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Processo n.º 193/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., deduziu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria impugnação
judicial de actos de liquidação de IRC e juros compensatórios, relativos aos
exercícios de 2001 e 2002 (processo n.º 1199/06.8 BELRA).
Em 11-5-2007 foi proferida decisão de improcedência desta impugnação judicial.
A impugnante interpôs recurso desta decisão, tendo o Tribunal Central
Administrativo Sul, por acórdão proferido em 1-4-2008, anulado a decisão
recorrida na parte em que conheceu do mérito da impugnação deduzida contra as
liquidações de IRC e, por substituição, julgado improcedente a impugnação, por
ilegal interposição, e negado provimento ao recurso na parte em que a decisão
recorrida julgou improcedente a impugnação contra a liquidação de juros
compensatórios.
A impugnante interpôs novo recurso, nos termos dos artigos 280.º, n.º 2, e
284.º, do CPPT, invocando, para o efeito, a oposição do decidido no acórdão
proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul com os Acórdãos do STA, de
23-11-2004 (quanto a impugnabilidade de acto tributário de liquidação, em
resultado de aplicação de métodos indirectos, na sequência de acordo obtido em
sede de procedimento de revisão) e de 14-5-2004 (quanto ao tipo de culpa do
sujeito passivo enquanto pressuposto de liquidação de juros compensatórios).
Admitido liminarmente o recurso, após apresentação de alegações, por decisão do
relator proferida em 23-9-2008, foi julgado findo o recurso, com fundamento em
não existir contradição entre o acórdão recorrido e os indicados acórdãos do
STA.
A impugnante reclamou desta decisão do relator para a conferência, tendo esta
reclamação sido julgada improcedente por acórdão proferido pelo Tribunal Central
Administrativo Sul em 13 de Janeiro de 2009.
A impugnante recorreu então para o Tribunal Constitucional, pedindo a
“apreciação concreta da constitucionalidade (orgânica) do artigo 284º - 5 do
CPPT, interpretado no sentido que cumpre ao Relator, no Tribunal “a quo”,
apreciar uma invocada oposição de acórdãos.”
A recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“I. O artigo 284.º, n.º 5 do Código de Procedimento e do Processo Tributário
padece de inconstitucionalidade orgânica, na interpretação de que cumpre ao
Relator do Tribunal recorrido apreciar a existência de oposição de acórdãos.
II. A competência do Supremo Tribunal Administrativo para decidir
preliminarmente acerca da existência de oposição de acórdãos, não podia ser
modificada ou alterada através do Código Procedimento e de Processo Tributário,
sendo certo que este código foi aprovado ao abrigo de uma autorização
legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 51.º, n.º 1 e 6, da
Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, que não abrange a possibilidade de alteração
da competência dos Tribunais.
III. A competência dos Tribunais é matéria de reserva relativa de competência
legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP).
IV. O Despacho emitido pelo Exmo. Senhor Juiz Relator consubstancia uma
verdadeira alteração de competências, equiparável à alteração de competências
entre Tribunais.
V. A interpretação efectuada na douta decisão do Tribunal “a quo” é
inconstitucional por violação do artigo 165º - 1 p) da CRP.”.
A recorrida apresentou contra-alegações em que concluiu pela improcedência do
recurso.
*
Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
A recorrente no seu requerimento de interposição de recurso disse pretender que
se fiscalize a constitucionalidade orgânica do artigo 284.º, n.º 5, do CPPT,
interpretado no sentido que cumpre ao Relator, no Tribunal “a quo”, apreciar uma
invocada oposição de acórdãos.
De modo a evitar equívocos importa precisar o sentido da interpretação
sustentada pela decisão recorrida e cuja constitucionalidade o recorrente
pretende que o tribunal fiscalize.
No acórdão recorrido entendeu-se que, em caso de recurso interposto com
fundamento em oposição de julgados, compete ao relator do tribunal recorrido
verificar preliminarmente a existência dessa oposição, devendo julgar findo o
recurso caso conclua que ela não existe.
Este julgamento, no entendimento da decisão recorrida, recai, pois, apenas sobre
a verificação de um requisito de admissibilidade deste tipo de recurso e não
sobre o mérito do recurso, o qual compete ao tribunal superior.
É esta precisão que importa fazer, pelo que o objecto deste recurso cinge-se à
interpretação do artigo 284.º, n.º 5, do CPPT, no sentido de que cumpre ao
relator do tribunal recorrido verificar a existência de oposição de julgados em
recurso interposto com este fundamento.
2. Do mérito do recurso
O referido artigo 284.º, insere-se no Título V, do CPPT, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, referente aos recursos de actos
jurisdicionais praticados no processo judicial tributário, sob a epígrafe
«oposição de julgados», e dispõe o seguinte:
“1 - Caso o fundamento for a oposição de acórdãos, o requerimento da
interposição do recurso deve indicar com a necessária individualização os
acórdãos anteriores que estejam em oposição com o acórdão recorrido, bem como o
lugar em que tenham sido publicados ou estejam registados, sob pena de não ser
admitido o recurso.
2 - O relator pode determinar que o recorrente seja notificado para
apresentar certidão do ou dos acórdãos anteriores para efeitos de seguimento do
recurso.
3 - Dentro dos 8 dias seguintes ao despacho de admissão do recurso o
recorrente apresentará uma alegação tendente a demonstrar que entre os acórdãos
existe a oposição exigida.
4 - Caso a alegação não seja feita, o recurso será julgado deserto, podendo, em
caso contrário, o recorrido responder, contando-se o prazo de resposta do
recorrido a partir do termo do prazo da alegação do recorrente.
5 - Caso o relator entenda não haver oposição, considera o recurso findo,
devendo, em caso contrário, notificar o recorrente e recorrido para alegar nos
termos e no prazo referido no n.º 3 do artigo 282.º
A decisão sob recurso entendeu que é ao relator no tribunal recorrido que cabe
averiguar se existe oposição de julgados para efeito de ordenar o
prosseguimento do recurso, competindo-lhe desde logo julgá-lo findo quando
conclua que se não verificam os requisitos de que depende a admissão do recurso
e, entre eles, a identidade da questão fundamental de direito relativamente à
qual se invoca a contradição de jurisprudência.
Anteriormente à aprovação do CPPT, o artigo 30.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais de 1984 atribuía ao Pleno da Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo a competência, não apenas para
conhecer do julgamento do conflito (alínea b), mas também para apreciar a
questão preliminar sobre a existência da oposição de julgados (alínea c).
Essa dupla competência contenciosa relativamente a uma mesma espécie de recurso
resultava do próprio regime procedimental aplicável ao recurso com fundamento em
oposição de julgados, que, por efeito da aplicação subsidiária dos artigos 765.º
e seguintes do Código de Processo Civil (normas entretanto revogadas pela
reforma processual civil de 1995/1996, mas que se entendia serem ainda
aplicáveis no domínio da jurisdição administrativa e fiscal), contemplava uma
primeira fase processual destinada a verificar a existência de oposição (cujo
julgamento competia a uma formação mais restrita – artigo 31.º, n.º 2, do ETAF
de 1984) e uma fase subsequente, caso o processo devesse prosseguir, que visava
o julgamento do conflito, em que intervinham já todos os juízes da Secção
(artigo 31.º, n.º 1, do ETAF de 1984).
Revogando a citada disposição do artigo 30.º, alínea c), do ETAF, o artigo 284º,
n.º 5, do CPPT, veio atribuir ao relator no tribunal recorrido, com
possibilidade de reclamação para a conferência, a pronúncia relativa à questão
preliminar, implicando que o recurso só deva seguir para o tribunal ad quem,
após a apresentação das alegações, quando não haja obstáculo ao conhecimento da
matéria de fundo.
É esta inovação que a ora recorrente entende encontrar-se ferida de
inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência
da Assembleia da República tal como se encontra consagrada na alínea p), do n.º
1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa.
Este preceito atribui competência exclusiva à Assembleia da República, salvo
autorização ao Governo, em matéria de “organização e competência dos tribunais
e do Ministério Público”.
O Tribunal Constitucional tem entendido que a referida reserva parlamentar
inclui a definição da competência judiciária ratione materiae, ou seja, a
distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais dispostos
horizontalmente no mesmo plano, aí se incluindo a definição de matérias cujo
conhecimento cabe aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e
tributários e a distribuição de competências, dentro da ordem jurisdicional
comum, pelos diferentes tribunais de competência genérica e de competência
especializada ou específica (acórdãos n.º 356/89, 72/90, 271/92, 163/95, 198/95,
268/97, 476/98, 114/2000 e 690/2006, todos acessíveis no site
www.tribunalconstitucional.pt)
Ora, o regime do n.º 5, do artigo 284.º, do CPPT, no entendimento do acórdão
recorrido não traduz uma modificação das regras de competência judiciária em
razão da matéria, mas unicamente uma alteração do regime processual aplicável ao
recurso por oposição de julgados, implicando que a fase inicial do recurso,
destinada a verificar a existência de oposição, passe a ser atribuída ao
relator do tribunal recorrido, com possibilidade de reclamação para a
conferência.
Não há aqui uma qualquer alteração inovatória da competência entre tribunais de
diferentes espécies, mas apenas uma nova distribuição de competência dentro da
mesma ordem de tribunais, que constitui uma mera decorrência da reformulação do
procedimento do recurso e que não põe, por isso, em causa a reserva de
competência legislativa da Assembleia da República imposta pelo artigo 165.º,
p), da C.R.P..
No mesmo sentido já decidiu o Acórdão n.º 403/2008 deste Tribunal, cuja
fundamentação aqui se seguiu de perto.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional por A., S.A., do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
proferido nestes autos em 13 de Janeiro de 2009.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de Junho de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos