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Processo n.º 202/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – O representante do Ministério Público no Supremo Tribunal
Administrativo recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual redacção (LTC), do Acórdão proferido naquele Supremo, de 21 de Janeiro de
2009, no qual se recusou, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação
da norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro.
2 – Alegando, no Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto
concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
“1.º
Os privilégios creditórios gerais, mobiliários e imobiliários, não
se configuram actualmente como direitos reais de garantia, face ao disposto na
lei civil, estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de
prevalência sobre as garantias gerais que incidam sobre tais bens.
2.º
A norma constante do artigo 7.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º
437/78, de 28/12, ao conferir eficácia real ao privilégio imobiliário geral,
outorgado aos créditos do IEFP, abrangendo todos os bens imóveis existentes no
património da entidade devedora, susceptível de prevalecer sobre qualquer
hipoteca; ainda que de constituição anterior, afecta o princípio da confiança e
da segurança no comércio jurídico, ao possibilitar a existência de ónus ocultos
sobre o património do devedor, susceptíveis de precludir, em absoluto, um
direito real de garantia, constituído sobre bens determinados, ultrapassando a
regra da prioridade temporal na eficácia das várias garantias.
3.º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida”.
3 – A recorrida A., notificada das alegações do Ministério Público
veio dizer que não pretende contra-alegar.
B – Fundamentação
4 – O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério
Público, por força do disposto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal Administrativo, no processo de reclamação de créditos deduzido por
apenso à execução movida pela A., contra a B., Lda, na parte em que a mesma
decisão desaplicou a norma constante do artigo 7.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º
437/78, enquanto prescreve que prevalece sobre a hipoteca, ainda que de
constituição anterior, o privilégio imobiliário geral outorgado aos créditos por
apoios financeiros concedidos pelo IEFP.
Discreteando sobre a questão, no âmbito do objecto do recurso para
ele interposto, assim discorreu a decisão recorrida:
“(...)
Vem o presente recurso interposto pela reclamante A. da graduação de
créditos efectuada pela Mma. Juíza do TAF de Beja nos presentes autos, com vista
ao pagamento pelo produto da venda do bem penhorado (um imóvel), por não se
conformar com o facto de o crédito reclamado pelo IEFP ter sido graduado
preferencialmente em relação ao seu crédito hipotecário.
Relativamente a tal crédito, entendeu a Mma. Juíza “a quo” na decisão recorrida
que o mesmo gozava de privilégio imobiliário, devendo ser graduado logo após os
créditos referidos no art.º 748.º, n.º 1, alínea a) do CC, como dispõe o artigo
7.º do DL n.º 437/78, de 28/12, e que tal privilégio precedia mesmo a garantia
que o bem penhorado tinha no caso (hipoteca).
Ora, é relativamente sobre este entendimento que a recorrente se não
conforma, alegando que, estando o seu crédito garantido por hipoteca, há-de
gozar de prioridade, na sua graduação, sobre os créditos do IEFP, que beneficiam
apenas de um privilégio imobiliário geral.
E, na verdade, assiste-lhe razão.
Com efeito, estabelece o art.º 7.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28/12,
que “os créditos resultantes dos apoios financeiros concedidos nos termos do
presente diploma gozam das seguintes garantias especiais: …Privilégio
imobiliário sobre os bens imóveis do devedor, graduando-se logo após os créditos
referidos no artigo 748.º do Código Civil nos mesmos termos dos créditos
previstos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho”.
Por sua vez, determina o citado art.º 2.º do Decreto-Lei nº 512/76 de 3/7
que “os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e
respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis
existentes no património das entidades patronais à data da instauração do
processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º
do Código Civil”.
Desde logo, importa referir, como já se fez no acórdão deste Tribunal de
31/1/2008, proferido no recurso n.º 612/07, que “o predito art.º 7.º, al. b) do
Decreto-Lei n.º 437/78 não qualifica o privilégio em causa de especial,
referindo-se, antes, a garantias especiais.
Ora, o privilégio imobiliário, mesmo geral, constitui sempre uma garantia
especial face à garantia geral do património do devedor (cfr. art.ºs 601.º a
614.º do CC).
Por outro lado, o privilégio previsto no citado art.º 2.º do Decreto-Lei n.º
512/76, uma vez que se refere a uma generalidade de bens (os bens imóveis
existentes no património das entidades patronais à data da instauração do
processo executivo) e não a bens certos e determinados com uma relação
específica com a respectiva dívida, é geral e não especial, pelo que não confere
direito de sequela.”.
Por outro lado, o direito de crédito garantido por hipoteca só cede, nos
termos do disposto no n.º 1 do artigo 686.º do CC, perante os créditos que
disponham de privilégio imobiliário especial ou prioridade de registo, e isso
porque dos privilégios creditórios só os especiais, porque envolvidos de
sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se
os gerais a constituir mera preferência de pagamento e sendo apenas susceptíveis
de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns.
Razão por que os direitos de crédito garantidos por hipoteca devem ser
graduados antes dos que sejam garantidos por privilégio imobiliário geral.
Acresce que o Tribunal Constitucional no acórdão 362/2002, de 17/9/02, publicado
no DR, I Série A, de 16/10, declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º do DL 103/80, de 9/5, e
do artigo 2.º do DL 512/76, de 3/7, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos
termos do artigo 751.º do CC, por violação do princípio da confiança ínsito no
princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP.
Ora, sendo os créditos do IEFP, por força do artigo 7.º do DL 437/78, de
28/12, graduados nos mesmos termos dos créditos da Segurança Social, não faria
sentido que a interpretação daquele preceito segundo a qual o privilégio
imobiliário geral nele conferido tem preferência sobre as hipotecas não fosse
também pelas mesmas razões inconstitucional.
Sendo assim, é perfeitamente ajustada a crítica que a recorrente faz à
sentença recorrida, quando defende que o seu crédito hipotecário deve preferir
ao privilégio imobiliário geral.
Pelo que o crédito reclamado pela Fazenda Pública relativo ao Instituto de
Emprego e Formação Profissional, gozando de privilégio imobiliário geral, não
deve ser graduado no lugar em que o foi, já que não prefere ao crédito da
recorrente garantido por hipoteca (cfr. art.º 686.º, n.º 1 do CC)”.
5 - Este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre a
constitucionalidade da norma sindicanda, tendo-a julgado inconstitucional por
violação do disposto no artigo 2.º da Constituição, na exacta dimensão normativa
que se encontra subjacente ao juízo de censura constitucional lavrado na decisão
recorrida.
Fê-lo no acórdão n.º 387/02 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), no
qual decidiu, em sede de reclamação para a conferência, confirmar a decisão
sumária prolatada nesses autos, com o seguinte teor:
“(...)
2. É certo ter o acórdão recorrido, para se chegar àquele juízo de
inconstitucionalidade, ponderado o seguinte:
‘O artº 7°, b) do DL n° 437/78, de 28/12, ao criar um privilégio imobiliário
geral que prefere à hipoteca nos termos do artº 751° do CC, está realmente
inquinado de inconstitucionalidade, desde logo por violação do princípio do
Estado de Direito democrático. Com efeito, o artº 2° Constituição estatui que a
República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania
popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no
respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e
na separação e interdependência de poderes, visando a realização de democracia
económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
E como referem Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, na
Constituição da República Portuguesa Comentada, pág. 72:
«Trata-se de um verdadeiro princípio fundamental, dado o seu cariz congregador
de inúmeros outros princípios (ou subprincípios) e regras, com destaque para os
seguintes:...da protecção contra o arbítrio, da tutela da confiança...».
Ora o artº 7°, b) em referência, mediante a aplicação do regime do artº 751° do
CC, confere ao privilégio creditório imobiliário geral a natureza de verdadeiro
direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no
património da entidade devedora dos apoios financeiros do IEFP no âmbito do
emprego e formação profissional, atribuindo-lhe preferência sobre a hipoteca da
A.. Não estando tal privilégio imobiliário geral sujeito a registo, viola, ao
neutralizar a garantia real da hipoteca registada, o princípio da confiança, a
segurança jurídica que o registo predial visa garantir, consubstanciando um ónus
oculto e configurando uma arbitrariedade com que a A. não podia razoavelmente
contar.
Podia de resto o IEFP ter registado a hipoteca legal conferida pela al. c) do
artº 7°, pelo que nem sequer o privilégio imobiliário geral lhe era
imprescindível, sendo, por conseguinte, também violador do artº 18°, n° 2 da Lei
Fundamental, que estabelece o princípio da proporcionalidade ou da proibição de
excesso, ao comandar que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e
garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos’
E daí a conclusão de que, ‘no que tange à graduação dos créditos pelo produto
dos bens imóveis apreendidos para a massa falida, não pode portanto o crédito do
IEFP ficar à frente do crédito da A., S.A. e dos créditos dos trabalhadores’.
3. Ora, ao mesmo juízo de inconstitucionalidade chegou o Tribunal
Constitucional, a propósito doutras normas, em vários acórdãos, e podem
aproveitar-se perfeitamente in casu os fundamentos usados nesses arestos (cfr.,
por todos, o recente acórdão nº 226/02, inédito, onde se identificam os
arestos). Daí ser simples a questão a resolver.
Há, pois, que remeter para tais fundamentos e aplicar a doutrina expressa em
tais acórdãos, a propósito do privilégio imobiliário geral e da sua preferência
à hipoteca, nos termos do artigo 751º, do Código Civil, não se vendo motivo para
divergir só porque se trata aqui de norma distinta das que versaram aqueles
acórdãos.
Com o que não merece provimento o presente recurso.”
Acolhendo aqui a bondade de tais fundamentos decisórios, restará
reiterar in casu idêntico juízo de inconstitucionalidade.
C – Decisão
6 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide
negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 12/05/2009
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração anexa)
João Cura Mariano (vencido, nos termos de declaração anexa).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanhei a decisão que fez vencimento, porque considero que não
corresponde a um imperativo constitucional a preferência dos créditos garantidos
por hipoteca sobre os créditos garantidos por um privilégio geral.
A matéria cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador, que
ponderará, consoante os interesses em jogo e o tipo de créditos, a solução mais
adequada de distribuição e escalonamento do grau de risco a suportar pelas
várias classes de credores. A Constituição, em princípio, não exige, nem impede,
uma dada solução.
O princípio da confiança e da segurança jurídica, designadamente, só deverá ser
pertinentemente invocado, pelo menos na sua zona nuclear, em caso de uma mutação
legislativa com que o interessado não pudesse razoavelmente contar, frustrante,
pois, de expectativas legítimas na continuidade da ordem jurídica. Não é o caso
dos autos, em que a constituição do crédito garantido por hipoteca é de data
muito posterior á promulgação do diploma, de 1978, que confere o privilégio
imobiliário geral aos créditos do IEFP.
A segurança jurídica visada pelo desempenho funcional de certos institutos
civilísticos, mormente os direitos reais de garantia, não pode ser
automaticamente constitucionalizada, pondo-os a coberto, sem mais, do princípio
constitucional da segurança jurídica.
Não por acaso, os discursos argumentativos com que se pretende abonar o juízo de
inconstitucionalidade da perda de prioridade de um crédito garantido por um
direito real de garantia, mormente os sujeitos a registo, caem amiúde em
considerações meramente de direito infraconstitucional, do que dá bom exemplo a
sentença recorrida. Também as alegações do Ministério Público não evitam, em
minha opinião, esse desvio do plano de apreciação da questão de
constitucionalidade.
Não se discute que esses institutos visam instilar confiança, no tráfego
jurídico, como também não se discute os inconvenientes de uma proliferação
incontrolada de privilégios gerais preferentes, sem condições de
cognoscibilidade idênticas às dos direitos reais de garantia. Mas, coisa
diferente é ajuizar se tais entorses, por legislação avulsa, aos paradigmas
clássicos do Código Civil estão sempre feridas de inconstitucionalidade.
A minha resposta, num caso com a configuração do dos autos, é negativa, pelo que
me pronunciei pela constitucionalidade.
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
O presente acórdão mais não fez do que transpor para o presente caso a tese
sustentada por este Tribunal, quer relativamente à norma aqui em apreciação
(acórdão n.º 387/02, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt), quer
relativamente a outras normas que atribuíam um privilégio imobiliário geral a
determinados créditos (acórdãos com força obrigatória geral n.º 362/02 e 363/02,
publicados em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 54.º, pág. 85 e 95),
no sentido da interpretação segundo a qual os créditos que gozam desse
privilégio tem uma preferência de pagamento sobre os créditos garantidos por
hipoteca é inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da
Constituição.
É desta tese que discordamos.
A hipoteca é uma garantia real que confere ao credor o direito de ser pago pelo
valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a
terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio
especial ou de prioridade de registo (artigo 686.º, do C.C.).
Conhecida em tempos ainda próximos pela “rainha das garantias” a hipoteca tem as
suas origens nos direitos grego, ao qual deve o seu nome (hypothéké), e romano
(vide, sobre esta figura nestes direitos antigos, JOHN GLISSEN, em “Introdução
histórica ao direito”, pág. 756-757, da 2.ª ed. da Gulbenkian, MENEZES CORDEIRO,
em “Direitos reais”, pág. 754-756, da reimpressão de 1979, da Lex, SANTOS JUSTO,
em “Direito Privado Romano – III”, pág. 218-223”, da ed. de 1997, da Coimbra
Editora, e VERA-CRUZ PINTO, em “O direito das obrigações em Roma”, vol. I, pág.
178-194, da ed. da A.A.F.D.L., de 1997).
A cobertura legal a este mecanismo de garantia da satisfação dos créditos
ocorreu desde cedo no nosso país (vide as Ordenações Afonsinas, Livro IV, título
49, Manuelinas, Livro IV, título 33 pr., e Filipinas, Livro IV, título III, pr.,
e a Lei Pombalina de 20 de Junho de 1744), tendo a sua importância crescido a
partir do momento em que se criou o Registo Geral das Hipotecas (Decreto de 26
de Outubro de 1836), o qual está na origem do actual Registo Predial (vide, numa
visão da época sobre a importância da hipoteca e os inconvenientes da
inexistência de um eficaz sistema de registo predial, COELHO DA ROCHA, em
“Instituições de direito civil português”, tomo II, pág. 723-732, da 6.ª ed.
(1886), da Imprensa da Universidade).
Dizia Cunha Gonçalves que “de todas as garantias imaginadas pelo homem e
adoptadas pelo legislador no decurso dos séculos, nenhuma é tão importante e tão
frequente como a hipoteca” (In “Tratado de direito civil em comentário ao Código
Civil Português”, vol. V, pág. 363, da ed. de 1932, da Coimbra Editora).
E Guilherme Moreira explicava, deste modo, as vantagens da hipoteca:
“É fácil depreender as vantagens que oferece esta garantia e a sua superioridade
relativamente às outras. Assim, tem sobre a fiança a superioridade das garantias
reais sobre as pessoas, e sobre o penhor e a consignação de rendimentos a
vantagem de os bens hipotecados não saírem do poder do devedor, sendo que o
credor não adquire sobre esses bens nem o direito de gozo nem o de detenção, e
pode assim o devedor gozar e dispor livremente deles, sem que por isso o credor
deixe de conservar o direito que tem, pois tanto o faz valer achando-se os bens
em poder do devedor como de terceiro.
A importância da hipoteca verifica-se praticamente no extraordinário
desenvolvimento que tem tido, sendo enormes os capitais por ela garantidos.
A boa organização do regime hipotecário constitui, pois, uma questão económica
de incontestável importância; se directamente interessa aos capitalistas, aos
devedores e aos adquirentes de bens imobiliários, também interessa
indirectamente ao público, porque, garantindo-se devidamente o capital, baixará
o juro, e, determinando-se precisamente os encargos que oneram a propriedade
imobiliária, tornar-se-á mais fácil e rápida a circulação desta, promovendo-se
assim o desenvolvimento da riqueza pública.
Um bom sistema hipotecário deve oferecer ao capitalista, ou a quem empresta,
seguros meios de verificação sobre se o devedor é o proprietário dos bens que
oferece em garantia e quais são os ónus que sobre eles pesam; ao devedor meios
fáceis de se libertar da obrigação, sem comprometer os legítimos interesses do
credor; e aos compradores de bens imobiliários os elementos precisos para
conhecerem o estado desses bens, e, quando sobre eles recaia alguma hipoteca,
meios fáceis de a expurgarem.” (In. “Instituições do direito civil português”,
vol. II, pág. 456, da ed. do autor de 1911).
A preocupação relativamente à existência de ónus ocultos, nomeadamente a
atribuição excessiva de privilégios creditórios (anteriormente designados
“preferências”), que debilitassem a segurança conferida ao credor pela garantia
hipotecária foi, contudo, uma constante relativamente à evolução legislativa
verificada neste domínio (vide, revelando essa preocupação, entre muitos, JOSÉ
TAVARES, em “Os princípios fundamentais do direito civil”, vol. I, pág. 568, da
ed. de 1922, da Coimbra Editora, VAZ SERRA, em “Hipoteca”, no B.M.J. n.º 62,
pág. 3-10, LUÍS GONÇALVES, em “Privilégios Creditórios: evolução histórica.
Regime. Sua inserção no tráfico creditício”, no B.F.D.U.C., vol. LXVII, pág.
29-46, ANTUNES VARELA, em “Das obrigações em geral”, vol. II, pág. 555-556, da
4.ª ed., da Almedina, ARMINDO RIBEIRO MENDES e LEBRE DE FREITAS, em “Actas da
conferência sobre a reforma da acção executiva”, pág. 122, da ed. de 2001, da
Coimbra Editora, e MIGUEL LUCAS PIRES, em “Dos privilégios creditórios: regime
jurídico e sua influência no concurso de credores”, pág. 189-192, da ed. de
2004, da Almedina).
Apesar dos Códigos Civis de 1887 e de 1966 terem procurado reduzir o número de
privilégios creditórios e de não contemplarem a existência de privilégios
imobiliários gerais, estas intenções foram traídas pela legislação extravagante
em que proliferou a atribuição de múltiplos privilégios creditórios, tendo sido
previstos, em alguns casos, como sucede relativamente à norma sub iudice,
privilégios imobiliários gerais.
E se, na vigência da redacção original do Código Civil de 1966, a jurisprudência
dominante entendeu que os créditos beneficiados com esses privilégios
imobiliários gerais estavam protegidos pela disciplina rígida do artigo 751.º,
preferindo sobre os credores com garantia real, apesar de se ouvirem vozes
discordantes (LUÍS GONÇALVES, na ob. e loc. cit., ALMEIDA COSTA, em “Direito
das obrigações”, pág. 825, da 5.ª ed., da Almedina, e ISABEL MENÉRES CAMPOS, em
“Da hipoteca. Caracterização, constituição e efeitos”, pág. 212-221, da ed. de
2003, da Almedina), o legislador, pressionado pelas declarações de
inconstitucionalidade dos acima referidos acórdãos n.º 362/02 e 363/02, deste
Tribunal, através do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, veio admitir
implicitamente a existência de privilégios imobiliários gerais não previstos no
Código (nova redacção do artigo 735.º, n.º 3), mas incluindo-os no regime do
artigo 749.º, do C.C., segundo o qual esses privilégios não valem contra os
credores com garantias reais.
Foi antes desta alteração legislativa que o Tribunal Constitucional proferiu os
referidos acórdãos n.º 362/02 e 363/03, os quais declararam inconstitucional o
entendimento de que créditos que gozavam de privilégio imobiliário geral tinham
uma preferência de pagamento sobre os créditos garantidos por hipoteca, dando
força às opiniões que então contestavam a aplicação a esses créditos do regime
de preferência previsto no artigo 751.º, do C.C..
Nestes acórdãos considerou-se que essa preferência punha em causa o princípio da
confiança, ínsito a um Estado de direito democrático.
Desde a Revisão Constitucional de 1982 o artigo 2.º, da C.R.P., afirma
expressamente que “a República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático”.
Do princípio do Estado de Direito, a doutrina deduz como seu sub-princípios
concretizador o da segurança jurídica em sentido amplo que abrange a ideia da
protecção da confiança dos cidadãos (vide GOMES CANOTILHO, em “Direito
constitucional e teoria da Constituição”, pág. 257 e seg., da 7.ª Edição, da
Almedina, JORGE REIS NOVAIS, em “Os princípios constitucionais estruturantes da
República Portuguesa”, pág. 261 e seg., da ed. de 2004, da Coimbra Editora).
É inestimável o valor da segurança jurídica na vida em sociedade, a qual apenas
é propiciada pelo Direito, por não estar ao alcance de qualquer outra ordem
normativa (vide J. BAPTISTA MACHADO, em “Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador”, pág. 57-59, da 3.ª Reimpressão (1989), da Almedina).
O homem necessita que lhe seja garantida a segurança necessária a poder
conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida.
Conforme sintetiza Jorge Reis Novais “(…) a protecção da confiança dos cidadãos
relativamente à acção dos órgãos do Estado é um elemento essencial, não apenas
da segurança da ordem jurídica, mas também da própria estruturação do
relacionamento entre Estado e cidadãos em Estado de Direito. Sem a
possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis
desenvolvimentos da actuação dos poderes públicos susceptíveis de repercutirem
na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-se-ia, em última análise com
violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, em mero objecto
do acontecer estatal.” (na ob. cit., pp. 261-262).
Pode-se, pois, dizer que o princípio geral da segurança jurídica, incluindo a
ideia de protecção da confiança, impõe a salvaguarda dos efeitos jurídicos dos
actos praticados pelos cidadãos alicerçados no ordenamento jurídico vigente no
momento da prática desses actos.
Ora, neste caso, quando foi constituída a hipoteca para garantia de um
determinado crédito, já se encontrava em vigor a norma que havia atribuído aos
créditos do IEFP o privilégio que se considerou prevalecer sobre a hipoteca, sem
que este Tribunal tenha poderes para sindicar a correcção deste entendimento
perante o actual direito ordinário. O beneficiário da hipoteca quando optou pela
constituição desta garantia já sabia que os créditos do IEFP gozavam de
privilegio imobiliário geral pelo que não é possível dizer-se que a constituição
dessa hipoteca legitimasse a invocação de qualquer posição de confiança
constitucionalmente salvaguardada.
O que a norma declarada constitucional vulnerabilizou não foi qualquer direito
já constituído do credor beneficiário da hipoteca, mas sim a própria figura
jurídica da hipoteca, enquanto garantia real da satisfação de créditos.
Ao atribuir mais um privilégio creditório imobiliário geral a um determinado
tipo de créditos, criou mais uma possibilidade de existência de ónus ocultos
sobre bens que a hipoteca afecta ao cumprimento de obrigações, o que faz
diminuir a segurança desta garantia.
A mesma vulnerabilidade, aliás, que resulta da atribuição de privilégios
creditórios imobiliários especiais a determinados créditos e dos efeitos de
outros direitos como o direito de retenção, o direito de arrendamento ou o
direito dos credores da herança (vide sobre a concorrência destes direitos com a
hipoteca, LUÍS GONÇALVES, na ob. cit., e CLÁUDIA MADALENO, em “A vulnerabilidade
das garantias reais”, ed. de 2008, da Almedina).
Ora, a hipoteca não é nenhuma figura de consagração constitucional, tendo o
legislador ordinário no domínio das garantias creditícias inteira liberdade de
conformação, podendo optar, consoante os interesses em jogo e o tipo de
créditos, pela solução que entenda mais adequada de distribuição e escalonamento
do grau de risco a suportar pelas várias classes de credores.
Mesmo que se considere que o direito constitucional à propriedade privada
(artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P.) exige a existência de um sistema de garantias
que assegurem a satisfação dos créditos, tem o legislador ordinário a mais ampla
liberdade para conformar esse sistema de acordo com as suas opções.
E se a hipoteca assumiu no nosso sistema jurídico uma posição privilegiada entre
os diferentes tipos de garantia disponibilizados ao credor pela ordem jurídica,
isso não significa que a segurança que ela confere à posição do credor não possa
ser afectada pela preferência entretanto dada pelo legislador a outros créditos,
pela prevalência reconhecida a outros interesses, sendo certo que o aparecimento
de novas formas de garantia veio colocar em causa a primazia que era atribuída à
hipoteca.
Por estas razões entendo que a atribuição pelo legislador de um privilégio
creditório imobiliário geral, com preferência sobre as hipotecas, a um
determinado tipo de créditos, não viola qualquer parâmetro constitucional,
apesar de suscitar sérias reservas sobre se será a melhor opção em termos de
política de dinamização do recurso ao crédito.
Além disso, mesmo que se concluísse, como fez este acórdão, que a interpretação
no sentido de que um crédito que beneficie de um privilégio imobiliário geral
prevalecia sobre um crédito garantido por uma hipoteca estava ferida de
inconstitucionalidade, deveria proferir-se decisão negativa de
inconstitucionalidade, impondo-se interpretação conforme à Constituição, nos
termos do artigo 80.º, n.º 3, da C.R.P., face à alteração introduzida aos
artigos 749.º e 751.º, do Código Civil, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março, donde decorre que os privilégios imobiliários gerais não preferem sobre a
hipoteca.
João Cura Mariano