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Processo n.º 120/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1. A., Lda., com sede na Estrada da Beira, em Coimbra, intentou junto do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga acção administrativa de contencioso
pré-contratual, contra o Hospital de S. Marcos, com sede no Largo Carlos
Amarante, em Braga, destinada à anulação de acto administrativo relativo à
formação de contrato de prestação de serviços.
Por decisão de 12 de Outubro de 2006 foi declarada a incompetência relativa, em
razão do território, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e ordenada a
remessa dos autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra. Mas este
último tribunal também se declarou incompetente, em razão do território, para
julgar a causa. Para o que agora releva, afirmou:
“ [...]
Por decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em
12/10/2006 sem exercício do contraditório, aquele Tribunal declarou-se
incompetente em razão do território declarando competente este Tribunal para
decidir o presente pleito.
Assentou o seu entendimento de incompetência na consideração de que o critério
determinante da competência do Tribunal, no caso vertente, seria a regra geral,
prevista no art.º 16º do CPTA, ou seja, o da residência habitual ou sede do A.
Esta decisão, notificada às partes, transitou em julgado.
Todavia o entendimento deste Tribunal não é coincidente com o supra exposto.
Com efeito é nosso entendimento que a decisão do tribunal Administrativo e
Fiscal de Braga não vincula este Tribunal quanto ao juízo sobre a sua própria
competência.
Esta asserção encontra arrimo no princípio constitucional da hierarquia dos
tribunais, ou da organização hierárquica dos tribunais, que não se traduz num
mero princípio de gestão administrativa, mas antes numa verdadeira garantia para
o cidadão, em consonância com o estabelecido nos art.ºs 210.º, n.ºs 1, 3 e 4 e
212.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Por esta razão, entende este Tribunal que a norma ínsita no art.º 111.º, n.º 2
do CPC padece de inconstitucionalidade material na medida em que viola o
princípio da hierarquia dos Tribunais, impedindo, designadamente, os tribunais
superiores de fiscalizar a legalidade de tais decisões proferidas por tribunais
de 1.ª instância.
Consequentemente, entende este Tribunal desaplicar, no caso concreto, a norma
prevista no art. 111º, n.º 2 do CPC por inconstitucionalidade material.
Desta feita, a solução para o caso em apreço deve ser encontrada à luz das
normas que regulam a competência material dos tribunais de 1.ª instância da
jurisdição administrativa e fiscal.
[…]
Desta feita, propendemos no sentido de que o Tribunal competente, em razão do
território, para conhecer da impugnação de actos administrativos praticados por
estabelecimentos hospitalares, inseridos ou não num contexto concursal, é o
Tribunal em cuja área de jurisdição se localiza a sede daqueles.
Assim sendo,
Na questão em discussão, o estabelecimento hospitalar é o Hospital de São
Marcos, cuja sede se localiza em Braga.
O que implica que, em conformidade com o Mapa em anexo ao Decreto-lei n.º
325/2003, de 29 de Dezembro, este Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra
não é o territorialmente competente, afigurando-se como competente o Tribunal
Administrativo e Fiscal de Braga como o competente.
[...].”.
2. Desta decisão foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público,
nos termos e ao abrigo dos artigos 70º nº 1 alínea a) e 72º nº 3 da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82
de 15 de Novembro), com vista “a apreciação da constitucionalidade do art. 111º
n.º 2 do Código do Processo Civil, e cuja aplicação foi recusada pela douta
sentença recorrida, por violação do princípio da hierarquia dos Tribunais ou da
organização hierárquica dos tribunais, consagrado nos artigos 210º n.ºs 1, 3 e 4
e 212º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”.
Alegou o Ministério Público, neste Tribunal:
“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso obrigatório vem interposto de decisão, proferida no Tribunal
Administrativo e Fiscal de Coimbra, que julgou inconstitucional a norma
constante do artigo 111.º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável no
âmbito do contencioso administrativo, por entender que violaria o princípio da
“hierarquia dos tribunais” a vinculação do tribunal declarado competente para a
causa, por decisão do outro tribunal, transitada em julgado.
Na verdade, e como refere a decisão recorrida, o Tribunal Administrativo e
Fiscal de Braga declarou-se territorialmente incompetente para a acção
contenciosa perante si intentada, tendo tal decisão, notificada às partes,
transitado em julgado – entendendo o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Coimbra, para onde os autos foram remetidos, que não estaria vinculado àquele
julgamento quanto à competência.
A questão suscitada parece-nos manifestamente improcedente, já que a “vinculação
do tribunal, tido por competente para a causa, surge como decorrência do
trânsito em julgado de uma precedente decisão jurisdicional sobre a questão da
competência. Tal vinculação é, pois, mera decorrência da figura do caso julgado
formal e da tutela constitucional conferida a tal instituto, com vista à
garantia de um princípio de segurança jurídica e estabilidade das decisões
judiciais definitivas.
Como é evidente e incontroverso, as decisões sobre matéria processual,
transitadas em julgado ao longo de um processo, impõem-se inteiramente aos
juízes que nele intervenham subsequentemente – incluindo aos dos tribunais
superiores, que deverão ter por intocadas as precedentes decisões, mesmo tidas
por ilegais, que hajam constituído caso julgado formal (cfr a situação sobre que
versou o juízo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão nº 44/04).
Note-se que, no caso dos autos, estamos perante decisões tomadas por tribunais
administrativos situados no mesmo patamar da “hierarquia judiciária”, pelo que
carece de sentido a invocação de que o caso julgado formal impediria “os
tribunais superiores de fiscalizar a legalidade de tais decisões proferidas por
tribunais de 1.ª instância”.
Como é evidente, a sujeição à força vinculativa do caso julgado não afronta o
princípio da hierarquia e independência decisória dos tribunais e dos juízes,
constituindo mero afloramento ou decorrência de que as decisões judiciais, não
tempestivamente impugnadas num processo, se tornam vinculativas para todos os
sujeitos e intervenientes processuais, incluindo o próprio tribunal, que deixa
de poder discutir o acerto e legalidade da decisão coberta pelo caso julgado.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1.º
A norma constante do artigo 111.º, n.º 2, do Código Processo Cível, aplicável
subsidiariamente no âmbito do contencioso administrativo, ao estabelecer que a
formação de caso julgado formal sobre a questão da competência do tribunal
preclude a possibilidade de a questão ser novamente suscitada oficiosamente pelo
tribunal julgado competente não afronta os princípios constitucionais da
hierarquia e da independência decisória.
2.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
II. Fundamentação
3. A decisão recorrida afastou a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 111.º
do Código de Processo Civil, aplicável ao contencioso administrativo por força
do disposto no artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
com fundamento na sua inconstitucionalidade por entender que esta norma, ao
impedir os tribunais superiores de fiscalizar a legalidade das decisões
proferidas por tribunais de 1.ª instância, viola o princípio constitucional da
hierarquia dos tribunais ou da organização hierárquica dos tribunais (artigos
210.º n.º 1, 3 e 4 e 212.º n.º 1 da Constituição).
O n.º 2 do artigo 111.º do Código de Processo Civil, o qual dispõe sobre a
instrução e julgamento da excepção de incompetência relativa do tribunal,
estabelece que “[a] decisão transitada em julgado resolve definitivamente a
questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada.”
Por sua vez, o artigo 108.º do mesmo Código enuncia os casos em que se verifica
a incompetência relativa do tribunal estabelecendo que “A infracção das regras
de competência fundadas no valor da causa, na forma do processo aplicável, na
divisão judicial do território ou decorrentes do estipulado nas convenções
previstas nos artigos 99.º e 100.º determina a incompetência relativa do
tribunal”.
Ora, atenta a natureza instrumental do recurso de inconstitucionalidade, o
presente recurso tem por objecto a apreciação da conformidade constitucional
unicamente da norma constante do n.º 2 do artigo 111.º do Código do Processo
Civil, que determina que a decisão transitada em julgado resolve definitivamente
a questão da competência territorial.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se é inconstitucional, por violação
princípio constitucional da hierarquia dos tribunais ou da organização
hierárquica dos tribunais (artigos 210.º, n.º 1, 3 e 4 e 212.º, n.º 1 da
Constituição), como considerou o tribunal recorrido, a norma ínsita no n.º 2 do
artigo 111.º do Código do Processo Civil, que determina que a decisão transitada
em julgado resolve definitivamente a questão da competência territorial.
4. A resposta a esta questão é claramente negativa.
O tribunal recorrido decidiu desaplicar, no caso, a norma ínsita no n.º 2 do
artigo 111.º do Código do Processo Civil por entender que a vinculação do
tribunal declarado competente em razão do território por decisão de outro
tribunal, transitada em julgado, viola o princípio da hierarquia dos tribunais,
por impedir os tribunais superiores de fiscalizar a legalidade de tais decisões
proferidas por tribunais de 1.ª instância.
Todavia, ao contrário do que se refere, a decisão sobre a competência
territorial, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, não está,
por força do n.º 2 do artigo 111.º do Código de Processo Civil, subtraída à
fiscalização dos tribunais superiores. Com efeito, a força vinculativa da
decisão sobre a competência territorial de um tribunal, atribuída pelo n.º 2 do
artigo 111.º do Código de Processo Civil, apenas opera, como neste preceito
expressamente se refere, após o trânsito em julgado da decisão, ou seja, quando
a decisão já não for susceptível de recurso ordinário.
O que está em causa nesta norma não é, por conseguinte, a insusceptibilidade de
recurso da decisão sobre a questão da competência territorial, mas sim o valor
dessa decisão, uma vez transitada em julgado, pois a vinculação do tribunal
declarado competente para decidir o processo deriva do trânsito em julgado da
decisão sobre a competência. Dito de outro modo: a vinculação do tribunal para o
qual é remetido o processo decorre da força do caso julgado, ou seja, da força
obrigatória da decisão que recaiu sobre um dos pressupostos da relação
processual, transitada em julgado.
Na verdade, no julgamento da excepção de incompetência relativa, em razão do
território, ao contrário do que se verifica no julgamento da excepção de
incompetência absoluta, a procedência da excepção não conduz à extinção da
instância, por absolvição do réu da instância ou por indeferimento em despacho
liminar, apenas determinando a remessa do processo ao tribunal competente, nele
prosseguindo os seus trâmites.
Ora, como é incontroverso, as decisões sobre a relação jurídica processual
transitadas em julgado ao longo do processo, ou seja, as que não foram adequada
e tempestivamente impugnadas, formam caso julgado sendo vinculativas para todos
os sujeitos e intervenientes processuais, incluindo os próprios tribunais, como
não podia deixar de ser.
Em suma, o que o nº 2 do referido artigo 111º implica é atribuir a uma decisão
transitada sobre matéria processual força de caso julgado. E é deliberadamente
assim, por serem regras menos relevantes no que toca à organização da
competência (territorial), do que as que determinam a competência absoluta.
E a verdade é que o tribunal recorrido está no mesmo plano hierárquico do
tribunal onde a questão ficou julgada, sendo por isso desajustada a invocação de
regras de competência hierárquica; o que de útil se retira daquela norma nada
tem a ver com a hierarquia, porque o regime que dela consta tanto vale para os
casos em que a decisão definitiva sobre incompetência relativa provém da 1ª
instância como quando provém de um tribunal de recurso.
Deste modo, a norma ínsita no n.º 2 do artigo 111.º do Código do Processo Civil,
que determina que a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a
questão da competência territorial, não afronta outros interesses dotados de
tutela constitucional, designadamente a organização hierárquica dos tribunais.
A norma não padece, em suma, da apontada inconstitucionalidade material.
III. Decisão
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional julga
procedente o recurso e, em consequência, decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma ínsita no n.º 2 do artigo 111.º do Código
do Processo Civil, que determina que a decisão transitada em julgado resolve
definitivamente a questão da competência territorial;
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Maio de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos