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Processo n.º 1002/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da CRP e do
artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
proferido em 02 de Julho de 2008 (fls. 1193 a 1215), que foi alvo de recurso de
revista que, por sua vez, foi rejeitado, com fundamento na sua
inadmissibilidade, por despacho do Juiz-Relator, proferido em 10 de Setembro de
2008 (fls. 1267).
Através do presente recurso, pretende o recorrente que seja apreciada a
constitucionalidade do “disposto no art. 127º do C.P.P., por violação do
disposto no artigo 32º n.º 2 da C.R.P., quando interpretado de modo tão lato –
como, salvo melhor opinião o foi, quer na 1ª Instância quer no Venerando
Tribunal da Relação – que permita darem-se por provados factos com base em prova
meramente indiciária, não só infirmada (ou não confirmada) pela prova directa
(testemunhal), produzida em juízo, como também ela própria (prova indiciária),
não grave, nem precisa, nem concordante com a acusação formulada e mais ainda,
prova cujos respectivos indícios podem ter tido outras causas que não o facto
probando, causas essas que não foram excluídas na actividade probatória (…)”
(fls. 1272).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 1275), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator constatar que não foram preenchidos os pressupostos de interposição
de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta
do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Em primeiro lugar, importa notar que este Tribunal só pode conhecer de
recursos, interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC,
quando a questão da inconstitucionalidade a apreciar tenha sido colocada, de
modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido (artigo 72º, n.º 2,
da LTC).
Ora, a dimensão normativa reputada de inconstitucional pelo recorrente, a
propósito de interpretação alegadamente conferida ao artigo 127º do CPP, inclui
o excerto “como também ela própria (prova indiciária), não grave, nem precisa,
nem concordante com a acusação formulada e mais ainda, prova cujos respectivos
indícios podem ter tido outras causas que não o facto probando, causas essas que
não foram excluídas na actividade probatória (…)” (fls. 1272). Sucede, porém,
que tal interpretação normativa parcial apenas foi suscitada em sede de
alegações de recurso de revista (cfr. conclusão XXV, a fls. 1263). Quando foi
interposto recurso da decisão condenatória de primeira instância, o recorrente
apenas reputou de inconstitucional a norma extraída do artigo 127º do CPP:
“(…) quando interpretado de modo tão lato que permita darem-se como provados
factos com base em prova meramente indiciária, prova essa infirmada pela prova
directa (testemunhal), produzida em juízo, como foi o caso dos autos)” (fls.
1076).
A suscitação da inconstitucionalidade de uma nova interpretação normativa do
artigo 127º do CPP, em sede de alegações de recurso de revista, não pode ser
considerada como válida e adequada, para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo
72º da LTC. Conforme comprovado pelo despacho de rejeição do recurso de revista
(fls. 1267) aquele mesmo recurso de revista era processualmente inadmissível,
conforme resulta da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP. Assim, não sendo
possível dele conhecer, torna-se evidente que a suscitação da
inconstitucionalidade da interpretação normativa apenas mencionada na motivação
e respectivas conclusões do recurso de revista não foi feita de modo processual
adequado, não podendo portanto este Tribunal dela conhecer, por força do n.º 2
do artigo 72º da LTC.
Como tal, importa apenas verificar da admissibilidade do recurso interposto
quanto à interpretação reputada de inconstitucional, em sede de motivação e
conclusões de recuso para o Tribunal da Relação do Porto.
4. Pretende o recorrente que seja julgada inconstitucional uma interpretação do
artigo 127º do CPP que entendesse ser admissível o recurso a prova meramente
indiciária que tenha sido desmentida pela prova testemunhal produzida em
audiência de julgamento. Vejamos então se foi esta a interpretação acolhida pela
decisão recorrida.
Como é bom de ver, a decisão recorrida limita-se a confirmar o juízo de
apreciação da prova produzida em julgamento, afirmando, por um lado, que a
ausência de documentação comprovativa dos contratos alvo de facturação – ao
arrepio das exigências legais a que os arguidos estavam sujeitos – e a livre
apreciação da prova testemunhal, assente na imediação e na oralidade, não
permitiam ao Tribunal da Relação do Porto formular um juízo negativo acerca da
correcção da apreciação da prova pelo tribunal de primeira instância. Assim, a
decisão recorrida limita-se a corroborar o juízo daquele tribunal de primeira
instância.
Por sua vez, a decisão condenatória do tribunal de primeira instância permite
desmentir categoricamente que a interpretação reputada de inconstitucional pelo
recorrente tenha sido efectivamente aplicada. Em momento algum da decisão se
admite que a prova indiciária sobre a qual repousou a condenação tenha sido
desmentida pela prova testemunhal, antes tendo-se afirmado o contrário. Veja-se:
“- A testemunha B., Inspectora Tributária da Direcção de Finanças do Porto, que
foi a autora do auto de notícia, fez a inspecção à contabilidade da «C.», no ano
de 2001, na sequência das informações vindas da DF de Aveiro que ligavam os
sujeitos fiscais ali inspeccionados a esta, e, apesar de pouca colaboração
recebida dela e dos seus sócios e contabilista, disse que analisou toda a sua
contabilidade. Referiu os resultados observados e confirmou-os de acordo com o
auto de notícia e relatórios dos autos, reiterando e explicando os argumentos
respectivos deles constantes, mormente o teor dos documentos, comparações
feitas, diligências realizadas, informações colhidas e, sobretudo, ausência de
documentos justificativos das operações mencionadas nas facturas que infirmem as
suas conclusões ou confiram alguma plausibilidade aos argumentos do arguido
Magalhães Morais” (fls. 968);
“- A testemunha D., Inspector Tributário da Direcção de Finanças de Aveiro,
relatou e explicou os motivos e resultados da inspecção feita a E., «F., Lda.»,
G. e uma outra sociedade, diligências realizadas, designadamente uma busca,
tendo referido que o tipo de organização e de meios (instalações, tipo de
escrita, veículos, empregados) apontavam para a impossibilidade de prestar
serviços do volume do das facturas referentes a E. e G.. Esta, porém, embora
sendo esposa dele, era apenas «testa de ferro», nada tinha a ver com a
actividade dele, nada fazendo por si. Enfim, confirmando o Relatório documentado
nos autos, disse que, pelos argumentos nele expressos, de tudo concluiu que o E.
se dedicava à emissão de facturas falsas.” (fls. 969);
“Quanto à «C.» e seu sócio-gerente A., há uma quantidade de indícios ou
indicadores graves, isto é, sérios, importantes, fortes ou intensos; precisos,
ou seja, certos e distintos ou exactos; e todos concordantes, quer dizer,
coincidentes ou direccionados segundo resultado comum e consequente: o de que os
factos se passaram como a pronúncia, na parte que lhes respeita, os descrevia e,
portanto, se deram como assentes.
Na verdade, fortes argumentos resultam das duas inspecções (à «C.» e «F.» e
outros), foram verbalizados na audiência pelos respectivos inspectores e se
extraem da documentação junta” (fls. 975)
Deste modo, fica demonstrado que a decisão recorrida, que acolhe integralmente a
fundamentação da decisão de primeira instância, não interpretou a norma
constante do artigo 127º do CPP, no sentido reputado de inconstitucional pelo
recorrente, ou seja, no sentido de que seja admitida a condenação de arguido com
base em prova meramente indiciária, ainda que esta tenha sido refutada pela
prova testemunhal produzida em audiência de julgamento. Tanto é bastante para
que se torne legalmente impossível conhecer do objecto do presente recurso, por
força do artigo 79º-C da LTC, já que a decisão recorrida não adoptou aquela
dimensão interpretativa.
A circunstância de o recorrente manifestar a manutenção de uma discordância
quanto ao modo como a prova foi apreciada e valorada pelos tribunais recorridos
não pode constituir objecto do presente recurso, uma vez que este Tribunal, não
sendo órgão ordinário de recurso, não dispõe de poderes legais que lhe permitam
sindicar a justeza destes juízos.
Em suma, afigura-se inadmissível conhecer do objecto do presente recurso, na
medida em que a interpretação normativa, tal como configurada pelo recorrente,
não foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, e pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conhecer do objecto
do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, em termos que podem resumir-se no seguinte:
«No seu douto despacho refere, entretanto o M. Sr. Juiz Relator que «em momento
algum da decisão se admite que a prova indiciária sobre a qual repousa a
condenação tenha sido desmentida pela prova testemunhal…”.
Ora, salvo devido respeito, não nos parece que assim seja.
Indo por partes, se é certo que a decisão assenta na prova indiciária já não é
verdade que a mesma não tenha sido desmentida pela prova testemunhas.
(…)
No recurso da douta sentença proferida na primeira instância [o] ora recorrente
invocou não só a violação do art. 127.º da C.R.P. quando interpretado de modo a
darem-se como provados factos essenciais da acusação, com recurso à prova
indiciária quando esses factos não só não são comprovados, como até são
informados [?] pela prova testemunhal produzida nos autos (e prova testemunhal
arrolada pela própria acusação, - o que é sintomático) como, mais ainda afirmou
que foi violado, «in casu» o princípio da presunção da inocência previsto no
art. 32.º da C.R.P. por todos os motivos explanados ao longo do aludido Recurso»
(fls. 1295 a 1301).
3. Notificado da reclamação, para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 77º da
LTC, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal veio
pronunciar-se no seguinte sentido:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a argumentação do recorrente em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do recurso.»
(fls. 1304)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. O modo como a reclamação foi configurada denota alguma incompreensão face aos
poderes do Tribunal Constitucional e aos fundamentos da própria reclamação de
decisão sumária e revela que, em última instância, o reclamante pretendia
colocar ao Tribunal um recurso da decisão e não um recurso de
constitucionalidade normativa. Em boa verdade, o reclamante limita-se,
praticamente, a insistir numa discussão sobre a prova produzida nos autos, cuja
apreciação não cabe a este Tribunal, nem sequer em sede de recurso. As
considerações tecidas sobre aquilo que o reclamante entende ter sido provado em
audiência de julgamento são irrelevantes para o presente recurso de
constitucionalidade, na medida em que este Tribunal não dispõe de poderes para
delas conhecer.
Em momento algum da reclamação são esgrimidos quaisquer fundamentos que abalem a
decisão reclamada, sendo assim evidente a total falência de argumentos passíveis
de conduzir a uma reforma da decisão alvo de reclamação.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão