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Processo n.º 607/08
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I. Relatório
1.
Por acórdão de 28 de Maio de 2008, o Tribunal Central Administrativo Norte
decidiu conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Ministério
Público da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga de 12 de Junho
de 2007 e julgou procedente a acção administrativa especial instaurada contra o
Município de Vizela. Em consequência, o tribunal anulou as impugnadas
deliberações da Câmara Municipal de Vizela, de 6 de Dezembro de 2004, que
elaborou e remeteu à Assembleia Municipal as opções do plano e orçamento para
2005, e a da Assembleia Municipal de Vizela, de 22 de Dezembro de 2004, que
aprovou as opções do plano e orçamento para 2005.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“ [...]
A Lei 24/98, de 26 de MAI, que aprovou o Estatuto do Direito de Oposição, dispõe
nos seus artºs 1º a 5º, do seguinte modo:
[…]
Para além disso, estabelece o artº 53º-2-b) da Lei 169/99, de 18.SET, na
redacção dada pela Lei 5-A/02, de 11.JAN, o seguinte:
[…]
Tais disposições legais regulam os termos do exercício dos direitos de oposição,
de informação e de consulta prévia, e respectiva titularidade, sendo que o
direito de oposição, cujo conteúdo vem enunciado no artº 2.º, é conferido quer
aos partidos políticos quer aos grupos de cidadãos eleitores, nos termos dos nºs
1 a 3 do artº 3.º; o direito à informação, cujo conteúdo e modo de ser prestado
vem desenhado no artº 4.º, é conferido a todos os titulares do direito de
oposição, ou seja aos partidos políticos e aos grupos de cidadãos eleitores; o
direito de consulta prévia, respeitante às matérias elencadas no artº 5.º,
designadamente orçamental, é atribuído unicamente aos partidos políticos; e,
finalmente, a competência em matéria de aprovação das opções do plano e da
proposta de orçamento, bem como as respectivas revisões.
Perante tal enquadramento legal, a sentença recorrida foi do entendimento no
sentido de considerar não ter sido atribuído aos grupos de cidadãos eleitores o
direito de consulta prévia.
Contra tal entendimento, argumenta o Recorrente, por um lado, com a remissão
constante do nº 4 do artº 5.º para o nº 2 do artº 4.º, daquele Lei, a qual visa
claramente alargar aos demais titulares do direito de oposição o dever de
consulta prévia; por outro lado, que compreendendo o direito de oposição, a
possibilidade de crítica das orientações políticas dos órgãos executivos das
autarquias locais, fará todo o sentido que a todos os seus titulares seja
garantido, de forma objectiva, o exercício daquela actividade, designadamente
através da consulta prévia em aspectos essenciais para a vida de cada município,
como o são as questões suscitadas em torno dos elementos previsionais
mencionados no n.º 3 do artigo 5º do diploma legal em análise, não podendo
justificar-se que, numa situação hipotética, seja de conceder a consulta prévia
a um partido que apenas elege um membro da Assembleia Municipal e negá-lo ao
grupo de cidadãos que seja em número de mandatos a força mais importante da
oposição nesse Município; da mesma forma, não se vê por que razão seria de negar
a aplicação deste direito numa situação bipolarizada, em que o grupo de cidadãos
eleitores fosse a única força titular do direito de oposição; e, finalmente, que
podendo ambos discutir e aprovar o plano de actividades e orçamento no
exercício, por parte da assembleia municipal, das competências a este órgão
reconhecidas pelo artigo 53.º, n.º 2, alínea b) da Lei nº 169/99, de 18 de
Setembro, não se descortina o motivo, com base no qual, se reconhece a
titularidade do direito de consulta prévia aos partidos e não aos grupos de
cidadãos.
Vejamos, então.
Com referência àquela remissão, atentos os termos enunciados pelo nº 4 do art.
5.º, somos de considerar que a mesma é feita tão-só quanto ao modo de ser
facultado o exercício do direito de consulta prévia, que será o mesmo quanto às
informações, no âmbito do direito de informação, sendo que num e noutro caso,
tal será efectuado com relação aos titulares dos respectivos direitos, não
fazendo sentido que com tal remissão se pretendesse atribuir o direito de
consulta prévia aos titulares do direito de informação.
Relativamente à circunstância do direito de oposição compreender a possibilidade
de crítica das orientações políticas dos órgãos executivos das autarquias
locais, pelo que fará todo o sentido que a todos os seus titulares seja
garantido o exercício daquela actividade, designadamente através da consulta
prévia em aspectos essenciais para a vida de cada município, como o são as
questões suscitadas em torno dos elementos previsionais mencionados no n.º 3 do
artigo 5.º do diploma legal em análise, impõe-se referir que uma coisa é o
direito de oposição, cujo conteúdo vem desenhado no artº 2.º e que é conferido
quer aos partidos políticos quer aos grupos de cidadãos eleitores, outra coisa é
o direito de consulta prévia, sendo verdade também que o exercício daquele
direito pode exercitar-se por outras formas sem necessidade do recurso à figura
do direito de consulta prévia.
Acrescenta, porém, o Recorrente que, não pode justificar-se que, numa situação
hipotética, seja de conceder a consulta prévia a um partido que apenas elege um
membro da Assembleia Municipal e negá-lo ao grupo de cidadãos que seja em número
de mandatos a força mais importante da oposição nesse Município; da mesma forma,
não se vê por que razão seria de negar a aplicação deste direito numa situação
bipolarizada, em que o grupo de cidadãos eleitores fosse a única força titular
do direito de oposição.
Com relação a tal argumentação pode colocar-se a questão de se saber se a
denegação do direito de consulta prévia a grupos de cidadãos eleitores em
confronto com os partidos políticos, efectuada pela Lei 24/98, e perante a
circunstância de a ambos a lei eleitoral facultar quer o direito de participação
política, no que concerne às autarquias locais, quer o direito de oposição,
configurará alguma inconstitucionalidade daquele diploma legal, maxime por
violação do princípio democrático, do princípio da igualdade, do princípio da
liberdade de associação, do princípio da participação na vida pública,
consagrados nos artºs 10.º, 13º, 46º, 51º e 48º da CRP.
Com efeito, dispõem estes normativos constitucionais, o seguinte:
[…]
Do enunciado nestes normativos constitucionais e dos princípios deles
decorrentes parece poder inferir-se que os partidos políticos não constituem o
monopólio da organização da expressão da vontade política; que a dimensão
democrática exige a explícita proibição de discriminações na participação no
exercício do poder político, designadamente quanto ao modo, âmbito e conteúdo,
do exercício deste no que diz respeito às autarquias locais; e que constituem
específicos direitos fundamentais de igualdade, entre outros, os direitos de
participação política e de entre estes o direito de igualdade de participação na
vida pública. (Cfr. neste sentido vital moreira e gomes canotilho, in CRP
Anotada, 1, pp. 283 e segs.).
Ora, perante o enunciado de tais princípios constitucionais, pode legitimamente
colocar-se a questão de se saber se a atribuição do direito de consulta prévia
unicamente aos partidos políticos representados nos órgãos deliberativos das
autarquias locais sem a concomitante atribuição desse direito aos grupos de
cidadãos eleitores e sabido que quer a uns quer a outros é facultado o direito
de se constituírem e de participarem na vida política autárquica e
designadamente de se submeterem a escrutínio político e em consequência poderem
ser eleitos e tomarem assento nos órgãos políticos autárquicos, não configurará
violação daqueles princípios constitucionais, maxime do princípio da igualdade
de participação na vida pública.
Com efeito, assistindo a ambas as associações o direito de participação
política, nos termos referidos, em sede de Estatuto do Direito de Oposição, não
se vislumbram razões válidas legitimadoras dum desenho legal divergente do seu
direito de oposição, entendido este em sentido lato, de modo a abranger quer o
direito de oposição strito sensu quer o direito de informação quer, ainda, o
direito de consulta prévia, no que a elas concerne quanto à esfera de actuação
política no domínio autárquico.
Doutra forma, e parafraseando a posição do Recorrente não se entende como
justificável que, numa situação hipotética, seja de conceder a consulta prévia a
um partido que apenas elege um membro da Assembleia Municipal e negá-lo ao grupo
de cidadãos que seja em número de mandatos a força mais importante da oposição
nesse Município nem se vislumbra razão alguma para negar a aplicação deste
direito numa situação bipolarizada, em que o grupo de cidadãos eleitores fosse a
única força titular do direito de oposição.
Assim sendo, aceitando tal raciocínio, somos do entendimento de que a denegação
do direito de consulta prévia conferida pela Lei 24/98, de 26.MAI, a grupos de
cidadãos eleitores, em confronto com a atribuição de tal direito aos partidos
políticos, se configura como inconstitucional, porque violadora do princípio da
igualdade de participação na vida pública.
Perante tal entendimento, mostra-se prejudicada a apreciação do último
fundamento invocado pelo Recorrente nesta sede.
Em todo o caso, sempre se dirá que, quanto à discussão e aprovação o plano de
actividades e orçamento no exercício, por parte da assembleia municipal, no
âmbito das competências a este órgão reconhecidas pelo artigo 53.º, n.º 2,
alínea b) da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, não se descortina qualquer
relação entre o exercício dessa competência por parte daquele órgão e pelos
membros dele componentes e o direito de consulta prévia a atribuir a grupos de
cidadãos eleitores, sendo certo que a discussão e aprovação daqueles documentos
previsionais é efectuada pelos membros eleitos do órgão assembleia municipal e
não pelos partidos políticos e/ou grupos de cidadãos eleitores.
Perante tudo quanto se deixa sumariamente explanado, somos, pois de concluir,
ter sido denegado ao MIV o direito de consulta prévia.
Ora, a violação de tal direito configura, no âmbito da Teoria Geral do Acto
Administrativo, um vício de forma, sancionável, em sede de consequências
jurídicas, pela anulabilidade — Cfr. Art. 135º do CPA.
Assim, padecendo as deliberações impugnáveis do vício de forma que se deixa
assinalado, as mesmas são anuláveis.
[...]”
2.
Deste acórdão foi interposto pelo Ministério Público recurso obrigatório, nos
termos do artigo 70º nº 1 alínea a) da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro), por ter
sido “recusada, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma do artigo 3.º,
n.º 3 da Lei n.º 24/98 de 26/05”, recurso que foi admitido no tribunal
recorrido.
Oportunamente alegou o Ministério Público, concluindo:
“A norma constante do artigo 5º, nº 3, da Lei nº 24/98, de 26 de Maio,
interpretada em termos de nela se restringir aos partidos políticos a
titularidade do direito de consulta prévia, nomeadamente em matéria de plano e
orçamento, aos partidos políticos representados em órgãos meramente
deliberativos das autarquias locais, excluindo-o quanto aos grupos de cidadãos
eleitores, ainda que naqueles representados, é inconstitucional, por violação do
princípio da igualdade de participação política, decorrente dos artigos 13º e
48º da Constituição da República Portuguesa.”
Por seu turno, o recorrido Município de Vizela apresentou contra alegação, que
concluiu do seguinte modo:
“[…]
1) O Legislador ao conferir expressamente a titularidade do direito de oposição
aos grupos de cidadãos eleitores entendeu porém reservar o direito de consulta
prévia previsto no art. 5.º, n.º 3, apenas aos partidos políticos, excluindo por
isso os grupos de cidadãos eleitores.
2) Só aos partidos políticos, porque concorrem para a livre formação e
pluralismo da expressão da vontade popular e organização do poder político,
contribuindo para o esclarecimento plural e exercício das liberdades políticas
dos cidadãos, estudando e debatendo os problemas da vida política, económica e
social e fazendo a critica da actividade dos órgãos executivos das autarquias,
conforme resulta da Lei dos Partidos Políticos e em concretização da mesma, é
concedido o direito de audiência previsto no art. 5.º nº 3 do Estatuto do
Direito de Oposição.
3) A Lei 24/98 não consagra um tratamento idêntico para os partidos e aos
movimentos dos cidadãos, mas este tratamento não resulta da violação do
principio da igualdade – constitucionalmente consagrado – mas da diferente
natureza e fins dos partidos e dos movimentos que justificam a concessão de um
tratamento diferenciado.
4) Os partidos políticos gozam de um estatuto constitucional, reconhecendo-lhe
um direito fundamental de participação política, enquanto pessoa jurídica
(distinta dos seus membros) aglutinadora de interesses de certas classes e
grupos sociais que contribuem para a formação da vontade popular;
5) Resulta da Lei que, apesar de se consagrar uma tendencial “igualdade de
direitos” entre os movimentos e os partidos, essa equiparação não é total nem
lhes são reconhecidos os mesmos direitos e deveres dos partidos políticos.
6) Esta diferença de tratamento encontra-se plasmada no art. 5.º n.º 3 do
Estatuto do Direito de Oposição porque aos movimentos de cidadãos falta a
existência de um elemento organizatório com carácter de permanência, distinta
dos seus membros e que não se esgota num acto eleitoral que caracteriza
exactamente os partidos políticos;
7) A falta de órgãos internos, democraticamente eleitos, representativos do
Movimento inviabiliza que lhe seja concedido o direito de audiência conforme o
mesmo foi configurado legalmente (o direito de audiência é concedido ao Partido
e não os membros que elegeu para a Assembleia Municipal);
8) O princípio da igualdade não impede a existência de tratamentos diferenciados
na Lei, impede apenas a existência de diferenciações sem fundamento material
bastante ou sem qualquer justificação razoável;
9) A razão fundamental para admitir um tratamento diferenciado entre os partidos
e os movimentos é porque os últimos, apesar de fomentadores da participação
democrática dos cidadãos, não são em termos organizatórios e de direitos e
deveres entidades equiparadas aos partidos políticos.
10) O legislador nas várias versões do projecto-lei do Estatuto do Direito de
Oposição, apesar de ter alargado a titularidade do direito de oposição aos
movimentos de cidadãos eleitores, entendeu sempre reservar o direito de consulta
prévia aos partidos políticos;
11) Ou seja, não foi intenção do legislador equiparar totalmente os Movimentos
dos Cidadãos aos Partidos Políticos;
[…]”
II. Objecto do recurso
3.
Como decorre da conclusão da sua alegação, o recorrente visa a apreciação da
norma do n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto do Direito de Oposição, aprovado pela
Lei n.º 24/98, de 26 de Maio [“Os partidos políticos representados nos órgãos
deliberativos das autarquias locais e que não façam parte dos correspondentes
órgãos executivos, ou que neles não assumam pelouros, poderes delegados ou
outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções
executivas, têm o direito de ser ouvidos sobre as propostas dos respectivos
orçamentos e planos de actividade”] interpretada “em termos de nela se
restringir [aos partidos políticos] a titularidade do direito de consulta
prévia, nomeadamente em matéria de plano e orçamento, aos partidos políticos
representados em órgãos meramente deliberativos das autarquias locais,
excluindo-o quanto aos grupos de cidadãos eleitores, ainda que naqueles
representados”. Com efeito, o Ministério Público rectificou, na sua alegação, o
lapso material cometido no requerimento de interposição do recurso, “já que a
norma desaplicada pela decisão recorrida é obviamente a que consta do artigo
5.º, n.º 3, da Lei n.º 24/98, enquanto restringe aos partidos políticos,
representados em órgãos deliberativos das autarquias locais (sem funções
executivas) a titularidade do direito de consulta prévia sobre as propostas
orçamentais e planos de actividade – excluindo-o relativamente aos grupos de
cidadãos eleitores representados nos mesmos órgãos deliberativos, os quais
apenas beneficiariam dos direitos de oposição e informação, nos termos dos
artigos 3º, n.º 3, e 4º do citado diploma legal”. Ora, tendo o presente recurso
sido interposto ao abrigo da alínea a) do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, constitui seu pressuposto a recusa, pelo tribunal recorrido, de
aplicação de norma jurídica, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Cumpre, por isso, verificar previamente se o tribunal recorrido recusou a
aplicação do n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto do Direito de Oposição, aprovado
pela Lei n.º 24/98, de 26 de Maio, com o sentido normativo que o recorrente
submete à apreciação do Tribunal Constitucional.
A decisão recorrida depois de enunciar a questão de se saber se é
inconstitucional “a atribuição do direito de consulta prévia unicamente aos
partidos políticos representados nos órgãos deliberativos das autarquias locais
sem a concomitante atribuição desse direito aos grupos de cidadãos eleitores”
respondeu no sentido de que a “denegação do direito de consulta prévia conferida
pela Lei 24/98, de 26.MAI, a grupos de cidadãos eleitores, em confronto com a
atribuição de tal direito aos partidos políticos, se configura como
inconstitucional, porque violadora do princípio da igualdade de participação na
vida pública.”
Esta decisão foi proferida no âmbito de uma acção administrativa especial que
tem por objecto a impugnação da deliberação da Câmara Municipal de Vizela que
elaborou e remeteu, à Assembleia Municipal, as opções do plano e orçamento para
2005, e a deliberação da Assembleia Municipal de Vizela que aprovou as opções do
plano e orçamento para 2005. No caso em apreço, estava em causa saber se um
grupo de cidadãos eleitores, representado na assembleia municipal, sem integrar
a câmara municipal, deveria ser ouvido sobre a proposta de orçamento e de plano
de actividades do município.
Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, deve
apreciar-se a conformidade constitucional da norma do n.º 3 do artigo 5.º do
Estatuto do Direito de Oposição, aprovado pela Lei n.º 24/98, de 26 de Maio,
interpretada com o sentido de que não é obrigatório ouvir um grupo de cidadãos
eleitores – unicamente representados na assembleia municipal – sobre a proposta
de orçamento e de plano de actividades do município, por se haver considerado
que apenas os partidos políticos representados na assembleia municipal e que não
façam parte da câmara municipal ou que nela não assumam pelouros, poderes
delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício
de funções executivas, têm o direito de ser ouvidos sobre a proposta de
orçamento e de plano de actividades do município.
A questão que se coloca no presente recurso é, pois, a de saber se é
inconstitucional, por violação princípio constitucional da igualdade de
participação na vida pública, como considerou o tribunal recorrido, a norma do
n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto do Direito de Oposição, aprovado pela Lei n.º
24/98, de 26 de Maio, na interpretação sindicada, na medida em que não confere
aos grupos de cidadãos eleitores representados na assembleia municipal e que não
façam parte da câmara municipal, o direito de serem ouvidos, tal como os
partidos políticos, sobre a proposta de orçamento e de plano de actividades do
município.
III. Fundamentos
4.
O artigo 48.º da Constituição, que tem como epígrafe “Participação na vida
pública”, e se insere no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias
de participação política, estabelece no seu n.º 1 que “[t]odos os cidadãos têm o
direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do
país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos.” A
participação dos cidadãos na vida política a que se refere esta norma
constitucional “exerce-se, desde logo, ao nível da constituição dos órgãos do
poder político (órgãos do Estado, em sentido lato), constitucionalmente
previstos, e da formação das suas decisões. Ela efectiva-se, quer directamente –
a chamada «democracia directa» –, quer através de órgãos representativos,
eleitos pelos cidadãos – a chamada «democracia representativa» (J.J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 4ª
edição, Volume I, em anotação ao n.º 1 do artigo 48.º).
Nas autarquias locais, a participação dos cidadãos na vida política exerce-se
designadamente através das assembleias (órgãos do poder político dotados de
poderes deliberativos) eleitas por sufrágio universal, directo e secreto dos
cidadãos recenseados na área da respectiva autarquia (n.º 2 do artigo 239.º da
Constituição). Por determinação constitucional (n.º 4 do artigo 239.º),
concretizada na Lei orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, que regula a eleição
de titulares para os órgãos das autarquias locais, as candidaturas para a
eleição dos órgãos das autarquias locais podem ser apresentadas por partidos
políticos (e coligações de partidos políticos constituídas para fins eleitorais)
e por grupos de cidadãos eleitores.
Decorre, assim, do estabelecido nas normas constitucionais supra referidas, bem
como do regime consagrado na lei orgânica que regula a eleição de titulares para
os órgãos das autarquias locais, que os cidadãos recenseados na área do
município têm o direito de tomar parte na vida política da autarquia por
intermédio de representantes livremente eleitos para a assembleia municipal,
órgão representativo do município dotado de poderes deliberativos (artigo 251.º
da Constituição), em eleições para as quais podem ser apresentadas listas não só
pelos partidos políticos (e coligações de partidos políticos constituídas para
esse fim), mas também por grupos de cidadãos eleitores.
5.
A participação no poder político nos moldes já referidos efectiva-se não só
mediante o exercício das funções políticas em que ficaram investidos os cidadãos
eleitos, mas também pelo exercício do chamado direito de oposição democrática.
Como sublinham J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da Republica
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 526), o direito de oposição democrática é
uma concretização de outros princípios e direitos fundamentais da Constituição:
o princípio democrático (artigo 2.º e artigo 9.º, alínea b)) e direitos,
liberdades e garantias de participação política, designadamente o direito de
participação na vida pública (artigo 48.º). O direito de oposição democrática,
genericamente consagrado no n.º 2 do artigo 114.º da Constituição, concretiza o
direito de participação na vida pública das minorias assegurando-lhes o direito
a exercer uma oposição democrática ao Governo e aos órgãos executivos das
Regiões Autónomas e das autarquias locais de natureza representativa, nos termos
da Constituição e da lei, traduzida na actividade de acompanhamento,
fiscalização e crítica das orientações políticas (artigo 1.º e n.ºs 1 do artigo
2.º do Estatuto do Direito de Oposição, aprovado pela Lei n.º 24/98). Este
direito de oposição das minorias integra os direitos, poderes e prerrogativas
previstos na Constituição e na lei (n.ºs 2 do artigo 2.º do Estatuto do Direito
de Oposição) sendo, no âmbito das autarquias locais, a sua titularidade
reconhecida aos partidos políticos e aos grupos de cidadãos eleitores
representados nos órgãos deliberativos das autarquias locais, que não estejam
representados no correspondente órgão executivo, e aos partidos políticos e
grupos de cidadãos eleitores que estejam representados nas câmaras municipais,
desde que nenhum dos seus representantes assuma pelouros, poderes delegados ou
outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções
executivas (n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 3.º do Estatuto do Direito de Oposição).
Defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, pág.
294) que poderes idênticos aos atribuídos pela Constituição às minorias na
Assembleia da República são de atribuir às minorias nas Assembleias Legislativas
regionais e mutatis mutandis alguns também às minorias nas assembleias das
autarquias locais “entendendo-se que abrangem também os grupos de cidadãos nelas
representados”. Um dos direitos de oposição (poderes específicos atribuídos às
minorias, nas palavras destes autores na Constituição Portuguesa Anotada, pág.
292), previstos no Estatuto do Direito de Oposição, aprovado pela Lei n.º 24/98,
é o de consulta prévia (artigo 5.º) que consiste, no que se refere às autarquias
locais, no direito de ser ouvido sobre a proposta de orçamento e de plano de
actividades (n.º 3).
Porém, a titularidade deste direito, na interpretação normativa sindicada, só
foi reconhecida aos partidos políticos representados na assembleia municipal e
que não façam parte da câmara municipal, ou que nela não assumam pelouros,
poderes delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo
exercício de funções executivas. Com efeito, ao contrário do que se verifica
quanto ao direito (geral) de oposição e ao direito à informação (artigo 4.º do
Estatuto do Direito de Oposição), o legislador não reconheceu aos grupos de
cidadãos eleitores representados na assembleia municipal e que não façam parte
da câmara municipal, ou que nela não assumam pelouros, poderes delegados ou
outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções
executivas, o direito de ser ouvidos sobre a proposta do orçamento e do plano de
actividades do município; é esta opção legislativa que o tribunal recorrido
entendeu que ofende a Constituição «porque violadora do princípio da igualdade
de participação na vida pública».
6.
O princípio da igualdade (de participação na vida política) não proíbe todas as
distinções, mas apenas aquelas que se afiguram destituídas de fundamento
razoável ou de qualquer justificação objectiva e racional. Dito de outro modo: o
legislador tem margem de livre conformação legislativa, permitindo-lhe a
Constituição efectuar diferenciações desde que estas não sejam material e
racionalmente infundadas.
Mas há que reconhecer aos partidos políticos um papel especial na vida política
do País. Conforme o Tribunal já afirmou (Acórdão n.º 304/2003, publicado na I-A
série do DR de 19 de Julho de 2003), «os partidos são associações de natureza
privada de interesse constitucional e uma peça fundamental do sistema político
(é o próprio Estado a estimular a sua actividade, suportando parte do respectivo
financiamento), pois se lhes atribui – por vezes em exclusivo – a tarefa de
“concorrerem para a organização e para a expressão da vontade popular”». Daí que
a própria Constituição (artigo 51º) «prevê que as exigências que o princípio
democrático traz ao sistema político se estendam às associações privadas de
interesse constitucional, como são os partidos. A vigência prática do princípio
democrático nos partidos apresenta uma dupla vertente: tem uma dimensão
material, que concerne aos direitos fundamentais dos seus filiados e uma
dimensão estrutural, organizativa ou procedimental». É o papel que a
Constituição reserva aos partidos na organização política que impõe
significativas exigências (por exemplo, quanto ao financiamento e fiscalização
de contas, quanto a responsabilidade dos dirigentes, quanto a regras de
organização interna e de funcionamento, para além da personalidade jurídica, da
capacidade adequada à realização dos seus fins e de serem constituídos por tempo
indeterminado) das quais dispensa os simples grupos de cidadãos eleitores.
Seguindo a fórmula sintética proposta por Jorge Miranda, “por partido entende-se
uma associação de cidadãos, constituída a título permanente, para a realização
de objectivos de modelação do Estado e da sociedade através do acesso aos órgãos
de poder, seja este nacional, regional ou local” a qual se distingue dos grupos
de cidadãos que apresentem candidaturas para os órgãos das autarquias locais
“porque estes só subsistem durante os mandatos dos titulares que consigam fazer
eleger” (Manual de Direito Constitucional, Tomo VII, Coimbra, 2007, pág. 160 e
161). Com efeito, os grupos de cidadãos eleitores que apresentem candidaturas a
órgãos das autarquias locais são destinados a durar apenas por certo período – o
da duração dos mandatos dos titulares eleitos – e embora dêem origem a uma
“individualidade distinta”, esta é destituída de personalidade jurídica por
“faltarem todos os necessários elementos de substrato e por causa da existência
muito contingente” (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo VII,
Coimbra, 2007, pág. 197 e 198).
Ora, a substancial diferença que distingue os grupos de cidadãos eleitores dos
partidos políticos justifica uma diferenciação no seu tratamento legal. Na
realidade, é aceitável que a lei reserve a essas associações de natureza privada
e de interesse constitucional, que são uma peça fundamental do sistema político,
um estatuto próprio, distinto das demais organizações, no que respeita ao
funcionamento dos órgãos politicamente eleitos.
Não é, por conseguinte, em razão da acutilância do princípio da igualdade, ainda
que especialmente dirigida à igualdade de participação na vida pública, que pode
verificar-se uma desconformidade constitucional da norma em análise.
Com efeito, como defendem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da
Republica Portuguesa Anotada, 4ª edição, Volume I, pág. 343) o artigo 48.º da
Constituição ao garantir a igualdade de participação na vida pública reafirma o
princípio geral de igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Para
estes autores (Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 4ª edição, Volume
I, pág. 337) o que o princípio da igualdade na sua “dimensão democrática” exige
é a “explícita proibição de discriminações (positivas e negativas) na
participação no exercício do poder político, seja no acesso a ele (sufrágio
censitário, etc.), seja na relevância dele (desigualdade de voto), bem como no
acesso a cargos públicos (cfr. artigos 10º n.º 1, 48.º e 50.º)”.
7.
Todavia, não se vislumbram razões que possam levar a não atribuir aos grupos de
cidadãos eleitores, quando representados na assembleia municipal, mas que não
façam parte da câmara municipal, o direito de ser ouvidos sobre a proposta de
orçamento e plano de actividades do município (n.º 3 do artigo 5º do Estatuto do
Direito de Oposição).
Com efeito, as características próprias deste tipo de grupos, designadamente a
falta de personalidade ou a duração por tempo determinado, não impediram o
legislador de lhe atribuir o direito (geral) de oposição (n.º 3 do artigo 3.º do
Estatuto do Direito de Oposição) e até o direito à informação, ou seja, o
direito de ser informado regular e directamente pela câmara municipal sobre o
andamento dos principais assuntos de interesse público relacionados com a sua
actividade, informações estas que, nos termos do artigo 4.º do Estatuto do
Direito de Oposição, devem ser prestadas directamente e em prazo razoável às
suas estruturas representativas. Tendo os grupos de cidadãos eleitores
representados na assembleia municipal, que não façam parte da câmara municipal,
o direito de acompanhar, fiscalizar e criticar as orientações políticas da
câmara municipal, não há razão para não lhes conceder o específico direito de
serem ouvidos sobre os documentos de gestão previsional anual, que é, sem
dúvida, essencial para o exercício da oposição democrática. Na verdade, contendo
o orçamento a previsão das receitas e das despesas e o plano de actividades
(grandes opções do plano) o projecto de investimentos e das actividades a
realizar pelo município em determinado ano, a audição sobre as respectivas
propostas é o momento adequado a que a oposição se pronuncie sobre as
orientações políticas do órgão executivo da autarquia. É, assim, este o momento
para os ditos grupos, tal como os partidos que não integram a câmara, tentarem
influenciar a elaboração do documento, ou seja, a elaboração da proposta a
submeter a aprovação. Aliás, é a própria lei que reconhece ser esse o momento
decisivo, quando concede aos partidos políticos, que não integram a câmara,
aquele direito.
Pode, assim, concluir-se que negando aos grupos de cidadãos eleitores o direito
de consulta prévia, nas circunstâncias já referidas, a norma aqui impugnada
restringe de forma intolerável o exercício do direito de oposição democrática
que, conforme se viu já, a Constituição confere a tais grupos, quando
minoritários nos órgãos das autarquias locais, nos termos das conjugadas
disposições do n.º 2 do artigo 114º e n.º 4 do artigo 239º da Constituição.
Em suma, a norma do n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto do Direito de Oposição,
aprovado pela Lei n.º 24/98 de 26 de Maio, interpretada com o sentido de que
apenas os partidos políticos representados na assembleia municipal e que não
façam parte da câmara municipal, ou que nela não assumam pelouros, poderes
delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício
de funções executivas, têm o direito de ser ouvidos sobre a proposta de
orçamento e de plano de actividades é inconstitucional, por restringir
desrazoável e injustificadamente o direito de oposição democrática dos grupos de
cidadãos eleitores quando minoritários nos órgãos das autarquias locais, direito
esse que resulta das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 114º e o n.º 4 do
artigo 239º da Constituição.
IV. Decisão
8.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Julho de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos