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Processo n.º 35/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação, ao abrigo do artigo 76.º,
n.º 4, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho
do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 12 de
Novembro de 2008, que não admitiu o recurso por ela interposto para o Tribunal
Constitucional contra o acórdão da “Formação de apreciação preliminar” do STA,
de 15 de Outubro de 2008, que não admitira recurso excepcional de revista,
deduzido ao abrigo do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro (CPTA),
contra o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 12 de Junho
de 2008, que, por seu turno, negara provimento a recurso jurisdicional da
decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga, de 15 de Fevereiro
de 2008, que indeferira pedido de suspensão de eficácia formulado pela ora
reclamante.
1.1. Lê‑se no aludido acórdão de 15 de Outubro de 2008:
“1 – RELATÓRIO
(…) No tocante à admissão da revista, a recorrente invoca,
nomeadamente, o seguinte:
«Estão em causa quatro questões, a saber:
a) A que reside em saber se o artigo 118.º, n.º 3, do CPTA permite
que o juiz recuse diligências de prova requeridas pelo requerente da
providência;
b) E, caso o permita, se essa interpretação afronta o direito
fundamental a um processo equitativo, vertido no artigo 20.º, n.º 4, da CRP;
c) Se, tendo o acto suspendendo sido praticado em sede de
reconstituição natural emergente de julgado, em que previamente a Administração
ponderou a execução in natura por contraposição à invocação de causa legítima
de inexecução, sem audiência da contra‑interessada, há ou não lugar a audiência
prévia;
d) Se o princípio constitucional e legal da boa fé releva como
fundamento de paralisação da reconstituição natural emergente da execução de
julgado, quando terceiro (no caso a contra‑interessada), tomando como conforme
com a lei o acto administrativo posteriormente anulado por vício formal da
inteira responsabilidade da Administração, investe na construção de uma
farmácia, contraindo avultados empréstimos e contratando pessoal e está, na
sequência da declaração de invalidade do mesmo, impossibilitada de voltar ao
local originário, por o mesmo já não estar na sua posse.» – cf. fls. 569‑570.
(…)
2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O recurso de revista a que alude o n.º 1 do artigo 150.º do
CPTA, que se consubstancia na consagração de um duplo grau de recurso
jurisdicional, ainda que apenas em casos excepcionais, tem por objectivo
possibilitar a intervenção do STA naquelas situações em que a questão a apreciar
assim o imponha, devido à sua relevância jurídica ou social ou quando a admissão
do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, se atendermos à forma como o legislador delineou o
recurso de revista, em especial se olharmos aos pressupostos que condicionam a
sua admissibilidade, temos de concluir que o mesmo é de natureza excepcional,
não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso,
na medida em que das decisões proferidas pelos TCA’s em sede de recurso não
cabe, em regra, recurso de revista para o STA.
Temos, assim, que, de acordo com o já exposto, a intervenção do STA
só se justificará em matérias de maior importância, sob pena de se generalizar
este recurso de revista, o que, se acontecesse, não deixaria de se mostrar
desconforme com os fins obtidos em vista pelo Legislador (cf. a «Exposição de
Motivos» do CPTA).
Vejamos, então.
2.2. A agora recorrente requereu junto do TAF de Braga a providência
cautelar de suspensão de eficácia da deliberação do Conselho Directivo do
INFARMED, de 31 de Outubro de 2007, nos termos da qual foi decidido:
a) o encerramento imediato das instalações da Farmácia …, sita na
Rua …, loja, …, Vila Nova de Cerveira;
b) a anulação do alvará n.º …, datado de 11 de Outubro de 1999;
c) a repristinação do alvará n.º …, de 3 de Julho de 1992, bem como
a subsequente renovação do mesmo;
d) o regresso da Farmácia … às instalações sitas no Lugar do …,
freguesia de Covas, concelho de Vila Nova de Cerveira.
A aludida providência cautelar viria, contudo, a ser indeferida por
decisão do TAF, de 15 de Fevereiro de 2008, com base na manifesta falta de
fundamentos da pretensão formulada ou a formular no processo principal, nos
termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
E, isto, fundamentalmente, por se ter entendido que a já mencionada
deliberação não era judicialmente impugnável, traduzindo‑se na execução de
sentença transitada em julgado (que anulou a deliberação do Conselho de
Administração do INFARMED, de 25 de Maio de 1998, que tinha autorizado a
transferência da … da freguesia de Covas para a freguesia de Vila Nova de
Cerveira), não se tendo excedido os limites do que seria necessário para a
execução do julgado anulatório.
Importa salientar, ainda, que o TAF já tinha indeferido o
requerimento para produção de prova testemunhal apresentado pela recorrente.
Sucede que o TCA Norte acabaria por confirmar o decidido no TAF quer
quanto à não produção da prova testemunhal quer no tocante ao indeferimento da
providência cautelar, aduzindo a argumentação que consta do acórdão recorrido,
a fls. 545‑555, e de onde ressalta, em súmula, que se coonestou a tese acolhida
no TAF quanto ao indeferimento da providência cautelar, por ser manifesta a
falta de fundamento da pretensão a formular na acção principal, o que, na óptica
do TCA, também veio «corroborar o bom fundamento do juízo efectuado pelo
julgador a quo sobre a desnecessidade de proceder à produção da requerida prova
testamental (…)» – cf. fls. 555.
Ora, do quadro argumentativo explanado no acórdão recorrido não é
possível concluir pela existência de um qualquer erro grosseiro susceptível de
inquinar o dito aresto, antes se situando o decidido no TCA dentro do espectro
das soluções jurídicas plausíveis para as questões sobre que se debruçou, com o
que afastada fica a possibilidade de se fazer ancorar a admissão da revista numa
hipotética necessidade de melhor aplicação do direito.
Por outro lado, as questões a que se reporta a presente revista não
se revestem de um particular interesse comunitário, não ultrapassando
significativamente os limites do caso concreto, carecendo, por isso, de
especial relevo social.
Finalmente, a resolução das ditas questões não demanda a realização
de operações exegéticas de assinalável grau de dificuldade, tanto mais que a
pronúncia contida no acórdão recorrido se insere no âmbito da regulação
provisória da situação em litígio, não se reportando ao direito ou interesse
substantivo que a recorrente pretende fazer valer no processo principal, mas
apenas à tutela provisória desse direito ou interesse – cf., neste sentido,
entre muitos outros, os acórdãos deste STA, de 24 de Maio de 2005, Rec. 0566/05,
e de 20 de Dezembro de 2006, Rec. 01190/06.
Em suma, não se verificam os pressupostos de admissão do recurso de
revista.”
1.2. Notificada deste acórdão, a reclamante dele
pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, apresentando
requerimento, onde refere:
“1. Nos presentes autos foi proferida decisão que aplicou o disposto
no artigo 118.º, n.º 3, do CPTA, interpretado como permitindo que o juiz recuse
liminarmente diligências de prova requeridas pelo requerente de providência
cautelar.
2. Tal preceito, assim interpretado, viola o direito a um processo
equitativo, vertido no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.
3. Do mesmo modo interpretou‑se e aplicou‑se o artigo 173.º, n.º 1,
do CPTA, em termos segundo os quais o dever de reconstituição da situação
existente caso o acto anulado não tivesse sido praticado não é paralisado pela
confiança que terceiro, beneficiário do acto, fez na conformidade do mesmo com a
lei e, com base na mesma, investiu na construção de uma farmácia, contraindo
avultados empréstimos e contratando pessoal, ao mesmo tempo em que fica
impossibilitado, de facto, de retornar ao local aonde tinha a farmácia
organizada, por o mesmo já não estar na sua posse.
4. Tal preceito, assim interpretado, viola o princípio
constitucional da boa fé, na vertente da protecção da confiança legítima,
inserto no princípio do Estado de Direito.
5. A ora recorrente invocou a desconformidade dos preceitos legais
em apreço com normas constitucionais no âmbito do presente processo,
designadamente no âmbito do recurso jurisdicional interposto da sentença do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga para o Tribunal Central Administrativo
Norte.
6. Pretendendo com a interposição do presente recurso que a
conformidade constitucional de tais normas constantes de lei ordinária seja
aferida.”
1.3. O recurso interposto não foi admitido pelo despacho
de 12 de Novembro de 2008 do Conselheiro Relator do STA, do seguinte teor:
“O acórdão do STA, de 15 de Outubro de 2008, a fls. 682‑688, de que
agora se pretende recorrer para o Tribunal Constitucional, corresponde à
apreciação preliminar sumária a que alude o n.º 5 do artigo 150.º do CPTA.
Ou seja, a pronúncia emitida no citado aresto situou‑se, apenas, no
âmbito da verificação dos pressupostos que condicionam a admissão do recurso de
revista interposto pela recorrente, tudo isto no quadro do citado artigo 150.º,
não contendo, por isso, o dito acórdão qualquer pronúncia no sentido do acerto
ou desacerto da decisão proferida pelo TCA e que foi objecto do recurso de
revista, antes se limitando a «formação» do STA a decidir sobre a existência dos
já referidos pressupostos, tendo concluído, no caso em apreço, pela sua não
verificação, razão pela qual a revista não foi admitida, com base no aludido
artigo 150.º do CPTA, sendo esta a única norma que foi aplicada no mencionado
acórdão de 15 de Outubro de 2008, decisão que, como decorre do já exposto, não
entrou na apreciação do mérito da pronúncia contida no acórdão do TCA, daí que o
STA não tenha aplicado, designadamente, o n.º 3 do artigo 118.º do CPTA, nem
tão‑pouco tenha coonestado o entendimento perfilhado pelo TCA a propósito do
referido artigo 118.º, o mesmo sucedendo em relação ao artigo 173.º, n.º 1, do
CPTA, o que tudo nos leva a concluir pela não admissibilidade do recurso que se
pretende interpor para o Tribunal Constitucional do questionado acórdão deste
STA, de 15 de Outubro de 2008 (cf. o artigo 76.º da Lei do Tribunal
Constitucional).
Nestes termos, decide‑se indeferir o requerimento de interposição de
recurso de fls. 698‑700.”
1.4. É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, desenvolvendo a reclamante a seguinte argumentação:
“1. A recorrente interpôs, para o Tribunal Constitucional, recurso
do douto acórdão prolatado nos presentes autos.
2. Esse recurso foi indeferido pelo douto despacho de folhas 791 e
verso,
3. Sendo que o artigo 76.º, n.º 4, da LOTC determina que do despacho
que indefira o requerimento de interposição do recurso cabe reclamação para o
Tribunal Constitucional.
4. Pelo que o presente meio é o próprio, estando a aqui reclamante
em tempo para o impetrar.
5. Por economia de meios, a reclamante reafirma o que arguiu no seu
requerimento de interposição de recurso, pedindo vénia para remeter V. Ex.as
para o mesmo.
6. Entende a ora reclamante que a apreciação das questões referidas
no requerimento de interposição de recurso resultam implícitas no julgamento
efectuado e, pois, que o recurso deveria ter sido admitido.
Termos em que se requer a V. Ex.a se digne julgar procedente a
presente reclamação, sendo admitido o recurso interposto.”
1.5. O representante do Ministério Público neste
Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Efectivamente – e como dá nota o despacho reclamado – o acórdão
recorrido limitou‑se a proceder a uma concretização e densificação das
«cláusulas gerais» que condicionam, nos termos do artigo 150.º do CPTA, o
excepcional acesso ao STA, nos casos em que já ocorreu duplo grau de
jurisdição: tal implica que apenas essa norma tenha sido realmente aplicada,
como ratio decidendi do acórdão que não admitiu o prosseguimento do recurso, não
podendo naturalmente perspectivar‑se, na aplicação dos critérios normativos
plasmados naquele artigo 150.º, uma «implícita» aplicação dos preceitos legais e
regimes jurídicos que serviram de suporte à decisão proferida pelas instâncias.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A admissibilidade de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa dos
requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante
o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito
aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de
inconstitucionais pelo recorrente.
No presente caso, é patente que a decisão recorrida não
aplicou as normas cuja conformidade constitucional a reclamante pretende ver
apreciada, pois a única norma aplicada, como ratio decidendi, no acórdão da
“Formação de apreciação preliminar” do STA, de 15 de Outubro de 2008, foi a do
n.º 1 do artigo 150.º, que serviu de suporte à apreciação da única questão que
estava então em causa: a verificação da existência, ou não, dos requisitos de
que essa norma faz depender a admissão do recurso excepcional de revista.
O aludido acórdão do STA não aplicou, nem expressa nem
sequer implicitamente, as interpretações normativas dos artigos 118.º e 173.º,
n.º 1, do CPTA que a reclamante reputa inconstitucionais. Essas interpretações
terão sido aplicadas no acórdão do TCAN, pelo que a apreciação da sua
constitucionalidade só poderá ter lugar em recurso interposto desse acórdão do
TCAN (caso, obviamente, se verifiquem os restantes requisitos da sua
admissibilidade).
Merece, assim, inteira confirmação o despacho ora
reclamado.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos