Imprimir acórdão
Processo n.º 78/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. intentou acção declarativa contra B., S.A. e C., pedindo que a Ré B. e,
subsidiariamente, o Réu C., fossem condenados a pagar-lhe a quantia de USD
47.120,80, acrescida de USD 5.577.00 de juros vencidos, até 14 de Julho de 1998,
e vincendos, até integral e efectivo pagamento, e a indemnizá-lo em quantitativo
não inferior a USD 120.000,00, acrescido de juros desde a citação até integral
pagamento.
Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo
a ré B. sido condenada a restituir ao autor a quantia de USD 47.120 (ou a
quantia correspondente em euros) e os juros legais vencidos e vincendos à taxa
de 5%, bem como a indemnizá-lo em USD 120.000 (ou a quantia correspondente em
euros), acrescida de juros desde a citação.
A Ré B. recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra que, após
ter proferido um primeiro acórdão que foi anulado por decisão do Supremo
Tribunal de Justiça, julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a
sentença da 1ª instância.
A Ré B. recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por
acórdão proferido em 16-10-2008, julgou improcedente a revista.
A Ré B. após ter sido indeferido um pedido de arguição de nulidade daquele
acórdão, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:
“O presente recurso tem como fundamento a violação dos artigos 2º, 3º nºs 2 e 3,
8º, nº 1, 20º, nº 4, 32º e 202º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e
concomitantemente, do princípio do Estado de Direito, da garantia de processo
justo e adequado à realização do Direito, do princípio da conformação do
processo segundo os direitos fundamentais e do princípio da legalidade
processual, na interpretação do princípio da livre apreciação da prova, que
admite a valoração de prova testemunhal destituída de indicação concreta da
respectiva razão de ciência, suscitada nas Alegações de Recurso interposto para
este Supremo Tribunal de Justiça.”
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“I. Nos presentes autos, a procedência da acção derivou exclusivamente, da
valoração do depoimento prestado por uma “testemunha” que cedeu os créditos para
poder legalmente sê-lo (ou para que os créditos poderem teoricamente existir) e
de depoimentos de testemunhas que nunca referiram nos autos, o motivo, razão ou
circunstâncias, em que adquiriram conhecimentos daquilo que afirmam ser a mais
pura «verdade, pois consta do contrato» que a NEWPALM nunca celebrou as outras
sociedades que eram geridas pela isenta testemunha D..
II. «Do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um
procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.
Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do
procedimento e do processo, a constituição contém alguns princípios e normas
designados por garantias gerais de procedimento e de processo.». Dentre as
garantias do processo judicial que têm dignidade constitucional, por respeitarem
a direitos considerados fundamentais, podem mencionar-se: a garantia do processo
equitativo (art.º 20, nº 4), o princípio da conformação do processo segundo os
direitos fundamentais (art.º 32), o princípio da fundamentação dos actos
judiciais (art.º 205º, nº), o princípio da legalidade processual (art.º 32º).
III. A exigibilidade de explicitação das razões de ciência das testemunhas
prende-se, primeiramente, com o controlo do respeito pelos limites da livre
apreciação da prova testemunhal, tendo em vista garantir um processo justo e
equitativo, garantia de inequivocidade e clareza do processo e rejeição de
decisões judiciais que se fundem num juízo arbitrário.
IV. Na expressão do Professor ALBERTO DOS REIS, «Tem a maior importância esta
exigência» a que «Tanto apreço ligou a lei». Sendo as razões de ciência
qualificadas por Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio Nora como
«elemento essencial» que «reveste efectivamente a maior importância»., pois
«(...) a prova testemunhal é particularmente falível e precária»..
V. Daí que «Se for omitida a explicação da razão da sua ciência acompanhada das
circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos, o depoimento
inexiste, seja física, seja juridicamente» (JORGE LOURENÇO MARTINS in “O
Depoimento Testemunhal em Processo Civil”, citado por ISABEL ALEXANDRE, in
“Provas ilícitas em Processo Civil”).
VI. Relativamente à validade (ou existência...) do testemunho, a exigibilidade
da indicação das razões de ciência das testemunhas, funda-se nestas premissas e
encontra-se hoje positivada no art.º 683º, nº1, do Código de Processo Civil, sob
a epígrafe: «Regime do Depoimento» (conjunto de regras que regulam a produção da
prova testemunhal) exigindo-se portanto que a testemunha faça a declaração de um
facto e indique como sabe (viu, ouviu, sonhou...) e explique as circunstâncias
desse conhecimento.
VII. Nos sistemas da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de
formar a sua convicção sobre os factos, com base na observação e análise da
prova que lhe é apresentada, mas nem por isso fica desobrigado, «na formação
dessa convicção», de indicar os fundamentos onde aquela assentou. A lei
processual determina e faz impender, sobre o julgador, um ónus de objectivação
da sua convicção, que virá a ser demonstrado na respectiva motivação, nos termos
do art. 653.º, n.º 2 do CPC.
VIII. Por imposição constitucional (primeiro) e legal (depois), a livre
apreciação da prova, não é um juízo arbitrário ou de intuição sobre veracidade
ou não de uma certa realidade de facto, mas antes uma convicção adquirida por
intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica
comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das
provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que essa
convicção carece de ser enunciada, por expressa imposição legal, como garante da
transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por
parte do julgador na administração da justiça.
IX. Ao impor que as testemunhas apresentem a respectiva razão de ciência, a lei
processual civil visa consubstanciar a garantias de imparcialidade e legalidade,
bem como o direito a um processo justo, para que não ocorra aquilo que nos autos
ocorreu: serem valorados depoimentos de testemunhas destituídos (ou sendo
presumidas) as respectivas razões de ciência.
X. Por outras palavras, a exigibilidade de menção das razões de ciência
consubstancia um princípio processual, plasmado na lei ordinária, concretiza e
constitui corolário de outros, constitucionalmente consagrados como a exigência
constitucional de um processo justo, plasmado no art.º 30º, nº 4, da
Constituição, devidamente concretizado, no «Regime» previsto no art.º 683º, nº
1, do Código de Processo Civil, destinando-se a impedir que o sistema de prova
livre e livre apreciação da prova, se converta num poder ilimitado e arbitrário
do Juiz.
XI. A prova domina todo o processo declarativo, pois a sentença (que lhe põe
termo) assenta necessariamente na prova. Dada a importância da prova, ela
constitui o ponto central do processo e, consequentemente, do direito
processual. Por isso, «Em sede de prova, o direito ao processo equitativo
implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por
violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por
processos ilícitos.».
XII. Se nos termos do art.º 202º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa:
«Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo», não faz qualquer sentido aplicar uma lei processual
diversa daquela que é a lei do povo em nome do qual o tribunal aplica a lei
substantiva. E também a efectivação do princípio do direito ao processo
equitativo exige o julgamento de acordo com as leis do país. Por essas razões,
no direito processual civil não há qualquer excepção resultante da aplicação da
lei: as normas de processo são exclusivamente territoriais.
XIII. Da natureza pública do direito processual civil e do princípio da
aplicação territorial absoluta da lei adjectiva, decorre que a validação dos
depoimentos, de acordo com a (hipotética!) lei estrangeira afecta a
independência do Estado Português.
XIV. Ainda que a prova seja livre, não o é a sua valoração. A vinculação do Juiz
à lei do Estado em que julga o litígio é a expressão do Estado de Direito, pois
nos termos do art.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a República
Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular no
respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, o
que, nos termos do nº 2 do artigo 202º da Lei Fundamental, incumbe aos tribunais
assegurar.
XV. Segundo o Acórdão recorrido «a falta de menção de conhecimento dos factos
relatados pela testemunha não afecta o depoimento enquanto tal» e «não acarreta,
de per si, a proibição de consideração do seu depoimento», fundando-se na
premissa segundo a qual o art.º 638º, nº 1, do CPC, «dirige-se à ponderação da
credibilidade do depoimento e, consequentemente, à formação da convicção do juiz
(...)».
XVI. A fundamentação do Acórdão recorrido abre um perigoso precedente, pois
recorre a uma singular interpretação do princípio da prova livre, legitimando
“fundamentação” de qualquer decisão assente na prova testemunhal (ilicitamente)
produzida e (ilegalmente) valorada, sem qualquer referência às razões de
ciência, «exigência» e «elemento essencial)) a que a lei «Tanto apreço ligou»,
sem as quais, conforme a doutrina entende unanimemente, fica o Tribunal impedido
de apreciar a força probatória e de valorar a prova testemunhal, assim
subvertendo a jurisprudência proferida por este Tribunal Constitucional,
relativamente ao princípio da fundamentação das decisões judiciais.
XVII. O Acórdão recorrido mostra-se claramente avesso à jurisprudência
Constitucional, ao rejeitar a anulação dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da
Relação de Coimbra, na medida em que «só a falta absoluta de motivação constitui
a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 668 do C. Pr. Civil)).
XVIII. O necessário acatamento da lei positiva, consubstanciado no princípio da
legalidade processual, associado à necessidade de garantir a transparência das
decisões judiciais, impõe que a formação da convicção se destine igualmente a
combater a ocultação, por detrás de meras justificações formais, dos reais
motivos da decisão, ou sequer de «meias fundamentações».
XIX. Se a fundamentação da decisão não pode deixar de indicar os razões de
ciência das testemunhas, sob pena de nulidade, também não poderá valorar-se um
depoimento que vem sem as (assim necessárias) razões de ciência: sem conhecer as
razões de ciência, o Julgador não pode enunciar os razões pelas quais valorou e
creditou a prova testemunhal, nem efectuar qualquer análise crítica do
depoimento destituído de razões de ciência. E não pode o cidadão conformar-se
com tal juízo, totalmente arbitrário.
XX. A decisão recorrida é arbitrária, iníqua, injusta e ofensiva da dignidade
constitucional do Princípio do Estado de Direito, pondo em crise o princípio da
legalidade processual e da transparência das decisões judiciais, o direito a um
processo justo e consequentemente, o princípio da legalidade democrática, a
confiança no poder judicial e a própria noção de Estado de Direito: conforme
afirmaria Taruffo, só seria uma boa decisão se para ela houvesse, ou pudesse
haver, boas justificações.
XXI. Para rejeitar a «deficiente fundamentação da matéria de facto», o Acórdão
limita-se, de forma artificial e falaciosa, a transcrever passagens do Acórdão
da Relação “reformado”, das quais se destaca «a testemunha tem conhecimento pelo
facto de ter visto os contratos» e «referiram expressamente que este facto
consta do contrato», quando o mesmo Tribunal e os mesmos Juízes Desembargadores,
já haviam anteriormente considerado que «É certo que não se encontra mencionada
naqueles a razão de ciência».
XXII. Em Estado de Direito, subordinado «à Constituição e funda-se na legalidade
democrática», o acatamento dos valores constitucionais da certeza e segurança
jurídica e da imparcialidade do poder judicial, não é compaginável com decisões
que visam “justificar-se” através da contradição e da aparência de legalidade!
XXIII. A independência e a imparcialidade do Juiz não podem ser afirmadas só a
nível de princípios gerais e abstractos, sob pena de provocarem o seu completo
esvaziamento: o juiz só é independente e imparcial se demonstra sê-lo na
particular decisão que profere, motivando-a de modo que ela resulte fundada
sobre uma verificação objectiva dos factos da causa e sobre uma interpretação
válida e imparcial da norma.
XXIV. Sendo a obrigação de motivação garantida por uma norma constitucional, ela
«não é já orientada só para a finalidade de controlo endoprocessual da sentença,
passando a consubstanciar uma garantia geral e não vazia de conteúdo: sendo um
instrumento de controle democrático sobre a justiça da decisão, a motivação tem
um “valor instrumental” de efectivação de outros princípios fundamentais,
relativos à administração da justiça no Estado de Direito, razão pela qual, não
pode ter-se por cumprida “de qualquer maneira”, bastando invocar uma boa
“desculpa”, como a livre prova e livre apreciação da prova, para assim “motivar”
uma decisão completamente ilegal e iníqua.
XXV. Em concreto, a valoração dos depoimentos processuais influíram na decisão
da causa, contribuindo determinantemente para o resultado probatório. Sem esses
depoimentos, não seriam provados os factos vertidos nos pontos 5 e 6 da Base
instrutória. Não seriam provados os prejuízos supostamente causados pela não
celebração dos Contratos. Não existiria o crédito cedido ao Autor.
XXVI. A admissibilidade de tais depoimentos, destituídos da indicação da
respectiva razão de ciência, põe em crise a confiança no poder judicial, que só
se consegue obtendo o respeito e total confiança dos cidadãos no seu poder
judicial, podendo mesmo considerar-se, por essa razão, contrária à ordem
pública.
XXVII. Estes princípios relativos à produção da prova testemunhal, são por isso
princípios de Direito geral ou comum, aplicáveis em sede de direito processual
civil e comuns a todo o Estado de Direito que nos termos do Artigo 8.º, nº1 da
Constituição «fazem parte integrante do direito português.».
XXVIII. A interpretação dos princípios da prova livre e da livre apreciação da
prova, adoptada nos presentes autos, segundo a qual a inexistência de declaração
das razões de ciência não compromete a admissibilidade dos depoimentos, nem a
admissibilidade de valoração desses depoimentos, mostra-se assim
inconstitucional por violar o art.º 2º, 3º nºs 2 e 3, 8.º, nº 1, 20º, nº 4 e
202º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação
ventilada no Acórdão recorrido, segundo a qual, o Tribunal é livre de apreciar
os depoimentos destituídos de razão de ciência e a falta de menção e
inexistência de declaração dessas razões de ciência das testemunhas, não
determina a inadmissibilidade de valoração da prova assim produzida (pressupondo
o «regime do depoimento» previsto no art.º 683º, nº 1, como meramente indicativo
da credibilidade do depoimento, possibilitando a valoração de tais depoimentos
ao abrigo do art.º 655º, ambos do Código de Processo Civil) e em consequência,
ser o mesmo revogado, assim se fazendo sã e serena justiça.”
O recorrido contra-alegou, sustentando que o Tribunal não deveria conhecer deste
recurso, atento o cariz instrumental do recurso constitucional, e pugnando pela
sua improcedência, para a hipótese de ser conhecido o seu mérito.
*
Fundamentação
1. Da idoneidade do objecto do recurso
A recorrente pediu que o Tribunal Constitucional se pronunciasse sobre a
constitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova em processo civil
(vertido no artigo 655.º, do C.P.C.), na interpretação segundo a qual é
admissível a valoração de prova testemunhal destituída da indicação concreta da
respectiva razão de ciência.
O recorrido defendeu que não deveria ser conhecido o mérito deste pedido, uma
vez que o recurso constitucional tem natureza instrumental e a decisão recorrida
apesar de ter sustentado a constitucionalidade daquela interpretação, tinha
acrescentado que a razão de ciência das testemunhas em causa, apesar de não se
encontrar indicada no registo dos seus depoimentos, decorria de elementos
constantes no processo.
É certo que, tendo o recurso constitucional natureza instrumental, este Tribunal
só deve conhecer do seu mérito quando o juízo de constitucionalidade a efectuar
se repercuta utilmente sobre o sentido da decisão recorrida, não servindo este
recurso para dilucidar questões meramente académicas.
Contudo, pretendendo a recorrente que se verifique da constitucionalidade da
interpretação normativa segundo a qual é possível ao julgador, em processo
civil, valorar os depoimentos testemunhais donde não conste a indicação da sua
razão de ciência, um eventual juízo de inconstitucionalidade que recaia sobre
tal interpretação obrigará à reformulação da decisão recorrida, quanto à
valoração daqueles depoimentos, uma vez que esta admitiu a falta dessa
indicação.
O facto do tribunal recorrido acrescentar que, no caso concreto, a razão de
ciência das testemunhas em cujo depoimento tal dado foi omitido, poder ser
extraída de outros elementos do processo, não é susceptível de continuar a
fundamentar este segmento da decisão recorrida, perante o juízo de
inconstitucionalidade peticionado.
Daí a utilidade do presente recurso.
2. Do mérito do recurso
O tema deste recurso situa-se no domínio da valoração da prova testemunhal em
processo civil.
Para enquadramento da questão de constitucionalidade colocada neste recurso,
importa relembrar o ocorrido neste processo relativamente à prova testemunhal em
causa.
Na fase da produção de prova foi expedida carta rogatória a Moçambique para
inquirição de testemunhas, tendo em 29-9-2000 e em 6-10-2000 sido realizada esta
diligência no Tribunal da Cidade de Maputo, onde prestaram depoimento D., E.,
F., G., H., I., J., L. e M..
O depoimento de algumas destas testemunhas, nomeadamente o de D., J., L.e M.,
foi apontado como fundamento para a decisão da matéria de facto, quer em 1ª
instância, quer no acórdão do Tribunal da Relação que decidiu a impugnação
daquela decisão.
O recorrente defendeu perante o Supremo Tribunal de Justiça que os depoimentos
destas testemunhas não podiam ser valorados, uma vez que do registo escrito do
seu depoimento não constava a razão de ciência destas testemunhas.
O acórdão recorrido, admitindo essa omissão, sustentou que a mesma não impedia
que o julgador valorasse livremente tais depoimentos como meio de prova.
É este critério cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.
Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio
geral enunciado no artigo 655.º do C.P.C. o depoimento testemunhal é hoje um
meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (em tempos recuados os
depoimentos testemunhais já estiveram sujeitos a regimes de predominância do
sistema da prova legal, sendo muitas vezes valorados em função de factores
meramente quantitativos), devendo este avaliá-lo em conformidade com as
impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas
resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência (sobre o
conteúdo e limites deste princípio, vide TEIXEIRA DE SOUSA, em “A livre
apreciação da prova em processo Civil”, em Scientia Iuridica, tomo XXXIII
(1984), pág. 115 e seg., e AROSO LINHARES, em “Regras de experiência e liberdade
objectiva do juízo de prova – convenções e limites de um possível modelo
teorético”, ed. de 1988, da Coimbra Editora).
A adopção do sistema romano da “prova livre” privilegia a obtenção da verdade
material dos factos, em detrimento da certeza do resultado da prova que preside
ao sistema da “prova legal”.
Mas a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária
das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do
resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.
Na avaliação da prova testemunhal a fonte do conhecimento dos factos narrados
pela testemunha é um elemento da maior importância para o julgador aferir da
credibilidade do relato (vide, neste sentido, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e
SAMPAIO E NORA, em “Manual de processo civil”, pág. 624-625, da 2ª ed., da
Coimbra Editora, ANSELMO DE CASTRO, em “Direito processual civil declaratório”,
vol. III, pág. 341-342, da ed. de 1982, da Almedina, PAIS DO AMARAL, em “Direito
processual civil”, pág. 304, da 5.ª ed., da Almedina, e JORGE LOURENÇO MARTINS,
em “O depoimento testemunhal em processo civil”, pág. 69-71, da ed. do Autor de
1988), defendendo este último a inexistência jurídica do depoimento que não
contenha qualquer referência à razão de ciência).
Já nas Ordenações, regulando o ofício dos Enqueredores, se dispunha
relativamente à inquirição das testemunhas:
“E bem assi perguntarão declaradamente polo que sabem dos artigos…E se disserem
, que sabem alguma cousa daquillo, porque são perguntados, perguntem-lhes como o
sabem. E se disserem, que o sabem de vista, perguntem-lhes em que tempo e lugar
o viram, e se stavam ahi outras pessoas, que o vissem. E se disserem que o sabem
de ouvida, perguntem-lhes a quem o ouviram, e em que tempo e lugar. E todo o que
disserem, façam screver, fazendo-lhes todas as outras perguntas, que lhes
pareçam necessárias, per que melhor e mais claramente se possa saber a verdade”
(In. Ordenações Filipinas, Livro I, título LXXXVI, § 1º, reproduzindo o § 2º, t.
65, do Livro 1.º, das Ordenações Manuelinas).
O Código Civil de 1867, que regulou a prova testemunhal, nos seus artigos 2506.º
e seguintes, previa que a “força probatória dos depoimentos será avaliada tanto
pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que
merecerem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou
não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relações com as
partes” (artigo 2514.º), sendo o referido conhecimento que as testemunhas
mostrarem ter dos factos, nada mais que a razão da sua ciência (vide, neste
sentido, Cunha Gonçalves, em “Tratado de direito civil em comentário ao Código
Civil Português”, vol. XIV, pág. 372-373, da ed. de 1940, da Coimbra Editora).
E o Código de Processo Civil de 1939, que assumiu a regulamentação da produção
da prova testemunhal, ao contrário do anterior Código de Processo Civil de 1876,
retomando, curiosamente, a formulação das Ordenações, fez constar no artigo
641.º :
“A testemunha será interrogada sobre os factos incluídos no questionário que
tiverem sido articulados pela parte que a ofereceu, e deporá com precisão,
indicando a razão da ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o
conhecimento dos factos.
…
§ 2.º A razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível,
especificada. Se disser que sabe por ver, há-de explicar em que tempo e lugar
viu o facto, se estavam aí outras pessoas que também vissem e quais eram; se
disser que sabe por ouvir, há-de indicar a quem ouviu, em que tempo e lugar, e
se estavam aí outras pessoas que também o ouvissem e quais eram.”.
Alberto dos Reis explicou assim esta exigência legal:
“Tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um
elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do
depoimento…Desceu a lei a estas minúcias, porque uma vez destruída ou abalada a
razão da ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido;
e para a parte contrária poder atacar a razão da ciência e o tribunal poder
avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as
condições e circunstâncias especiais de que a testemunha se socorre para
justificar o seu conhecimento” (In “Código de Processo Civil anotado”, vol. IV,
pág. 422, da ed. de 1951, da Coimbra Editora).
A reforma de 1961 do Código de Processo Civil determinou que o regime do
depoimento testemunhal passasse a constar do artigo 640.º, e suprimiu a 2ª parte
do § 2º do anterior artigo 641.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 640.º, apenas
que “a razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível,
especificada e fundamentada”.
O Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de Maio de 1967, que introduziu no Código de
Processo Civil as adaptações exigidas pela entrada em vigor do Código Civil de
1966, transpôs o regime do depoimento testemunhal para o artigo 638.º, dando-lhe
a redacção actual que é a seguinte:
“A testemunha é interrogada sobre os factos incluídos no questionário, que
tenham sido articulados pela parte que a ofereceu, e depois deporá com precisão,
indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o
conhecimento dos factos; a razão de ciência invocada será, quanto possível,
especificada e fundamentada”.
Era este também o preceito que se encontrava em vigor na República Popular de
Moçambique nas datas em que foram efectuadas as inquirições em causa, uma vez
que após a declaração de independência deste Estado, o Código de Processo Civil
Português manteve-se em vigor na redacção que lhe havia sido conferida pelo
Decreto-Lei n.º 47.690, de 11 de Maio de 1967, sendo certo que o cumprimento das
cartas rogatórias deve ser feito segundo a lei do tribunal rogado, nos termos do
artigo 7.º, n.º 1, do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a
República Portuguesa e a Republica Popular de Moçambique, assinado em 12 de
Abril de 1990, e aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da
República n.º 7/91, de 14 de Fevereiro, e que entrou em vigor em 22 de Fevereiro
de 1996.
A lei aplicada no cumprimento da carta rogatória de tomada do depoimento a
diversas testemunhas não foi, pois, diferente da lei nacional vigente, pelo que
não faz qualquer sentido a invocação pela recorrente duma pretensa violação do
princípio da legalidade e da independência do Estado Português.
Apesar do preceituado na legislação ordinária, do registo escrito dos
depoimentos das testemunhas ouvidas neste processo no Tribunal da Cidade de
Maputo, por carta rogatória, conforme admitiu a decisão recorrida, não consta a
indicação da sua razão de ciência.
Se este dado é um elemento muito importante para o julgador poder aferir da
credibilidade dos depoimentos, será que a valoração de prova testemunhal que foi
produzida sem essa indicação concreta afronta alguma exigência constitucional?
Nesta matéria o parâmetro constitucional que deve ser ponderado é o que exige
que os processos em tribunal, incluindo o processo civil, tenham um procedimento
equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.).
O due process é o processo cujas regras de tramitação obedecem aos princípios
materiais da justiça, cuja densificação tem vindo a ser realizada
casuisticamente pelo Tribunal Constitucional, recorrendo muitas vezes à
enunciação de sub-princípios, com particular atenção à jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em torno do artigo 6.º, da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, onde também se consagrou expressamente o direito
a um processo equitativo.
No domínio das proibições de valoração da prova, em processo civil, tem sido
defendida a aplicação analógica do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da C.R.P.,
sempre que as provas sejam obtidas através de meios violadores dos direitos
fundamentais (vide, neste sentido, TEIXEIRA DE SOUSA, na ob. cit., pág. 140,
ISABEL ALEXANDRE, em “Provas ilícitas em processo civil”, pág. 233 e seg., da
ed. de 1998, da Almedina, PAULA COSTA E SILVA, em “Saneamento e condensação no
novo Processo Civil”, em “Aspectos do novo Processo Civil”, pág. 255-256, da ed.
de 1997, da Lex, e JOSÉ JOÃO ABRANTES, em “Prova ilícita”, em “Revista
Jurídica”, pág. 35-36).
Além destes casos, a exigência constitucional de uma equidade processual
orientada para a realização duma justiça material também pode não permitir a
valoração de meios de prova manifestamente prejudiciais ao apuramento da verdade
dos factos (v.g. as antigas ordálias).
Neste caso, estamos apenas perante o incumprimento duma regra procedimental da
produção de um meio de prova em processo civil, destinando-se essa regra a
permitir um melhor apuramento da verdade. Com efeito, indicando a testemunha a
fonte do seu conhecimento dos factos por ela relatados, o juiz poderá mais
facilmente aferir da credibilidade desse relato.
Ora, a protecção ao apuramento da verdade dos factos não exige, necessariamente,
que o incumprimento duma regra procedimental de produção da prova, destinada a
facilitar a aferição do seu valor, seja sancionado com a impossibilidade da sua
apreciação, uma vez que, mesmo perante aquele incumprimento, sempre a prova
deficientemente produzida poderá continuar a ter alguma utilidade na descoberta
da verdade material, não impedindo que o juiz cumpra integralmente o dever de
fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Independentemente do juízo de constitucionalidade que possa ser formulado sobre
a solução que se encontre para a falta de conhecimento pelo julgador da razão de
ciência do depoimento testemunhal, a mera falta da indicação pela testemunha no
seu depoimento das fontes do conhecimento dos factos por ela relatados, não
determina inelutavelmente que o julgador não possa aperceber-se das razões da
ciência revelada. Não só essas razões poderão ser retiradas de outros elementos
do processo (como a decisão recorrida diz suceder no caso sub iudice), como elas
poderão estar implícitas nos próprios factos testemunhados ou resultarem da
natureza da relação existente entre as partes e a testemunha.
Daí que não seja possível dizer que o incumprimento daquela regra procedimental
prejudique necessariamente o apuramento da verdade e o cumprimento do dever de
fundamentação cabal das decisões jurisdicionais.
Deste modo conclui-se que a atribuição ao juiz do poder de livremente continuar
a apreciar o valor do depoimento em que a testemunha não indicou a sua razão de
ciência, não põe em causa a exigência constitucional de um processo equitativo,
constante do artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., nem qualquer outro parâmetro
constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional, por B., S.A., do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
proferido nestes autos em 16-10-2008.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Maio de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos