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Processo n.º 969/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
(Conselheiro Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. instaurou no Tribunal Judicial de Penafiel acção declarativa
(processo n.º 1187/04.9 TBPNF) contra B., C. e Fundo de Garantia Automóvel,
pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe uma indemnização de €
276.035,00, acrescida de juros de mora, por danos patrimoniais e não
patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação imputável à Ré B. e
ao condutor não identificado de outro veículo.
Nos danos alegados estavam incluídos a perda da vida do seu filho
intra-uterino e o sofrimento deste no período que antecedeu a sua morte.
Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença
que julgou a acção improcedente, tendo absolvido os Réus do pedido formulado.
Inconformada, a Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da
Relação do Porto, que, por acórdão proferido em 18 de Junho de 2007, julgou o
recurso parcialmente procedente, tendo condenado os Réus B. e o Fundo de
Garantia Automóvel a pagar à Autora a quantia de € 161.972,56, acrescida de
juros de mora, e absolvido o Réu C. do pedido.
O recurso não logrou provimento, além do mais, quanto à parte da
decisão recorrida relativa ao pedido de indemnização pelos danos imputados à
perda da vida do filho intra-uterino da Autora e do sofrimento deste no período
que antecedeu a sua morte.
2 – Quer a Autora quer o Fundo de Garantia Automóvel recorreram
desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), questionando a correcção
jurídica da resposta dada a várias questões com influência no julgado.
3 – Na parte que concerne à Autora e nas alegações de recurso
apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, esta alegou, entre o mais
que “o art.º 24.º da Constituição protege o direito à vida e integridade física
e psíquica do ser humano” (1); a ofensa do direito à vida intra-uterina
constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade” (2); para reparar a
perda do direito à vida do filho nascituro da autora é ajustada a quantia de
€50.000,00” (3); deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para
reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte” (4)
e “a não se entender assim ou seja, que o art.º 66.º do Código Civil o não
permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva
do disposto no art.º 24.º da Lei Fundamental” (5).
4 – Por acórdão proferido em 9 de Outubro de 2008, o STJ julgou
improcedente o recurso da Autora e parcialmente procedente o recurso do Fundo de
Garantia Automóvel, revogando a decisão recorrida apenas no segmento em que
condenou esta parte no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de €
130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vencem a partir
da sentença da 1.ª instância.
5 – Dizendo-se, mais uma vez inconformada, a Autora interpôs recurso
do acórdão do STJ para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do
seguinte teor:
“[…] vem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º,
n.º 1, alínea b) e 75.º-A, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão recorrido no
que tange à questão da inconstitucionalidade material suscitada nas alegações de
recurso para este Tribunal, por violação do artigo 24.º da Constituição da
República Portuguesa que protege a inviolabilidade da vida humana, inclusive a
intra-uterina cuja violação ilícita é ressarcível civilmente”.
6 – Convidada pelo primitivo relator a “explicitar de forma clara,
precisa e concisa a interpretação normativa contida na decisão recorrida cuja
inconstitucionalidade pretende ver apreciada, com a cominação prevista no artigo
75.º-A, n.º 7, da LTC”, a Autora veio a apresentar um longo requerimento em que,
além do mais, diz que «o objecto do recurso de inconstitucionalidade é o, salvo
melhor opinião, errado entendimento sufragado pelo douto acórdão recorrido
proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, na interpretação segundo a
qual “o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental ao considerar a vida humana
inviolável está a impor a protecção genérica da gestão humana, sem considerar o
nascituro como centro autónomo de direitos”»
7 – Tendo sido determinada a produção de alegações sobre o recurso
de constitucionalidade, a recorrente concluiu-as do seguinte jeito:
“A) A nossa ordem juridico-constitucional, maxime, no artigo 24.º, n.º 1,
protege a vida humana desde a concepção e até à morte natural.
B) A vida humana que a nossa lei fundamente protege não é a abstracta mas sim a
concreta de cada ser humano, como sujeito de direitos, in casu, do filho
nascituro já concebido e completamente formado da autora e ora recorrente.
C) A vida humana existe desde a concepção ou pelo menos desde a nidificação ou
seja da implantação do embrião no útero da mãe.
D) A partir da concepção passa a existir um “ser humano”, sujeito de direitos,
reconhecido pela ordem jurídica, com interesses próprios e diferentes dos da mãe
e até com quem pode entrar em conflito e que são exercitáveis judicialmente, até
pelo pai biológico.
E) Se a lei fundamental tutela o bem jurídico colectivo e objectivo da
identidade e inalterabilidade do património do genoma humano, mais terá de
tutelar a própria vida humana por esta ser um prius em relação aquele.
F) Que a vida intra-uterina é humana, maxime, a existente no embrião e feto não
restam dúvidas, pois se nada impedir a sua evolução natural formar-se-á um ser
humano, como aconteceu, in casu.
G) A nossa lei fundamental ao proteger os mais fracos e débeis, quis,
seguramente, incluir o nascituro já concebido, ou seja, a vida humana desde o
seu início e até à morte natural.
H) A vida humana só deve ceder em caso de conflito com outra vida humana e
segundo o princípio do interesse preponderante.
I) Aquando da morte do filho da ora recorrente o feto estava já completamente
formado, (de termo) tendo perfeita autonomia física e psíquica em relação à mãe
biológica, estando em condições de poder sobreviver à luz do dia, não fosse a
agressão letal sofrida, pelo que não pode deixar de qualificar-se, pelo menos
neste caso, juridicamente como um ser humano sujeito de direitos e com direito à
vida.
J) Na verdade se a agressão tivesse sido de menor gravidade e o feto tivesse
sobrevivido a esta, este teria vindo ao mundo por cesariana ou espontaneamente,
dado estar completamente formado e com total autonomia da mãe biológica,
podendo, pois demandar judicialmente o agressor pelos danos materiais e morais
sofridos, pelo que não faz qualquer sentido, que tendo a agressão sido letal,
não possa exercitar o seu direito pela perda do seu bem mais precioso, a vida
humana, o que seria juridicamente inaceitável, o que tudo bem demonstra que o
feto é um ser humano cuja vida é tutelada jurídico constitucionalmente.
K) Uma vez que o filho da autora à data da morte se encontrava completamente
formado, com forma humana e sem deformidade e ou aleijão, como se vê dos autos,
maxime, com um peso de 3.495 quilogramas, com 9 meses de gestação e com a altura
de 0,515 metros, tendo falecido “ in útero”, em consequência das lesões
traumáticas meningeas, associadas à asfixia, provocadas pelo poli traumatismo
sofrido pela mãe, em consequência do acidente dos autos, não pode deixar de
qualificar-se o mesmo como “ser humano”, sujeito de direitos, incluindo o
direito à vida.
L) O artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental não distingue entre vida
intra-uterina e extra-uterina, pois o que quis dizer foi que onde existir vida
humana, maxime, pertença da espécie humana, dada a sua dignidade, a mesma é
juridicamente tutelada como sujeito de direitos, só podendo ceder em caso de
conflito com outra vida humana, sendo assim um valor absoluto, princípio e fim
da sociedade humana.
M) Justifica-se, assim, uma interpretação abrangente do dito normativo
constitucional, de modo a incluir toda a vida humana desde a concepção e até à
morte., porque toda ela merecedora de igual protecção, em especial quando é mais
débil, maxime, no princípio e fim.
N) Não faz assim sentido de um ponto de vista jurídico constitucional não
proteger a vida humana ou proteger menos na sua fase embrionária ou fetal, pois
pelo contrario resulta do texto fundamental que este quis proteger, em
particular, os mais débeis e indefesos, onde se incluem os nascituros já
concebidos.
O) A nossa Constituição deve ser interpretada do ponto de vista espiritualista
ou seja no sentido de que a mesma assimilou os valores culturais dominantes na
nossa sociedade ocidental na qual a vida humana é sagrada e inviolável desde o
seu início e até à morte natural.
P) O filho da ora recorrente como ser humano, com dignidade própria, é um
sujeito de direitos, reconhecido pela ordem jurídica, tendo assim direito à
vida, por cuja perda tem direito a ser ressarcido civilmente.
Q) Mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer o filho da
autora como ser humano e com direito à vida, reconhecido pela ordem jurídica,
pelo que a perda desta é ressarcível civilmente conforme foi peticionado.
R) O valor a ressarcir pela perda do direito à vida deve ser igual para qualquer
ser humano não devendo ser graduado, pois trata-se de um valor absoluto e sem
preço.
S) Violou o douto acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto no artigo
24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve julgar-se, materialmente inconstitucional, por ofensa directa
do artigo 24.º, nº 1 da nossa lei fundamental, a interpretação dada no douto
acórdão recorrido segundo a qual o filho da ora recorrente não é, em casu,
sujeito de direitos reconhecido pela ordem jurídica, tendo uma existência
autónoma per se e em consequência um direito à vida, por cuja violação ilícita
tem direito a ser ressarcido civilmente, ordenando-se, em conformidade, a
reforma do douto acórdão recorrido, de acordo com o juízo de
inconstitucionalidade que vier a ser proferido.”
9 – O Fundo de Garantia Automóvel apresentou contra-alegações,
sustentando a improcedência do recurso.
10 – Discutida em Secção “a eventualidade de não ser conhecido o
recurso, por falta de identificação da norma ou interpretação normativa
questionada”, foi ordenada, pelo Acórdão n.º 245/2009, a notificação das partes
para se pronunciarem sobre esta questão, querendo, no prazo de 10 dias”.
11 – Apenas a Autora respondeu a tal convite, terminando a concluir
que “mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer ao filho da
autora/recorrente a sua dignidade de pessoa humana e consequentemente direito à
vida, com o que violou por erro de subsunção o artigo 1.º e 24.º, n.º 1, da Lei
Fundamental” e que “o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental deve ser
interpretado também na sua vertente subjectiva, maxime, como garante do direito
à vida do ser com dignidade humana concreta, in casu, o filho nascituro da ora
recorrente”, pelo que “deve conhecer-se do recurso”.
12 – Discutida a questão prévia e porque o primitivo relator ficou
vencido, operou-se a mudança de relator.
Cumpre assim proferir acórdão de acordo com os fundamentos da
maioria que fez vencimento.
B – Fundamentação
13 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que
se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas pode traduzir-se numa
questão de (in)constitucionalidade de(s) norma(s) que a decisão recorrida haja
aplicado como ratio decidendi.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de
constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e
incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra
recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da
constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da
natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M.
Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e
actualizada, pp. 79 e segs. e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado
no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado
no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de
pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de
20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o
Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de
2000).
Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas
que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no
recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim própria, mesmo quando
esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no
que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da
interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o
critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias
específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos
para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de
normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da
Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub
specie constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais
tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação
(directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este
Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in
concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não
incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a
conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo
ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade
normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II
Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por
exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de
21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/96, inéditos e o Acórdão n.º 269/94,
publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
14 – Ora, no caso em apreço, constata-se que a recorrente não
definiu no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
mesmo havendo sido convidada a fazê-lo, a coberto do disposto no n.º 6 do artigo
75.-A da LTC, a norma/dimensão normativa de direito infraconstitucional reputada
de inconstitucional e de cuja aplicação resultou o decidido.
Cabia à recorrente esse ónus processual de definição do objecto do
recurso, sob pena do seu não conhecimento.
Ao invés de definir a norma de direito infraconstitucional
considerada ratio decidendi do julgado, cuja inconstitucionalidade pretendia ver
apreciada, a recorrente limitou-se a apodar o acórdão recorrido de
inconstitucionalidade, por violar directamente o artigo 24.º da Constituição. O
seu discurso argumentativo é todo ele construído em torno da densificação do
conteúdo normativo a conferir a tal disposição constitucional, incluindo até,
nas conclusões das suas alegações, onde diz ter o acórdão recorrido violado “por
erro de subsunção, o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa”.
E fá-lo com o sentido de subsumir directamente a ele a situação
factual em apreço, ou seja com o sentido da sua aplicação directa aos factos
concretos e não como meio de determinar o conteúdo do parâmetro constitucional
com o qual havia de ser contrastada a norma de direito infraconstitucional para
aferir da sua validade jurídica.
Como se disse, o erro de subsunção ocorrido na elaboração do
raciocínio judicativo dos factos concretos ao direito pré-determinado, ainda que
erroneamente, não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.
Anote-se, de resto, que, mesmo no recurso para o STJ, a recorrente
acaba por rematar as conclusões do recurso com a afirmação de que “o acórdão
recorrido violou o disposto nos artigos 66.º e 483.º do Código Civil e 24.º da
Constituição”, centrando, já aí, a questão no plano da violação directa das
disposições citadas.
Por outro lado, embora dizendo, nas mesmas conclusões do recurso,
que “a não se entender assim, ou seja, que o art.º 66.º do Código Civil o não
permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva
do disposto no art.º 24.º da Lei Fundamental”, o que é certo é que no seu
discurso imediatamente anterior a recorrente se apresenta a defender apenas a
existência da violação de um direito subjectivo à vida, com base no artigo 24.º
da Constituição, e da obrigação de indemnizar resultante da sua violação em
concreto, bem como o cômputo dessa indemnização no montante peticionado, não se
vendo aí colocada, de forma adequada, qualquer questão de invalidade normativa
imputada a qualquer acepção do artigo 66.º do Código Civil.
De tudo resulta que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do
objecto do recurso de constitucionalidade.
C – Decisão
15 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Lisboa, 8 de Julho de 2009
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário Torres (Vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo.
Conselheiro Cura Mariano)
João Cura Mariano (Vencido, conforme declaração de voto que junto).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que podia e devia ter sido conhecido o mérito do
recurso interposto, tendo o Tribunal Constitucional perdido uma excelente
oportunidade para se pronunciar sobre um tema de especial importância como é o
do alcance da protecção do direito à vida.
Na verdade, a recorrente nas alegações apresentadas perante o Tribunal recorrido
suscitou a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do
Código Civil, no sentido “de que o nascituro não é titular de um direito à vida,
cuja ofensa deva ser indemnizada”.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
efectuou-se a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que
fosse verificada por mera remissão para a questão que havia sido suscitada
perante o tribunal recorrido.
Convidada a enunciar expressamente a interpretação cuja constitucionalidade
pretendia ver apreciada, a recorrente optou por uma formulação indirecta,
apontando qual a interpretação que o tribunal deveria ter seguido para respeitar
o parâmetro constitucional que entendia violado pela interpretação perfilhada
pelo acórdão recorrido – “a interpretação feita pelo tribunal recorrido é
materialmente inconstitucional, por violar frontal e directamente o disposto no
artigo 24 nº 1 da Lei Fundamental, já que este normativo deve ser interpretado
no sentido de proteger o direito à vida, mesmo a intra-uterina, maxime, a do
filho da autora, como titular de direitos, inclusive o direito à vida, violação
esta que é ressarcível civilmente”.
Apesar deste não ser o método mais correcto e esclarecedor de apontar a
interpretação normativa cuja fiscalização se pretende, face aos termos em que
havia sido suscitada a questão perante o tribunal recorrido e para a qual a
recorrente remeteu no requerimento de interposição de recurso, é perfeitamente
possível verificar que foi vontade da recorrente arguir perante este Tribunal
a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do C.C., no sentido
de que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida, cuja ofensa
deva ser indemnizada.
Essa vontade foi depois inequivocamente precisada pela recorrente nas alegações
de recurso apresentadas.
Foi, pois, perceptível para todos os intervenientes processuais, incluindo o
próprio Tribunal, qual a questão de constitucionalidade colocada pela
recorrente, estando, pois, suficientemente definido o objecto do recurso, pelo
que, no meu entendimento, nada impedia o seu conhecimento.
E, apreciando o mérito do recurso, pronunciar-me-ia pela sua procedência pelas
razões que passo a expor.
O artigo 66.º, do Código Civil, sob a epígrafe “Começo da personalidade”,
dispõe:
“1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”.
No direito civil a personalidade jurídica traduz a aptidão para se ser sujeito
autónomo de relações jurídicas, com a inerente titularidade dos poderes e
adstrição a vinculações que essa qualidade envolve.
Se o reconhecimento desta qualidade por uma determinada ordem jurídica obedece
às opções valorativas e culturais que nela prevalecem, também não deixa de estar
condicionado pelo papel do Direito como instrumento de satisfação de interesses
humanos. Daí que nem sempre a personalidade jurídica tenha sido reconhecida a
todos os Homens (v.g. as sociedades esclavagistas), assim como actualmente não
é uma condição exclusiva do Homem (v.g. as pessoas colectivas).
O acórdão recorrido sustentou que o artigo 66.º, do Código Civil, ao recusar
aos nascituros concebidos personalidade jurídica, não permite que estes possam
ser considerados titulares de qualquer direito antes do seu nascimento,
incluindo o próprio direito à vida.
A fixação do momento da aquisição da personalidade jurídica no acto de
nascimento com a consequente exclusão dos nascituros da condição de pessoa
jurídica, já remonta ao direito romano (vide, sobre a condição dos nascituros
no direito romano, MAX KASER, em “Direito privado romano”, pág. 101, da ed. de
1999, da Fundação Calouste Gulbenkian, e SANTOS JUSTO, em “Direito privado
romano I. Parte Geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos)”, pág.
105-107, da ed. de 2000, da Coimbra Editora), sendo essa também a solução da
nossa tradição jurídica (vide, anteriormente ao Código de Seabra, BORGES
CARNEIRO, em “Direito civil de Portugal”, vol. I, pág. 65, da ed. de 1826, e
COELHO DA ROCHA, em “Instituições de direito civil português”, Tomo I, pág. 35,
§ 56., da 6ª ed., da Imprensa da Universidade), a qual veio a obter consagração
no artigo 6.º, do C.C. de 1867 (vide, sobre este preceito, DIAS FERREIRA, em
“Código Civil Português anotado”, vol. I, pág. 11-13, da 2.ª ed., da Imprensa da
Universidade, CUNHA GONÇALVES, em “Tratado de direito civil, em comentário ao
Código Civil Português”, vol. I, pág. 176-182, da ed. de 1929, da Coimbra
Editora, e LUÍS CABRAL DE MONCADA, em “Lições de direito civil”, pág. 253-257,
da 4ª ed., da Almedina). E apesar de serem atribuídos alguns direitos aos
nascituros, num sinal que eles não deixam de ter protecção jurídica,
perfilhou-se o entendimento que a respectiva aquisição só se torna efectiva com
o seu nascimento. Como impressivamente disse Cabral de Moncada (ob. cit. pág.
253), “o homem só existe para o direito como pessoa, depois de ter nascido”.
O artigo 66.º do C.C., resultante de anteprojecto apresentado por Manuel de
Andrade (vide Esboço de um anteprojecto de Código das Pessoas e da Família, no
B.M.J. n.º 102, pág. 153.), manteve-se nesta linha de pensamento, enunciando que
a personalidade se adquire no momento do nascimento (n.º 1) e frisando que os
direitos que a lei reconheça aos nascituros (v.g. nos artigos 952.º e 2033.º, do
C.C.) dependem sempre do seu nascimento (n.º 2). É esta também a solução dos
sistemas jurídicos que nos são próximos (v.g. artigo 1, do C.C. Italiano, artigo
311, n.º 4, do C.C. Francês, artigo 30, do C.C. Espanhol, § 1, do B.G.B., artigo
2.º, do C.C. Brasileiro).
A interpretação do artigo 66.º, do C.C., perfilhada pelo acórdão recorrido,
negando a qualidade de sujeito de direitos ao nascituro concebido, corresponde à
leitura maioritária efectuada pela doutrina e a jurisprudência (ANTUNES VARELA,
em “A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil”, em Estudos
em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez”, vol. I, pág. 631-633,
ed. de 2000, da Almedina, CASTRO MENDES, em “Teoria geral do direito civil”,
vol. I, pág. 103-109, da ed. de 1978, da A.A.F.D.L., HEINRICH HÖRSTER, em “A
parte geral do Código Civil Português”, pág. 293-296, da ed. de 1992, da
Almedina, CARLOS MOTA PINTO, em “Teoria geral do direito civil”, pág. 199-202,
INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, em “Introdução ao estudo do direito”, vol. II, pág.
165-167, da 10ª ed., da Coimbra Editora, CARVALHO FERNANDES, em “Teoria geral do
direito civil”, vol. I, pág. 193-199, da 3ª ed., da Universidade Católica,
RODRIGUES BASTOS, em “Notas ao Código Civil”, vol. I, pág. 107-108, ed. de 1987,
do autor, RITA LOBO XAVIER, em “A protecção dos nascituros”, em Brotéria, vol.
147, pág. 176-184, e DIOGO LORENA BRITO, em “A vida pré-natal na jurisprudência
do Tribunal Constitucional”, pág. 121-122, da ed. de 2007, da Universidade
Católica), registando-se as opiniões dissonantes daqueles que, apesar do
disposto no artigo 66.º, n.º 1, do C.C., entendem que o sistema jurídico acaba
por reconhecer personalidade jurídica aos nascituros concebidos (OLIVEIRA
ASCENSÃO, em “Direito civil. Teoria geral”, vol. I, pág. 48-55, da 2ª ed. da
Coimbra Editora, MENEZES CORDEIRO, em “Tratado de direito civil português”,
vol. I, tomo III, pág. 293-306, da ed. de 2004, da Almedina, PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, em “Direito de personalidade”, pág. 104-118, da ed. de 2006, da
Almedina, ÓRFÃO GONÇALVES, em “Da personalidade jurídica do nascituro”, na
R.F.D.U.L., Ano 2000, pág. 525-539, LEITE DE CAMPOS, em “Lições de Direito da
família e das sucessões”, pág. 511-514, da 2ª ed., da Almedina, e STELA BARBAS,
em “Direito do Genoma Humano”, pág. 235-242, da ed. de 2007, da Almedina), ou
uma personalidade jurídica parcial ou fraccionária (RABINDRANATH CAPELO DE
SOUSA, em “Teoria geral do direito civil”, vol. I, pág. 265-281, da ed. de 2003,
da Coimbra Editora, e PEREIRA COELHO, em “Direito das sucessões. Lições ao curso
de 1973-1974”, pág. 192-193, da ed. pol. de 1992), ou ainda que retroagem a
personalidade jurídica do nascituro concebido ao momento da constituição do
direito em causa (DIAS MARQUES, em “Código Civil anotado”, pág. 23, da ed. de
1968, da Petrony).
A opção pelo momento do nascimento, como marco certo, seguro, inequívoco e
objectivamente determinável a partir do qual se inicia a personalidade jurídica
da pessoa, foi justificada pela voz autorizada de Antunes Varela com três razões
fundamentais:
“a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento,
em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião;
b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da
pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático
do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a
consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do
indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;
c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano,
compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da
autonomização fisiológica do filho perante o organismo da mãe, o marco cravado
na lei para o reconhecimento da personalidade do filho.” (na ob. cit. pág. 633).
Rita Lobo Xavier (no est. cit.) acentuou a falta de autonomia biológica e social
do nascituro concebido como razão preponderante para o Direito Civil, enquanto
disciplina positiva da convivência humana elaborada numa perspectiva de
autonomia da pessoa no desenvolvimento da sua personalidade, não sentir
necessidade de lhe atribuir personalidade jurídica.
Será que nesta construção, em que não se reconhece personalidade jurídica ao
nascituro concebido, a impossibilidade deste ser titular de um direito
subjectivo à vida afronta o disposto no artigo 24.º, da C.R.P. ?
Conforme o Tribunal Constitucional já tem afirmado e aqui se reitera, apesar da
vida em gestação ser um bem jurídico constitucionalmente protegido,
compartilhando da tutela objectiva conferida em geral à vida humana, não é
possível retirar daquele preceito um direito fundamental à vida do nascituro
concebido, tendo este por sujeito (vide os Acórdãos nº 85/85, 288/98 e 617/06,
em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 5.º, pág. 245, vol. 40.º, pág. 7,
e vol. 66.º, pág. 7, respectivamente).
Esta posição pressupõe que o ente humano, apesar de já concebido, enquanto não
nascer não se inclui no universo dos cidadãos que integram a comunidade
político-juridica a quem é reconhecida a titularidade dos direitos subjectivos
constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da C.R.P..
Mas o facto de se considerar que a vida intra-uterina é uma das etapas da vida
humana abrangida pela exigência da sua inviolabilidade reclama da ordem jurídica
infra-constitucional a adopção de medidas que a protejam e tutelem.
Está aqui em causa a dimensão mais importante da vida intra-uterina, que é a da
sua própria existência, importando desde logo verificar se o não reconhecimento
pelo Direito Civil de um direito subjectivo à vida do nascituro concebido
implica um défice de tutela que ponha em causa a garantia de um nível mínimo de
protecção daquele bem jurídico-constitucional.
Independentemente do juízo que se efectue sobre a necessidade da intervenção
dos meios típicos de protecção dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito
Civil para protecção da vida intra-uterina, verifica-se que a intervenção desses
meios não está dependente de um reconhecimento de um direito à vida do nascituro
concebido.
Como se tem constatado a melhor forma de proteger uma determinada entidade não
passa necessariamente por se lhe reconhecer subjectividade jurídica, mas sim
pela respectiva elevação à categoria de bem jurídico.
Na verdade, na tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o Direito
Civil disponibiliza não só a utilização de medidas preventivas, intimações de
abstenção e o recurso a acções inibitórias, mas também faculta o instituto da
responsabilidade civil, através do qual impõe, a quem ofenda bens tutelados
pela ordem jurídica, a reconstituição da situação que existiria, caso não se
tivesse verificado o evento que obriga à reparação ou a indemnização em
dinheiro, quando aquela reconstituição não é possível.
Neste caso, é precisamente a possibilidade de aplicação deste instituto que está
em causa.
Se a função ressarcitória assume fundamental importância na responsabilidade
civil, não deixa também de estar presente neste instituto uma função
preventiva, em articulação com a finalidade reparadora (vide, sobre esta
articulação, com perspectivas nem sempre coincidentes, PESSOA JORGE, em “Ensaio
sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, pág. 47-52, da reimp. de 1995,
da Almedina, CARNEIRO DA FRADA, em “Direito civil. Responsabilidade civil. O
método do caso, pág. 64-65, da ed. de 2006, da Almedina, MENEZES CORDEIRO, em
“Direito das obrigações”, 2.º vol, pág. 277, da ed. de 1980, da A.A.F.D.L.,
JÚLIO GOMES, em “Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função
reparatória para a responsabilidade penal”, na R.D.E., Ano XV (1989), pág.
105-144, PAULA MEIRA LOURENÇO, em “Os danos punitivos”, na R.F.D.U.L., vol.
XLIII (2002), n.º 2, pág. 1093-1107, e em “A função punitiva da responsabilidade
civil”, pág. 380-385, da ed. de 2006, da Coimbra Editora, e MAFALDA MIRANDA
BARBOSA, em “Reflexões em torno da responsabilidade civil”, no B.F.D.U.C., vol.
LXXXI (2005), pág. 511-600).
À constituição da obrigação de indemnização pela lesão de bens jurídicos também
presidem fins de protecção, procurando-se dissuadir comportamentos ofensivos
desses bens, através da cominação da obrigação de reparação dos prejuízos
causados. Perante a ameaça de uma obrigação de indemnização tender-se-á, ao
agir, a observarem-se determinados deveres de cuidado de forma a evitar a
causação de danos na esfera jurídica alheia e nesse sentido esse
desencorajamento funcionará como uma forma de prevenção de futuros
comportamentos danosos.
Ora, não é absolutamente necessário o reconhecimento da titularidade pelo
nascituro concebido de um direito à vida, para que o direito civil atribua um
direito de indemnização pela morte do nascituro imputável a terceiro (vide,
neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em Teoria geral do direito civil”,
vol. I, pág. 271-272, nota 673, e Rita Lobo Xavier, na ob. cit., pág. 80, em que
atribuem esse direito de indemnização, respectivamente, às pessoas referidas no
artigo 496.º, n.º 2, do C.C., e apenas à mãe). A tutela de bens ou interesses
jurídicos pelo instituto da responsabilidade civil pode processar-se por formas
diferentes das do reconhecimento de direitos subjectivos, conforme resulta do
próprio artigo 483.º, do C.C., quando convoca a responsabilidade civil para
intervir nos casos de violação de qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios (vide, neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “O
direito geral de personalidade”, pág. 192, nota 346, da ed. de 1995, da Coimbra
Editora).
Perante a lesão de bens jurídicos não titulados, nada impede que se atribua a
determinados sujeitos jurídicos o direito a receberem uma indemnização pelo dano
provocado por essa lesão. São casos em que, perante o sentimento duma atendível
necessidade de perseguir, através do instituto da responsabilidade civil,
finalidades preventivas e punitivas, que previnam e sancionem a lesão de um bem
jurídico, face à inexistência de um sujeito jurídico lesado, se atribui o
respectivo direito de indemnização a determinadas pessoas, tendo em conta,
designadamente, a especial relação que têm com o bem lesado.
O Direito Civil tem a maleabilidade suficiente para permitir esta solução.
Apesar de alguma atipicidade dogmática, não é, aliás, inédita a consagração de
atribuição de direitos de indemnização próprios a terceiros pela ofensa de bens
jurídicos dos quais não são titulares, independentemente desta solução poder ser
justificada como um caso de indemnização de danos reflexos (v.g. a indemnização
pelo dano de morte atribuída aos familiares próximos da vítima, não respeitaria
à perda da vida por esta, mas sim à perda do convívio com ela, que afectaria
esses familiares).
Por exemplo, o artigo 71.º, n.º 2, ao remeter para o disposto no artigo 70.º,
n.º 2, ambos do C.C., é visto como conferindo um direito de indemnização por
ofensas aos direitos de personalidade de pessoas já falecidas, ao cônjuge
sobrevivo, ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do
falecido (vide, neste sentido, CASTRO MENDES, na ob. cit., pág. 111,
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, na última ob. cit., pág. 195-196, MENEZES
CORDEIRO, na ob. cit., pág. 463-464, e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, na ob. cit.,
pág. 121).
Também na indemnização do dano de morte das pessoas nascidas, para superar o
obstáculo do lesado ter deixado de existir com o facto lesivo, parte
significativa da doutrina e da jurisprudência, interpreta o artigo 496.º, n.º
2, do C.C., como atribuindo um direito próprio de indemnização aos familiares da
vítima aí mencionados, pela perda da vida (vide, neste sentido, PIRES DE LIMA e
ANTUNES VARELA, em “Código Civil anotado”, vol. I, pág. 500, da 4ª ed., da
Coimbra Editora, ANTUNES VARELA, em “Das obrigações em geral”, vol. I, pág.
630-639, da 9ª ed., da Almedina, e na R.L.J., Ano 123, pág. 189 e seg., PEREIRA
COELHO, em “Direito das Sucessões. Lições ao curso de 1973-1974”, pág. 167-180,
da ed. pol. de 1992, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “Lições de direito das
sucessões”, vol. I, pág. 288-300, da 2ª ed., da Coimbra Editora, HEINRICH
HÖRSTER, na ob. cit., pág. 303-304, RIBEIRO DE FARIA, em “Direito das
obrigações”, vol. I, pág. 493-494, da ed. de 1990, da Almedina, DELFIM MAYA DE
LUCENA, em “Danos não patrimoniais”, pág. 57-72, da ed. de 1985, da Almedina,
PEDRO BRANQUINHO FERREIRA DIAS, em “O dano moral na doutrina e na
jurisprudência”, pág. 53-54, da ed. de 2001, da Almedina, e EDUARDO DOS SANTOS,
em “Direito das Sucessões”, pág. 54-60, da ed. da A.A.F.D.L., de 2002.
Interpretando este preceito no sentido de que este direito é adquirido por via
sucessória pelos herdeiros da vítima, vide, VAZ SERRA, na R.L.J., Ano 103, pág.
166 e seg., Ano 105, pág. 53 e seg., e Ano 107, pág. 137 e seg., INOCÊNCIO
GALVÃO TELLES, em “Direito das sucessões. Noções fundamentais”, pág. 73-77, da
4ª ed., da Coimbra Editora, LOPES CARDOSO, em “Partilhas judiciais”, vol. I,
pág. 442-444, da 4ª ed., da Almedina, LEITE DE CAMPOS, em “A indemnização do
dano de morte”, no B.F.D.U.C., vol. L, pág. 247 e seg., em “A vida, a morte e a
sua indemnização”, no B.M.J. n.º 365, pág. 5 e seg., MENEZES LEITÃO, em “Direito
das obrigações”, vol. I, pág. 299-302, da ed. de 2000, da Almedina, e CARVALHO
FERNANDES, em “Lições de direito das sucessões”, pág. 63-64, da ed. de 1999, da
Quid iuris).
E tal como é possível atribuir um direito de indemnização pela morte de um
nascituro concebido, de igual modo o Direito Civil permite que seja reconhecida,
pelo menos à mãe, legitimidade para accionar os demais meios de tutela dos bens
jurídicos que este ramo do direito disponibiliza, sem que se consagre um direito
do nascituro à vida.
Não se revelando, pois, que o reconhecimento deste direito subjectivo ao
nascituro concebido seja imprescindível para que possa ser assegurada a
protecção conferida pelos meios civilísticos de intervenção, designadamente a
responsabilidade civil, não se pode considerar que a interpretação civilista de
que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida viole o disposto
no artigo 24º, n.º 1, da C.R.P..
Mas isso não significa que a recusa em atribuir um direito de indemnização pela
morte de um nascituro já não infrinja este parâmetro constitucional por resultar
num défice de protecção ao bem vida.
A decisão recorrida partindo da constatação de que os nascituros concebidos não
eram titulares de um direito à vida, concluiu que a morte destes, em resultado
de conduta de terceiro, não era indemnizável.
Esta posição seguiu na linha de anterior Acórdão do mesmo tribunal proferido em
25-5-1985 (publicado no B.M.J. n.º 347, pág. 398), e contrariou a posição
defendida por Rabindranath Capelo de Sousa (in “Teoria geral do direito civil”,
vol. I, pág. 271-272, nota 673), segundo o qual “as expressões “por morte da
vítima” e “danos não patrimoniais sofridos pela vítima” dos nº 2 e 3 do artº
496.º incluem, na sua letra e no seu espírito, a morte do ser humano concebido”,
pelo que “por meras interpretações declarativa ou extensiva dos n.º 2 e 3 do
artº 496, parece-nos indemnizável o dano não patrimonial da supressão da vida do
concebido”, tendo concluído que “seria, aliás, estranho que fossem ressarcíveis
os danos à integridade física do concebido, particularmente quando este venha a
nascer com vida, e já não o dano da sua morte, pois então seria premiado o
assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que
tão só lhe produzisse danos corporais”.
Será que o não reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano da morte
de um nascituro concebido é causa de um défice de tutela da vida intra-uterina,
exigida pelo disposto no artigo 24º, n.º 1, da C.R.P. ?
Um suficiente cumprimento de um imperativo de tutela exige a adequação dos
meios de protecção disponibilizados pela ordem jurídica ao tipo de bem jurídico
a proteger. Não é necessário que sejam mobilizados todos os meios que a ordem
jurídica possua susceptíveis de fornecer uma forma de tutela à vida
intra-uterina, mas é exigível que estejam disponíveis os meios adequados a
garantir uma tutela minimamente eficiente deste bem jurídico.
E este imperativo de tutela não tem como destinatário apenas o legislador
ordinário, mas também o julgador na sua actividade de aplicação da lei.
Como escreveu Claus-Wilhelm Canaris:
“…A proibição de insuficiência não é aplicável apenas no (explícito) controlo
jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente, nos
correspondentes problemas no quadro da aplicação e do desenvolvimento judiciais
do direito. Pois, uma vez que a função de imperativo de tutela de direitos
fundamentais não tem, de forma alguma, alcance mais amplo no caso de uma
realização pela jurisprudência do que pelo legislador, o juiz apenas está
autorizado a cumprir esta tarefa porque, e na medida em que, a não o fazer, se
verificaria um inconstitucional défice de protecção, e, portanto, uma violação
do princípio da proibição da insuficiência…” (In “Direitos fundamentais e
direito privado”, pág. 124, da ed. de 2003, da Almedina).
Daí que o juízo de inconstitucionalidade por insuficiência de tutela de bem
reconhecido pela perspectiva objectiva dos direitos fundamentais possa recair
sobre um critério normativo que fundamente decisão judicial.
O Direito Penal é, em regra, o ramo do direito infra-constitucional que, devido
ao forte impacto dos meios repressivos que utiliza, revela maior eficácia na
protecção dos bens jurídicos, devendo, contudo, apenas intervir como ultima
ratio.
Apesar do Código Penal vigente dedicar um capítulo à criminalização dos actos
contra a vida intra-uterina (capítulo II, do Título I, do Livro II), punindo a
prática do crime de aborto (artigos 140.º e 141.º do C.P.) e assegurando, assim,
a melhor protecção jurídica àquele bem jurídico, exclui dessa punição os actos
meramente negligentes (artigo 13.º, do C.P.), pelo que, relativamente a este
tipo de acções, onde se insere precisamente a situação sub iudice, não é
possível contar com este tipo de tutela.
Entendeu o legislador ordinário, por razões de política criminal, que nesta
forma especial do acto violador da vida intra-uterina, atenta a natureza e a
hierarquia do bem jurídico protegido, não se justificava a intervenção do
direito penal.
Todavia, esta área penalmente desprotegida não deixa de reclamar uma tutela
jurídica. Se o valor social deste bem jurídico possa não exigir que o direito
penal o proteja de todo o tipo de ameaças, já a ordem jurídica, encarada
globalmente, não pode permanecer indiferente a qualquer acto que atente contra à
vida intra-uterina, nomeadamente aos que resultem de comportamentos negligentes.
Atento o âmbito restrito dos domínios de intervenção do direito disciplinar e a
falta de eficácia das medidas civilísticas de pura prevenção face à
imprevisibilidade dos actos negligentes, não poderá o instituto da
responsabilidade civil deixar de ser recrutado para esta missão.
E mesmo que seja possível apontar a falta de eficácia preventiva da
responsabilidade civil perante a forte intervenção da figura dos seguros no
domínio da responsabilidade por actos negligentes, a existência de uma obrigação
de indemnizar, mesmo que não afecte imediatamente o património do lesante, não
deixará de sinalizar a reprovabilidade do acto.
Aliás, note-se que em dimensões menos exigentes deste bem jurídico, o instituto
da responsabilidade civil não tem deixado de intervir, tutelando, por exemplo,
a integridade física do feto, ao reconhecer um direito de indemnização por
ofensas corporais. Fora das teias da construção dogmática que fixa o início da
personalidade jurídica no acto de nascimento, uma vez que nestes casos o feto
ofendido consegue nascer, atribui-se-lhe o direito de reclamar uma indemnização
pelas ofensas sofridas antes do nascimento, tutelando-se, assim, a sua
existência intra-uterina (vide, neste sentido, ANTUNES VARELA, em “A condição
jurídica do embrião humano perante o direito civil”, em Estudos em homenagem ao
Professor Doutor Pedro Soares Martínez”, vol. I, pág. 633-634, da ed. de 2000,
da Almedina, CARLOS MOTA PINTO, na ob. cit., pág. 201-202, e CASTRO MENDES, na
ob. cit., pág. 108-109).
A não admissão do pagamento duma indemnização compensatória da morte do feto,
nas áreas penalmente desprotegidas, como sucede relativamente aos actos
negligentes, resulta, assim, num défice de protecção que viola o princípio da
suficiência de tutela, pela ausência de oferta de meios jurídicos que defendam
suficientemente o direito à vida intra-uterina.
Daí que se conclua que o critério normativo de que a morte de um nascituro
concebido não é um dano indemnizável deva ser considerada inconstitucional, por
violação do disposto no artigo 24.º, n.º 1, da C.R.P..
Aliás, a reparação deste dano seria sempre obrigatoriamente indemnizável face ao
princípio estruturante do Estado de direito democrático, consagrado no artigo
2.º, da C.R.P., do qual se colhe um direito geral à reparação dos danos, de que
são expressão particular os direitos de indemnização previstos nos artigos 22.º,
37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da C.R.P. (vide GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, ob. cit., pág. 206).
Constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos
contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador
ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados
que alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos
bens e interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram
injustamente lesionados pela acção ou omissão de outrem, necessariamente
assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos
sofridos, não constituindo a ausência de um titular do bem ofendido obstáculo
intransponível à intervenção do instituto da responsabilidade civil pelas
razões acima explicadas.
Por estas razões julgaria procedente o recurso interposto, declarando
inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 24.º, da
Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, do Código Civil,
quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituro concebido não é um
dano indemnizável.
João Cura Mariano