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Processo nº 411/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Leiria, em que é
recorrente o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da
sentença daquele Tribunal de 12 de Outubro de 2007.
2. A decisão recorrida homologou a lista de credores reconhecidos pelo
administrador da insolvência e graduou os créditos constantes de tal lista,
recusando a aplicação do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de
Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Para o que cumpre apreciar e decidir importa transcrever o seguinte:
«(…)
Os créditos de contribuições da Segurança Social e respectivos juros gozam de
privilégio mobiliário geral “graduando-se logo após os créditos referidos na
alínea a) do n°1 do artigo 747° do Código Civil”, dispõe o art. 10°, n°1 do DL
103/80, de 9/5.
Por sua vez, o n° 2 deste artigo dispõe que “Este privilégio prevalece sobre
qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”
Por força desta norma estará afastada a prevalência acima referida do credor que
beneficia do penhor sobre determinado bem móvel?
Atento ao teor expresso do n° 2 do art. 10º do DL 103/80, de 9/5, a resposta
imediata parece dever ser afirmativa. Todavia, essa não é a resposta definitiva.
E isto porque se entende que tal como a norma constante do art. 11º do mesmo
diploma, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Ac. do
Tribunal Constitucional n° 363/2002, de 17/9/2002, in DR, I-A, de 16/17/2002,
também esta norma se encontra ferida de inconstitucionalidade. Como é dito no
Ac. R.P., de 09/11/2006, in www.dgsi.pt, proc. 0635637 “(...) as razões
subjacentes à inconstitucionalidade do citado art. 11º são aplicáveis ao n° 2 do
art. 10.
Como escreve Miguel Lucas Pires, em “Dos Privilégios Creditórios: Regime
Jurídico e sua influência no Concurso de Credores”, pp. 132/134, “os fundamentos
utilizados pelos arestos que consideraram inconstitucional a aplicação do regime
do art.751º aos privilégios imobiliários da Segurança Social – a falta de
publicidade, a falta de conexão entre o bem sobre que recai a garantia e a causa
do crédito, a inexistência de limite temporal e a existência de garantias
alternativas – são perfeitamente extensíveis ao regime delineado pelo n° 2 do
art. 10º para os privilégios mobiliários gerais. (...) Por outro lado, o juízo
de censura que nos merece este art. 10º, nº 2 – comparativamente com o art. 11º
- é, em certa medida, mais veemente, porquanto esta norma viola directamente os
referidos princípios constitucionais “qua tale”, enquanto o privilégio
imobiliário apenas o fará a perfilhar-se uma das interpretações possíveis da
norma que o atribua, “in casu” a sua submissão ao regime do art. 751°”.
Pelo exposto não se aplicará o nº 2 do art. 10º do DL 103/80, de 8[9]/5, por
violar o princípio da confiança, consagrado no art. 2° da Constituição da
República Portuguesa.
Nos termos do disposto no art.97°, n°1, a) do CIRE com a declaração de
insolvência os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a
insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e Segurança
Social constituídos mais de 12 meses antes da data do inicio do processo de
insolvência extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos
comuns.
(…)
No caso dos autos, como já dissemos foram apenas apreendidos bens móveis, sendo
que quanto a 5700 acções foi constituído penhor a favor de A., S.A.
III. Decisão
Por todo o exposto, nos termos das disposições legais referidas e ainda atento
ao disposto nos arts. 172°, n°s 1 e 2, 174°, n°1, 175°, n°s 1 e 2 e 176° do
CIRE, homologa-se a lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador da
insolvência, constante a fls. 10 a 28, com as rectificações/correcções de fls.
91-92 e graduam-se os créditos da seguinte forma, saindo as custas do processo e
despesas da liquidação precípuas do produto dos bens penhorados:
A) Relativamente às acções objecto de penhor:
1° O crédito garantido por penhor de A., S.A;
2° Os créditos dos trabalhadores, a pagar rateadamente se necessário;
3° Os créditos do Estado relativos a IRC, IRS e IVA, constituídos menos de 12
meses antes do início do processo de insolvência;
4° Os créditos da Segurança Social, constituídos menos de 12 meses antes do
início do processo de insolvência;
5° Os restantes créditos reconhecidos, que têm natureza comum e os do Estado e
da Segurança Social constituídos mais de 12 meses antes do início do processo de
insolvência e crédito do Estado não referido em A) 3° e B) 2°, resultante de
reversão, mencionado na lista de créditos, que também têm natureza comum,
rateadamente, se necessário;
B) Relativamente aos demais bens apreendidos:
(…)».
3. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
«1º
Os privilégios creditórios gerais, mobiliários e imobiliários, não se configuram
actualmente como direitos reais de garantia, face ao disposto na lei civil,
estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de prevalência sobre
as garantias gerais que incidam sobre tais bens.
2º
A norma constante do n° 2 do artigo 10º do Decreto-Lei n° 103/80, de 08 [9] de
Maio, ao conferir eficácia real ao privilégio mobiliário geral, outorgado à
Segurança Social, abrangendo todos os bens móveis existentes no património da
entidade devedora, susceptível de prevalecer sobre qualquer penhor; ainda que de
constituição anterior, afecta o princípio da confiança e da segurança no
comércio jurídico, ao possibilitar a existência de ónus ocultos sobre o
património do devedor, susceptíveis de precludir, em absoluto, um direito real
de garantia, constituído sobre bens determinados, ultrapassando a regra da
prioridade temporal na eficácia das várias garantias.
3º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que é objecto do presente recurso é a constante do artigo 10º, nº 2,
do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, diploma que aprovou o Regime Jurídico
das Contribuições para a Previdência.
O artigo 10º (Privilégio mobiliário) tem a seguinte redacção:
«1 – Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos
juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os
créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.
2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição
anterior».
O Tribunal da Comarca de Leiria recusou a aplicação do nº 2 deste artigo,
enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que de constituição
anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança
Social por contribuições e os respectivos juros de mora, por violação do
princípio da confiança, consagrado no artigo 2º da Constituição da República
Portuguesa (CRP).
2. Os créditos por contribuições devidas a caixas sindicais de previdência,
caixas de reforma ou de previdência e caixas de abono de família gozavam, já em
1951, do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 14º do
Decreto-Lei nº 38 538, de 24 de Novembro.
Posteriormente, o artigo 167º do Decreto-Lei nº 45 266, de 23 de Setembro de
1963, manteve o privilégio mobiliário geral dos créditos por contribuições
devidas às caixas sindicais de previdência, tendo sido, no entanto, questionada
a subsistência deste privilégio face ao texto do artigo 8º do Decreto-Lei nº 47
344, de 25 de Novembro de 1966, diploma que aprovou o Código Civil (sobre isto,
cf. Vaz Serra, “O privilégio mobiliário geral das caixas sindicais de
previdência”, Revista dos Tribunais, Ano 90º, nº 1875, 1972, p. 387 e ss. e
Pessoa Jorge, “Privilégio creditório a favor das instituições de previdência”,
Ciência e Técnica Fiscal, nºs 169-170, 1973, p. 67 e ss.).
As dúvidas foram definitivamente dissipadas com a publicação do Decreto-Lei nº
512/76, de 3 de Julho – diploma que tinha por objectivo definir as garantias que
assistiam aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos
respectivos juros de mora –, cujo artigo 1º prescrevia que os créditos pelas
contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam
de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na
alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil, prevalecendo este privilégio
sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
Esta garantia dos créditos das caixas de previdência por contribuições e
respectivos juros de mora manteve-se no artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80,
diploma que estabeleceu o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência.
“O pagamento pontual das contribuições devidas às instituições de previdência é
absolutamente indispensável como fonte básica de financiamento das prestações da
segurança social” (ponto 1. da Exposição de motivos do diploma).
3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela não inconstitucionalidade do
nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, concluindo que o privilégio
mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições
e os respectivos juros de mora tem justificação do ponto de vista
jurídico-constitucional (Acórdão nº 688/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 153/2002,
disponível no mesmo sítio, relativamente ao privilégio mobiliário geral
outorgado ao Estado para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e
respectivos juros compensatórios).
No Acórdão nº 688/98 escreveu-se, entre o mais, o seguinte:
«4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar
se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº 103/80,
tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida
pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma
arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante
(ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio).
A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta
negativa.
Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à
segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado
organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2
do mesmo artigo).
Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido
que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das
contribuições impostas para esse fim, designadamente a cargo ou da
responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou
injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas
contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais
vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio
mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do
devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia - excepção
feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está
em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por
garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na
consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das
contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo
ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º
da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par
conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos,
comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de
qualquer garantia especial».
Naqueles dois acórdãos foi feito um julgamento de não inconstitucionalidade de
normas que outorgam privilégios mobiliários gerais para garantia de créditos da
segurança social ou de créditos fiscais, fundado na ideia de que as finalidades
subjacentes ao sistema da segurança social e ao sistema fiscal justificam a
quebra da regra da par conditio creditorum, consagrada no artigo 604º, nº 1, do
Código Civil. Uma justificação de há muito avançada pela doutrina, nomeadamente
para sustentar a manutenção do privilégio mobiliário geral que garantia créditos
por contribuições devidas a instituições de previdência, face ao texto do artigo
8º do diploma que aprovou o Código Civil (cf., entre outros, Sousa Franco,
“Aspectos fiscais do novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 98, 1967,
p. 80 e s., Vaz Serra, loc. cit., p. 391 e Pessoa Jorge, loc. cit., p. 82 e
ss.).
4. Não obstante os privilégios creditórios da Segurança Social terem
justificação do ponto de vista jurídico-constitucional, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80,
enquanto confere à Segurança Social um privilégio imobiliário geral, dotado de
sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no
património do devedor, oponível independentemente do registo a todos os
adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (cf. acórdãos nºs
354/2000 e 561/2000, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). E declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do
artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei
nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil (Acórdão nº 363/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 362/2002,
disponível no mesmo sítio, que declara a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na renumeração resultante
do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, do seu artigo 111º, na interpretação
segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública
prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil).
No Acórdão nº 160/2000, uma das decisões que deu origem à declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº
363/2002, escreveu-se o seguinte:
«5. - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2º do
Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma
preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali
consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais,
referidos no artigo 748º do Código Civil.
No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante
a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio
a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos
os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para
a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência
sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o
direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele
não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no
artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a
certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação
de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas - como é o
caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º -,
se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra
do princípio da 'par conditio creditorum' (como se concluiu no do já citado
acórdão 688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental
específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99
publicado no Diário da República IIª série, de 05/04/99, e 281/99, inédito).
6. - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não pode, no
entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um privilégio
imobiliário geral.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de
direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se
poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica,
constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação
normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada,
independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das
normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica
essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus
ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com
eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que,
em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico
imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág.
333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do
Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo
Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604;
Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção
Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os
particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou
não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular
que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento
nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser
confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social –
que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e
atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão
entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à
Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais
referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a
amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do
comércio jurídico.
Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta
desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino
das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de
meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração
das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da
hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80.
A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da
confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no
artigo 2º da Constituição da República».
Para além da remissão para os fundamentos desta decisão, pode ainda ler-se no
Acórdão nº 363/2002 que:
«(…) como se entendeu no acórdão nº 109/01 [02], tirado em plenário – ao
debruçar-se sobre a norma do artigo 104º do CIRS, quando interpretada no sentido
de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil (…) –, o princípio da confiança é violado
na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais de
garantia, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses
terceiros são afectados sem, no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer
da existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus
do privilégio, devido à inexistência de registo».
Nos acórdãos mencionados, o Tribunal Constitucional apreciou normas que outorgam
privilégios imobiliários gerais para garantia de créditos da segurança social ou
de créditos fiscais, susceptíveis de preferir a direitos reais de gozo ou de
garantia, independentemente de registo prévio, concluindo pela
inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP).
5. Porém, no Acórdão nº 193/2003 o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional
a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio,
interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral nela conferido às
instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da
penhora sobre determinado imóvel (no mesmo sentido, cf. Acórdãos nºs 231/2003 e
697/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Relativamente a esta
norma o Tribunal concluiu que a ponderação a efectuar entre os fundamentos da
existência do privilégio, por um lado, e a confiança dos cidadãos, por outro,
não pende no sentido de se considerar aquele como incompatível com a
Constituição. Ou seja, as razões que levaram este Tribunal a concluir pela
inconstitucionalidade da prevalência do privilégio sobre a hipoteca
anteriormente registada não valem, da mesma forma, relativamente a essa
prevalência face à penhora.
6. Nos presentes autos, a decisão recorrida foi no sentido de estas razões,
constantes do Acórdão nº 362/2002, valerem também para a norma que faz
prevalecer o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança
Social por contribuições e os respectivos juros de mora sobre qualquer penhor,
ainda que de constituição anterior (artigo 10º, nº 2, do Regime Jurídico das
Contribuições para a Previdência). O tribunal recorrido aderiu expressamente às
razões que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº
103/80, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela
conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do
Código Civil. Para a sentença, a falta de publicidade, a falta de conexão entre
o bem sobre que recai a garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite
temporal e a existência de garantias alternativas são fundamentos “perfeitamente
extensíveis ao regime delineado pelo nº 2 do artigo 10º para os privilégios
mobiliários gerais”.
Importa, por isso, começar por aferir se tais fundamentos são todos eles
perfeitamente extensíveis à norma que cumpre apreciar.
7. Antecipando a conclusão, é de afirmar que nem todos aqueles fundamentos são
extensíveis ao nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80 e que o primeiro
fundamento não é perfeitamente extensível a esta disposição legal.
7.1. Nos autos que deram origem à decisão recorrida, o privilégio mobiliário
geral em causa tem um limite temporal – o decorrente do disposto no artigo 97º,
nº 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo
o qual com a declaração de insolvência os privilégios creditórios gerais
acessórios de créditos sobre a insolvência de que for titular a Segurança Social
constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência
extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos comuns. E
um tal limite, que a sentença recorrida aplica de forma expressa, pode
repercutir-se no juízo sobre a constitucionalidade da norma em apreciação, por
referência à proporcionalidade da lesão do comércio jurídico (cf. supra, ponto
4. da Fundamentação, na parte em que se transcreve o Acórdão nº 160/2000).
Por outro lado, a Segurança Social não dispõe relativamente aos bens móveis que
estão em causa nos presentes autos de meio equivalente ao previsto no artigo 12º
daquele Decreto-Lei – hipoteca legal sobre imóveis existentes no património das
entidades patronais. O que pode ter repercussão na apreciação da conformidade
constitucional da norma em causa, por referência à proporcionalidade da lesão do
comércio jurídico (cf. supra, ponto 4. da Fundamentação, na parte em que se
transcreve o Acórdão nº 160/2000).
7.2. O fundamento da falta de publicidade não é perfeitamente extensível ao nº 2
do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, na medida em que a fundamentação do
Acórdão nº 363/2002, a este propósito, nunca perdeu de vista a circunstância de
estar em causa uma garantia real (hipoteca) registada pelo credor. Face à
finalidade prioritária do registo predial e ao princípio da confidencialidade
tributária, o Tribunal concluiu que “não estando o crédito da Segurança Social
sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez
instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali
venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a
existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o
registo naturalmente merece”.
Na norma em apreciação também se contrapõe ao privilégio conferido à Segurança
Social um direito real de garantia – o penhor (artigo 666º do Código Civil) –,
só que, diferentemente do que sucede com a hipoteca (artigo 687º do Código
Civil), tal direito não é objecto de registo. Desta forma, não é frustrada a
fiabilidade que o registo naturalmente merece, devendo concluir-se que o credor
pignoratício não tem uma expectativa jurídica equiparável à do credor
hipotecário.
É certo que, nos presentes autos, está em causa um penhor de acções e que os
valores mobiliários são também objecto de registo. Sucede, porém, que este
registo não se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica de
tais bens, tendo em vista a segurança do comércio jurídico de valores
mobiliários, diferentemente do que sucede com o registo predial (cf. artigo 1º
do Código do Registo Predial). O registo de valores mobiliários não está sujeito
à regra da publicidade (sobre isto, cf. Paula Costa e Silva, “Efeitos do registo
e valores mobiliários. A protecção conferida ao terceiro adquirente”, Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 58, 1998, p. 862 e ss. e Ferreira de Almeida, “Registo
de valores mobiliários”, Direito dos Valores Mobiliários, volume VI, Coimbra
Editora, 2006, p. 99).
8. Subsiste, no entanto, a questão de saber se o nº 2 do artigo 10º do
Decreto-Lei nº 103/80, enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que
de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos
da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora, viola o
princípio da confiança (artigo 2º da CRP).
Para além de um dos fundamentos do Acórdão nº 363/2002 ser perfeitamente
extensível à norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em
inconstitucionalidade – a falta de conexão entre o bem sobre que recai a
garantia e a causa do crédito –, é um facto que o princípio da confidencialidade
tributária tem repercussões na publicidade daquele privilégio. Devendo notar-se,
no entanto, que o legislador foi atenuando este princípio, reduzindo,
consequentemente, a existência de ónus ocultos: segundo o artigo 20º do
Decreto-Lei nº 103/80, dos relatórios anuais das empresas públicas e das
sociedades, de publicação obrigatória, deverá constar se as mesmas são ou não
devedoras à respectiva caixa de previdência e qual o montante em dívida; de
acordo com o disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 64º da Lei Geral Tributária, na
redacção introduzida pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro, permite-se a
divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre
regularizada.
9. Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia do
Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), é violado apenas quando haja
uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas
legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º
287/90, 303/90, 625/98, 634/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Seguindo o critério do Acórdão n.º 287/90:
«A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois
seguintes critérios:
a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes
(deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo
18º da Constituição, desde a 1ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente
onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se
excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária».
Ora, relativamente à norma em apreciação não se pode sequer afirmar uma mutação
na ordem jurídica. Por um lado, de há muito que o privilégio mobiliário geral de
que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos
juros prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior (cf.
supra, ponto 2. da Fundamentação); por outro, na falta de registo público, a
ordem jurídica instituída não criou expectativas jurídicas atinentes à segurança
do comércio jurídico que a norma impugnada tenha alterado (cf. supra, ponto 7.
da Fundamentação).
Em suma, o artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, não viola o
princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático (artigo
2º da Constituição da República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre
qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário
geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os
respectivos juros de mora – privilégio creditório com justificação
constitucional por referência ao artigo 63º da CRP.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos