge como inadmissível, na parte em
que vem interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por a
decisão recorrida não ter aplicado qualquer norma cuja ilegalidade houvesse
sido suscitada pelo recorrente com fundamento em violação de lei com valor
reforçado, de estatuto de região autónoma ou de lei geral da República. Não se
confunde com esse tipo de «ilegalidades agravadas» a «contrariedade de normas
constantes de acto legislativo com convenções internacionais», prevista na
alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, que, aliás, só consente recurso de
decisões de recusa de aplicação de normas com esse fundamento e de decisões de
aplicação de normas em desconformidade com o anteriormente decidido sobre tal
questão pelo Tribunal Constitucional, mas não de decisões que apliquem normas
cuja contrariedade com convenções internacionais haja sido suscitada pelos
recorrentes durante o processo.
2.2. Na parte em que o recurso se funda na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, como resulta do próprio requerimento de interposição de
recurso, as questões nele suscitadas já foram objecto de anteriores decisões do
Tribunal Constitucional, o que possibilita a prolação de decisão sumária, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC. Na verdade, como tem sido
repetidamente afirmado, a possibilidade de utilização deste tipo de julgamento
dos recursos, com fundamento em as questões a apreciar serem qualificáveis como
«simples» por já terem sido objecto de anteriores decisões do Tribunal
Constitucional, não pressupõe que nessas anteriores decisões tenham sido
considerados esgotantemente todos os argumentos esgrimidos pelos recorrentes.
Como se explicou no Acórdão n.º 131/2004 (proferido em reclamação
de decisão sumária na qual a reclamante questionava a verificação dos
requisitos estabelecidos no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC para a emissão de uma
decisão sumária, sustentando serem dois os fundamentos possíveis de uma tal
decisão – a existência de uma decisão anterior do Tribunal sobre a mesma
questão ou ser a questão manifestamente infundada – e que, no caso, a decisão
anterior em que se baseou a decisão sumária não terá julgado a mesma questão por
os parâmetros de constitucionalidade agora indicados serem mais amplos):
«Em primeiro lugar, não é exacto que o artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC
só permita a decisão sumária nas situações apontadas pela recorrente.
Com efeito, o preceito da LTC, ao conferir ao relator os poderes
para emitir decisão sumária por a questão ser simples, não condiciona esta
qualificação ao facto de haver decisão anterior sobre a mesma questão; tal é,
desde logo, contrariado pela circunstância de aquele condicionamento ser
antecedido pela expressão ‘designadamente’, o que não pode deixar de significar
a possibilidade de qualificar a questão como simples por uma multiplicidade de
razões, mesmo que ela não tenha sido exactamente a mesma que foi objecto de
decisão anterior.
Bastará para tal qualificação que na fundamentação da decisão
anterior, muito embora sobre questão não inteiramente coincidente com a dirimida
em posterior recurso, se tenham formulado juízos que imponham uma determinada
solução de direito neste recurso, merecendo a questão, por essa via, a
qualificação de simples.»
Como se evidenciou no Acórdão n.º 564/2008, tem sido reiteradamente
afirmada essa orientação jurisprudencial, no sentido de a admissibilidade de
prolação de decisão sumária não se cingir a situações em que exista anterior
decisão do Tribunal Constitucional sobre norma reportada ao mesmo preceito legal
e com ponderação de todos os argumentos ou razões expendidos no novo processo,
antes «abrange outras situações em que a fundamentação desenvolvida em
anterior acórdão permita considerar a questão como já ‘tratada’ pelo Tribunal,
mesmo que não ocorra integral coincidência dos preceitos em causa e dos
argumentos esgrimidos num e noutro processo» (Acórdão n.º 650/2004; cf. ainda
os Acórdãos n.ºs 616/2005, 2/2006, 233/2007, 530/2007 e 5/2008).
3.1. O recorrente sintetizou o expendido na motivação do recurso
interposto para o TRP nas seguintes conclusões:
«A) Preliminares.
1.ª – A douta sentença recorrida deverá ser revogada, por diversas
razões, nomeadamente no que respeita a:
i) As questões prévias que importava conhecer – a descriminalização
do facto e a ilegalidade e inconstitucionalidade alegadas, bem como a
notificação feita pelo Ministério Público (MP), nos termos do artigo 105.º, n.º
4, alínea b), do RGIT;
ii) O modo como os factos foram julgados provados;
iii) O modo como o direito do caso foi interpretado;
iv) O modo como a pena foi determinada e aplicada, e em que
condições.
(A questão da constitucionalidade e ilegalidade das normas
aplicadas, maxime as dos artigos 14.º e 105.º, quanto ao tipo, em si, será
objecto da parte final destas conclusões.)
B) Pressupostos fácticos e legais.
2.ª – Porque condiciona toda e qualquer forma de entendimento da
problemática do crime de abuso de confiança fiscal, importa, primeiro,
determinar, aqui e agora, duas coisas, como postulados epistemológicos: a
relação jurídico‑material suposta pelo tipo (artigo 105.º do RGIT) e as
relações jurídico‑materiais provocadas ou induzidas pelo CIVA e pelo CIRS, bem
como as normas da LGT e do POC (Plano Oficial de Contabilidade) que lhe são
aplicáveis.
3.ª – Qual ponto primevo e comum àqueles paradigmas – quer o penal
quer os das espécies de imposto em causa –, está uma relação de trabalho, não
escolhido e não remunerado, coercivamente imposta por lei ao sujeito passivo, em
que este, em concepção benévola, é colocado na posição de sujeitado ou, em
concepção real, é colocado em posição de servidão. Por ser uma relação imposta,
com sujeição a penas civis (juros usurários), contra‑ordenacionais e penais, o
sujeito activo – o Estado – fica assim investido no estatuto de dominus – de
dono, em vernáculo – da liberdade do sujeitado ou servo.
(Esta é uma realidade incontornável que, por isso, se impetra, para
lograr efectiva resposta judicativa).
4.ª – Para justificar a sanção penal contra aqueles que não cumprem
com perfeição aquela injunção, o artigo 105.º (e também o 107.º) do RGIT
considera como elementos centrais do tipo a não entrega ao credor tributário das
quantias que o devedor, constituído por substituição do devedor originário,
liquida num dado momento das relações económicas que estabelece com este, pelo
período compreendido entre a data limite para fazer aquela dita entrega e os
prazos estabelecidos nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
O dever de entrega é típico das relações obrigacionais para entrega
de coisa certa; por isso, o tipo pressupõe a entrega de coisa certa, por parte
do devedor originário ao devedor substituto (dever que deverá ser cumprido
durante os períodos referidos), que, assim, a recebe por título não translativo
da propriedade sobre essa coisa (posse precária ou detenção), com a obrigação
de a entregar ao dominus, e que ele, invertendo essa posse precária ou detenção,
não só a não entrega ao dono, como a faz sua.
A lei penal configura, assim, essa relação como uma relação real ou
dominial, assente numa confiança afirmada pelo possuidor precário, cuja
violação integraria o paradigma do abuso de confiança.
Todavia:
5.ª – As relações de IVA são reguladas, mormente quanto à
constituição, liquidação e pagamento desse imposto, pelos artigos 7.º e 8.º,
19.º e 22.º e 26.º, 28.º e 40.º do CIVA, respectivamente, e contas 21, 22 e 243
do Plano Oficial de Contabilidade.
Nas operações económicas tributadas em IVA, o agente económico
sujeitado a esse regime tem que praticar actos de liquidação de IVA aos
agentes económicos a quem faz transmissões de bens e serviços, e fica
constituído na obrigação de pagar o IVA que lhe é liquidado aos agentes
económicos que lhe fornecem os factores que utiliza na produção dos bens ou
serviços que transmite aos seus clientes.
No momento em que lhe são feitas liquidações, o agente sujeitado
fica constituído na obrigação de pagar àquele que lhe fez a transmissão de bens
ou serviços o IVA que, por ele, lhe foi liquidado – mas só exigível no termo do
prazo que ambos convencionaram … –, e, concomitantemente, constitui‑se credor
do Estado pela mesma quantia que lhe foi liquidada. No momento em que ele faz
liquidações, o fenómeno é o inverso daquele: pelo que liquida constitui‑se
credor daquele a quem transmite bens ou serviços, pelo valor do IVA que
liquidou, valor exigível no prazo que convencionaram, e, concomitantemente,
constitui‑se devedor dessa quantia ao Estado.
Da análise destas normas resultam ainda as seguintes consequências:
o IVA que é liquidado ao agente económico, bem como o que ele liquida aos seus
clientes, tem a natureza de obrigação pecuniária, cumprível por coisa fungível
– dinheiro –, e não coisa específica ou individualizada; os prazos de pagamento
ao Estado não coincidem com os prazos em que o agente económico se constitui
devedor ou credor, como o demonstra o artigo 71.º do CIVA, maxime os seus n.ºs 8
e ; ao Estado não é devido o que o agente económico liquidou, mas a diferença
entre o que liquidou e o que lhe foi liquidado, podendo até dar‑se o caso, muito
frequente, de ele não ser devedor mas credor do Estado.
As relações de IVA assim constituídas têm as seguintes
características: são contratos administrativos formados coercivamente em forma
de conta‑corrente (seguem o paradigma dos contratos comerciais de
conta‑corrente do artigo 334.º e seguintes do Código Comercial), cujas
prestações são realizáveis com dinheiro do devedor – agente económico ou Estado
–.
Por isso, essas relações têm a natureza de relação
patrimonial‑obrigacional e pecuniária, e não de relação real ou
patrimonial‑dominial.
6.ª – As relações de IRS são reguladas, mormente quanto à
liquidação e pagamento desse imposto, pelos artigos 2.º, 3.º e 8.º e 98.º,
99.º, 100.º e 101.º do CIRS e contas 241 e 242, 262 (pessoal), 621 (serviços) e
62219 (rendas) do POC.
Nas operações económicas tributadas em IRS, nomeadamente
resultantes de trabalho independente ou dependente, prestado pelo devedor
originário ao agente económico, este tem que praticar os actos de liquidação do
imposto devido por aquele, e pagá‑lo ao Estado dentro do prazo previsto na lei.
A liquidação é feita no momento em que a remuneração da prestação de trabalho é
exigível. Nesse momento, por força de lei e em concomitância, o devedor
originário fica eximido da sua obrigação de pagar ao Estado a prestação
pecuniária de imposto, que, assim, se transmite para o adquirente da prestação
de trabalho (transmissão singular de dívida), o qual, correspectivamente,
adquire o crédito do Estado sobre o dador de trabalho (transmissão de crédito),
com o direito de compensar esse crédito no crédito do dador de trabalho.
No caso do tomador do trabalho não compensar o crédito adquirido no
crédito do dador de trabalho, nem por isso ele fica eximido da obrigação de
pagar ao Estado a dívida de imposto que lhe foi transmitida, facto que
demonstra a impossibilidade do fenómeno da retenção, previsto como elemento do
tipo (cf. o inciso do artigo 98.º do CIRS que diz «ainda que presumido» o
pagamento).
As relações de IRS assim constituídas têm as seguintes
características: são contratos administrativos formados coercivamente, de
execução ou cumprimento periódico, cujas prestações são realizáveis com
dinheiro do agente económico, na sua vinculação com o Estado, e em que a
prestação do devedor originário, perante o dador de trabalho, tanto pode ser
realizada com dinheiro daquele como pela compensação dos créditos constituídos
entre ambos.
Por isso essas relações têm a natureza de relação
patrimonial‑obrigacional e pecuniária, e não de relação real ou de relação
patrimonial‑dominial, como resulta da estrutura e função das normas que as
criam e regulam (a palavra ‘retenção’ nelas aposta é um sofisma).
7.ª – Como essas relações – de IVA e IRS – se formam coercivamente,
sendo relações de trabalho imposto, não escolhido e não remunerado, a sua
constituição não integra uma qualquer manifestação de confiança, quer por parte
do Estado quer por parte do devedor substituto, porque a confiança é
incompatível com as situações de sujeição ou servidão.
8.ª – Por outro lado, as relações ajuizadas – de IVA e IRS –
incrustam‑se, por força de lei, em todas as relações comerciais do agente
económico, que, ao longo de cada exercício anual, podem traduzir‑se em dezenas
ou centenas de milhar de operações (ou até milhões). Essas operações, mesmo as
que provocam situações de natureza real ou dominial, têm sempre natureza
patrimonial‑obrigacional e pecuniária, e estão inscritas no domínio do mais
elevado risco de incumprimento, que se tem exponenciado com a crescente
volatilidade dos mercados. Por isso, o Estado, ao instituir esta forma de
cobrança dos créditos de imposto, não pode afirmar a frustração da sua
confiança (ubi comoda ibi incomoda) de que os seus créditos serão sempre
satisfeitos, porque o risco é constância das relações de crédito.
9.ª – Esta alegada caracterização das relações tributárias em causa,
instituídas por força de lei, revela uma insanável contradição lógica e
ontológica do paradigma penal com o paradigma patrimonial, com repercussões
axiológicas – éticas – que os Tribunais não podem judicativamente ignorar.
C) Questões prévias dirimidas na sentença.
10.ª – A douta decisão recorrida tomou posição expressa sobre a
descriminalização do facto, decorrente do disposto no artigo 105.º, n.º 4,
alínea b), do RGIT, na redacção da Lei n.º 53‑A/2006, bem como da
inconstitucionalidade do tipo, sustentadas pelo recorrente, mas não tomou
posição sobre a notificação ordenada pelo MP, nos termos e para os efeitos do
disposto naquela norma.
(Neste ‘grupo’ de conclusões o recorrente não toma posição sobre a
questão da constitucionalidade, que aduziu na contestação, que vai ser levada em
conta nas conclusões 24.ª e seguintes).
11.ª – O Tribunal recorrido, na esteira do Acórdão Uniformizador de
Jurisprudência n.º 6/2008 do STJ, considerou a previsão da alínea b) do n.º 4
do artigo 105.º referido, promulgado depois da ocorrência do facto dos autos,
como mera condição objectiva de punibilidade, porque o crime de abuso de
confiança fiscal se consuma com o incumprimento da prestação tributária no
termo do prazo adrede estipulado na lei.
Com ressalva do muito respeito devido, também o Tribunal recorrido
(como o STJ) cometeu um erro de análise da norma. Assim:
i) O erro dogmático resulta da confusão entre condições objectivas
de punibilidade – que pressupõem a consumação do crime acompanhado da
existência ou inexistência de pressupostos legais que permitam o exercício do
ius puniendi – e pressupostos adicionais de punibilidade (para alguma doutrina)
e punibilidade (para outras concepções doutrinais), em que estes ainda são
elementos do tipo (como é o caso da declaração judicial de insolvência, que se
junta aos factos típicos, para que o crime de insolvência dolosa seja punível).
ii) O erro de análise resulta do facto de, na redacção anterior do
n.º 4 do artigo 105.º, o prazo de 90 dias ser pressuposto adicional de
punibilidade ou elemento de punibilidade (ao contrário do que pressupunha o n.º
6 do artigo 24.º do RJIFNA, em que esse prazo era pressuposto de
procedibilidade).
(As alterações que o artigo 105.º, n.ºs 1 e 4, do RGIT introduziram
na normatividade anterior – artigo 24.º, n.ºs 1 e 6, do RJIFNA – revelam que a
lei passou a tratar e a entender a mesma realidade fáctica de modo
substancialmente diferente, trato e entendimento).
O erro de análise exponencia‑se pela desconsideração que tem sido
feita da alteração sofrida pelo artigo 105.º, n.º 4, pela Lei n.º 53‑A/2006.
Na verdade, até 31 de Dezembro de 2006, o tipo legal tinha como
elementos essenciais: o não pagamento da dívida pelo prazo de 90 dias a contar
do termo do prazo em que devia ter sido feita.
Todavia, a partir de 1 de Janeiro de 2007, o crime pressupõe, inter
alia:
1) O não pagamento da dívida até ao termo do prazo legal;
2) o decurso de 90 dias após o termo daquele prazo;
3) a aplicação de uma coima, em processo de contra-ordenação, com a
verificação de todos os elementos deste procedimento, ao devedor do imposto;
4) a interpelação admonitória ao devedor para pagar, no prazo de 30
dias, a dívida, juros moratórios e coima.
O tipo anterior era, pois, a omissão do pagamento da dívida – só da
dívida – pelo prazo de 90 dias; o tipo actual acrescenta – agravando – ao valor
da dívida o valor dos juros e da coima, mas só releva – atenuando –, só é
‘verdadeira’ omissão, depois de verificada a persistência decorrente da
indiferença perante a admonição.
Estes elementos alteram o tipo da conduta e a culpa do tipo, bem
como o tipo de culpa. Por isso, as condutas ocorridas até 31 de Dezembro de
2006 estão descriminalizadas, tendo a douta sentença recorrida violado o
disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição e artigo 2.º, n.º 2, do Código
Penal.
13.ª – A douta sentença recorrida pressupõe a notificação ordenada
pelo MP, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do
RGIT, como notificação válida e operante. Ora, só a Administração Tributária
tem competência legal – e até técnico‑material – para fazer, em acto
administrativo, o apuramento correcto da dívida, juros e coima, e, assim, fazer
a comunicação admonitória prevista naquela norma. Esses actos estão sujeitos à
impugnação graciosa e/ou judicial prevista nas leis tributárias e no artigo
268.º da Constituição, e até nos artigos 2.º e 111.º da Lei Fundamental. A
reclamação graciosa é feita para os órgãos administrativos hierarquicamente
superiores e a impugnação judicial é feita para os Tribunais Administrativos e
Fiscais. A notificação em causa é um acto absolutamente nulo ou inexistente, que
do mesmo modo inquinou a sentença recorrida, porque contende com os princípios e
normas constitucionais aqui invocadas.
D) Dos factos julgados provados.
(…)
E) Dos factos não relevados na sentença.
(…)
F) Dos fundamentos de direito. Da pena aplicada.
20.ª – O tipo legal de crime por que o recorrente foi condenado
inscreve‑se no direito penal secundário, extravagante ou (e) acessório, por
contraposição ao direito penal primário, de justiça ou (e) essencial. Aquele ao
serviço de políticas económicas ou sociais, com a marca do transitório ou
efémero, da conveniência e oportunidade política; este ao serviço dos bens
essenciais e perenes, do homem e da comunidade. Aquele sancionador de actos
relativamente censuráveis; este sancionador de actos absolutamente
intoleráveis.
Tendo‑se em conta o disposto nos artigos 5.º, 61.º, alínea d), 105.º
e 114.º do RGIT, com o seu ‘mundo de contradições lexicais e sistemáticas’, o
facto tipificado ou é simultaneamente contra‑ordenação e tipo legal de crime,
ou, no termo do prazo previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º,
transmuta‑se de contra‑ordenação tributária em crime de abuso de confiança
fiscal.
Atento o teor das normas referidas nas conclusões 3.ª a 9.ª, o facto
pressupõe relações com a estrutura fáctica e jurídica aí assinalada,
nomeadamente, como ponto nodal (que se converte em elemento do tipo
contra‑ordenacional e criminal), o incumprimento da prestação tributária.
Por isso, tanto o tipo contra‑ordenacional como o tipo criminal são
condutas omissivas – ou seja, o tipo criminal concretiza‑se em forma de
comissão por omissão.
21.ª – Dada a natureza do ordenamento onde se insere o crime de
abuso de confiança fiscal (onde não há, como vimos, a instituição de uma relação
de confiança), todos os requisitos de concretização do tipo devem ser
escrutinados judicativamente de forma muito clara (sem questionarmos, neste
ponto, a legitimidade ou validade legal de tal ordenamento).
Esse escrutínio exigente não foi feito na sentença recorrida (para
além de tudo o que já foi visto precedentemente).
22.ª – Como também já se disse, não existe nos autos prova da
deliberação, livre e consciente do recorrente de se apropriar para a sociedade
das quantias referidas na sentença, e demonstrado foi que o direito a essas
quantias se mantém, como existe património para serem pagas. Demonstrado também
foi que a sociedade não possuía meios financeiros para pagar as dívidas no termo
do prazo em que deviam ter sido pagas, sendo certo que essa prova competia à
acusação.
Ora, a conduta omissiva pressupõe a existência de forças para que a
conduta seja praticada. Como essas forças não existiam, não se verifica a
existência dos elementos do dolo e nem o poder de agir em conformidade com o
comando, na situação.
Daqui decorre a violação do disposto nos artigos 14.º e 17.º, n.º 1,
do Código Penal.
A conduta também não é censurável por negligência, porque a lei não
incrimina a conduta por esta forma de culpa.
23.ª – Foi julgado provado que o recorrente tem mais de 70 anos, não
tem fortuna e vive de uma pensão de reforma de 1000€, da qual está penhorada
1/6.
Por força desta realidade fáctica, ao recorrente não podia ser
imposta, como condição de suspensão da pena, o pagamento da dívida que, até, …
não deve (como atrás se demonstrou), se fosse aplicado o artigo 51.º, n.º 2, do
Código Penal.
Aquela condição foi imposta com base no disposto no artigo 14.º, n.º
1, do RGIT, que tem a natureza de ‘lei‑medida’ ou ‘lei‑providência’, de todo
incompatível com o direito penal, porque não tem o carácter de princípio
ético‑jurídico, mais se assemelhando a uma ordem concreta, que atenta contra o
disposto nos artigos 202.º, n.ºs 1 e 2, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição.
VI – Inconstitucionalidades.
24.ª – Como já foi afirmado, mais uma vez, o crime de abuso de
confiança fiscal tem na sua base uma relação jurídica de trabalho
coercivamente imposto ao agente, trabalho não escolhido nem remunerado,
sancionado contra‑ordenacional e penalmente, sanção esta que ou é simultânea ou
sucessiva. A partir daí, estabelecem‑se relações com inúmeras prestações de
natureza pecuniária (patrimoniais‑obrigacionais), que, em cada exercício
anual, podem ser de dezenas ou centenas de milhar, incrustadas em relações de
idêntica natureza, de muito mais elevado número, em que estas estão sujeitas a
elevados riscos de incumprimento, os quais se comunicam àquelas relações
tributárias.
Estas relações tributárias, com tal estrutura induzida por lei, têm
a natureza de contrato administrativo, formado coercivamente, cujo objecto é,
do lado do devedor, o dever de pagar uma quantia certa em dinheiro, e, do lado
do credor, o poder de exigir tal quantia.
25.ª – Face a esta realidade, fáctica e jurídica, a incriminação do
artigo 105.º é inconstitucional, porque, na sua origem, está uma relação de
trabalho imposto, não escolhido e não remunerado, instituída por razões de ordem
política (conveniência e oportunidade política), que podia ser substituída pelo
dever de o devedor originário pagar os impostos devidos. Nessa relação o sujeito
activo é colocado na posição de dominus ou ‘senhor’, enquanto o sujeito passivo
é colocado na veste de sujeitado ou servo e, ao mesmo tempo, na veste de agente
da Administração Pública.
O artigo 105.º do RGIT viola assim o disposto nos artigos 266.º, n.º
2, 267.º, 271.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, na medida em que faz do devedor
um agente da administração pública; os artigos 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 1, alínea
a), 61.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, artigo 23.º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, artigo 6.º, n.º 1, do Pacto Internacional Sobre
Direitos Económicos, Sociais e Culturais, artigo 8.º, n.º 3, alínea a), do Pacto
Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, aplicáveis por força dos
artigos 8.º, n.º 2, e 16.º, n.º 1, da Constituição, na perspectiva de trabalho
coercivamente imposto, não escolhido e não remunerado.
26.ª – Atento o objecto – a prestação –, a relação tem por objecto o
pagamento de uma quantia pecuniária, que se cumpre com dinheiro do obrigado,
mesmo que ele não tenha recebido o correspectivo do devedor originário, e que
se constitui devedor através de um contrato administrativo que lhe foi
coercivamente imposto, sob a ameaça de pena de prisão. Nesta perspectiva, o
artigo 105.º do RGIT viola o disposto no artigo 3.º da Declaração Universal dos
Direitos do Homem; artigos 9.º e 11.º do Pacto Internacional Sobre Direitos
Civis e Políticos; artigo 1.º do Protocolo n.º 4 da Declaração Europeia dos
Direitos do Homem, ex vi artigos 8.º, n.º 2, e 16.º, n.º 1, da Constituição e
artigo 27.º, n.º 1, deste Diploma Fundamental.
27.ª – O facto previsto no artigo 105.º do RGIT, aqui qualificado ou
tipificado como tipo legal de crime, também está previsto no artigo 114.º do
RGIT como tipo legal contra‑ordenacional. Malgrado as contradições
intra‑sistemáticas decorrentes do disposto nos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, 61.º,
alínea d), 2.º, n.º 2, e 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, esse facto, que serve
de base ao tipo legal de crime e tipo legal de contra‑ordenação tributária ou
é, por isso, simultaneamente, contra‑ordenação e crime, ou é, sucessivamente,
primeiro contra‑ordenação e depois crime.
Consequentemente, esse mesmo facto ou é simultaneamente,
ético‑socialmente uma conduta axiologicamente relevante e neutra, ou é,
primeiro, ético‑socialmente neutra e depois transmuta‑se em conduta relevante.
Seja como for, os princípios lógicos do entendimento racional
mostram‑nos que, seja qual for o juízo que se sufrague (o da simultaneidade ou
sucessividade), o absurdo é inevitável: o mesmo ente não pode ser ele e o seu
contrário (princípio da não contradição), nem ser ele – a um mesmo tempo ou
posteriormente – e terceiro (princípio de terceiro ou meio excluído). A lógica
mostra‑nos assim que a lei não respeita o princípio da verdade, nomeando uma
impossibilidade ôntica, com reflexos axiológicos dramáticos, na medida em que,
utilizando um sofisma, quando ficciona apropriações, ‘legitima’ a penalização
penal proibida pelos superiores princípios do ordenamento jurídico
(nomeadamente, o princípio da eminente dignidade da pessoa humana, da verdade,
de justiça, de direito, da proporcionalidade, da boa fé e da unidade do sistema
jurídico).
A norma viola, por esta perspectiva, os princípios ora invocados,
bem como as normas constitucionais (onde alguns daqueles estão presentes)
seguintes: 1.º, 2.º, 13.º, 27.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
28.ª – Por seu lado, o disposto no artigo 14.º do RGIT, mormente a
directiva do seu n.º 1, enquanto regra de reforço dos injustos objectivos
prosseguidos pelo artigo 105.º, é uma regra – quase em forma de ordem dirigida
pelo legislador aos Tribunais – sem dimensão jusnormativa; o seu conteúdo é
político‑normativo. A intenção dessa norma é de reforçar – e até de aliciar os
devedores – os mecanismos de cobranças de dívidas, colocando esse reforço até
acima de idênticas normas que permitem a suspensão de penas de prisão por certos
crimes de sangue, como o permitem as disposições dos n.ºs 2 e 3 do artigo 51.º
do Código Penal. Isto revela que, para o legislador, a espórtula vale mais que a
integridade física e moral da pessoa humana. Por isso, o disposto no n.º 1 do
artigo 14.º é instrumento de uma estratégia político‑administrativa. O seu
conteúdo outro não é que o do pragmatismo da conveniência e oportunidade
política, própria da ‘lei‑medida’ ou ‘lei‑providência’.
Nesta perspectiva, o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT viola todas as
normas constitucionais já invocadas neste grupo de conclusões, e, em
específico, o disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 9.º, 13.º, 18.º, n.º 2,
27.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição.
Esta disposição tem ainda outro alcance insuportável. Diz a sua 1.ª
parte: ‘a suspensão … é sempre condicionada ao pagamento …’. Ou seja, desde que
aos factos só possa ser aplicada pena de prisão, o juiz só tem uma de duas
alternativas: ou aplica pena efectiva ou suspende a pena. Se a suspender, a
condição da suspensão já tinha sido julgada – não pelo juiz mas pelo
legislador!
Isto outra coisa não significa que o legislador (em tempos em que a
legislação se hipostasiou na de administração …) também julga o facto.
Esta norma, a um mesmo tempo, arrasa tragicamente com a autonomia e
sentido específicos do direito; burocratiza os Tribunais, atacando a sua
independência e o seu dever de fundamentação das suas decisões.
Consequentemente, os Tribunais deixam de administrar justiça em nome do Povo,
ao qual devem prestar contas, para administrar a justiça em nome do Estado (isto
já foi visto, em 1950, por Hannah Arendt, O Sistema Totalitário, Pub. D.
Quixote, págs. 301 a 319, maxime págs. 304 e seguintes).
Com o ‘é sempre condicionada ao pagamento’, o artigo 14.º, n.º 1, do
RGIT atinge fragorosamente o disposto nos artigos 202.º, n.ºs 1 e 2, 203.º,
204.º e 205.º, n.º 1, da Constituição.»
3.2. O acórdão ora recorrido julgou improcedentes as questões,
designadamente de inconstitucionalidade, suscitadas na motivação do recurso do
ora recorrente, desenvolvendo, para o efeito, a seguinte fundamentação:
«III – O Direito.
Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito do recurso é
delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (artigos 403.º e 412.º do
CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 410.º, n.º 2,
do CPP e Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 19 de Outubro de
1995, publicado no Diário da República, I Série‑A, de 28 de Dezembro de 1995).
As questões suscitadas pelo recorrente nas suas conclusões podem
resumir‑se do seguinte modo:
1) descriminalização do facto;
2) ilegalidade e inconstitucionalidade da notificação feita pelo M.º
P.º nos termos do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT;
3) impugnação da matéria de facto;
4) aplicação do direito aos factos;
5) inconstitucionalidade da suspensão da pena condicionada ao
pagamento.
1) Perante a redacção do artigo 105.º do RGIT, vigente na data em
que a acusação foi proferida, é inquestionável que os factos descritos em tal
peça processual integravam os ilícitos criminais cuja prática foi imputada (para
além do mais) ao arguido/recorrente.
Contudo, considerando as alterações que o artigo 95.º da Lei n.º
53‑A/2006, de 29 de Dezembro, introduziu ao n.º 4 daquele preceito, impõe‑se
determinar se, entretanto, a conduta imputada aos arguidos foi descriminalizada
ou se houve alterações a nível do tipo legal de ilícito em causa. Enquanto que a
redacção anterior estabelecia que ‘Os factos descritos nos números anteriores
só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo
legal de entrega da prestação’, a nova redacção dispõe que ‘Os factos descritos
nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias
sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada
à administração tributária através da correspondente declaração não for paga,
acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30
dias após notificação para o efeito’.
A relevância do acrescento contido nesta alínea b) e as
consequências que dele resultam para os processos que já anteriormente se
encontravam pendentes veio sendo debatida na jurisprudência e na doutrina,
merecendo diferentes respostas de acordo com a forma como era configurada, em
termos dogmáticos, a nova exigência de notificação dela constante (condição de
punibilidade, condição de procedibilidade, causa de exclusão da punição).
Consensual era, apenas, que a questão só se coloca relativamente
aos casos em que foi feita a declaração do montante do imposto devido, embora
sem a entrega do respectivo montante (como sucede no caso de que nos ocupamos),
estando excluídos aqueles em que o contribuinte omite tal declaração.
Mostravam‑se já consolidados vários entendimentos, de que nos dá
conta o acórdão desta Relação do Porto, de 5 de Dezembro de 2007 (Proc. n.º
0416130, relatado pelo Desembargador Joaquim Gomes), de que se transcreve o
pertinente excerto:
‘A propósito deste novo segmento normativo e como de certo modo
seria expectável, têm surgido as mais díspares interpretações (...), que
podemos cingir nas seguintes:
a) Trata-se de uma condição objectiva de punibilidade, pelo que, não
tendo havido uma modificação dos respectivos elementos constitutivos do tipo,
não ocorre nenhuma hipótese de descriminalização.
Mas por ser uma nova condição mais benéfica para o arguido, mediante
aplicação da lei mais favorável, dever‑se‑á conceder‑lhe essa nova possibilidade
de pagamento, notificando‑o para o efeito, mediante o reenvio dos autos à
primeira instância – neste sentido acórdãos do STJ, de 7 de Fevereiro de 2007
(recurso n.º 4086/06) e de 21 de Março de 2007 (recurso n.º 4079/06), acórdão da
Relação do Porto, de 14 de Fevereiro de 2007 (recurso n.º 0043/04);acórdãos da
Relação de Guimarães, de 25 de Junho de 2007 (recursos n.ºs 2498/06 e 2312/06)
– ou oficiar‑se à Administração Fiscal para que proceda a essa notificação –
acórdãos da Relação de Coimbra, de 21 de Março de 2007 (procs. n.º 232/04.2IDGRD
e n.º 825/98.5TALRA).
b) Configura uma condição objectiva de punibilidade, que também
está sujeita ao princípio da legalidade, o que implica, entre outras coisas, a
proibição da retroactividade desfavorável ao agente.
Não se verificando, nos processos pendentes, a notificação prevista
na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º, a aplicação da lei nova leva à
descriminalização dos correspondentes factos – neste sentido, acórdão da
Relação do Porto, de 6 de Junho de 2007 (recurso n.º 0384/04), e acórdãos da
Relação de Coimbra, de 28 de Março de 2007 (procs. n.º 59/05.4IDCTB e n.º
178/04.4IDACB).
c) A nova exigência representa um alargamento do tipo de ilícito,
co‑fundamentadora da gravidade da ilicitude criminal da omissão e da
correspondente criminalização, sendo por isso uma lei
descriminalizadora/despenalizadora relativamente às situações anteriores à
entrada da sua vigência em que não ocorreu a notificação agora prevista –
veja‑se neste sentido Taipa de Carvalho, O Crime de abuso de confiança fiscal,
2007, pp. 41/3.
d) A alteração legislativa modificou o ilícito do abuso de
confiança fiscal, introduzindo um regime específico e autónomo para os casos
em que as prestações deduzidas e declaradas não foram entregues, fazendo
depender o seu preenchimento da desobediência por parte do agente a uma
notificação da administração tributária para ‘pagar’ as prestações deduzidas e
declaradas. Havendo um estreitamento do ilícito criminal e um alargamento
daquelas que integram as condutas que integram a contra‑ordenação prevista no
artigo 114.º do RGIT, dá‑se uma descriminalização – neste sentido Costa Andrade
e Susana Aires de Sousa, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, n.º
1, p. 53 e seguintes, particularmente pp. 71/2.
e) Trata-se de uma condição de procedibilidade, sem relevo quanto ao
vencimento da obrigação tributária, nem quanto ao início do prazo de mora –
neste sentido, acórdão da Relação do Porto, de 11 de Abril de 2007 (Colectânea
de Jurisprudência, tomo I, p. 216).
f) Representa uma condição de exclusão da punibilidade, como
sustentamos, na medida em que a regularização da situação tributária leva à
desnecessidade da pena, estando essa faculdade na disponibilidade do agente,
muito embora exista uma vertente adjectiva, ou seja, a sua notificação para
pagar a prestação tributária que devia ter sido entregue. Nestes casos, e em
virtude da lei nova prever uma possibilidade de afastar a punição, deverá
proceder‑se a essa notificação – acórdãos da Relação do Porto, de 11 de Julho
de 2007 (recurso n.º 3147/07) e de 10 de Outubro de 2007 (recurso n.º 2154/07,
de que o signatário foi relator conjuntamente com os mesmos adjuntos) –
oficiando‑se, para o efeito, à Administração Fiscal – acórdão da Relação de
Coimbra, de 28 de Março de 2007 (proc. n.º 72/03.6IDAVR).’
Esta querela mostra-se ultrapassada com o Acórdão do STJ n.º 6/2008,
de 9 de Abril de 2008 (Diário da República, I Série, de 15 de Maio de 2008), que
fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora:
‘A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT,
na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição
objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código
Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em
consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve
o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo
[alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT].’
Face à jurisprudência uniformizadora assim fixada, temos de
concluir que a conduta praticada pelo recorrente não se mostra
descriminalizada e que a mesma só não seria punível se, decorrido o prazo de 30
dias a que alude a notificação efectuada através do despacho recorrido, se
verificasse, dentro do prazo de 30 dias a contar da mesma, o pagamento das
quantias nela referidas.
2) Sustenta ainda o arguido/recorrente que a notificação a que alude
o n.º 4 do artigo 105.º do RGIT cabe em exclusivo à Administração Tributária,
pois só esta tem competência legal e técnico‑material para, em acto
administrativo, fazer o apuramento correcto da dívida, juros e coima e fazer a
comunicação admonitória prevista na norma, pelo que a notificação em causa é um
acto nulo ou inexistente.
A questão em apreço prende‑se com a determinação de qual a entidade
que tem competência para efectuar a notificação a que o normativo acima
referido alude e não é nova, tendo vindo a ser alvo de várias decisões dos
tribunais superiores.
A corrente jurisprudencial que julgamos ser a maioritária e com a
qual concordamos entende que, pelo menos no caso em que os processos pendentes
já tenham transitado para os serviços do M.º P.º no momento em que entrou em
vigor a alteração legislativa que veio estabelecer aquela notificação (como
sucede no presente caso), é indiferente que seja o M.º P.º a efectuá‑la ou a
solicitar à Administração Fiscal ou à Segurança Social (conforme seja o caso)
que o faça. E isto porque, desde logo, a lei nada diz sobre quem deve efectuar
a notificação em causa. É possível que, neste caso como em outros, o legislador
não tenha previsto as perplexidades e divergências que a alteração ao n.º 4
daquele artigo 105.º iria causar, em particular no que concerne aos processos
que já se encontravam pendentes à data da sua entrada em vigor, não tendo
cuidado de regular estas situações, seja através de comandos explícitos, seja
através de normas transitórias. E, até, que tenha pressuposto como padrão para
a previsão que fez ao criar a norma que ela se iria aplicar a processos
iniciados a partir de então, em que, pelo normal fluir dos mesmos, a notificação
iria ser efectuada na fase inicial das investigações e, por isso, pela
Administração Tributária ou pela Segurança Social, conforme a natureza das
prestações devidas e declaradas, mas não entregues. Mas também se pode cogitar a
hipótese de a omissão de regulamentação neste particular ter sido intencional,
deixando em aberto a possibilidade de o tribunal decidir, nos casos em que o
processo já se encontrasse em fases mais avançadas, se a devia efectuar ele
próprio ou não. Sobretudo se tivermos em conta que, relativamente à notificação
para fins similares estabelecida no n.º 6 do mesmo preceito legal, vem
expressamente estabelecido que ela é efectuada pela Administração Tributária
(sê‑lo‑á pela Segurança Social quando em causa esteja o crime do artigo 107.º,
já que a este também é aplicável o disposto naquele n.º 6). E bem se compreende
que assim seja, pois são estas entidades que efectuam as averiguações
preliminares e é no decurso destas que se impõe determinar se os autos hão‑de ou
não prosseguir, sendo certo que o devedor pode provocar a extinção do
procedimento criminal pelo pagamento das prestações ou contribuições em dívida,
acrescidas de juros e coima dentro do prazo de 30 dias subsequente à
notificação para efectuar tal pagamento.
Seja como for, o certo é o que legislador se limitou a fazer
depender a punibilidade dos crimes de abuso de confiança previstos no RGIT do
não pagamento das prestações devidas e legais acréscimos em prazo contado a
partir da notificação que para o efeito há‑de ser feita ao agente do ilícito,
sem definir quem a ela há‑de proceder. Assim, onde a lei não distingue, não
vemos como se possa defender que só a Administração Tributária ou a Segurança
Social – e não o Tribunal ou o M.º P.º, consoante os autos tenham ultrapassaram
ou não a fase de inquérito – tenham competência para a efectuar.
Em contrário também não nos parece colher o argumento de que só
aquelas, e não este, estarão em condições de contabilizar devidamente os
montantes que o agente responsável pelo seu pagamento é chamado a pagar para
evitar ser criminalmente punido. Nada na lei nos permite concluir pela exigência
acrescida de que o concreto montante em que as prestações, os juros e a coima a
pagar se traduzem seja indicado na própria notificação. O que o legislador teve
em vista, na prossecução de objectivos de política criminal e fiscal que
visavam não só a diminuição de processos, mas sobretudo uma mais rápida e fácil
arrecadação de receitas, foi, tão‑só, dar aos agentes devedores uma segunda
oportunidade de efectuarem o pagamento das quantias devidas a cada um daqueles
títulos, interpelando‑os para o efeito, e oferecendo‑lhes como contrapartida
(caso correspondam positivamente a essa interpelação), a impunibilidade
criminal das respectivas condutas. Ora, os devedores tributários que estejam
interessados em fazê‑lo dispõem de tempo mais do que suficiente para
diligenciarem no sentido de, junto da entidade própria e que também é
naturalmente aquela junto da qual o pagamento há‑de ser efectuado, averiguarem
o montante concreto e total que devem pagar, sendo certo que, pelo menos o
montante das prestações ou contribuições já o saberão, além do mais porque já as
declararam. E é evidente que, no caso de sentirem dificuldades em obter as
informações necessárias junto daquelas entidades, sempre poderão transmiti‑las
ao tribunal, que não deixará de providenciar para que daí não resulte prejuízo
para aqueles que só não efectuem o pagamento atempado devido a falhas que não
sejam da sua responsabilidade.
Em conclusão: nada na lei impõe que seja a Administração Tributária
ou a Segurança Social a efectuar a notificação, nem impede o M.º P.º ou o
Tribunal de a efectuar, assim como também nada impõe que a notificação
contenha a concretização dos montantes que hão‑de ser pagos a título de
prestações ou contribuições, de juros ou de coima.
Aliás, a este propósito já se pronunciou o Tribunal Constitucional,
no Acórdão n.º 409/2008, de 31 de Julho de 2008, concluindo que ‘não é
inconstitucional a norma constante do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime
Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho,
na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro,
interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a
notificação aí prevista’.
[Omite‑se a transcrição de excertos da fundamentação do Acórdão n.º
409/2008, que será reproduzida infra, 5.]
Aliás, quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina
essa notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas
típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto
titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar
uma decisão de acusação ou de não acusação.
Conclui‑se assim que o magistrado do M.º P.º que ordenou a
notificação em causa tinha e tem competência para ordenar a notificação a que
alude o artigo 105.º, n.º 4, do RGIT, atenta a fase processual em que os autos
se encontravam, não estando por isso o respectivo despacho recorrido ferido de
qualquer invalidade.
3) Da impugnação da matéria de facto:
(…)
4) Aplicação do direito aos factos:
Sustenta o recorrente que a decisão recorrida violou o disposto nos
artigos 14.º e 17.º, n.º 1, do Código Penal, na medida em que não existe prova
da deliberação livre e consciente do recorrente de se apropriar para a
sociedade das quantias referidas na sentença, sendo certo que existe património
suficiente para esse efeito, embora a sociedade não possuísse meios financeiros
para pagar as dívidas no termo do prazo.
De acordo com o artigo 24.º do RJIFNA, constituía elemento objectivo
do crime em apreço a apropriação, total ou parcial, das quantias que o agente
estava obrigado a entregar ao Estado, como credor tributário.
Retomando os ensinamentos do Prof. Eduardo Correia, afirma o Prof.
Figueiredo Dias que ‘a apropriação não pode ser um fenómeno interior..., mas
exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um
comportamento que o revele e execute. O agente que recebera a coisa uti alieno
passa em momento posterior a comportar‑se relativamente a ela – naturalmente,
através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti
dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a inversão do
título de posse ou detenção e é nela que se traduz e se consuma a apropriação’.
Ainda a respeito do crime de abuso de confiança previsto no Código
Penal, coloca‑se a questão de saber se a sua mera confusão no património do
tomador de dinheiro recebido por título não translativo de propriedade, ou mesmo
o seu uso por este, devem ser tidos por actos concludentes de apropriação.
Embora não falte na doutrina quem assim o julgue, parece mais correcto e mais
próximo da realidade da vida o entendimento, como é o do Prof. Figueiredo Dias,
segundo o qual ‘o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não será
integrado pela mera confusão ou simples uso da coisa fungível, mas, mais tarde,
pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e
sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o dolo
correspondente’.
Esta doutrina tem pleno cabimento na densificação do conceito de
apropriação contido no artigo 24.º do RJIFNA, sem embargo de autores como o
Cons. Alfredo José de Sousa considerar que ‘essa apropriação pode traduzir‑se
na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações
tributárias deduzidas ou retidas (IRS ou IRC) ou liquidadas com obrigação de as
entregar ao credor tributário (IVA)’. Mas, por seu turno, o Prof. Costa Andrade
sustenta que não poderia ser responsabilizado por abuso de confiança o
empresário que, por dificuldades de liquidez, não fizesse a entrega tempestiva
das importâncias, e, para além disso, as utilizasse para pagar salários ou
matérias primas se, ao mesmo tempo, reconhecesse a dívida e tivesse o propósito
de proceder posteriormente à entrega, acrescentando que ‘quando muito, ele
poderia ser sancionado a título de contra‑ordenação’.
Atendo‑nos à matéria de facto, verifica‑se que ‘todos os factos
foram praticados sob a direcção e orientação do arguido/recorrente, actuando em
nome e no interesse da sociedade arguida’, que aquele arguido ‘quis agir da
forma descrita, bem sabendo que depois de ter entregue as declarações de IVA
relativas à actividade da sociedade arguida estava obrigado a proceder à entrega
do correspectivo imposto que havia liquidado e recebido dos seus clientes’ e
‘que estava obrigado a entregar as quantias que reteve a título de pagamento de
imposto devido por trabalho dependente, colocando‑os, assim, nos termos e
prazos legais à disposição dos serviços de Administração Fiscal, o que não
sucedeu nesse prazo, nem nos noventa dias posteriores’. ‘O arguido e a sociedade
arguida sua representada apoderaram‑se das referidas quantias, fazendo‑as suas,
querendo obter uma vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito,
utilizando‑as para fins empresariais, no interesse da empresa e do arguido,
financiando‑se à custa do Estado’.
Estes factos preenchem indubitavelmente o conceito de apropriação.
O recorrente afirma que a sociedade tinha património suficiente,
embora não possuísse meios financeiros para pagar as dívidas ao Estado.
Ora, tal afirmação não é verdadeira. Com efeito, provou‑se que a
sociedade arguida sempre pagou os salários aos seus trabalhadores, bem como as
dívidas cuja entrada em mora pudesse paralisar de imediato a sua actividade,
como as relativas a combustíveis, energia eléctrica e rendas. Ou seja, o
arguido, enquanto sócio gerente da arguida sociedade, optou por manter a
empresa em funcionamento, em detrimento do cumprimento das suas obrigações
fiscais.
Tem‑se, assim, por verificado o elemento apropriação, cuja
ocorrência o recorrente punha em causa, bem como estão preenchidos os demais
elementos do crime previsto no artigo 24.º, n.º 1, do RJIFNA.
Entretanto, o RJIFNA foi revogado e substituído pelo RGIT, em cujo
artigo 105.º se prevê o crime de abuso de confiança. Pese a circunstância de o
novo tipo legal de crime não fazer referência ao elemento ‘apropriação’,
basta‑se com a circunstância de o novo tipo legal exigir apenas a ‘não entrega à
Administração Tributária das prestações deduzidas nos termos da lei’.
Reconhecendo embora que o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º
54/2004, já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade do artigo
105.º do RGIT, o Prof. Costa Andrade teceu considerações acerca desta decisão,
sustentando a inconstitucionalidade de tal preceito, enunciando, para tanto, as
seguintes razões:
– punindo‑se não a apropriação mas a falta de entrega, a lei nova
criou uma descontinuidade normativa em relação à lei anterior;
– a criminalização de qualquer conduta passa necessariamente pela
dignidade penal da conduta e pela carência de tutela penal dos bens jurídicos
por ela ofendidos e consequente necessidade de pena;
– no contexto do RGIT, o mesmo facto – não entrega dolosa – é
tratado simultaneamente como crime (artigo 105.º) e como contra‑ordenação
(artigo 114.º), tendo, portanto, sido convertido em ilícito criminal um facto
que até ali era tratado como mera contra-ordenação;
– as disposições em causa criam um privilégio do Estado‑Fisco, que
vê os seus créditos garantidos pelo jus puniendi, através da mobilização do
arsenal de meios sancionatórios criminais em defesa da efectivação tempestiva
dos seus créditos tributários, denegando o mesmo tratamento aos credores
privados;
– o Estado não dispensa idêntica tutela privilegiada aos seus
credores quando se constitui ele próprio em mora, mostrando‑se, portanto,
violados os princípios constitucionais contidos nos artigos 2.º e 13.º da CRP.
As questões que o recorrente aventa não são novas, já sobre elas se
tendo pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 31 de Maio de
2006, proc. n.º 1294/06‑3, relatado pelo Conselheiro Santos Monteiro, bem como,
em recurso dele, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 61/2007, de 30 de
Janeiro de 2007, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza,
que afirmou a conformidade com a Constituição da decisão tomada naquele primeiro
aresto.
Pretende o recorrente que o facto previsto no artigo 105.º, n.º 1,
do RGIT é tipificado como crime mas também está previsto no artigo 114.º como
contra‑ordenação.
Sem embargo de se dever reconhecer que, com a publicação do RGIT, o
legislador introduziu profundas alterações no crime de abuso de confiança
fiscal, não é menos certo que em ambas as versões se tutela o património
tributário do Estado, sancionando‑se criminalmente o incumprimento do dever de
entrega de prestação tributária que o agente detém por força dos deveres de
colaboração impostos pelas leis fiscais, com base numa relação de confiança.
Conforme se afirmou no mencionado acórdão do STJ de 31 de Maio de 2006, ‘o
legislador não criou, no RGIT, um tipo legal novo, vocacionado para protecção
de distintos interesses, mantendo, no plano dos elementos típicos, uma
persistente identidade. Relevou‑se, agora, a exigência da retenção da prestação
ficar a dever‑se, não a apropriação, para se cair na sua não entrega nos cofres
do Estado, num caso e noutro, sempre dolosa e em detrimento da Fazenda
Nacional’.
‘O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou –
escreve‑se no Acórdão n.º 61/2007 do referido Tribunal – que cabe no âmbito da
liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser
criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação
das regras e princípios constitucionais relevantes na matéria’. E, citando o
Acórdão n.º 1146/96, do mesmo Tribunal: ‘a Constituição não contém qualquer
proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como
sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da
proporcionalidade [...], o legislador goza de ampla liberdade na
individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela’. Vindo a concluir que
‘as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105.º (abuso de confiança
fiscal) e 107.º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa
interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção do legislador’.
Na verdade, ‘é por demais conhecida – como acentuam os Profs.
Figueiredo Dias e Costa Andrade (‘O crime de fraude fiscal no novo direito penal
tributário português’, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6,
Janeiro-Março 1996, pág. 75) – a distância que nos separa dos tempos em que a
fuga aos deveres fiscais era pacificamente olhada como um facto ética e
moralmente neutro ..., do tempo em que a infracção fiscal era degradada para o
limbo marginal do ilícito de polícia ou de mera ilegalidade
antiadministrativa, uma categoria contraposta ao direito penal de justiça e,
por via disso, intrinsecamente alheia à própria ideia de justiça’. No RGIT, ‘o
legislador português parece ter optado por uma concepção de carácter
patrimonialista do bem jurídico tutelado, centrada na obtenção das receitas
tributárias’.
Os trechos citados exprimem, assim, suficientemente a dignidade
penal da conduta que se encontra criminalizada, característica que corresponde à
‘eminência dos bens jurídicos a tutelar e pela danosidade e intolerabilidade
sociais dos sacrifícios, dano ou perigo, que ameaçam aqueles bens’ (Costa
Andrade, ‘O abuso de confiança fiscal ...’, pág. 320). Na verdade, em face do
dano que é causado ao Estado, que se vê privado de uma componente activa do seu
património tributário, e tendo presentes os deveres de colaboração que recaem
sobre o agente, encarregado de reter e de liquidar determinados impostos e a
subjacente relação de confiança entre o Estado e o cidadão, justifica‑se que
se criminalize a conduta que se consubstancia na não entrega dolosa das
prestações tributárias deduzidas pelo agente.
Tal criminalização não significa, por isso, diferentemente do que o
recorrente sustenta, que haja uma confusão entre o crime e contra‑ordenação.
Desde logo, porque, quanto à intenção do agente, o crime é necessariamente
doloso, enquanto que a contra‑ordenação pode ser também punível por
negligência. Acresce que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que para
que se verifique o crime de abuso de confiança é necessário que a prestação
tributária tenha de facto sido deduzida ou recebida pelo agente (cf. Jorge
Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias,
em nota ao artigo 105.º, e António Tolda Pinto e Jorge Reis Bravo, Regime Geral
das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais, pág. 337), o que
leva para o domínio da contra‑ordenação, como refere Nuno Lumbrales (‘O abuso de
confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias’, Fiscalidade, n.º
13/14 – Janeiro/Abril 2003, págs. 90/91), os casos em que o sujeito passivo
tenha facturado e declarado determinadas quantias que não veio depois a receber,
as situações em que o substituto deduz ou recebe apenas parte da quantia devida,
entregando atempadamente aquilo que recebeu, ou ainda os casos em que o montante
do imposto tenha sido apurado por métodos indiciários.
Ora, no caso em apreço, como resulta do depoimento da testemunha
B., Inspector Tributário, na determinação do IVA em falta, apenas foram levadas
em conta as transacções em que havia comprovativo de pagamento à arguida
sociedade, e referindo que, no período considerado, a arguida sociedade fez
empréstimos a duas sociedades, conforme referiu no auto de notícia de fls. 2 e
seguintes do apenso.
Não assiste, assim, razão ao recorrente quando sustenta que não
houve intenção de se apropriar das quantias devidas ao Estado e quanto à
invocada falta de meios financeiros para efectuar o pagamento devido.
5. Inconstitucionalidade da suspensão da pena condicionada ao
pagamento:
Finalmente, o recorrente sustenta que é inconstitucional o artigo
14.º do RGIT, ao condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da
prestação tributária e acréscimos legais, por violação do disposto nos artigos
1.º a 4.º, 9.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 27.º, n.º 1, e 25.º da Constituição.
Não apresenta, todavia, uma justificação autónoma para o efeito.
Como o próprio recorrente observa na resposta apresentada ao abrigo
do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal Constitucional já por
diversas vezes se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma
do artigo 14.º do RGIT – cf. Acórdãos n.º 256/2003, n.º 335/2003 e n.º 500/2005,
o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Julho de 2003, e
os outros disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Assim, no Acórdão n.º 335/2003 escreveu‑se o seguinte:
‘O artigo 14.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT),
aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, dispõe como segue:
“Artigo 14.º
Suspensão da execução da pena de prisão
1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre
condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos
subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do
montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao
pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número
anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo
inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”
O Tribunal Constitucional teve, muito recentemente, oportunidade de
se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que agora, mais uma vez,
vem colocada à sua consideração. Fê‑lo, concretamente, no Acórdão n.º 256/2003
(ainda inédito), onde concluiu pela não inconstitucionalidade daquele artigo
14.º do RGIT (bem como do artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA, preceito que antecedeu
este artigo 14.º). Para decidir dessa forma, o Tribunal escudou-se na seguinte
fundamentação:
“(…) Comparando o artigo 11.º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior)
artigo 14.º do RGIT, verifica‑se que ambos condicionam a suspensão da execução
da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em
parte) para o regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das
condições da suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do
Código Penal – é mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do
condenado.
De qualquer modo, deve entender‑se que a já referida aplicação
subsidiária do Código Penal, prevista no artigo 3.º, alínea a), do RGIT (cf. os
artigos 55.º e 56.º do referido Código), bem como a circunstância de só o
incumprimento culposo conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao
comportamento do delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14.º, n.º 2,
do RGIT, quando se refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a
falta de pagamento culposa (refira‑se, a propósito, na sequência de Jorge de
Figueiredo Dias, Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências
Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de
aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é a existência de um
prognóstico favorável a esse respeito).
(...) A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma
outra que já foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no Acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10.º volume, 1987, p. 521), o Tribunal
Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 49.º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela
permite que a suspensão da execução da pena seja subordinada à obrigação de o
réu “pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse
acórdão, depois de se ter salientado que se deve considerar como princípio
consagrado na Constituição a proibição da chamada “prisão por dívidas”,
entendeu‑se, para o que aqui releva, o seguinte:
“(...) nos termos do artigo 50.º, alínea d), do actual Código Penal,
o tribunal pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da
suspensão o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença», v. g., o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização
devida ao lesado» (artigo 49.º, n.º 1, alínea a), primeira parte). Nunca,
porém, se poderá falar numa prisão em resultado do não pagamento de uma dívida:
– a causa primeira da prisão é a prática de um «facto punível» (artigo 48.º do
Código). Como se escreveu no acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da
liberdade pela única razão do não cumprimento de uma obrigação contratual, o
que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades
concedidas ao tribunal pelo citado artigo 50.º para o caso de, durante o período
da suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença: na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez
de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência» [alínea a)],
«exigir‑lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no Acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado
no Diário da República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600),
o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por
violação do artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo
51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz
condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos
danos causados ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(…) A alegada inconstitucionalidade do artigo 51.º, n.º 1, alínea
a), do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
Dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a
suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de
deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime,
nomeadamente pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal
considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu
pagamento por meio de caução idónea».
Trata‑se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma
situação de «prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
Desde logo deve notar‑se que tem inteira razão o Ministério Público
quando refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por
redundar em seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar‑se
inconstitucional a norma ora objecto de recurso, estaria afastada a
possibilidade de suspensão da execução da pena – que só se justifica pela
‘condição’ estabelecida naquele preceito – restando‑lhe o inexorável
cumprimento da pena de prisão que a decisão recorrida, em primeira linha, lhe
impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma
que se extrai do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal traduz uma
violação do princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela
única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo
direito à liberdade e à segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição).
Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade
de cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da
consideração de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de
prisão só permite realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da
punição se a ela – suspensão da execução – se associar a reparação dos danos
provocados ao lesado, traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de
pagamento) da indemnização devida. (…)
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos
arestos citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional
(à luz dos princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma
obrigação que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento
impossível pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit.,
p. 353, aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o
condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria,
quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão
por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai‑se uma ideia
importante para a resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido
analisá‑la à luz da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se
considere – e é isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da
totalidade da quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena,
o certo é que o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na
falta de pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.’
Conclui‑se assim que não se verifica a apontada
inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente.»
4. Relativamente à norma do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, que
criminaliza o abuso de confiança fiscal, já foi a mesma julgada não
inconstitucional, designadamente, pelos Acórdãos n.ºs 54/2004, 642/2006 e
61/2007 e pelas Decisões Sumárias n.ºs 564/2006, 276/2008 e 336/2008, na
sequência, aliás, de reiterada jurisprudência anterior reportada a normas
correspondentes do RJIFNA.
Esse juízo de não inconstitucionalidade foi fundamentado no Acórdão
n.º 54/2004 nos seguintes termos:
«4. Como salientam correctamente o recorrente e o Ministério Público
nas suas alegações, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar
por várias vezes sobre a conformidade constitucional da norma que previa o crime
de abuso de confiança fiscal com a ‘proibição da prisão por dívidas’ – embora
apenas a propósito do citado artigo 24.º, n.º 1, do RJIFNA.
Assim, no Acórdão n.º 312/2000 (publicado no DR, II Série, de 17 de
Outubro de 2000), depois de se analisar os elementos constitutivos deste crime,
segundo o artigo 24.º do RJIFNA, e a proibição de privação da ‘liberdade pela
única razão de [se] não poder cumprir uma obrigação contratual’, nos termos do
artigo 1.º do Protocolo n.º 4 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do
Homem e da Constituição da República – salientando‑se, como se havia feito no
Acórdão n.º 663/98 (in DR, II Série, de 15 de Janeiro de 1999), que ‘a privação
da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de
cumprir uma obrigação contratual’ –, concluiu‑se, depois da análise dos valores
e dos bens jurídicos em causa na criminalização das infracções fiscais: ‘(…) No
caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas antes
deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão.
Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra‑se instituído
em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na verdade, no IVA e
no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os respectivos valores são
deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue
ao credor tributário que é o Estado. Perante a norma em questão há assim que
levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários,
que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei fiscal’.
E concedeu‑se ainda relevo à circunstância de que ‘a
impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança
fiscal; a não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do
procedimento criminal nos termos do n.º 5 do artigo 24.º, mas o que importa para
a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da
referida prestação’.
Concluiu‑se, assim, que a norma constante do artigo 24.º do RJIFNA
não violava o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela
única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual.
Esta decisão de não inconstitucionalidade, e respectiva
fundamentação, foram retomadas pelo Acórdão n.º 389/2001 – que confirmou
decisão sumária do relator nesse sentido – e ainda, quanto ao caso paralelo do
artigo 27.º‑B do RJIFNA (sobre o crime de abuso de confiança em relação à
segurança social), pelo Acórdão n.º 516/2000 (publicado no DR, II Série, de 31
de Janeiro de 2001), onde se pode ler que ‘(…) Não estando expressamente
prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem
ser punidos se praticados com dolo (artigo 13.º do Código Penal); se não se
provar o dolo mas apenas a negligência, pode existir a contra‑ordenação prevista
no artigo 29.º, n.º 2, do RJIFNA. A obrigação em causa não é meramente
contratual, antes deriva da lei – que impõe a entrega pelas entidades
empregadoras às instituições de segurança social do montante das contribuições
que aquelas entidades tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos
trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas. Nestas situações, as
entidades empregadoras encontram‑se instituídas “em posição que poderemos
aproximar da do fiel depositário”. A mera impossibilidade do cumprimento não é
elemento do crime de abuso de confiança em relação à segurança social. A não
entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento
criminal nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJIFNA, mas o que importa para a
punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da
referida prestação. A situação pode aproximar‑se do crime de abuso de confiança
previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205.º a 207.º), que é um crime
contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa
móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.’
Concluiu‑se, pois, também, no sentido da não inconstitucionalidade
(neste sentido, para o referido artigo 27.º‑B do RJIFNA, ver também o Acórdão
n.º 427/2002).
5. As considerações que se contêm na fundamentação dos arestos
citados mantêm‑se aplicáveis mesmo em face da norma do artigo 105.º, n.º 1, do
RGIT, que prevê o abuso de confiança fiscal (e parafiscal, que não está agora
em causa – cf. o n.º 3 do citado artigo).
Designadamente, continuam a ser elementos constitutivos deste crime
a existência de uma obrigação de entrega à Administração Tributária de uma
prestação tributária deduzida nos termos da lei e a falta dolosa dessa entrega –
embora tenha desaparecido da redacção do tipo legal a exigência de ‘intenção de
obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida’ –, não se prevendo
a punição por negligência.
Por outro lado, é claro que, como resulta aliás logo da redacção do
preceito, a obrigação em causa não tem por fonte qualquer contrato, e antes
deriva da lei. Trata‑se, aliás, de um dever que, como salienta o Ministério
Público, é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à
satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o
objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza,
constitucionalmente consagrado.
Tem, pois, de tratar‑se da falta dolosa de entrega à administração
fiscal de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei, podendo dizer‑se,
em casos como o presente (em que está em causa a falta de entrega de Imposto
sobre o Valor Acrescentado cobrado) – tal como, para as contribuições para a
segurança social, se disse no citado Acórdão n.º 516/2000 –, que o obrigado se
encontra instituído ‘em posição que poderemos aproximar da do fiel
depositário’.
Assim, a mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime
de abuso de confiança em relação à Administração Tributária. O não cumprimento
da obrigação de entrega é elemento do tipo, mas o que importa para a
punibilidade do comportamento, como se referiu, é a falta dolosa de entrega da
prestação, podendo a situação continuar a ser aproximada da do crime de abuso de
confiança previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205.º a 207.º) – um
‘crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima
de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade’.
6. Nestes termos, mesmo em face da nova redacção do tipo legal do
crime de abuso de confiança fiscal (e da eliminação do elemento subjectivo que
se traduzia na ‘intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial
indevida’), cumpre reiterar a fundamentação dos citados arestos –
designadamente, a dos citados Acórdãos n.ºs 312/2000 e 516/2000.
E, uma vez que o recorrente não adianta argumentos novos,
susceptíveis de infirmar tal fundamentação – sendo claudicante,
designadamente, a tentativa de mostrar que a obrigação de entrega de quantias
cobradas a título de IVA tem também por fonte um contrato, e não apenas a lei
–, conclui‑se no sentido da inexistência de violação, por parte do artigo 105.º,
n.º 1, do RGIT, do princípio de que ninguém pode ser privado da liberdade pela
única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, devendo negar‑se
provimento ao presente recurso.»
A questão da conformidade constitucional do aludido artigo 105.º do
RGIT, na perspectiva de eventual violação dos artigos 2.º, 13.º e 18.º, n.º 2,
da CRP, foi apreciada pelo Acórdão n.º 61/2007, em termos que ora se reiteram (o
essencial da fundamentação desse Acórdão foi reproduzido no acórdão ora
recorrido, em passagens atrás transcritas, supra, 3.2).
É essa orientação jurisprudencial que se reafirma, dela resultando o
desajustamento à realidade jurídica da tese sustentada pelo recorrente da
existência de uma relação de trabalho imposto, quando, como nos citados
Acórdãos se evidenciou, o fundamento do dever de entregar as quantias recebidas
é legal, e não contratual, e aproxima‑se de uma situação de fiel depositário.
5. A questão da constitucionalidade suscitada pelo recorrente a
propósito da norma do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, na redacção dada
pela Lei n.º 53‑A/2006, de 19 de Dezembro, já foi apreciada por este Tribunal
nos Acórdãos n.ºs 409/2008, 506/2008, 531/2008 e 23/2009 e na Decisão Sumária
n.º 453/2008, sempre no sentido da não inconstitucionalidade.
No Acórdão n.º 409/2008 desenvolveu‑se a seguinte fundamentação:
«2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT,
comete o crime de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração
Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a
este conceito é dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e
que estava legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4
deste preceito, os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se
tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da
prestação. O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do
Estado para 2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT,
convertendo a condição que constava do corpo desse número em alínea a), e
inserindo uma nova alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só
seriam puníveis se ‘a prestação comunicada à administração tributária através
da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do
valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito’.
A introdução desta nova ‘condição’ suscitou divergências doutrinais
e jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido
pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008
(Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que
fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
‘A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT,
na redacção introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição
objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código
Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em
consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve
o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo
(alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT).’
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por
assinalar que, na sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do
artigo 105.º do RGIT, surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação
relativamente à sua interpretação: para uns, a inovação consistiu na criação
de uma nova condição de punibilidade; para outros, ela acarretou uma
despenalização. A primeira orientação – uniformemente adoptada, desde o início,
pelo STJ – considera que à anterior condição de punibilidade, agora plasmada na
alínea a), foi aditada, na alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do
recorte do tipo legal de crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o
crime de abuso de confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no
vencimento do prazo legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em
sede de tipicidade; porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no
artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é
mais favorável para o agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade
pelo pagamento, quer na óptica da punibilidade da conduta (como categoria que
acresce à tipicidade, à ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda
orientação – defendida por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o
tipo de ilícito se reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo
a mora simples punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade –
entende que o legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma
circunstância que, por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud
na punibilidade, se encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo
no recorte operativo do comportamento proibido violador do bem jurídico
património fiscal e que se traduz precisamente no facto de a Administração
Fiscal entrar em directo confronto com o eventual agente do crime, pelo que,
enquanto anteriormente o legislador criminalizava uma mora qualificada
relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins
deste, agora pretendeu estabelecer como crime uma mora específica e num contexto
relacional qualificado – concluindo, consequentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela
primeira linha de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora
recorrido. E em ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para
2007, no qual o legislador justifica a introdução de distinção entre, por um
lado, os casos em que a falta de entrega da prestação tributária está associada
ao incumprimento da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou
pagamento do imposto e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que
foi tempestivamente declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há
uma maior gravidade decorrente da ‘intenção de ocultação dos factos tributários
à Administração Fiscal’, postura esta que já não se verificaria nas situações
em que a ‘dívida’ é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em
que há o reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do
necessário pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de
distintos desvalores de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com
assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório,
‘ser valoradas criminalmente de forma diferente’. E acrescenta‑se: ‘neste
sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo
cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em
prazo a conceder, evitando‑se a “proliferação” de inquéritos por crime de abuso
de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do
Ministério Público na sequência do pagamento do imposto’.
A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram
a que no citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que –
perante uma vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de
manutenção do recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o
agente, nos casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada
do pagamento, se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo
concedido – nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a
conduta, que se traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A
alteração legal produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é,
todavia, algo que é exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como
condição objectiva de punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que
configure um regime concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim,
o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido ‘intenção
publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o
objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da
sua conduta omissiva’, ‘a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe
proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua
vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por
desnecessidade de aplicação de uma pena’, pelo que ‘a conclusão da aplicação da
lei nova é iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal’.
2.2. Delineado o quadro de fundo de que emerge a problemática
subjacente ao presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que resulta
inequivocamente do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional que a única questão de inconstitucionalidade aí identificada
como integrando o seu objecto se reporta à interpretação do artigo 105.º do
RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, que teria sido
aplicada no acórdão recorrido, ‘consubstanciada na substituição por parte do
tribunal de 1.ª instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do
Ministério Público’ e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os ‘princípios
constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os
ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição
da República Portuguesa’.
Aliás, fora essa a única questão de inconstitucionalidade normativa
adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto
para o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª, atrás transcrita).
Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente recurso outras
questões de inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal recorrido e
nem sequer mencionadas no requerimento de interposição de recurso, que o
recorrente veio suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas neste
Tribunal, como, designadamente, a reportada à pretensa violação dos «princípios
da proibição da retroactividade da lei penal, da legalidade e da
independência», derivada da consideração, na sentença, de factos não
constantes da acusação. Questão esta que, aliás, nos termos em que é colocada,
carece de natureza normativa por se reportar directamente à referida decisão
judicial, em si mesma considerada.
Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da
inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da
separação de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da
interpretação do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo
95.º da Lei n.º 53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento
determinar a notificação aí prevista.
Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam,
respectivamente, à definição da função jurisdicional e das funções e estatuto
do Ministério Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos
de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo,
incumbindo‑lhes, nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados. O segundo
comete ao Ministério Público a representação do Estado e a defesa dos interesses
que a lei determinar, bem como a participação na execução da política criminal
definida pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo
princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para
determinar a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT
é a entidade titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério
Público, tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a
fase em que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa
notificação, em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo
com o princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma
reserva da Administração.
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa
notificação, ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas
típica da Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto
titular da acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar
uma decisão de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de
instrução ou o juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se
limitam a praticar um acto instrumental necessário à comprovação da existência,
ou não, de uma condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia
ou não pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é:
em todas essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público
ou por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes,
invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do ‘princípio da
legalidade’, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta
falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal
violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal
princípio, neste contexto).
Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do recorrente.»
Por seu turno, o Acórdão n.º 531/2008, após transcrever a
fundamentação do Acórdão n.º 409/2008, desenvolveu as seguintes considerações:
«As considerações tecidas no acórdão acabado de citar a propósito da eventual
violação do princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2.º,
202.º e 219.º da Constituição – violação também invocada pelos ora recorrentes
–, são perfeitamente transponíveis para o presente caso, pois que, para a
aferição daquela violação, é indiferente que o tribunal competente para a
notificação seja um tribunal de 1.ª instância ou um tribunal de recurso: ora,
como se diz no Acórdão n.º 409/2008, ‘a determinação da notificação pelo
Ministério Público ou por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro
das atribuições constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e
administração da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da
Administração, nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de
poderes’.
Essas considerações – como logo se entrevê – permitem, do mesmo modo, afastar a
pretensa violação dos princípios do acusatório, da plenitude de garantias de
defesa dos arguidos e da independência dos tribunais, também chamados à colação
pelos recorrentes.
Relativamente ao princípio do acusatório – que se extrai da referência à
estrutura acusatória do processo penal constante do artigo 32.º, n.º 5, da
Constituição e que postula a diferenciação entre a entidade que julga e a
entidade que acusa ou que intervém em fase do processo anterior à do julgamento
–, consideram os recorrentes, em síntese, que o mesmo resulta violado pelo
disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, atendendo à circunstância
de este preceito permitir que um pressuposto material da punição não esteja
preenchido aquando da dedução da acusação e não esteja descrito no libelo
acusatório.
No entanto, como se deixou esclarecido, a exigência resultante da referida
disposição, na redacção dada pela Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro, foi
determinada por razões de operacionalidade judiciária, tendo sobretudo o
sentido de impedir que possa ser punido pelo crime de abuso de confiança quem
entretanto se tenha disposto a reparar o dano infringido à Administração, na
sequência da notificação que expressamente lhe tenha sido feita para esse
efeito. Não está aqui em causa, como bem se vê, um qualquer novo elemento
constitutivo do crime, nem sequer qualquer circunstância que seja susceptível de
afastar o carácter de censura ético‑jurídica da infracção: o que sucede é que,
por considerações de política legislativa, se entende ser de dispensar a
aplicação da pena quando, apesar de se verificarem todos os pressupostos do
tipo legal, o arguido procedeu ainda em tempo útil ao pagamento da prestação em
dívida.
Estamos assim perante uma condição objectiva de punibilidade que é
externa ao recorte típico do ilícito penal – consubstanciado na não entrega à
Administração da prestação tributária – e que, tendo sido introduzida em lei
penal posterior ao momento da prática do facto ilícito e da própria dedução da
acusação, não poderia deixar de ser considerada pelo julgador segundo o
princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, que emerge do artigo
2.º, n.º 4, do Código Penal.
Não há, por outro lado, aqui uma qualquer violação do princípio do
acusatório, visto que não se trata de uma alteração substancial dos factos
constantes da acusação – que ao tribunal de julgamento sempre estaria vedado
conhecer (artigo 358.º do Código de Processo Penal) –, mas de uma mera
verificação da existência de um requisito de procedibilidade sem o qual o
tribunal não pode emitir uma pronúncia condenatória.
Sendo de notar, aliás, que o tribunal de julgamento está sujeito a
um rigoroso ónus de averiguação oficiosa em vista à descoberta da verdade e à
boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, também
aplicável nos tribunais de recurso por remissão do artigo 423.º, n.º 5), que
naturalmente abrange a verificação de quaisquer circunstâncias que possam
obstar à aplicação ao arguido de uma sanção penal.
Por outro lado, não estando em causa – como se anotou – a
factualidade constante do libelo acusatório, que se mantém na sua
integralidade, não ocorreu qualquer violação do princípio das garantias de
defesa do arguido, a que alude o artigo 32.º, n.º 1, da CRP. A notificação para
o arguido proceder ao pagamento da prestação tributária em falta, nos termos da
nova redacção dada à alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não constitui
um novo facto punível ou um novo elemento do tipo legal de crime de abuso de
confiança fiscal, relativamente ao qual se tornasse exigível que o interessado
viesse a deduzir a sua defesa antes ainda de poder ser presente a julgamento. Do
que se trata é de uma nova oportunidade que é dada ao arguido para evitar a
punição (por factos pelos quais foi acusado em devido tempo e relativamente aos
quais teve possibilidade de se defender), que, traduzindo‑se num mero trâmite
procedimental, pode ser realizado em qualquer fase do processo (e, por
conseguinte, também na própria fase de julgamento), e que não envolve qualquer
agravamento da posição processual do arguido (competindo‑lhe apenas satisfazer
ou não, em função do objectivo previsto na lei, a cominação de pagamento da
prestação em dívida dentro de determinado prazo contado a partir da
notificação).
Por tudo o que se expôs, é ainda patente que não se verifica a
alegada ofensa do princípio da independência dos tribunais, protegido pelo
artigo 203.º da Constituição, e que, segundo os recorrentes, resultaria de a
norma do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT vir permitir que o julgador
interfira na acusação e assim se substitua a outros órgãos do Estado.
Como ficou suficientemente demonstrado, a norma em causa, ao
possibilitar que o juiz proceda à referida notificação, na fase de julgamento,
não compromete a imparcialidade e isenção do julgador nem põe em crise o
princípio da separação de poderes. O juiz, na circunstância, não pratica
qualquer acto próprio do acusador ou do juiz de instrução, nem acata quaisquer
ordens ou instruções que provenham de outros poderes do Estado, mas limita‑se a
exercer uma competência própria, em sede de julgamento, que é a de praticar uma
acto instrumental tendente a verificar a existência de condição de punibilidade
que tem relevo para efeito de emitir a decisão final de condenação ou
absolvição.»
Finalmente, o Acórdão n.º 23/2009, após reproduzir a fundamentação
dos Acórdãos n.ºs 409/2008 e 531/2008, aditou o seguinte:
«6. Estas razões são perfeitamente transponíveis para o presente
recurso, analisando todos os aspectos de constitucionalidade que conduziram o
tribunal a quo a desaplicar as normas em causa. Delas resulta que o julgado não
pode manter‑se, em qualquer das vertentes em que a decisão recorrida desdobrou
a inconstitucionalidade que julgou descortinar na iniciativa do juiz de
julgamento de mandar proceder à notificação a que se refere a alínea b) do n.º
4 do artigo 105.º do RGIT, em processos cuja acusação se encontrasse já
deduzida à data da entrada em vigor da Lei n.º 53‑A/2006, que introduziu tal
condição de procedibilidade.
Com efeito, embora directamente dirigidas à dimensão
orgânico‑funcional da questão de constitucionalidade, tais razões são
igualmente pertinentes quanto à sua dimensão ou vertente procedimental. O acto
acusatório não faz nem podia fazer referência à notificação e à reacção do
agente da infracção pela elementar razão de que se trata de factos posteriores.
Porém, como o Tribunal tem decidido e agora confirma, dado por assente que o
juiz de julgamento pode (ou, até, deve), sem com isso infringir o princípio do
acusatório, diligenciar no sentido de assegurar a verificação da condição de
procedibilidade introduzida pela lei nova mais favorável ao arguido, a
circunstância de a sentença condenatória tomar em consideração o resultado de
tal diligência não pode infringir o mesmo princípio. Ao assim proceder o juiz
não condena o arguido por factos não constantes da acusação, uma vez que não se
trata de factos constitutivos do crime, segundo a interpretação do direito
ordinário que não foi posto em causa (Contra esse ponto do acórdão de
uniformização de jurisprudência não se insurge a sentença recorrida). O que
desse acto não consta nem podia constar são condições de punibilidade que à sua
data não eram exigidas e que só se tornou necessário averiguar em benefício do
arguido, para assegurar o princípio da aplicação da lei penal mais favorável. A
consideração de tais factos não quebra a substancial identidade de objecto do
processo entre o acto acusatório e a sentença condenatória.»
É esta firme orientação no sentido da não inconstitucionalidade que
ora se reitera.
6. Finalmente, quanto à questão da inconstitucionalidade da norma do
artigo 14.º do RGIT, enquanto condiciona a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento da prestação tributária em dívida e acréscimos legais, é
numerosa a uniforme jurisprudência deste Tribunal no sentido da não
inconstitucionalidade: cf. Acórdãos n.ºs 256/2003, 335/2003, 500/2005,
309/2006, 543/2006, 587/2006, 29/2007, 61/2007, 377/2007 e 563/2008 e Decisões
Sumárias n.ºs 4/2006, 167/2006, 193/2006, 306/2006, 56/2007, 155/2007, 635/2007
e 276/2008.
Concordando-se inteiramente com este julgamento reiterado, remete-se
para a fundamentação constante dos mencionados Acórdãos e Decisões Sumários
[todos eles, tal como os citados nos pontos anteriores, com texto integral
disponível em www.tribunalconstitucional.pt.], tendo já sido reproduzida, na
transcrição feita do n.º 5 do acórdão ora recorrido (supra, n.º 3.2), o cerne da
fundamentação do Acórdão n.º 335/2003.”
1.2. A reclamação apresentada pelo recorrente desenvolve
a seguinte fundamentação:
“I – 1. No seu requerimento de recurso, o recorrente disse:
«1. Se tivermos em conta a constância da jurisprudência do Tribunal
Constitucional, é caso para se dizer que este recurso está condenado ao
fracasso e, por isso, não deverá ser intentado.
2. Sendo certo que algum dos aspectos que o recorrente invoca como
causa da inconstitucionalidade dos artigos 24.º do RJIFNA e 105.º do RGIT já
foram objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, e que este Tribunal
neles não viu razões para declarar a sua inconstitucionalidade, não é menos
verdade que o recorrente lançou neste processo, novos aspectos, uns
respeitantes àquelas normas – ao tipo em si –, outras respeitantes ao caso
especifico da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, e outras respeitantes
ao artigo 14.º deste diploma.
3. Esses aspectos, mormente no que respeita ao tipo,
correlacionam‑se com o seguinte:
– o tipo obnubila mas supõe a instituição, nas relações tributárias
por substituição, de uma relação de trabalho imposto, não escolhido e não
remunerado;
– o tipo pressupõe, para que haja abuso de confiança, uma relação
fundada num consenso de confiança, manifestamente não firmado;
– As relações tributárias por substituição, mormente as de IVA, têm
características de contrato administrativo imposto por lei (como outros mais que
existem);
– Essas relações por substituição constituem‑se por incrustação nas
demais relações de crédito do devedor substituto;
– Por esta última razão, os créditos do credor tributário passam a
comungar dos riscos das relações a que são incrustadas as relações por que se
constituem.
4. No que respeita à alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a
violação do princípio da separação de poderes não pode deixar de merecer uma
especial revisão.
5. E no que tange ao disposto do artigo 14.º do RGIT, na perspectiva
da suspensão da pena condicionada imperativamente ao pagamento da divida, não
poderá deixar de merecer uma especial análise a natureza dessa norma que, mais
que norma jurídica, configura um despacho normativo.
6. Como a realidade nunca é perceptível pela análise (que seria
atomismo) parcelar dos seus elementos constituintes, as normas em causa são
inconstitucionais pelas razões invocadas nas conclusões 24.º a 28.º das
alegações de recurso, que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, onde se
procura, ainda que em síntese, determinar as inconstitucionalidades do artigo
105.º; quanto à tipificação, da alínea b) do n.º 4 deste artigo e do artigo
14.ºdo RGIT, e onde se indicam as normas constitucionais e legais (estas de
direito internacional) violadas.
7. As inconstitucionalidades foram suscitadas na contestação da
acusação e, sobretudo, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do
Porto, nas conclusões referidas atrás (24.º a 28.º) e parágrafos 91 a 216.
8. Este recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.»
2. A douta decisão sob a reclamação afirma que:
«(...) o presente recurso surge como inadmissível, na parte em que
vem interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por a
decisão recorrida não ter aplicado qualquer norma cuja ilegalidade houvesse sido
suscitada pelo recorrente com fundamento em violação da lei com valor reforçado
(...)»;
«Na parte em que o recurso se funda na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, como resulta do próprio requerimento de interposição de recurso, as
questões nele suscitadas já foram objecto de anteriores decisões do Tribunal
Constitucional, o que possibilita a prolação de decisão sumária (...).»
(sublinhado nosso).
II – 3. O recorrente também fundou o recurso no disposto na alínea
f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por razões de cautela, visto que as normas
cuja invalidade sustenta, em termos literais, até contendem mais com as normas
de direito internacional invocadas que com as normas constitucionais. Essas
normas de direito internacional têm sido entendidas ora como direito
constitucional ora como normas de valor intermédio, entre as normas
constitucionais e as normas ordinárias. Se forem entendidas como normas
intermédias – supra‑ordinárias –, não poderão deixar de ter valor normativo
idêntico ao das normas de valor reforçado ...
III – 4. Independentemente da questão referida no ponto anterior, o
problema, quanto ao fundo (validade versus invalidade), é sempre o mesmo, seja
qual for a perspectiva: ilegalidade ou inconstitucionalidade.
E no modesto entendimento do recorrente, é um problema que merece
ser reconsiderado, apesar dos tempos serem pouco propícios, o que até se nota no
erro que este Tribunal cometeu na interpretação do requerimento de interposição
do recurso.
5. Na verdade, não «resulta do próprio requerimento de interposição
de recurso» que o recorrente reconhece que «as questões nele suscitadas já foram
objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional»; aí reconhece-se,
sim, que «a constância da jurisprudência do Tribunal Constitucional» sobre a
constitucionalidade dos artigos 105.º e 14.º do RGIT, como que dissuade a
«tentação» do recurso, e «que algum dos aspectos que o recorrente invoca como
causa da inconstitucionalidade (...) já foram objecto de apreciação pelo
Tribunal Constitucional (...)» (sub., agora).
Mas aí também se diz que «não é menos verdade que o recorrente
lançou neste processo novos aspectos, uns respeitantes àquelas normas – ao tipo
em si –, outras respeitantes ao caso específico da alínea b) do n.º 4 do artigo
105.º do RGIT, e outras respeitantes ao artigo 14.º deste diploma»
(sublinhamos, agora).
6. Ou seja: o recorrente disse que trazia «algo mais» à discussão –
embora não escondesse como que um «desconfiado‑desconforto», decorrente da
«constância da jurisprudência» que tem confirmado a constitucionalidade das
normas em causa, em que esta «constância», mais parecendo sedimentação
consolidada, tornaria o «volte‑face» como improvável. Por outras palavras: o
recorrente disse que algum – queria dizer, mas disse mal no requerimento, alguns
– dos aspectos que lançava para apreciação não eram novos, mas que lançava novos
aspectos que talvez justificassem reconsideração.
IV – 7. No seu requerimento da interposição do recurso o recorrente
afirmou pois que, no processo, mormente nas alegações de recurso para o
Tribunal da Relação do Porto, trouxe à colação novos aspectos desta vexata
quaestio (que só tem sido, reconheça‑se, graças ao inconformismo daqueles que
têm assumido defesas). Esses novos aspectos respeitariam ao tipo, ao caso
específico do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), e ao disposto no artigo 14.º
(todos do RGIT).
8. Aquilo que o recorrente entende serem novos aspectos não é
propriamente uma aparência ou aparências que ainda não tenham sido
consideradas, nas dimensões ou modos‑de‑ser do facto penalmente relevante que
não podem deixar de ter significado jurídico (pelo menos em termos de
plausibilidade).
9. Se olharmos para a história do chamado crime de abuso de
confiança fiscal, quer nas suas metamorfoses legislativas quer no entendimento
dogmático que a jurisprudência lhe foi dando, encontramos uma «entrada em cena»
da criatura como uma evidência: apropriação de um objecto de terceiro, entregue
ao apropriador por título não translativo da propriedade, em que este,
defraudando a confiança em si depositada (pelo dominus? pelo entregador?),
inverteu o título de posse (precária) da coisa, fazendo‑a sua.
Esta configuração legal, apesar de algumas atinências com o facto
real, não era congruente com este, em muitos aspectos, até por força de outras
normas de direito comercial, contabilístico, de imposto sobre o rendimento, de
imposto sobre o valor acrescentado, da segurança social, procedimental, etc.
10. Apesar disso, foi impressionante o que foi dito em inúmeras
laudas acusatórias e decisórias, em «defesa» da apropriação.
11. A lei foi mudando, em busca das âncoras que lhe escapavam, mas
os entendimentos, com mais menos paralogismos e petições de princípio, nunca
conseguiram escapar ao enredo criado.
12. Nas aludidas alegações de recurso, o recorrente retomou os temas
persistentes, mas procurou demonstrar que outros aspectos existiam, aspectos
que não são mera aparência, mas facetas ou dimensões reais, que relevam
juridicamente e que, pensa, não terem sido objecto de reflexão em sede
constitucional (salvo erro involuntário).
Por isso, entende que essas questões de sempre devem ser
consideradas em associação com essas novas facetas, que desenvolveu com alguma
exaustão, quer em alegações quer nas conclusões.
Dessas novas facetas ou «novos aspectos» deu resumida notícia no
requerimento de recurso, a título de exemplo, onde assinalou que:
– o tipo instituído obnubila, pela via da relação por substituição,
uma relação de trabalho imposto, não escolhido e não remunerado;
– o tipo pressupõe uma relação de confiança, ou seja um consenso de
confiança manifestamente não firmado;
– a relação por substituição tem as características de contrato
administrativo imposto por lei;
– as relações por substituição constituem‑se por incrustação nas
demais relações de crédito do devedor;
– por causa da incrustação, os créditos do credor tributário passam
a comungar dos riscos das relações a que são incrustadas;
– por causa do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT,
há situação de violação do princípio da separação de poderes, que importa
rever;
– o disposto no artigo 14.º configura uma norma típica de despacho
normativo.
13. Os aspectos sumariados – que o recorrente gostaria de
escalpelizar e desenvolver mais em pertinentes alegações – parecem evidenciar
algo que ainda não foi devidamente debatido.
Atento o alegado, a douta decisão sob reclamação deverá ser revogada
e o recorrente notificado para oferecer alegações.”
1.3. Notificado da apresentação da precedente
reclamação, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou a
seguinte resposta:
“1.º – A presente reclamação carece de fundamento.
2.º – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os
fundamentos da decisão reclamada, quer no que toca ao não conhecimento do
recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, quer enquanto lhe negou provimento por não considerar
inconstitucionais as normas dos artigos 14.º e 105.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do
Regime Geral das Infracções Tributárias.
3.º – Aliás, no que respeita à decisão de mérito, o que o
reclamante, no fundo, questiona é o facto de a questão ter sido considerada
simples, para efeitos de prolação de decisão sumária.
4.º – Ora, tal questão foi expressa e autonomamente tratada na
decisão (fls. 511 e 512), em termos com os quais concordamos inteiramente, não
se vislumbrando na reclamação apresentada qualquer argumento que possa levar à
alteração do entendimento ali expresso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2.1. Quanto à decisão de não conhecimento do recurso
interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por na
respectiva previsão não caberem as questões de contrariedade de norma constante
de acto legislativo com convenção internacional, aduz o recorrente que as normas
de direito internacional “não poderão deixar de ter valor idêntico ao das normas
de valor reforçado”.
No entanto, como é sabido, a atribuição expressa, pela
alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, aditada pela Lei n.º 85/89, de 7 de
Setembro, da competência para o Tribunal Constitucional apreciar questões de
contrariedade de norma constante de acto legislativo com convenção
internacional “visou resolver a radical divergência que se havia instalado
entre as duas Secções daquele quanto a saber se, suposto um princípio
constitucional de primazia do direito internacional convencional recebido in
foro domestico sobre a lei (retirado pela doutrina dominante, mas decerto não
unânime, do artigo 8.º, n.º 2, da CRP), e verificando‑se a contrariedade de uma
lei interna posterior com um tratado, estaríamos aí, ou não, perante um vício de
«inconstitucionalidade», que ao Tribunal Constitucional coubesse conhecer”
(José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição, Coimbra, 2007, p. 38, nota 40). E resulta da opção legislativa tomada a
autonomização da figura da contrariedade de norma legal interna com convenção
internacional quer face à figura da inconstitucionalidade (por violação directa
de normas ou princípios constitucionais), quer face às figuras das ilegalidades
cognoscíveis pelo Tribunal Constitucional (por violação de lei com valor
reforçado, de estatuto de região autónoma e de lei geral da República, tendo
esta última categoria sido eliminada na revisão constitucional de 2004). Para
este efeito, “leis com valor reforçado” são as que constam do elenco do n.º 3 do
artigo 112.º da CRP (cf. Acórdão n.º 374/2004) e são sempre normas de direito
interno, não tendo cabimento a inclusão das convenções internacionais nessa
categoria (o que, aliás, inutilizaria a previsão específica da alínea i) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC).
Não tendo a decisão recorrida aplicado norma cuja
ilegalidade, com fundamento em violação de lei com valor reforçado, tivesse
sido suscitada pelo recorrente, é de manter o entendimento da decisão sumária
reclamada no sentido da inadmissibilidade do recurso interposto ao abrigo da
alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2.2. Quanto aos juízos sobre o mérito do recurso,
reitera‑se o entendimento no sentido da admissibilidade de prolação de decisão
sumária, com fundamento em tratar‑se de “questão simples”, por a
constitucionalidade das normas impugnadas já ter sido objecto de anteriores do
Tribunal Constitucional, não constituindo obstáculo a tal tipo de decisão a
eventualidade de não terem sido esgotantemente considerados, nos precedentes
acórdãos, todos os argumentos esgrimidos pelos recorrentes.
Aliás, quanto à incriminação do abuso de confiança
fiscal, a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, cuja fundamentação
largamente se reproduziu no n.º 4 da decisão sumária ora reclamada, já havia
tomado em consideração as observações relativas aos elementos do tipo, que se
entendeu pressuporem “a existência de uma obrigação de entrega à Administração
Tributária de uma prestação tributária deduzida nos termos da lei e a falta
dolosa dessa entrega”, não tendo aquela obrigação por fonte qualquer contrato,
entes derivando da lei, encontrando‑se o obrigado instituído em posição próxima
da do fiel depositário. Tratando‑se de um dever legal tido por essencial “para a
realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas
necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma
repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado”,
deste entendimento resulta necessariamente a rejeição da tese, sustentada pelo
recorrente, de que estaríamos perante a imposição, por contrato administrativo,
de uma relação de trabalho forçado, não remunerado.
Quanto à norma do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do
RGIT, o argumento da violação do princípio da separação de poderes foi
expressamente tratado, para ser repelido, no Acórdão n.º 409/2008, cuja
fundamentação relevante foi reproduzida no n.º 5. da decisão sumária ora
reclamada.
Por último, a norma do artigo 14.º do RGIT, ao
estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal
decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que
essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo (e
não de acto regulamentar ou de acto individual), carecendo totalmente de
sentido a tese do recorrente que lhe atribui, sem fundamentação minimamente
consistente, a natureza de “despacho normativo”.
3. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Maio de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos