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Processo n.º 85/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., S.A, inconformada com a decisão sumária proferida a 23 de Março de 2009,
pela qual se determinou o não conhecimento do recurso de constitucionalidade que
havia tentado interpor, vem dela reclamar concluindo da seguinte maneira:
“- DA APLICAÇÃO EFECTIVA DE NORMA CUJA INCONSTITUCIONALIDADE TENHA SIDO
SUSCITADA ADEQUADAMENTE NO DECURSO DO PROCESSO PRINCIPAL
A) A ora Reclamante suscitou no âmbito da impugnação judicial n. °
1557/05.5BELSB — mais concretamente no âmbito das suas alegações de recurso para
o Supremo Tribunal Administrativo – a questão da inconstitucionalidade, por
desconformidade com o disposto nos artigos 103. °, n.ºs 2 e 3, e 2. ° da CRP, da
norma ínsita no artigo 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da Lei n. ° 32-B/2002,
de 30 de Dezembro, quando interpretada no sentido de pressupor um novo e mais
longo prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos e, por
conseguinte, de permitir a aplicação do disposto no artigo 297. °, n. ° 2, do
CC, relativamente a obrigações tributárias constituídas em momento anterior à
sua vigência;
B) A ora Reclamante fê-lo adequadamente, uma vez que expressamente explanou nas
suas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, bem como no
seu requerimento destinado ao aperfeiçoamento do recurso interposto para esse
Douto Tribunal, que a aplicação do artigo 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da
Lei n. ° 32- B/2002, de 30 de Dezembro — e, por conseguinte, do artigo 297. °,
n. ° 2, do CC –, quando interpretado no sentido de implicar um novo e mais longo
prazo de caducidade, bule com a figura da caducidade enquanto elemento essencial
do imposto (garantia dos contribuintes) e pressupõe a aplicação de uma norma que
não se encontrava em vigor na ordem jurídica — Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de
Dezembro — no momento da constituição da obrigação tributária e, desse modo, com
os princípios constitucionais da legalidade tributária, da não retroactividade
da lei fiscal e do Estado de Direito Democrático, previstos nos artigos 103. °,
n. 2 e 3, e 2. ° da CRP;
C) O Supremo Tribunal Administrativo, aquando da prolação do seu Acórdão,
procedeu à efectiva aplicação dos artigos 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da
Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, e 297. °, n. ° 2, do CC, cuja
inconstitucionalidade foi expressamente invocada pela ora Reclamante se aplicada
a obrigações tributárias constituídas em momento anterior à sua vigência;
D) Nestes termos, requer-se a esse Douto Tribunal que dê o pressuposto em
referência — aplicação efectiva de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido
suscitada adequadamente no decurso do processo principal — por plenamente
verificado na situação sub judice, concluindo ter o Supremo Tribunal
Administrativo efectivamente aplicado norma cuja inconstitucionalidade havia
sido adequadamente suscitada pela ora Reclamante.
(…)
- DA NECESSÁRIA REVOGAÇÃO DO DESPACHO DO Juiz RELATOR QUE DECIDIU RECUSAR O
CONHECIMENTO DO RECURSO OPORTUNAMENTE INTERPOSTO PELA RECLAMANTE
1) A ora Reclamante não pode deixar de salientar que, como resulta de uma
análise das diversas peças processuais apresentadas em sede dos presentes autos
— e, nomeadamente, dos excertos das alegações de recurso para o Supremos
Tribunal Administrativo transcritos nos pontos 2. e 3. da presente Reclamação —,
invocou expressamente e de modo inequívoco a inconstitucionalidade do artigo 45.
°, n. ° 4, da LGT, na redacção da Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, se
aplicado a obrigações tributárias constituídas em momento anterior ao início da
sua vigência;
J) Tal invocação identifica, sem necessidade de maior demonstração, a norma
sobre a qual incide o recurso apresentado, sendo certo que, reputando a ora
Reclamante de inconstitucional a aplicabilidade de tal norma a situações
ocorridas antes da sua entrada em vigor — nomeadamente por violação da proibição
da retroactividade em matéria fiscal consagrada no artigo 103. °, n. ° 3, da CRP
—, é a interpretação da mesma como aplicável a obrigações tributárias
decorrentes de factos tributários ocorridos antes da vigência daquela que
consubstanciará a «interpretação normativa» em crise em sede de fiscalização
concreta de constitucionalidade;
K) Deste modo, independentemente de esse Douto Tribunal entender ser necessário
fazer apelo ao conceito de «interpretação normativa» — e não apenas ao de norma
— para concluir pela admissibilidade do recurso interposto, não poderá deixar de
se reconhecer que o artigo 45.º, n. ° 4, da LGT, na redacção da Lei n. °
32-B/2002, de 30 de Dezembro, aplicado a obrigações tributárias decorrentes de
factos tributários ocorridos antes da sua entrada em vigor, consubstancia
objecto plenamente idóneo para um recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade;
L) Do mesmo modo, não se poderá deixar de reconhecer que a ora Reclamante
suscitou adequadamente perante o Supremo Tribunal Administrativo a
inconstitucionalidade do referido artigo 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da
Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, tendo nesse argumento sustentado as
alegações de recurso apresentadas junto do mesmo;
M) Tudo ponderado, nenhuma dúvida restará que esse Douto Tribunal Constitucional
está em condições para compreender a argumentação jurídica da ora Reclamante —
quanto à inconstitucionalidade do artigo 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da
Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, se interpretado como aplicável a
obrigações tributárias constituídas antes da sua entrada em vigor — e, nessa
medida, para admitir o recurso interposto para fiscalização concreta da
constitucionalidade da norma em referência;
N) Por outro lado, a ora Reclamante em momento algum se limitou a sustentar que
as pronúncias jurisdicionais — do Tribunal Tributário de Lisboa e do Supremo
Tribunal Administrativo – afrontavam as normas constitucionais em causa,
imputando desse modo directamente a tais decisões o vício de
inconstitucionalidade;
O) Pelo contrário, sem prejuízo de assinalar como lhe competia os erros de
julgamento que considera existirem, a ora Reclamante sempre salientou que a
aplicabilidade do regime do artigo 45. °, n. ° 4, da LGT, na redacção da Lei n.
° 32-B/2002, de 30 de Dezembro — o mesmo é dizer: a sua interpretação como
aplicável —, a obrigações tributárias constituídas antes da sua entrada em
vigor, enfermaria o dito regime de inconstitucionalidade;
P) Perante o exposto, há que considerar a inconstitucionalidade invocada pela
ora Reclamante como efectivamente imputada ao artigo 45.º n. ° 4, da LGT, na
redacção da Lei n. ° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, se aplicável a obrigações
tributárias constituídas antes da respectiva entrada em vigor, não podendo esse
Douto Tribunal deixar de, em conformidade, revogar o Despacho do Juiz Relator
que decidiu recusar o conhecimento do recurso oportunamente interposto pela ora
Reclamante, sob pena de inadmissível denegação de Justiça e concomitante
violação dos artigos 2. °, 20.°, n. ° 1, 268. °, n. ° 4, e 280. °, n. ° 1,
alínea b), da CRP;
Q) Nestes termos, e tendo a ora Reclamante satisfeito todos os requisitos
legalmente exigíveis para o efeito e estando reunidos os pressupostos essenciais
ao respectivo conhecimento, impõe-se a prolação de Acórdão que determine a
aceitação do recurso oportunamente interposto para esse Douto Tribunal,
alterando desse modo e em conformidade a decisão exarada no Despacho do Juiz
Relator notificado no passado dia 27 de Março de 2009.
Nestes termos e nos demais de Direito que
V. Ex.as doutamente suprirão, requer-se a esse Douto Tribunal que julgue
totalmente procedente a presente reclamação e, em consequência:
i.) Revogue o Despacho do Juiz Relator que decidiu recusar o conhecimento do
recurso oportunamente interposto pela ora Reclamante, sob pena de inadmissível
denegação de Justiça e concomitante violação dos artigos 2. °, 20.°, n.° 1, 268.
°, n. ° 4, e 280. °, n. ° 1, alínea b), da CRP;
ii.) Proceda à prolação de Acórdão que determine a aceitação do recurso
oportunamente interposto para esse Douto Tribunal, e concomitantemente, conheça
do seu objecto, nos termos do artigo 78. °-A, n. ° 5, da LTC;
iii.) Conceda à ora Reclamante prazo para apresentação das correspondentes
alegações de recurso, nos termos dos artigos 78. °-A, n. ° 5, e 79.º da LTC.”
2. A decisão reclamada, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“Profere-se decisão sumária ex vi 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional por não se encontrarem devidamente preenchidos pressupostos
essenciais ao conhecimento do recurso.
Os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), daquele
diploma, versam normas ou interpretações ou dimensões normativas que,
correspondendo à ratio decidendi da pronúncia judicial de que se recorre, hão-de
ter sido atempadamente impugnadas, por via da sua alegada desconformidade
jusconstitucional, pelo sujeito processual que pretende posteriormente lançar
mão do meio de fiscalização concreta ali previsto. Em tais casos (bem como no
dos recursos previstos na alínea f) do mesmo preceito), impõe-se que a questão
de inconstitucionalidade haja sido suscitada, pelo recorrente constitucional, de
modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). A
suscitação de tal questão apresenta-se assim como um ónus de verificação
obrigatória e cuja omissão não pode deixar de se reflectir em impossibilidade de
apreciação do objecto do recurso por parte do Tribunal Constitucional.
A suscitação de questão de inconstitucionalidade dita normativa, apta a
adequadamente convocar a pronúncia do Tribunal Constitucional implica que ‘a
parte identifique expressamente [ess]a interpretação ou dimensão normativa, em
termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder
enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores
do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal
sentido.’ (Lopes do Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta
da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004,
p. 8). Isto exige que o sujeito processual em questão enuncie, de modo preciso e
inteligível, perante o tribunal recorrido, face aos preceitos cuja
constitucionalidade considera posta em causa, um critério normativo susceptível
de generalização.
É esta enunciação que a Recorrente omitiu durante o processo, tendo-se limitado
a discorrer sobre o princípio da não retroactividade da lei fiscal e a
problemática da prescrição e caducidade dos créditos tributários, sem jamais
enunciar, sequer, o critério normativo inerente aos preceitos questionados e
cuja constitucionalidade pretende, agora, ver apreciada por este Tribunal. Tal
omissão persiste, igualmente, na resposta apresentada ao convite formulado pelo
Relator. Ora, obviamente, e como ficou dito no referido convite, o Tribunal não
se pode substituir ao recorrente na identificação e delimitação do objecto do
recurso de constitucionalidade (cfr. nesse sentido, a título de exemplo, o
Acórdão n.º 7/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Adiante-se, por outro lado, que, tal como foi suscitada a questão perante o
tribunal a quo, confirma-se que a inconstitucionalidade redunda imputada ao
próprio acto judicial e não, directamente, como impõe o sistema português de
fiscalização concreta, aos preceitos legais ou a uma interpretação ou dimensão
normativa a eles inerente. É isso que resulta, por exemplo, quando a Recorrente
afirma que ‘a aplicação do artigo 45.º, n.º 4, da LGT, na redacção da Lei n.º
32-B/2002, de 30 de Dezembro, mostra-se inadmissível, na medida em que
consubstancia uma violação dos princípios constitucionais da legalidade
tributária, da não retroactividade da lei fiscal e do Estado de Direito
Democrático (…), padecendo, em consequência, o sentido decisório perfilhado pelo
tribunal a quo de erro de julgamento.’
3. Notificada da reclamação, a Recorrida Fazenda Pública não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Não obstante a Reclamante pretender lançar mão do meio processual previsto no
artigo 700.º, n.º 3, do CPC, a presente reclamação deve ter-se como interposta
nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, na medida em que a configuração
específica deste meio de impugnação das decisões sumárias afasta a aplicação
subsidiária daquele mecanismo.
A reclamação carece, no entanto, de fundamento. Vejamos:
5. A decisão de não conhecimento assentou no facto de a então Recorrente,
durante o processo, não ter logrado suscitar adequadamente a questão de
inconstitucionalidade normativa que pretendeu colocar à apreciação deste
Tribunal. Tal questão de inconstitucionalidade é a que consta do requerimento de
interposição do recurso – com os esclarecimentos prestados na sequência do
convite – e não qualquer outra. Assim, o que a Reclamante integrou no objecto do
recurso foi “a questão da inconstitucionalidade das normas ínsitas nos artigos
297.º, n.º 2, do Código Civil, e 45.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária, na
redacção da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, por entender que a
interpretação e aplicação das referidas normas, por esse Douto Tribunal, viola o
disposto nos artigos 103.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República
Portuguesa.” Como posteriormente se referiu no despacho-convite, impunha-se,
face ao teor daquele requerimento, que a então Recorrente concretizasse a
interpretação e aplicação das normas tal como foi efectuada pelo Supremo
Tribunal Administrativo. Não podendo o Tribunal Constitucional legitimamente
substituir-se ao sujeito processual na tarefa de delimitação do objecto do
recurso de constitucionalidade, tornava-se imprescindível que a Recorrente
especificasse a interpretação e aplicação dos preceitos em causa que, em
concreto (i.e. na operação de adjudicação do STA), buliria com as normas
constitucionais invocadas.
6. Ora, o recurso que se pretendeu interpor pressupõe a suscitação de questão de
inconstitucionalidade normativa em moldes processualmente adequados e durante o
processo, de modo a permitir ao tribunal a quo a respectiva apreciação e
decisão. O nosso sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade leva
subjacente a ratio de fazer intervir o Tribunal Constitucional em sede de
recurso, isto é, após a instância recorrida ter emitido a sua pronúncia (ou, no
mínimo, após aquela ter tido oportunidade processual para o fazer). Por isso é
tanto mais relevante o facto de a inconstitucionalidade surgir, nas alegações
para o STA, expressamente imputada ao acto judicial. Tratando-se, obviamente, de
vício cognoscível e sindicável por aquele Tribunal, a sua arguição não substitui
a adequada individualização da questão de inconstitucionalidade normativa
perante o mesmo – isto se o sujeito processual pretender alinhar a sua
estratégia com uma eventual e futura interposição do recurso de
constitucionalidade.
7. Assim, determinante é saber se durante o processo foi suscitada a questão
normativa nos moldes exigidos pelo artigo 72.º, n.º 2, da LTC. Isto é, se a
então Recorrente logrou enunciar, em termos de generalidade e abstracção, o
critério normativo que, integrando a razão de decidir, foi efectivamente
formulado e aplicado nos autos. E aqui reside o cerne do problema: muito
simplesmente tal não foi efectuado. Durante o processo, a Reclamante limitou-se
a discorrer sobre o princípio da não retroactividade da lei fiscal e a
prescrição e caducidade dos créditos tributários, sem lograr enunciar o critério
– a norma – que, subjacente aos preceitos legais em causa – artigo 297.º, n.º 2,
do CC e artigo 45.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária (na redacção resultante da
Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro) – pretenderia posteriormente integrar no
objecto do recurso de constitucionalidade.
7.1. Não se olvidam as exigências decorrentes do princípio pro actione. Mas das
mesmas não advém o poder-dever de o Tribunal Constitucional se substituir ao
recorrente constitucional, “sanando” os pressupostos processuais que, sendo de
sua responsabilidade, não curou de deixar devidamente cumpridos.
7.2. Não pode a Reclamante, nesta sede, pretender que o que suscitou durante o
processo é suficiente para que se possam os seus ónus ter por observados
relativamente à apreciação da conformidade jusconstitucional do artigo 45.º, n.º
4, da Lei Geral Tributária, na redacção referida, “se interpretado como
aplicável a obrigações tributárias constituídas antes da sua entrada em vigor”.
Não foi este o sentido imputado ao preceito no momento determinante para a
fixação do objecto do recurso de constitucionalidade e consubstanciado no
respectivo requerimento de interposição do recurso (devidamente integrado pelo
esclarecimento subsequente). O que então foi questionado foi o “alargamento” do
prazo resultante da “procrastinação do início da sua contagem.” E esta questão
não foi adequadamente suscitada durante o processo pelo que não pode a mesma ser
conhecida.
III – Decisão
8. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em
consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento
do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Maio de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos