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Processo n.º 698/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente acção de responsabilidade financeira intentada pelo Ministério
Público perante o Tribunal de Contas, A. e outros, respectivamente Presidente e
Vereadores da Câmara Municipal de Vila do Conde, interpuseram recurso para o
Plenário da 3ª Secção desse Tribunal da sentença proferida em 1ª instância pela
mesma Secção, pela qual foram condenados pela prática de infracções financeiras
sancionatórias, bem como na reintegração nos cofres públicos de certas
importâncias, a título de responsabilidade reintegratória.
Na parte que se refere à responsabilidade financeira adveniente do pagamento
integral de remunerações a aposentados que se encontravam em exercício de
funções ao serviço da autarquia, que agora mais interessa considerar,
formularam, no recurso, as seguintes conclusões:
“ […]
10ª Diversamente do que se assevera na douta sentença sub judicio, «à data dos
factos» (2002, não vigorava já, por força do disposto no art. 8º do Dec-Lei nº
215/87, de 29 de Maio, a redacção originária das normas dos arts. 78 e 79 do
Estatuto da Aposentação, tendo passado a ser do Primeiro Ministro a competência
para autorizar o pagamento, a aposentados, de montante superior a 1/3 da
remuneração que competir a essas funções, até ao limite da mesma remuneração.
11. Cometeu, destarte, o Tribunal a quo erro de direito.
12. Sendo certo que a aludida competência do Primeiro Ministro não pode abranger
os funcionários das autarquias (onde à figura do Primeiro Ministro corresponde a
do Presidente da Câmara), padecem de inconstitucionalidade os preceitos dos
arts. 78/c e 79 do Estatuto da Aposentação (na redacção introduzida pelo
Dec.-Lei n.° 215/87), na interpretação efectuada pela sentença sub censura, por
ofensa do princípio da autonomia do poder local;
13 Tal como padecem de inconstitucionalidade, sempre segundo a interpretação
efectuada naquela sentença, por violarem o princípio «para trabalho igual,
salário igual», consagrado sob o art. 59-l/a da CRP. […]”.
Por acórdão de 9 de Julho de 2008, o Plenário da 3ª Secção do Tribunal de Contas
negou provimento ao recurso, aduzindo em relação à aplicação do disposto no
artigo 79º do Estatuto da Aposentação, a seguinte fundamentação:
“[…]
B) Contratação de Assessores Aposentados
8. Nesta matéria, que respeita aos demandados A. e B., agora 1.º e 2.º
Recorrentes, levantam os mesmos questões relativas a:
● Erro de direito;
● Princípio da Autonomia do Poder Local;
● Princípio “para trabalho igual, salário igual”;
● Interpretação do artigo 79º do Estatuto da Aposentação;
● Culpa, e
● Responsabilidade solidária.
8.1. Começam os Recorrentes por afirmar que o Tribunal a quo cometeu erro de
direito, porquanto, diversamente do que se assevera na douta sentença, à data
dos factos, não vigorava já, por força do disposto no art. 8º do Decreto-Lei n.º
215/87, de 29 de Maio, a redacção originária das normas dos arts. 78º e 79º do
Estatuto da Aposentação, tendo passado a ser do Primeiro-Ministro a competência
para autorizar o pagamento, a aposentados, de montante superior a 1/3 da
remuneração que competir essas funções, até ao limite da mesma remuneração, e
que, por ofensa do princípio da autonomia do poder local, por a aludida
competência do Primeiro-Ministro não poder abranger os funcionários das
autarquias, padecem de inconstitucionalidade os preceitos dos arts. 78º/c e 79º
do Estatuto da Aposentação (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º
215/87), na interpretação efectuada pela sentença.
8.2. É verdade que, por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º
215/87, de 29 de Maio, aos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, deixou
de ser o Conselho de Ministros o competente para as a autorizações referidas em
tais preceitos legais, passando tal competência para o Primeiro-Ministro, sob
proposta do membro do Governo que tenha poder hierárquico ou tutela sobre a
entidade onde prestará o seu trabalho, mas tal circunstância não afecta
minimamente a solução de direito definida na sentença, sendo, aliás, de
salientar que, no que concerne à autorização a que alude o artigo 78º, não se
coloca na decisão a sua aplicabilidade, mas tão-somente a que se refere à norma
do artigo 79º, e, logo, fica prejudicado o conhecimento do recurso no que tange
ao preceito do artigo 78º.
8.3. A sentença incorreu no lapso de considerar que, à data dos factos, a
competência para a autorização a que refere o artigo 79º do Estatuto da
Aposentação era do Conselho de Ministros, o que não altera, contudo, a decisão
de direito.
8.4. Estamos no plano de uma competência administrativa do Governo (autorização
de exercício de funções públicas a aposentados e concessão de abono) conferida,
por via legislativa emanada do próprio Governo, primeiramente ao Conselho de
Ministros e, posteriormente, ao Primeiro-Ministro.
8.5. É da exclusiva competência legislativa do Governo a matéria respeitante à
sua própria organização e funcionamento (art. 198º, n.º 2, da Constituição).
8.6. Compete ao Governo, no exercício de funções administrativas praticar todos
os actos exigidos pela lei respeitantes aos funcionários e agentes do Estado e
de outras pessoas colectivas públicas (art. 199º, alínea e), da Constituição).
8.7. As competências do Conselho de Ministros e do Primeiro-Ministro
encontram-se definidas nos artigos 200º e 201º da Constituição, respectivamente,
sendo de salientar, quanto ao último, a alínea d) do n.º 1 do artigo 201º, no
sentido de competir ao Primeiro-Ministro exercer as demais funções que lhe sejam
atribuídas pela Constituição e pela lei.
8.8. Assim, nada impede que a autorização realizada ao abrigo do disposto nos
artigos 79º do Estatuto da Aposentação seja atribuída ao Primeiro-Ministro, nem
se vislumbra que a situação mude de natureza, em termos de eventual
inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio de autonomia do poder local, por,
a respectiva competência, já não caber ao Conselho de Ministros.
8.9. O princípio da autonomia do poder local está consagrado nos artigos 6º, n.º
1, 237º e 242º da Constituição, e implica que a Administração Central não possa
actuar directamente ou por substituição na prática de actos administrativos dos
órgãos das autarquias locais que prossigam a realização dos interesses próprios
das populações respectivas.
8.10. Na sua actuação as autarquias locais regem-se pela Constituição e a lei,
sendo da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo
autorização ao Governo, sobre o estatuto das autarquias locais, incluindo o
regime das finanças locais (artigo 165º, n.º 1, alínea q), da Constituição),
sendo certo que a matéria agora em apreciação não se mostra atribuída às
autarquias locais, nem envolve qualquer interferência nos interesses próprios
das respectivas comunidades, tanto mais que trata de um regime excepcional de
autorização de um abono, e, como bem refere a sentença recorrida, “sendo matéria
de interesse e âmbito nacional nunca seria justificável que os pagamentos a
aposentados da função pública pudessem ser diferenciados por decisões
casuísticas dos presidentes dos cerca de 300 municípios portugueses”.
8.11. Surge, portanto, evidente que a norma do artigo 79.º do Estatuto da
Aposentação (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 215/87) não padece do vício
de inconstitucionalidade, nem existe esse vício na interpretação feita na
sentença (que se reportou à redacção originária do preceito), desatendendo-se,
nesta parte, a pretensão dos 1.º e 2.º Recorrentes.
8.12. Consideram ainda os mesmos Recorrentes que padecem também de
inconstitucionalidade, sempre segundo a interpretação efectuada naquela
sentença, por violarem o princípio «trabalho igual, salário igual, consagrado
sob o art. 59-1/a da CRP».
8.13. Não têm razão, pois, conforme é indicado na sentença, esta matéria já foi
apreciada no Acórdão n.º 386/91 do Tribunal Constitucional, de 22 de Outubro
(publicado no D.R. II Série, de 02-04.92, pág. 3112 e segs.), concordando-se
inteiramente com o seu teor, e, em consequência, só haverá inconstitucionalidade
nos casos, diferente do agora em apreciação, em que a norma permite que o
montante da pensão somado ao abono de uma terça parte da remuneração pelo
desempenho de outras funções públicas por parte do aposentado seja inferior ao
quantitativo da remuneração correspondente às funções desempenhadas.
8.14. No mesmo sentido, refira-se o Acórdão do mesmo Tribunal n.º 285/02, de 18
de Junho de 2002, em que se diz:
«Contrariamente ao sustentado pelo tribunal recorrido, não é inconstitucional,
por violação do princípio de que “para trabalho igual salário igual”, consagrado
no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, a norma do artigo 79º do
Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, sempre que o aposentado não receba
integralmente a remuneração correspondente ao desempenho das funções públicas
que lhe seja permitido desempenhar. Só existirá violação desse princípio se,
como se sublinha no mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional, o aposentado
receber, a final, menos do que um trabalhador no activo que exerça em quantidade
e qualidade iguais”.
8.15. Sendo de uma total clareza ambos os acórdãos citados, tornam-se
desnecessários outros desenvolvimentos, constatando-se que a sentença proferida,
nesta parte, não merece qualquer censura, sendo, consequentemente de improceder
a pretensão dos recorrentes.
[…]”.
Os recorrentes interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
nos seguintes termos:
“[…]
As normas cuja fiscalização concreta de constitucionalidade se pretende são as
contidas:
- as do artigo 67-2 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, do
artigo 48-2/d do Dec.-Lei n.° 59/99 e do artigo 15/b do Código Penal;
- dos preceitos dos artigos 78/c e 79 do Estatuto da Aposentação (na redacção
introduzida pelo Dec.-Lei n.° 215/87);
Tais normas, interpretadas nos termos constantes do douto aresto recorrido,
padecem de inconstitucionalidade - como os Recorrentes sustentaram na sua
alegação para o Tribunal recorrido -, por violação, respectivamente:
- do conceito de Estado de Direito Democrático, consagrado sob o artigo 2.° da
nossa Lei Fundamental;
- por ofensa do princípio da autonomia do poder local (artigo 235, 242-1-2 e
243-1-2, CRP) e do princípio “para trabalho igual, salário igual” (artigo
59-1/a, CRP).
[…]”.
Na sequência de despacho de aperfeiçoamento do relator, através do qual foram
convidados a identificar as interpretações normativas que pretendem submeter à
apreciação do Tribunal Constitucional, vieram os recorrentes dizer o seguinte:
“A) As normas em apreço.
1. O preceito do artigo 67-2 da Lei de Organização e Processo do Tribunal de
Contas (na redacção introduzida pela Lei n.° 48/2006, de 29 de Agosto) reza:
“O Tribunal de Contas gradua as multas tendo em consideração a gravidade dos
factos e as suas consequências, o grau de culpa, o montante material dos valores
públicos lesados ou em risco, o nível hierárquico dos responsáveis, a sua
situação económica, a existência de antecedentes e o grau de acatamento de
eventuais recomendações do Tribunal.”
2. Estatui-se sob o artigo 48-2 do Dec.-Lei n.° 59/99:
“São os seguintes os procedimentos aplicáveis, em função do valor estimado do
contrato:
[…]
d) Ajuste directo, quando o valor estimado do contrato for inferior a 5000
contos, sendo obrigatória a consulta a três entidades.”
3. Dispõe o artigo 15 do Código Penal:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
[…]
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
4. Consta do Estatuto da Aposentação (na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º
215/87):
“Artigo 78.°
Incompatibilidades
1 - Os aposentados ou reservistas das Forças Armadas não podem exercer funções
públicas ou a prestação de trabalho remunerado nas empresas públicas, excepto se
se verificar alguma das seguintes circunstâncias:
[…]
c) Quando, sob proposta do membro do Governo que tenha o poder hierárquico ou
tutela sobre a entidade onde prestará o seu trabalho o aposentado ou reservista,
o Primeiro-Ministro, por despacho, o autorize, constando do despacho o regime
jurídico a que ficará sujeito e a remuneração atribuída.
Artigo 79º
Exercício de funções públicas por aposentados
Nos casos em que aos aposentados ou reservistas seja permitido, nos termos do
artigo anterior, desempenhar funções públicas ou prestação de trabalho
remunerado nas empresas públicas ou entidades equiparadas, é-lhes mantida a
pensão de aposentação ou de reforma, salvo se o Primeiro-Ministro, sob proposta
do membro do Governo que tenha o poder hierárquico ou de tutela sobre a entidade
onde prestará o seu trabalho o aposentado ou reservista, autorizar montante
superior, até ao limite da mesma remuneração.”
B) A aplicação, pelo tribunal recorrido, das normas transcritas.
5. O Tribunal a quo entendeu que age com culpa um autarca experiente e com
conhecimentos [in casu, o 1.º Recorrente], quando segue a orientação proposta
pelo competente Director do Departamento Administrativo e Financeiro, no sentido
de que mantém a natureza de empréstimo de curto prazo aquele que é amortizado no
ano civil subsequente ao da sua contracção, mas sem que o período de vigência
exceda um ano e que, por conseguinte, não há que suscitar a intervenção do
executivo e da Assembleia Municipal, com vista à sua transformação em empréstimo
de médio ou longo prazo.
6. Pretende-se que este Alto Tribunal verifique se o conceito de culpa assim
perfilhado, em interpretação e aplicação das normas do artigo 67-2 da Lei de
Organização e Processo do Tribunal de Contas (na redacção introduzida pela Lei
n.° 48/2006, de 29 de Agosto) e do artigo 15/b do Código Penal, se coaduna com o
princípio do estado de direito democrático (art. 2°, CRP).
7. Julgou o Tribunal recorrido que os preceitos dos artigos 78/c e 79 do
Estatuto da Aposentação, na redacção (em vigor à data dos factos em causa) acima
transcrita, confere ao Primeiro-Ministro a competência para autorizar o
exercício de funções, por aposentados, nas autarquias locais e para fixar
remuneração superior a um terço da que corresponde a esse exercício.
8. A questão que se submete a este Tribunal Constitucional é a de apurar se essa
interpretação se conforma com o princípio da autonomia do poder local (artigo
235, 242-1-2 e 243-1-2, CR2) e com o princípio «para trabalho igual, salário
igual» (artigo 59-1/a, CRP).
9. Finalmente, o Tribunal a quo decidiu que age com culpa o autarca que,
seguindo a orientação proposta pelos serviços competentes, adjudica, por ajuste
directo, no mesmo dia - mas em procedimentos que tiveram origem e se
desenrolaram autonomamente e que respeitavam a obras absolutamente independentes
e distantes entre si muitos quilómetros -, trabalhos que, no seu conjunto,
excedem o limite imposto sob o artigo 48-2 do Dec.-Lei n.° 59/99.
10. Também aqui se pretende que este Alto Tribunal verifique se o conceito de
culpa assim perfilhado, em interpretação e aplicação das normas do artigo 67-2
da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (na redacção introduzida
pela Lei n.º 48/2006, de 29 de Agosto) e do artigo 15/b do Código Penal, se
coaduna com o princípio do estado de direito democrático (artigo 2.º, CRP). ”.
Por despacho de fls. 172 e seguintes, o relator notificou os recorrentes para
produzirem alegações, com a advertência de que apenas seria de conhecer do
objecto do recurso no tocante à questão da conformidade constitucional da
interpretação que se reporta aos artigos 78º, n.º 1, alínea c), e 79º do
Estatuto da Aposentação, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de
Maio.
Em alegações, os recorrentes nada disseram em relação à possível restrição do
objecto do recurso, e, quanto ao mais, concluíram do seguinte modo:
1.ª À luz do estatuído nos artigos 235, 242-1-2 e 243-1-2 da CRP, a
interpretação das normas do artigo 78-1/c e 79 tem de ser no sentido de que a
referência, nelas, ao Primeiro-Ministro deve considerar-se feita, quando esteja
em causa o exercício de funções em determinado município, ao presidente da
respectiva câmara municipal.
2.ª A limitação do abono a receber pelos aposentados a uma terça parte (ou a
qualquer outra percentagem) da remuneração correspondente às funções por eles
desempenhadas constitui violação do princípio «para trabalho igual, salário
igual» (art. 59-1/a, CRP).
3.ª A interpretação normativa perfilhada pelo aresto sub censura viola, por
conseguinte, os princípios e preceitos constitucionais invocados.”.
Nas contra-alegações, o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional veio sustentar que, face ao decidido no acórdão recorrido, não
poderá considerar-se efectivamente aplicado o regime normativo constante do
artigo 78º do Estatuto da Aposentação, encontrando-se o objecto do recurso
limitado, desse modo, à questão da constitucionalidade da norma constante do
artigo 79º do mesmo Estatuto. Formulou ainda as seguintes conclusões:
1ª A regra constante do artigo 79º do Estatuto da Aposentação, ao outorgar ao
Primeiro Ministro a competência par outorgar o recebimento, em acumulação com a
pensão de reforma de verba superior a 1/3 da remuneração correspondente às
funções exercidas – independentemente da natureza da entidade pública em que as
funções são desempenhadas – não viola qualquer preceito ou princípio
constitucional.
2ª Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Os recorrentes não responderam à questão prévia colocada pelo Ministério
Público, respeitante à não aplicação, na decisão recorrida, do regime constante
do artigo 78º do Estatuto da Aposentação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2. O recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes incide sobre as
normas dos artigos 67º, n.º 2, da Lei de Organização e Processo do Tribunal de
Contas (na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2006, de 29 de Agosto), 48.º,
n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n.° 59/99, de 2 de Março, e 15º, alínea b), do
Código Penal, e ainda sobre as normas dos artigos 78º, alínea c), e 79º do
Estatuto da Aposentação, na redacção do Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio.
Convidado a especificar as interpretações normativas que, em cada caso, estão em
causa, os recorrentes, relativamente àquele primeiro grupo de disposições,
vieram esclarecer que pretendem que o Tribunal Constitucional verifique se o
conceito de culpa perfilhado pelo tribunal recorrido em aplicação desses
referidos preceitos se coaduna com o estado de direito democrático.
Assim sendo, nesse ponto, os recorrentes não questionam a conformidade
constitucional de qualquer interpretação normativa que tenha sido formulada pelo
tribunal recorrido, e limitam-se antes a censurar a própria decisão recorrida
face aos termos que efectuou a qualificação jurídica dos factos tidos como
assentes.
Ora, o Tribunal Constitucional não possui competência para analisar a
constitucionalidade de decisões judiciais, mas apenas de normas ou
interpretações normativas de que essa decisão tenha feito aplicação, na
apreciação do caso concreto (como, com evidência, decorre do artigo 280º da CRP
e das várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional),
pelo que não pode conhecer-se do objecto do recurso no que se refere a qualquer
desses aspectos.
Entretanto, o Ministério Público, nas contra-alegações, suscitou ainda a questão
prévia do não conhecimento do objecto do recurso em relação à norma do artigo
78º, alínea c), do Estatuto da Aposentação, por entender que esta não foi
aplicada na decisão recorrida, matéria sobre a qual, os recorrentes, notificados
para se pronunciarem, não deduziram oposição.
E, na verdade, o Plenário da 3ª Secção do Tribunal de Constas, tomando por
assente que o recurso perante ele interposto incidia sobre a interpretação dos
artigos 78º, alínea c), e 79º do Estatuto da Aposentação, expressamente afastou
a aplicabilidade ao caso concreto da primeira dessas disposições, que se
reportava ao regime de incompatibilidades dos aposentados para o exercício de
funções remuneradas em serviços públicos, e, em necessária decorrência, apenas
se pronunciou sobre a norma do artigo 79º, deixando prejudicado o conhecimento
do recurso quanto à questão suscitada por aquela outra disposição.
Ora, tendo em conta que a aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja
conformidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, constitui um dos
pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º
da Lei do Tribunal Constitucional, é de considerar procedente a questão prévia
colocada pelo Ministério Público, pelo que também não pode conhecer-se do
objecto do presente recurso, quanto à norma do artigo 78º, n.º 1, alínea c), do
Estatuto da Aposentação.
Nestes termos, o recurso circunscreve-se à norma do artigo 79º do Estatuto da
Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção
emergente do Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio, na interpretação segundo a
qual aos aposentados a quem seja permitido desempenhar outras funções públicas
apenas pode ser abonada uma terça parte da remuneração que competir a essas
funções e é o primeiro-ministro que detém competência para fixar remuneração
superior a essa.
Mérito do recurso
3. Estão em causa, no presente recurso, dois diferentes segmentos normativos do
artigo 79º do Estatuto da Aposentação: de um lado, a limitação a um terço da
remuneração a auferir por aposentados, que, nessa situação, se encontrem a
exercer outras funções públicas, o que, segundo os recorrentes, ofende o
princípio “para trabalho igual, salário igual”, consagrado no artigo 59º, n.º 1,
alínea a), da Constituição; de outro, a atribuição de competência ao
primeiro-ministro para autorizar um abono superior a esse, que se entende
infringir o princípio da autonomia do poder local consignado nos artigos 235º,
242º, n.º s 1 e 2, e 243º, n.º s 1 e 2, da Constituição.
Na sua redacção originária, a referida norma do artigo 79º do Estatuto da
Aposentação tinha a seguinte redacção:
Artigo 79º
(Exercício de funções públicas por aposentados)
Nos casos em que aos aposentados seja permitido desempenhar outras funções
públicas é-lhes mantida a pensão de aposentação e abonada uma terça parte da
remuneração que competir a essas funções, salvo se lei especial determinar ou o
Conselho de Ministros autorizar abono superior, até ao limite da mesma
remuneração.
Entretanto por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 215/87, de 29
de Maio, aqui aplicável por ser a vigente à data dos factos, passou a dispor do
seguinte modo:
Artigo 79º
Exercício de funções públicas por aposentados
Nos casos em que aos aposentados ou reservistas seja permitido, nos termos do
artigo anterior, desempenhar funções públicas ou prestação de trabalho
remunerado nas empresas públicas ou entidades equiparadas, é-lhes mantida a
pensão de aposentação ou de reforma, salvo se o Primeiro-Ministro, sob proposta
do membro do Governo que tenha o poder hierárquico ou de tutela sobre a entidade
onde prestará o seu trabalho o aposentado ou reservista, autorizar montante
superior, até ao limite da mesma remuneração.”
Reportando-se à primitiva versão do preceito, o Tribunal Constitucional já teve
oportunidade de apreciar, no acórdão n.º 386/91, de 22 de Outubro, a
conformidade constitucional do princípio da limitação da remuneração, aí
prevista, tendo julgado inconstitucional por violação da alínea a) do n.º 1 do
artigo 59º da Constituição, a norma do artigo 79º do Estatuto da Aposentação,
«mas somente na medida em que permite que o montante da pensão de reforma
percebida por um aposentado, somado ao abono de uma terça parte da remuneração
que competir ao permitido desempenho de outras funções públicas por parte do
mesmo aposentado, seja inferior ao quantitativo de tal remuneração».
Afirmou-se então o seguinte:
“[...]
5. Na versão originária da Constituição consagrava-se na alínea a) do artigo 53º
que todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, nacionalidade,
religião ou ideologia tinham direito à retribuição do trabalho segundo a
quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho
igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.
Tais direito e proibição discriminatória continuaram a perdurar, em moldes em
tudo idênticos, no texto constitucional resultante da revisão operada pela Lei
Constitucional nº 1/82 [artigo 60º, nº 1, alínea a)] e da revisão operada pela
Lei Constitucional nº 1/89 [artigo 59º, nº 1, alínea a)].
Nas citadas disposições constitucionais reafirma-se o princípio fundamental da
igualdade, consagrado no artigo 13º da Lei Básica, vertido na óptica dos
direitos dos trabalhadores, efectuando-se uma determinação negativa [a proibição
da discriminação], referindo-se um parâmetro positivo [a igualdade de
retribuição], sujeito a avaliação, mediante critérios objectivos e materiais –
logo não meramente formais – da quantidade, qualidade e natureza do trabalho,
aos quais não poderá ser alheia a realidade social e, por fim, definindo-se como
objectivo a garantia de uma retribuição do trabalho permissora de um trem de
vida, individual e do agregado familiar, adequado ao grau económico generalizado
do Pais (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 2ª ed., 1º vol., págs. 321 e segs., Jorge Leite, Direito do
Trabalho e da Segurança Social, págs. 305 e segs., e Francisco Lucas Pires, Uma
Constituição para Portugal, 1975, págs. 62 e segs.).
6. Face a estes contornos, será que ofende o preceito constitucional vasado na
alínea a) do artigo 53º da versão originária da Constituição, na alínea a) do nº
1 do artigo 60º da versão de 1982 e na alínea a) do nº 1 do artigo 59º da actual
versão, uma norma que estabeleça limites à cumulação de remuneração devida pelo
desempenho de outras funções públicas por um ex-servidor do Estado, com a pensão
de aposentação (ou reserva) por ele já percebida?
Entende-se que a resposta a esta questão genérica terá de ser negativa.
6.1. É que, por um lado, a pensão auferida (que até, numa certa visão das
coisas, poderia ser entendida como o posterior pagamento daquela parte da
retribuição do trabalho desempenhado pelo servidor do Estado enquanto se manteve
no activo, pagamento esse que lhe não foi feito, porque, ao menos em parte,
descontado no vencimento líquido então auferido a título de subscrição para a
C.G.A., e que, ajuntado à parte já paga, justificava a remuneração ilíquida
global como ajustada à quantidade, qualidade e natureza do trabalho efectuado)
pode, ou deve, ser entendida como a atribuição de um quantitativo ajustado à
prossecução da existência condigna de vida do servidor, atentas as condições
sociais e familiares que deterá aquando da sua aposentação.
A ser assim, estaria efectivada a garantia ínsita na parte final da alínea a) do
nº 1 do artigo 59º da Constituição (versão actual).
E, por isso, a remuneração pelo desempenho de outras funções públicas – ainda
que limitada – representaria um «plus» retributivo a acrescer ao percebido a
título de pensão pelo aposentado.
Na verdade, os proventos auferidos pelo funcionário no activo e decorrentes do
exercício de funções ou cargos públicos em qualidade e quantidade iguais às
desempenhadas pelo aposentado autorizado a exercê-las constituem, quanto ao
primeiro, o núcleo essencial da respectiva retribuição, que há-de obedecer ao
comando garantístico da parte final do mencionado preceito da Constituição,
derivando, ainda, de algum modo, do próprio direito ao trabalho concedido aos
cidadãos.
Ora, se aos aposentados da função pública a garantia de existência condigna está
assegurada pela atribuição da pensão de reforma, é claro que o quantitativo que
percebem além da pensão e advindo do permitido desempenho de outro emprego ou
cargo públicos, colocá-los-á, relativamente a essa garantia, em situação não
igual à dos funcionários do activo que exercem funções iguais, em quantidade e
qualidade, às que o aposentado está autorizado a desempenhar.
A remuneração auferida pelo trabalhador da função pública aposentado e em
consequência do trabalho «cumulado», constitui, pois, um «plus» retributivo que
não tem origem, directamente, no seu direito ao trabalho, conquanto, obviamente,
derive do trabalho desempenhado.
6.2. Por outro lado, e primordialmente, é necessário não olvidar que no próprio
texto constitucional (nº 4 do artigo 269º, correspondente, na primeira versão,
ao nº 4 do artigo 270º) se descortina credencial bastante para legitimar o
legislador ordinário a definir os casos e as condições em que a regra da
proibição da acumulação de empregos ou cargos públicos aí contida pode ser
excepcionada.
6.3. Concluir-se-á, desta arte, que, em termos genéricos, não será feridente da
Lei Fundamental e, designadamente, do que se consagra na já referida a1ínea a)
do nº 1 do seu artigo 59º, norma infraconstitucional que venha estabelecer um
limite à cumulação de remunerações advindas da pensão de reforma de um
aposentado da função pública e da retribuição pelo exercício de funções ou
cargos públicos que ele se encontre legalmente autorizado a desempenhar,
independentemente da concretização, numa ou noutra, desse limite.
7. Mas, se a tal conclusão se chegou, a indagação do problema não pode quedar-se
por aqui.
De facto, tendo em conta o direito fundamental garantido na mencionada alínea a)
do nº 1 do artigo 59º, concretizador daqueloutro da igualdade, e o princípio de
justiça que lhe está subjacente, mister é que o total recebido pelo aposentado
se não mostre inferior ao vencimento percebido pelo trabalho desempenhado pelo
funcionário no activo, sob pena de, havendo exercício de trabalho em qualidade e
quantidade iguais por parte de dois trabalhadores, um deles receber, a final,
menos do que o outro.
Pois bem:
Se mercê de limitação à globalidade remuneratória imposta por normação
ordinária, o total auferido pelo aposentado – resultado da pensão e do
«vencimento» proveniente do desempenho autorizado de função ou cargo públicos –
se mostrar de quantitativo inferior ao «salário» atribuído ao trabalhador do
activo que exerce função ou cargo iguais aos que o aposentado está permitido
exercer, então o citado princípio de justiça subjacente à referida norma
constitucional ver-se-á inequivocamente abalado.
8. A ser assim, como é, perante o dispositivo constante da norma em apreciação,
poderão surgir hipóteses em que a soma da pensão de reforma do aposentado e do
montante da retribuição do autorizado desempenho de outra função ou cargo
públicos – montante esse derivado do limite imposto pela mesma norma – seja de
quantitativo inferior ao do auferido pelo funcionário no activo que exerce igual
função ou cargo.
Ora, em tais casos, originados pela estatuição da norma em causa, criar-se-ão
situações conflituantes com os assinalados princípio de justiça e garantia
respectivamente ínsito e consagrada na Lei Básica.
[...]”.
Este entendimento veio a ser retomado no acórdão n.º 258/02, de 18 de Junho, em
que se aditaram as seguintes considerações:
[…] não é inconstitucional, por violação do princípio de que “para trabalho
igual salário igual”, consagrado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da
Constituição, a norma do artigo 79º do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro,
sempre que o aposentado não receba integralmente a remuneração correspondente ao
desempenho das funções públicas que lhe seja permitido desempenhar. Só existirá
violação desse princípio se, como se sublinha no mencionado acórdão do Tribunal
Constitucional, o aposentado receber, a final, menos do que um trabalhador no
activo que exerça trabalho em quantidade e qualidade iguais.
Na verdade, e como salienta o Ministério Público nas alegações que produziu
junto deste Tribunal, “não são manifestamente situações idênticas aquelas em que
certo cidadão exerce, em exclusivo, certa função e em que tal função é exercida
cumulativamente com outra, podendo legitimamente tal situação de acumulação
ditar uma redução – proporcional e adequada – da remuneração global auferida.”.
Não sendo idênticas as situações do aposentado que exerce certa função pública e
a do trabalhador no activo que só exerce essa função, desde logo porque aquele
acumula a qualidade de aposentado, auferindo a correspondente pensão de
aposentação, é evidente que a questão de constitucionalidade apreciada pelo
tribunal recorrido não pode ser equacionada nos termos simples em que
assumidamente o foi. O princípio da igualdade não postula o tratamento igual de
situações substancialmente diversas, não sendo necessário incorrer na censurada
“excessiva teorização” para assim concluir.
Por outro lado, mantendo o aposentado a pensão de aposentação e recebendo uma
parte da remuneração que, acrescida àquela, não é inferior ao quantitativo da
remuneração que compete às funções que desempenha, não se verifica qualquer
enriquecimento indevido do Estado à custa do trabalhador, contrariamente ao
defendido no acórdão recorrido. E isto porque o trabalhador, como sucede no caso
dos autos, acaba por auferir uma quantia que, globalmente considerada, não é
inferior àquela que compete às funções que desempenha, não sofrendo portanto um
correlativo empobrecimento.
Conclui-se assim que não é inconstitucional o segmento normativo do artigo 79º
do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, que – consentindo embora a redução
da remuneração global devida a um aposentado que for autorizado a exercer outra
função pública –, garanta ao aposentado a percepção do quantitativo que competir
a essa função pública.
A argumentação dos recorrentes em nada põe em causa esta orientação
jurisprudencial.
Por um lado, afirmam que para a aplicação do princípio “para trabalho igual,
salário igual” releva apenas a circunstância de o trabalho ser ou não igual, e
não a circunstância de o trabalhador ser ou não aposentado; por outro lado,
consideram que o princípio da redução da remuneração dos aposentados que exercem
outras funções públicas, a ser constitucionalmente conforme, seria também
aplicável aos trabalhadores no activo que se encontrem em acumulação de funções,
solução não consentida pelos artigos 27º e 28º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de
Fevereiro.
Relativamente ao primeiro ponto, importa precisar que a norma do artigo 59º, n.º
1, alínea a), da Constituição visa essencialmente assegurar o direito a uma
justa retribuição do trabalho e é em vista à realização desse direito que se
devem entender os princípios fundamentais que aí se estabelecem para efeito da
fixação da remuneração: (a) ela deve ser conforme à quantidade, natureza e
qualidade do trabalho; (b) a trabalho igual em quantidade, natureza e qualidade
deve corresponder salário igual, proibindo-se as discriminações entre
trabalhadores; (c) a retribuição deve garantir uma existência condigna.
O princípio da igualdade salarial, como componente do direito a uma justa
retribuição, não pode, por conseguinte, ser interpretado num sentido
estritamente formal, mas antes à luz do objectivo constitucional que é traçado
pela referida disposição do artigo 59º, n.º 1, alínea a).
Como refracção do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, nº 1, da
Constituição, o que a referida norma constitucional proíbe é o estabelecimento
de diferenciações arbitrárias em matéria de retribuição e, por isso, a distinção
de tratamento entre trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho sem que
para isso subsista um fundamento material bastante (neste sentido, o acórdão n.º
424/2003).
No caso concreto, a limitação da remuneração é determinada pela circunstância de
os cargos públicos se encontrarem a ser desempenhados por pessoas em situação de
aposentação, relativamente às quais, desde logo, se encontra garantido o
pagamento de uma pensão mensal que assegura a manutenção de um nível de vida
correspondente àquele que já detinham quando se encontravam no activo. O
critério legal assenta, por outro lado, em considerações de política legislativa
que visam a proibição do exercício de funções remuneradas na Administração
Pública por parte de quem, tendo mantido já uma relação jurídica de emprego
público, se encontre a beneficiar do correspondente regime de previdência
social, e que apenas conhece as excepções especialmente previstas no artigo 78º
do Estatuto da Aposentação.
A redução do montante remuneratório a um terço nos casos em que seja legalmente
permitido a renovação de um vínculo de emprego público, como prevê o artigo 79º
do Estatuto de Aposentação, não impede que o interessado continue a auferir a
totalidade da pensão, e representa, em si, um regime mais vantajoso que o
anteriormente existente, que impunha que os aposentados nessas condições
optassem pela remuneração correspondente ao cargo exercido ou pelo pagamento da
pensão de aposentação (cfr. ponto 6 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 498/72, de 9
de Dezembro).
Em qualquer caso, como decorre do segmento final do mesmo artigo 79º, não fica
afastada a possibilidade, em situações que se mostrem justificadas, que venha a
ser autorizada, caso a caso, o pagamento de um montante superior àquele até ao
limite da remuneração que for legalmente devida pelo exercício do cargo.
Como se vê, o regime legal assenta num critério correctivo de natureza objectiva
e mostra-se justificado por razões de moralização do sistema previdencial
público, e não põe em causa, de nenhum modo, o direito a uma existência
condigna, que é desde logo assegurada pelo pagamento da pensão de aposentação –
questão que sempre poderia ser avaliada em concreto através do procedimento de
autorização previsto no artigo 79º, in fine.
Nada permite, por isso, concluir pela invocada inconstitucionalidade.
A invocação do regime jurídico vigente para a acumulação de funções no activo
não possui também qualquer valor argumentativo.
Antes de mais, as soluções normativas adoptadas, no plano do direito ordinário,
em relação a quaisquer outros aspectos do ordenamento jurídico, ainda que possam
constituir lugares paralelos, não podem servir de parâmetro de
constitucionalidade relativamente à questão que vem colocada no presente
recurso, justamente porque se trata de direito infra-constitucional. Nem cabe
agora averiguar se essa outra legislação é ou não, ela própria, conforme com a
Constituição para efeito de se poder estabelecer um qualquer padrão comparativo.
Acresce que o novo regime de vinculação, carreiras e remunerações dos
trabalhadores da Administração Pública, a que os recorrentes pretendem
referir-se, não deixa de instituir um regime de exclusividade do exercício de
funções públicas (artigo 26º), e só permite a acumulação com outras funções
públicas quando estas não sejam remuneradas ou nos casos taxativamente indicados
na lei, desde que haja manifesto interesse público nessa acumulação e prévia
autorização da entidade competente (artigos 27º e 29º). O que conduz a concluir
que há, também, neste âmbito, um regime fortemente restritivo, que é consentâneo
com o estabelecido para o exercício de funções públicas por parte de pessoas em
situação de aposentação.
Seja como for, nunca o referido regime legal poderia servir de elemento de
aferição de um julgamento de constitucionalidade, visto que estamos perante
soluções normativas, que sendo em si mesmas distintas, visam também diferentes
propósitos legislativos (garantia de imparcialidade, num caso; regulação do
sistema previdencial, no outro), relativamente aos quais seria lícito ao
legislador instituir distintos critérios legais.
4. Pretendem ainda os recorrentes que a disposição do artigo 79º do Estatuto da
Aposentação envolve a violação do princípio da autonomia do poder local,
consagrado nos artigos 235º, 242º, n.º s 1 e 2, e 243º, n.º s 1 e 2, da
Constituição.
Esse princípio, também consagrado no artigo 6º da Constituição, significa que
«as autarquias locais são formas de administração autónoma territorial, de
descentralização territorial do Estado, dotadas de órgãos próprios, de
atribuições específicas correspondentes a interesses próprios e não meras formas
de administração indirecta ou mediata do Estado» (Gomes Canotilho /Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra
Editora, 2007, pág. 234).
Daí decorre que o legislador fica constitucionalmente vinculado a uma concepção
de descentralização administrativa, que implica a devolução de atribuições e
poderes aos entes públicos autárquicos infraestaduais. Essa devolução de poderes
tem como consequência a atribuição de uma autonomia administrativa, que envolve
a competência para a prática de actos administrativos e o exercício de poder
regulamentar, sem sujeição a qualquer vínculo de dependência hierárquica em
relação ao Estado, embora sem prejuízo da tutela administrativa de estrita
legalidade - artigos 241º e 242º da Constituição (Gomes Canotilho /Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora,
1993, pág. 886).
Essas competências não podem, no entanto, deixar de ser confinadas aos
respectivos limites territoriais e às tarefas de incidência local que não sejam
atribuídas, por lei, a outros titulares da Administração (cfr. artigo 199º e
267º da Constituição). E, evidentemente, abrange apenas funções administrativas
e não funções legislativas, que estão necessariamente confiadas à Assembleia da
República e ao Governo e, no âmbito regional, aos órgãos de governo próprio das
Regiões Autónomas (artigos 161º e segs. e 227º da Constituição).
É à Assembleia da República que compete legislar, salvo autorização ao Governo,
sob as bases do sistema de segurança social, bem como sobre as bases e âmbito da
função pública, competindo ao Governo fazer decretos-leis de desenvolvimento dos
princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis (artigos 165º,
n.º 1, alínea f), e t), e 198º, n.º 1, alíneas b) e c), da Constituição).
Estando em causa, no caso vertente, o exercício cumulativo de funções públicas
por parte de aposentados, e sendo essa matéria atinente ao estatuto da
aposentação do funcionalismo público, a competência para legislar pertencia, nos
termos antes expostos, aos órgãos de soberania, incluindo-se no âmbito da
discricionariedade legislativa a indicação da entidade a quem deveria competir a
autorização prevista na lei para o abono de remuneração superior à que está
legalmente fixada.
Sendo essa competência atribuída ao primeiro-ministro, e tratando-se de matéria
que diz respeito a interesses colectivos de índole geral e que manifestamente
excedem a mera incidência local (independentemente de os destinatários do
procedimento autorizativo poderem ser funcionários autárquicos), torna-se claro
que não há, na referida atribuição de competência administrativa, qualquer
violação do princípio da autonomia local.
Assim é de não julgar inconstitucional a norma do artigo 79º do Estatuto da
Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção
emergente do Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio, na interpretação segundo a
qual aos aposentados a quem seja permitido desempenhar outras funções públicas
apenas pode ser abonada uma terça parte da remuneração que competir a essas
funções e é o primeiro-ministro que detém competência para fixar remuneração
superior a essa.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso, quanto às normas dos artigos 67º, n.º 2,
da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (na redacção introduzida
pela Lei n.º 48/2006, de 29 de Agosto), 48.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei
n.° 59/99, de 2 de Março, e 15º, alínea b), do Código Penal, e 78º do Estatuto
da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro (na
redacção emergente do Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio);
b) Negar provimento ao recurso na parte que dele se conhece.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 27 de Maio de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão