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Processo nº 916/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O A., S.A. apresentou junto da Administração Tributária uma reclamação
graciosa de uma eventual correcção da matéria colectável do exercício de 1990 a
qual, no entendimento do então reclamante, nunca lhe teria sido notificada.
Sobre esta reclamação recaiu uma decisão do Sr. Director Distrital de Finanças
do Funchal que, em sede já de recurso hierárquico, confirmou a decisão de
indeferimento da reclamação com o fundamento de que, ao contrário do alegado
pelo então reclamante, a notificação da correcção da matéria colectável tinha
efectivamente ocorrido.
2. Assume ainda relevância para apreciação do presente recurso a conduta
procedimental do ora recorrente. É que, previamente à apresentação da reclamação
em que alegava a falta de notificação de um acto que, no seu entendimento,
afectava os seus direitos e interesses legítimos, o ora recorrente apresentou,
ao abrigo do que dispunha o artigo 22.º, n.º 1, do então em vigor Código de
Processo Tributário (CPT), um pedido dirigido à Direcção Distrital de Finanças
em que solicitava a fundamentação legal do acto de correcção da matéria
colectável. Este pedido, por ter sido apresentado para além do prazo de 30 dias
consagrado no normativo em questão, foi indeferido pelo Sr. Director Distrital
de Finanças do Funchal.
O A., S.A. apresentou então, ao abrigo do artigo 53.º, n.º 1, do CPT,
requerimento de passagem de certidão o qual mereceu deferimento.
3. O A., S.A. impugnou judicialmente a decisão referida em 1. anterior junto do
Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal pretendendo, nesta acção, a anulação
do despacho do Sr. Director Distrital de Finanças do Funchal que indeferiu a
reclamação graciosa, relativa ao IRC de 1990 e apresentada em Junho de 1996.
O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal decidiu pela improcedência desta
impugnação por entender que a impugnação judicial havia sido deduzida fora de
prazo, intempestividade esta que resultava já da intempestividade da reclamação
graciosa referida em 1. anterior fundada, por sua vez, na apresentação, fora de
prazo, do pedido a que se refere o disposto no artigo 22.º, n.º 1, do CPT.
O Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 4 de Abril de 2006,
confirmou, em sede de recurso, esta decisão.
Deste acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul veio o ora recorrente
interpor recurso por oposição de julgados para o Supremo Tribunal
Administrativo, tendo este tribunal proferido acórdão, a 2 de Maio de 2007, no
sentido de que, por não existir a oposição de julgados alegada pelo recorrente,
não deveria o recurso ser apreciado.
4. Notificado deste acórdão a 7 de Maio de 2007, e inconformado com a decisão
proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul, veio o A., a 15 de Maio de
2007, interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, alterada por último pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do
Tribunal Constitucional).
5. Nas conclusões de recurso apresentado junto do Tribunal Central
Administrativo Sul o ora recorrente vem dizer, no que importa para o presente
processo, que a interpretação do Tribunal a quo do disposto no artigo 63º do CPT
(actual artigo 35.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT)),
quando admite que os contribuintes se devam considerar notificados de um acto
ainda que não disponham de meios suficientes para conhecer o seu conteúdo, viola
o disposto no artigo 268.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Mais
refere o ora recorrente que também a interpretação que o tribunal a quo faz do
que dispõe o artigo 22.º do CPT (actual 37.º, n.º 1, do CPPT) é inconstitucional
por violação do que dispõe o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República
Portuguesa (cfr. em especial as conclusões XXXIII, XXXVII, XXXVIII e XXXIX a
fls. 362 e ss dos autos).
6. Quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas o Tribunal Central
Administrativo Sul fundou a sua decisão, no que importa o presente recurso, nos
seguintes termos:
(…)
Ora, a alteração da situação tributária dos contribuintes, designadamente da
alteração da matéria colectável, encontrava-se sujeita a notificação e por carta
registada com A/R, nos termos do disposto no art.° 65.° do CPT, então vigente,
como a própria AT também entende (cfr. inf. de fls 35 a 37 dos autos, onde se
considera tal notificação como, uma formalidade essencial do acto
tributário...).
Porém, a notificação, nos termos do disposto no art.° 63.° n.° 1 do CPT,
consiste no acto pelo qual se leva um facto ao conhecimento de uma pessoa ou se
chama alguém a juízo.
No caso, dúvidas não restam de que a notificação do 1.° apuramento da matéria
tributável (e que alterou a que por si fora declarada) jamais foi notificada à
ora recorrente de forma autónoma e individualizada.
Porém, como consta na matéria dos pontos 7., 8., 9., 12., 13., 26., 27. e 31. do
probatório e melhor se colhe dos autos, na notificação operada e relativa ao 2.°
apuramento e respectiva liquidação (nula), foi contida, também, a matéria do
referido l.° apuramento, enquanto se reflectiu na respectiva ordem de grandeza,
ou seja, neste 2.° apuramento que lhe foi remetido, em vez de ter sido indicado
o lucro tributável por si declarado na declaração de rendimentos do exercício em
causa, de 1.497.409.783$, foi indicado o de 599.090.718$, já apurado no referido
1.º apuramento, pelo que não podendo o ora recorrente deixar de saber que não
havia indicado este valor (2.599.090.718$), como lucro tributável do exercício,
por ser um facto que lhe é pessoal, não poderia deixar de concluir que ocorrera
uma qualquer alteração do montante do lucro tributável que havia declarado.
E nem devia presumir que tal menção daquele montante se devia a lapso da
Administração Fiscal, como invoca na matéria da sua conclusão XIII (prova que em
todo o caso não veio fazer), face aos princípios que enformam a actuação da
Administração na sua relação com os particulares, desde logo aos
constitucionais, previstos nas normas dos art.°s 266.° e segs (numeração
actual), e, mesmo, perante, uma eventual suspeita de lapso, o caminho a seguir
seria o da procura da informação atinente e não o do silêncio ou da omissão.
Também o recorrente carece de razão ao invocar que o valor apurado no primeiro
apuramento não deveria ter sido inscrito na linha 41, campo 262 da declaração
modelo DC 22 – cfr. matéria da sua conclusão XIV. Segundo os dizeres dela
própria, subordinada à epígrafe, Apuramento, na linha 40, campo 261, inscreve–se
o total das correcções aí apuradas (positivas ou negativas), na linha seguinte
(41), campo 262, inscreve-se o lucro ou prejuízo declarado, e na linha 42, campo
263, tem, necessariamente, de se inscrever o resultado dos dois campos
anteriores, como o total ou resultado (diferença ou adição) e desta forma
alcançar a mensuração do lucro tributável desse exercício. Como forma de “medir”
esse lucro tributável, nessa linha 41, campo 262, não poderá deixar de se
inscrever o lucro tributável declarado ou, caso ele já tenha sido alterado por
algum anterior apuramento, o valor aí encontrado (sendo a própria norma do art.°
17.° n.° 1 do CIRC, que nessa determinação o reporta ao lucro tributável
declarado ou corrigido), sob pena de não conduzir ao correcto apuramento desse
lucro, que é, o que afinal aí se visa alcançar, tal como aliás se repete no
Quadros de Recolha, subordinados aos mesmos números de campo (cfr. cópia de fls
19 dos autos de reclamação)
É certo que a norma do art.° 21.° do CPT, então vigente, dispõe que a
notificação das decisões em matéria tributária que afectem os direitos ou
interesses legalmente protegidos dos contribuintes conterão os respectivos
fundamentos de facto e de direito, a qual lhes será notificada com a decisão.
E no caso, tal norma não foi integralmente cumprida, porque nenhuma
fundamentação lhe foi remetida com a notificação do referido 2.° apuramento e
relativo ao referido 1.º apuramento, mas tal falta, como se sabe, não contende
com a validade ou perfeição do acto mas tão só com a sua eficácia externa, como
constitui jurisprudência que se considera firmada, designadamente do STA […].
Também a norma do art.° 268.° da CRP (numeração actual) não fulmina de nulidade
ou anulabilidade do acto administrativo em geral por falta da sua notificação,
antes remete para a lei ordinária tais efeitos, e que são, como se disse, de
falta da sua eficácia externa, que não da sua validade ou perfeição, o que bem
se compreende, sabido que a notificação, constitui um acto extrínseco ou
exterior ao próprio acto notificado, não se vislumbrando assim, qualquer
inconstitucionalidade na interpretação das normas supra referidas […].
Aliás, nem se compreenderia que a sanção por vício respeitante a acto posterior
à liquidação e que em nada contende com a perfeição desta fosse a sua anulação.
Perante tal falta de remessa da fundamentação nesta parte, a sanação obtinha‑se
por requerer a notificação da parte omitida, ou a passagem de certidão que a
contivesse, isenta de qualquer pagamento, ou seja quanto à parte das correcções
que foram efectuadas no referido l.° apuramento e que naquele 2.° apuramento se
dava conta, ao abrigo do disposto no art.° 22.° do mesmo CPT, o que, de resto, o
ora recorrente não deixou de vir fazer, mas só que já fora do prazo que a lei
lhe concede para o efeito, facto que só a si próprio lhe poderá ser imputável.
O uso desta faculdade, não consubstanciando, embora, um ónus de satisfação
obrigatória, é, no entanto, condição necessária para que o termo inicial do
prazo para a dedução da impugnação ou reclamação graciosa se conte, não com a
data da primeira notificação, mas com o daquela que o contribuinte suscite, pois
de outro modo se não entenderia a imposição daquele prazo de trinta dias […].
E assim sendo, tal falta de notificação (autónoma) tem de se considerar suprida
pela notificação que, mais tarde, veio a ser efectuada – a de 27.11.1995,
referida – onde levou o conhecimento da ora recorrente, não só o montante do 2.°
apuramento, como também, conjuntamente, o do 1.° apuramento referido, ainda que
de forma imperfeita, por não lhe ter sido remetida também, a respectiva
fundamentação desta, assim se tendo suprido qualquer irregularidade
procedimental consistente naquela falta de notificação autónoma.
Como refere Jorge Lopes de Sousa […], a não observância da forma de notificação
exigida constituirá uma irregularidade que não afectará o valor da notificação,
desde que se comprove que ela foi efectivamente efectuada, pois as formalidades
processuais são meios de garantir objectivos e não um a finalidade em si mesmas.
Por isso, sempre que seja atingido o objectivo, serão irrelevantes as
irregularidades.
No mesmo sentido caminha a jurisprudência dos nossos tribunais superiores,
designadamente no acórdão deste Tribunal no recurso n.° 6227/2002, de 11.6.2002,
ao se afirmar: ... Tendo a recorrente tomado conhecimento do acto através de
carta registada ... deve concluir-se que a irregularidade acima referida em que
a recorrente baseou a sua impugnação não acarreta a invalidade da liquidação ...
até porque é certo que, à luz do princípio do máximo aproveitamento dos actos
administrativos, que é decorrência do princípio geral da proibição da prática de
actos inúteis, se teria de considerar sanada a invocada irregularidade.
Na verdade, as formalidades preteridas deixam de ser essenciais quando apesar da
omissão se tenha verificado o facto que elas se destinavam a preparar ou
alcançado o objectivo específico que, com elas, se visava produzir.
E no de 27.9.2000, recurso n.° 25.273, do STA:
Devem considerar-se sanadas as irregularidades procedimentais quando, apesar de
elas terem sido praticadas, for atingida a finalidade que a lei pretendia
atingir com a sua imposição.
E no de 8.11.2000, recurso n.° 24.532, igualmente do STA:
Alcançado o efeito jurídico perseguido pela lei ao prever a notificação por
carta registada, isto é, certeza de que o destinatário daquela tornou
conhecimento do teor do acto tributário em causa, a eventual preterição de
formalidade legal (notificação por carta registada com aviso de recepção)
traduzida em vício formal do procedimento não demanda a invalidade do posterior
acto de liquidação.
Aquela formalidade, originariamente essencial, perante a satisfação do escopo
legal que lhe subjaz, degrada-se em não essencial.
Como o ora recorrente foi notificado da liquidação (nula) em 27.11.1995, como
não sofre dúvidas, proveniente do lucro tributável do referido 2.° apuramento
onde se continha o lucro tributável corrigido no 1.° apuramento, e que este
alterara, por sua vez, o por si declarado na respectiva declaração de
rendimentos relativa a esse mesmo exercício, e em 18.1.1996, requereu nos termos
do disposto no art.° 22.° do CPT, então vigente, a fundamentação legal dessas
correcções, que lhe foi indeferida por fora de prazo, já a mesma, na realidade,
se encontrava fora do respectivo prazo de trinta dias a contar da data dessa
notificação, não podendo depois vir fundar na entrega dessa certidão, o termo “a
quo” para a contagem do prazo de dedução nos termos do disposto no n.° 2 do
mesmo art.° 22.°, quer da reclamação graciosa, quer da impugnação judicial,
arrastando consigo, a extemporaneidade originária àquela atinente.
(…)
7. No requerimento de recurso de constitucionalidade, o ora recorrente veio
suscitar as seguintes questões de constitucionalidade:
(i) inconstitucionalidade do artigo 63.º do CPT (actual artigo 35.º do
CPPT), por violação do artigo 268.°, n.° 3 da Constituição, quando interpretado
no sentido de que uma declaração que não tenha por intenção específica a de
comunicar o acto notificando deve, ainda assim, ser configurada como um acto do
tipo notificação;
(ii) inconstitucionalidade do artigo 63.º do CPT (actual artigo 35.º do
CPPT), por violação do artigo 268.°, n.° 4 da Constituição, quando interpretada
no sentido de que um acto de notificação que não contenha os elementos
suficientes para gerar a cognoscibilidade da decisão pode ainda ser oponível ao
interessado, designadamente para desencadear o respectivo prazo de impugnação;
(iii) inconstitucionalidade do artigo 22.º do CPT (actual artigo 37.º,
n.º 1, do CPPT) por violação dos artigos 268.°, n.° 4 e n.º 3, da CRP, quando
interpretado no sentido de que uma notificação viciada de insuficiência
absoluta, por falta dos seus elementos essenciais (indicação do tipo legal de
acto, do seu sentido ou conteúdo, do autor e da data), possa ainda desencadear o
início do decurso do prazo de impugnação, caso o interessado não use
tempestivamente a faculdade de requerer certidão dos elementos em falta.
8. Admitido o recurso, foi determinada a produção de alegações, que o
recorrente concluiu da seguinte forma:
I. Desde a sua revisão de 1982 que a Constituição da República Portuguesa inclui
entre os direitos e garantias dos administrados o direito à notificação dos
actos administrativos. A este direito fundamental dos sujeitos de direito
enquanto administrados corresponde o dever da Administração de dar conhecimento
aos interessados, mediante uma comunicação oficial e formal, das decisões que os
afectem.
II. Entre outras funções, a notificação desempenha um papel garantístico ou
processual, na medida em que, só após a notificação, pode o acto ser oponível e
iniciar-se o decurso do prazo de impugnação. O direito à notificação dos actos
administrativos apresenta, assim, uma estreita conexão com aqueloutro direito
fundamental à tutela jurisdicional efectiva.
III. A exigência de que uma decisão administrativa não produza efeitos ablativos
enquanto não tiver sido notificada àqueles que ela afecta constitui uma
decorrência garantística do valor do Estado de Direito.
IV. O acto de notificação é, antes de mais, um acto jurídico e, da própria noção
de acto jurídico, resulta logo a ideia de acto voluntário: a notificação há de
consubstanciar uma comunicação intencional de um facto.
V. A notificação há de ser um acto individual, regido pelo princípio da
recepção: o direito à notificação do acto administrativo não é apenas o direito
de aceder a uma informação que é posta à disposição do interessado, que a pode
procurar, mas o direito à recepção do acto na esfera da perceptibilidade normal
do destinatário.
VI. Além de acto jurídico, intencional e individual, a notificação tem de ser
formal. E, ainda que a própria lei deixe alguma margem de versatilidade
(discricionariedade quanto às formalidades), não é de considerar notificação o
simples conhecimento acidental.
VII. Para que uma actuação administrativa possa ser qualificada como
notificação, e assim cumprir cabalmente as funções para que se encontra
destinada, há-de conter a indicação de elementos essenciais, a saber: a
indicação da existência de um acto administrativo, dos seus conteúdo e sentido,
do autor, da data de prática e dos fundamentos, bem como, segundo a tendência
mais recente da legislação, dos meios de defesa e respectivos prazos.
VIII. Não correspondendo a actuação administrativa ao que exige que seja uma
notificação, há que operar uma distinção entre situações de inexistência ou
insuficiência absoluta da notificação e mera insuficiência relativa ou suprível
da notificação.
IX. Falte apenas a indicação dos fundamentos do acto – mas dando-se a conhecer a
existência do acto, o seu sentido, o autor e a data – prevalece o princípio da
autotutela declarativa ou da segurança jurídica: o acto notificando torna-se
oponível e é o particular que, dispondo já do conhecimento daqueles elementos
essenciais, fica com o ónus de pedir a certidão para obter o elemento em falta
e, entretanto, interromper o decurso do prazo. Assim considerou o douto Tribunal
Constitucional, no Ac. 245/99. Apenas em casos de insuficiência relativa é que
pode, pois, ter lugar a aplicação de normas como as do artigo 22.° do CPT.
X. Já assim não se deve entender se a actuação da Administração não
corresponder, desde logo, ao tipo da notificação, maxime se não lhe assistir o
carácter intencional de levar ao conhecimento (pessoal, receptício) do
destinatário o acto que foi praticado. Assim será, também, se apenas se produzir
a comunicação da existência de um acto, sem se indicar qual o seu conteúdo e o
seu sentido – caso em que, como já foi afirmado pelo Tribunal Constitucional no
Ac. 383/05, estaremos perante uma mera comunicação e não perante uma
notificação. Ou quando, por faltarem outros elementos essenciais – como o autor
e a data da prática do acto – não seja sequer possível ao particular recorrer ao
mecanismo consagrado no artigo 22.° do CPT. Verificando-se a inexistência ou a
insuficiência absoluta da notificação, o acto é inoponível ao administrado e não
pode ser iniciado o decurso do prazo de defesa.
XI. A distinção entre inexistência ou insuficiência absoluta da notificação e
insuficiência relativa da notificação há-de resultar da ponderação, segundo o
princípio da proporcionalidade, entre os princípios constitucionais colidentes –
de um lado, o princípio, que também consubstancia um direito fundamental, da
notificação de actos administrativos, de outro, o princípio da autotutela
declarativa e o princípio da segurança jurídica, que depõem contra a manutenção
indefinida de um acto administrativo como impugnável.
XII. Da tarefa de concordância prática entre os princípios colidentes, resulta
que, sempre a notificação, apesar de insuficiente, ainda permitir ao
destinatário defender-se do acto, utilizando os elementos fornecidos para pedir
a certidão e obter os elementos em falta, se estará perante uma mera
insuficiência relativa, que não obsta à oponibilidade do acto.
XIII. Em contrapartida, naquelas situações em que o administrado não dispusesse
ao menos dos conhecimentos essenciais para compreender que se encontra emitido
um acto administrativo destinado a comprimir de certo modo a sua esfera jurídica
e que a Administração considera ter levado a cabo a respectiva notificação, esse
acto ser-lhe-á absolutamente inoponível.
XIV. No douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de que agora se
recorre, está em causa a questão de saber se o acto de 1.º apuramento do lucro
tributável foi notificado. Este acto não foi notificado autonomamente, como se
reconhece expressamente no douto Acórdão recorrido. Simplesmente, o valor desse
1.º apuramento surge englobado numa coluna de um mapa anexo à notificação do 2.°
apuramento, sem indicação expressa de que fora praticado um acto anteriormente e
sem indicação do seu sentido, do autor, da data, dos fundamentos, dos meios de
defesa e dos prazos respectivos.
XV. Porém, considerou o douto Acórdão recorrido que o 1.º acto acabou por ser
notificado ao Recorrente, juntamente com a notificação do 2.° apuramento,
«enquanto se reflectiu [nosso destaque] na ... ordem de grandeza ... [do] ...
2.° apuramento que lhe foi remetido», pelo que «... não poderia [o A.] deixar de
concluir que ocorrera uma qualquer [nosso destaque] alteração do montante do
lucro tributável que havia declarado».
XVI. Parece indiscutível que tal situação não corresponde, de todo, a uma
qualquer comunicação intencional do 1.º apuramento, individualizada e formal, o
que redunda na inexistência de notificação. Fornecer “uma qualquer” pista da
eventual existência de um acto administrativo não constitui notificação do acto.
Assim já afirmou o Tribunal Constitucional, no Ac. 383/05: “«O direito à
notificação do acto administrativo não é apenas o direito de aceder a uma
informação que é posta à disposição do interessado, que a pode procurar, mas o
direito à recepção do acto na esfera da perceptibilidade normal do
destinatário»”.
XVII. Note-se que, mesmo que tivessem sido omitidos o sentido do acto, o autor e
a data da prática, mas houvesse uma comunicação – expressa e intencional – da
existência de um acto – ainda assim, tratar-se-ia de mera comunicação, não
reconduzível ao conceito de notificação; ou, de outra forma, seria um caso de
inexistência de notificação.
XVII. A Administração Tributária, na notificação do 2.° apuramento, nem sequer
declara ter tido lugar a emissão de um primeiro acto. E, não se configurando
minimamente a existência de uma decisão autónoma – através de uma menção
expressa ao acto da sua emissão e da identificação de um seu conteúdo próprio –
também não admira que se não tenha indicado qualquer entidade que a haja
praticado, a data, a delegação de competência eventualmente utilizada e os meios
de defesa e o prazo para reagir. À pretensa notificação não falta um elemento
essencial mas, antes, todos os elementos essenciais. Mais, falta a própria
indicação da tomada de uma decisão.
A Fazenda Pública contra-alegou, dizendo:
1. Contra-alegando no recurso interposto por A., S. A., a representante da
Fazenda Pública manifesta o seu total apoio à tese do douto Acórdão recorrido no
sentido de que, por constar da notificação relativa ao segundo apuramento também
a matéria do primeiro apuramento, na medida em que, no segundo apuramento em vez
de ter sido indicado o lucro tributável indicado na declaração de rendimentos da
recorrente do exercício em causa, foi indicado o valor de apuramento diferente,
“não podendo a recorrente deixar de saber que não havia indicado esse valor
(2.599.090.718$00) (apurado pela administração fiscal), como lucro tributável de
exercício, por ser um facto que lhe é pessoal, não podia deixar de concluir que
ocorrera uma qualquer alteração do montante do lucro tributável que havia
declarado”.
2. Com efeito, através da notificação do segundo apuramento a recorrente tomou
conhecimento de todo o alcance da actividade da administração fiscal que lhe
permitiu decidir do meio de impugnação adequado à defesa do seu direito.
3. O que o douto Acórdão, ao julgar que a falta de notificação autónoma tem de
considerar-se suprida pela notificação que mais tarde veio a ser efectuada, onde
levou ao conhecimento do recorrente, não só o montante do segundo apuramento,
como também conjuntamente o do primeiro apuramento não perfilhou qualquer
entendimento susceptível de acarretar para o contribuinte ora recorrente o ónus
de procurar um hipotético acto.
4. Não desrespeitando o direito fundamental dos administrados à notificação dos
actos administrativos e o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva,
consagrados nos n ° s 3 e 4 do artigo 268° da CRP.
Pelo que, com considera o douto Acórdão, não ocorre a alegada
inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
A)
Delimitação do objecto do recurso
9. São três as questões de constitucionalidade que vêm suscitadas no âmbito do
presente processo. A saber, (i) a inconstitucionalidade do artigo 63º do CPT
(actual artigo 35.º do CPPT), quando interpretado no sentido de que uma
declaração que não tenha por intenção específica a de comunicar o acto
notificando deve, ainda assim, ser configurada como um acto do tipo notificação,
(ii) a inconstitucionalidade da norma do artigo 63º do CPT (actual artigo 35.º
do CPPT), quando interpretada no sentido de que um acto de notificação que não
contenha os elementos suficientes para gerar a cognoscibilidade da decisão pode
ainda ser oponível ao interessado, designadamente para desencadear o respectivo
prazo de impugnação e (iii) a inconstitucionalidade do artigo 22.º do CPT
(actual artigo 37.º, n.º 1, do CPPT), quando interpretada no sentido de que uma
notificação viciada de insuficiência absoluta, por falta dos seus elementos
essenciais (indicação do tipo legal de acto, do seus sentido ou conteúdo, do
autor e da data), possa ainda desencadear o decurso do prazo de impugnação, caso
o interessado não use tempestivamente a faculdade de requerer certidão dos
elementos em falta.
No entanto, e como resulta do relato atrás feito, verifica-se que o pedido
formulado pelos recorrentes no seu requerimento de interposição de recurso (e
que limita, como muito bem se sabe, os poderes de cognição do Tribunal
Constitucional ) depende de uma apreciação, levada a cabo pelo tribunal a quo e
cuja bondade não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar, que consiste numa
especial e concreta qualificação dos elementos de facto trazidos ao processo (e
que vêm, no fundo, balizar o pedido).
No caso, esta qualificação dos factos, para que o Tribunal possa apreciar as
questões que lhe são trazidas, traduz-se na necessária existência de:
(i) uma declaração da Administração Tributária que não tenha por
intenção específica a de comunicar o acto notificando;
(ii) um acto de notificação que não contenha os elementos suficientes
para gerar a cognoscibilidade da decisão e
(iii) uma notificação viciada de insuficiência absoluta, por falta dos
seus elementos essenciais (indicação do tipo legal de acto, do seus sentido ou
conteúdo, do autor e da data).
Ora, analisando o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul recorrido,
verifica-se, como um dado que não cumpre ao Tribunal Constitucional controlar,
que aquele tribunal entendeu que a notificação do segundo apuramento incluía a
notificação do primeiro apuramento/correcção do lucro tributável faltando tão só
a respectiva fundamentação.
Por outras palavras, dos elementos constantes dos autos, verifica-se que o
tribunal a quo entendeu que não existia
(i) um acto de notificação que não contivesse os elementos suficientes
para gerar a cognoscibilidade da decisão nem
(ii) uma notificação viciada de insuficiência absoluta, por falta dos seus
elementos essenciais (indicação do tipo legal de acto, do seus sentido ou
conteúdo, do autor e da data).
Isso mesmo decorre das considerações do tribunal a quo a fls. 386 a 387,
assumindo especial relevância as seguintes passagens:
No caso, dúvidas não restam de que a notificação do 1º apuramento da matéria
tributável (e que alterou a que por si fora declarada) jamais foi notificada à
ora recorrente de forma autónoma e individualizada.
Porém, (…) na notificação operada e relativa ao 2º apuramento e respectiva
liquidação (nula), foi contida, também, a matéria do referido 1º apuramento,
enquanto se reflectiu na respectiva ordem de grandeza (…), pelo que não podendo
o ora recorrente deixar de saber que não havia indicado este valor (…) como
lucro tributável do exercício, por ser um facto que lhe é pessoal, não poderia
deixar de concluir que ocorrera uma qualquer alteração do montante do lucro
tributável declarado.
(…)
É certo que a norma do art.º 21 do CPT, então vigente, dispõe que a notificação
das decisões em matéria tributária que afectem os direitos ou interesses
legalmente protegidos dos contribuintes conterão os respectivos fundamentos de
facto e de direito, a qual lhes será notificada com a decisão.
E no caso, tal norma não foi integralmente cumprida, porque nenhuma
fundamentação lhe foi remetida com a notificação do referido 2º apuramento e
relativo ao referido 1º apuramento, mas tal falta, como se sabe, não contende
com a validade ou perfeição do acto mas tão só com a sua eficácia externa, como
constitui jurisprudência que se considera firmada, designadamente do STA”.
(realce nosso)
Significa isto que o juízo do tribunal a quo se baseou tão só na consideração de
que com a notificação do segundo acto de apuramento e liquidação ocorrera a
notificação do primeiro acto de apuramento da matéria tributável que veio
corrigir o lucro tributável, notificação aquela à qual lhe faltava, apenas, a
respectiva fundamentação.
Pode eventualmente o recorrente discordar do sentido desta decisão; certo é
porém que tal não é sindicável pelo Tribunal, que não discute a forma como o
direito ordinário foi ou deveria ter sido aplicado. Como se disse no Acórdão nº
44/85: “ Saber se a norma era ou não aplicável ao caso, ou se foi bem ou não bem
aplicada – isso é da competência dos tribunais comuns, e não do Tribunal
Constitucional.” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5, 1985, p. 408).
10. Assim sendo, resta concluir que a decisão recorrida não fez aplicação de
todas as «normas» que foram indicadas pelo recorrente no seu requerimento de
interposição de recurso, pelo que há duas questões de (in)constitucionalidade
que não integram a ratio decidendi da sentença de que se recorre. São elas:
(ii) a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 63º do CPT (actual
artigo 35.º do CPPT), quando interpretada no sentido de que um acto de
notificação que não contenha os elementos suficientes para gerar a
cognoscibilidade da decisão pode ainda ser oponível ao interessado,
designadamente para desencadear o respectivo prazo de impugnação e
(iii) a questão da inconstitucionalidade do artigo 22.º do CPT (actual artigo
37.º, n.º 1, do CPPT), quando interpretada no sentido de que uma notificação
viciada de insuficiência absoluta, por falta dos seus elementos essenciais
(indicação do tipo legal de acto, do seus sentido ou conteúdo, do autor e da
data), possa ainda desencadear o decurso do prazo de impugnação, caso o
interessado não use tempestivamente a faculdade de requerer certidão dos
elementos em falta.
Ao invés, deve considerar-se que o entendimento do tribunal a quo em nada obsta
a que se considere que a Administração Tributária emitiu uma declaração sem a
intenção específica de comunicar o acto notificando.
Isso mesmo decorre do seguinte excerto do acórdão recorrido (fls 387) que se
retranscreve:
No caso, dúvidas não restam de que a notificação do 1.º apuramento da matéria
tributável (e que alterou a que por si fora declarada) jamais foi notificada à
ora recorrente de forma autónoma e individualizada.
Nestes termos, e porque se entende não estarem preenchidas as condições para o
conhecimento do objecto do recurso no que respeita as questões (ii) e (iii)
citadas, o objecto do presente recurso está limitado ao conhecimento da seguinte
questão de constitucionalidade:
(i) a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 63º do CPT (actual
artigo 35.º do CPPT), quando interpretada no sentido de que uma declaração que
não comunique ao seu destinatário, de forma autónoma e individualizada, o acto
notificando, deve, ainda assim, ser configurada como um acto do tipo
notificação.
Sustenta o recorrente que esta norma, assim interpretada, lesa o disposto nos
nºs 3 do artigo 268º da CRP. Vejamos então.
B)
A questão de constitucionalidade
I. A norma sob juízo
11. Dispõe do seguinte modo, o artigo 63º do Código de Processo Tributário
(actual artigo 35º do Código de Procedimento e Processo Tributário):
Artigo 63º
Notificações e citações
1 – Diz-se notificação o acto pelo qual se leva um facto ao conhecimento de uma
pessoa ou se chama alguém a juízo.
2 – A citação é o acto destinado a dar conhecimento ao executado de que foi
proposta contra ele determinada execução ou a chamar a esta, pela primeira vez,
pessoa interessada.
3 – Os despachos a ordenar citações ou notificações podem ser impressos e
assinados por chancela.
Como já se viu, o problema que se equaciona é o de saber se uma declaração que
não comunique ao seu destinatário o acto notificando de forma autónoma e
individualizada pode ser, sem que tal entendimento lese qualquer norma da
Constituição, configurada como um acto do tipo notificação e, como tal,
considerar‑se, em aplicação do que dispõe o artigo 63.º do CPT, como tendo sido
uma actuação procedimental suficiente para levar “um facto ao conhecimento de
uma pessoa”.
Da análise dos autos decorre que o tribunal a quo entendeu que a recorrida, com
a notificação do segundo apuramento e correspondente liquidação, notificou, de
forma simultânea, o primeiro acto de apuramento da matéria tributável
(notificação que, à luz do entendimento do tribunal a quo, ocorreu através do
mero englobamento numa coluna de um mapa anexo à notificação do 2.º apuramento).
Entendeu ainda este tribunal que a interpretação do artigo 63.º do CPT que
preconizou não contende com os limites constitucionalmente fixados para que um
acto administrativo, independentemente da sua forma e quando afecte direitos ou
interesses legalmente protegidos, venha a considerar-se notificado ao seu
destinatário.
A recorrente, por seu turno, entende que a interpretação levada a cabo pelo
tribunal a quo contende com os requisitos fixados pela Constituição no que
respeita a notificação de actos lesivos considerando, a este propósito, que a
notificação, para sê-lo, deverá conter necessariamente uma intenção específica
de comunicação do acto notificando, sob pena de violação do que dispõe o n.º 3
do artigo 268.º da CRP.
A questão de constitucionalidade que cumpre resolver é, pois, a de saber se a
Constituição obsta a que um acto praticado pela Administração, lesivo de um
direito subjectivo de um particular, possa produzir efeitos relativamente ao seu
destinatário quando tenha sido objecto de uma “notificação” que se consubstancie
numa declaração feita de forma não autónoma e não individualizada.
Como já se viu, invoca aqui o recorrente, apenas, violação do disposto no nº 3
do artigo 168º da Constituição. No entanto, e não estando naturalmente o
Tribunal vinculado aos fundamentos de Direito aduzidos no recurso, deve já
adiantar-se que, em bom rigor e no presente caso, os ns.º 3 e 4 do artigo 268.º
da CRP se encontram irremediavelmente relacionados, pelo que a solução para o
problema será, quanto a ambos preceitos, apenas uma.
II. A especificidade da notificação de actos lesivos no nosso ordenamento
jurídico
II.1. A diferença entre notificar e publicar
12. Foi na primeira revisão constitucional que se veio consagrar, no n.º 2 do
artigo 268.º, o dever de os actos administrativos com eficácia externa serem
notificados aos interessados. Este dever de notificação encontrava-se, à data,
limitado aos casos em que os actos administrativos não tinham de ser
oficialmente publicados.
Na revisão constitucional de 1989, o legislador constituinte tomou a opção de
consagrar o dever de notificação a todos os actos administrativos com eficácia
externa independentemente de estes deverem ou não ser obrigatoriamente
publicados.
Já na revisão constitucional de 1997 o legislador constituinte acrescentou, no
artigo 268.º, n.º 3 (renumerado na revisão de 1989), ao dever de notificação e
de fundamentação expressa que esta última fosse ainda acessível quanto aos actos
que afectassem direitos ou interesses legalmente protegidos.
13. O caminho seguido pelo legislador constituinte a respeito da conformação
deste dever de notificação dos actos administrativos com assento constitucional
indicia, desde já, que deve distinguir-se a notificação da publicação dos actos
administrativos.
Com efeito, da consagração constitucional do dever de notificar os actos, ainda
que os mesmos venham a ser objecto de publicação obrigatória, retira-se que a
notificação é um plus relativamente à publicação (quando esta seja obrigatória),
não sendo, regra geral, os interesses dos destinatários [do acto] tutelados em
termos constitucionalmente adequados se, no caso de um acto que afecte os seus
direitos ou interesses legalmente protegidos, aquele for apenas objecto de
publicação.
Isto mesmo vem sendo dito pelo Tribunal em diversos arestos. No Acórdão
n.º 383/2005, de 13 de Julho de 2005 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 62.º
vol., 2005), por exemplo, o Tribunal explicou, de forma detalhada e em
fundamentação que se acompanha, qual a diferença essencial entre publicação e
notificação de actos, diferença essa que justifica que os actos lesivos devam
ser notificados (ainda que sejam, simultaneamente, objecto de publicação
obrigatória).
O que importa reter a este respeito é que a notificação, ao contrário do que
sucede com a publicação, almeja a comunicação individual do conteúdo do acto ao
seu destinatário específico, por não serem consentâneas com as funções da
notificação (geralmente desenhadas como sendo a função informativa, processual e
constitutiva) aquelas «comunicações» que apenas acidentalmente informem sobre o
conteúdo de certo acto.
Quer isto dizer que quando a Constituição determina, em separado, a necessidade
de notificar os actos administrativos lesivos dos particulares,
independentemente de os publicitar, a lei fundamental vem, no fundo, afastar-se
do entendimento segundo o qual o conhecimento do acto é, antes de mais, ónus do
destinatário. Pelo contrário, a Constituição faz recair tal ónus sobre a própria
Administração, que deverá levar a cabo, com alguns limites que adiante se
analisará, todos os passos necessários e adequados para que o destinatário de um
acto venha a efectivamente dele tomar conhecimento.
II.2 A ratio da notificação: não tornar excessivamente oneroso o conhecimento
dos actos lesivos
13. Pode perguntar-se por que razão consagrou o legislador constituinte este
dever da Administração, ao invés de lhe conferir, sem mais, o poder de praticar
actos (e de os executar) sem se ocupar do conhecimento dos mesmos por parte dos
seus destinatários.
A razão de ser desta opção constitucional reside na tutela de dois diferentes
valores que se reconduzem, no essencial, a dois princípios estruturantes do
nosso ordenamento jurídico: de um lado, o princípio da segurança (ínsito na
ideia de Estado de Direito), do qual decorre a necessária cognoscibilidade, por
parte dos destinatários dos actos da Administração, de todos os elementos que os
integrem; de outro lado – mas de forma indissociável do primeiro – o princípio
da tutela jurisdicional efectiva, dado que só será impugnável o que for
cognoscível.
Daqui decorre a relação estreita que se estabelece, a este propósito, entre o
disposto no nº 3 e o disposto no nº 4 do artigo 268º da CRP. O dever de
notificação vem consagrado no nº 3. Tal dever tem, como acabou de se ver, uma
razão de ser ou um fundamento autónomo, na medida em que é ele próprio
concretização de uma ideia mais vasta de segurança – ou da necessária
cognoscibilidade de todos os actos do poder –, que vem inscrita no princípio do
Estado de direito. Mas é este um dever que se justifica por ser, ele também,
instrumento de realização do princípio da tutela jurisdicional efectiva,
consagrado no nº 4 do mesmo artigo, dado que, se não forem cognoscíveis os actos
da administração, se não poderá nunca vir a garantir a efectiva protecção
judicial dos «direitos e interesses» dos administrados.
Mas então, indaga-se agora, não seria a publicação dos actos suficiente para
atender aos dois princípios referidos?
O legislador constituinte e a jurisprudência do Tribunal respondeu já
negativamente a esta questão. Vejamos:
II.3 O dever de notificar e a necessidade de garantir o efectivo conhecimento
do acto notificando
13. No Acórdão n.º 383/2005 já citado o Tribunal considerou não haver
fundamento constitucionalmente relevante para o autor do acto ser dispensado do
dever de notificação pessoal, formal e oficial dos destinatários de actos
administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos, dever
este constitucionalmente consagrado no artigo 268.º, n.º 3, e de forma reflexa,
atendendo ao direito de impugnação contenciosa, no artigo 268.º, n.º 4.
No Acórdão n.º 145/01, de 28 de Maio, disponível para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal teve oportunidade de tomar posição
quanto à iniciativa do acto de notificação. A este propósito escreveu-se no
citado aresto:
(…) a iniciativa da notificação deve sempre caber aos serviços, na medida em que
se impõe constitucionalmente um dever à Administração de 'dar conhecimento aos
interessados mediante comunicação oficial e formal', dos actos administrativos
que lhe respeitem (sublinhado nosso; cfr. Pedro Gonçalves, Notificação dos Actos
Administrativos, in AB UNO AD OMNES, Coimbra Ed. pág 1091). Ora, aquela forma de
conhecimento pessoal não preenche de todo a exigência de comunicação oficial e
formal, desde logo porque o interessado residente no concelho da sede da
conservatória, no acto registral, fica na incerteza quanto ao registo (se é
lavrado ou se há recusa ou se há registo provisório por dúvidas) e quanto ao
momento do decidido, sendo que só se prevê a notificação oficial e formal se os
despachos de recusa e de registo provisório por dúvidas 'tiverem sido lançados
fora de prazo de realização do registo', que é de 15 dias (artigo 75º, do Código
de Registo Predial).
Razão, pois, tem o acórdão recorrido quando se diz 'o interessado no registo
deve ser sempre informado por escrito dos motivos da recusa ou do registo
provisório, quer tenha apresentado o requerimento pessoalmente ou pelo correio e
que, portanto, a Conservatória do Registo Predial de Aveiro deveria ter
informado as recorrentes por escrito dos motivos do registo provisório por
dúvidas.
Também no Acórdão n.º 489/97, publicado em Diário da República, II Série, n.º
242, de 18 de Outubro de 1997, o Tribunal veio tornar claro que “o direito dos
cidadãos a receberem uma comunicação pessoal e directa dos actos administrativos
que lhes digam respeito se traduz numa garantia constitucional infungível, que
não pode ser sub-rogada pela mera possibilidade objectiva do conhecimento de
tais actos através da sua publicação” (José Manuel M. Cardoso da Costa (“A
jurisprudência constitucional portuguesa em matéria administrativa”, em Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, págs. 177‑221, pág. 204).
Destes arestos retira-se a tutela específica que é dada aos particulares,
independentemente de estes tencionarem ou não recorrer para os tribunais
judiciais dos actos que lhe sejam lesivos e que reputam inválidos, no que se
refere ao efectivo conhecimento dos actos de que sejam destinatários.
Na verdade, decorre do que dispõe o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição que o
conhecimento efectivo dos actos lesivos dos particulares, independentemente das
suas intenções impugnatórias, merece tutela constitucional. A Administração deve
preocupar-se com o efectivo conhecimento, por parte dos particulares, dos actos
lesivos que lhes dirige. E essa preocupação traduz-se, entre nós, na necessidade
de uma notificação do acto através de uma declaração que contenha os elementos
essenciais do mesmo (sem os quais não se poderá sequer falar de um conhecimento
efectivo do acto) e que seja, fora algumas excepções que adiante serão
analisadas, eminentemente pessoal. A cognoscibilidade efectiva do acto
notificando e a pessoalidade da notificação constituem dois requisitos que, como
é bom de ver, se interligam de forma estreita. A necessidade de a notificação
ser endereçada à pessoa do interessado explica-se pelo facto de se considerar
que não preenche as exigências constitucionais aquela «notificação» que só
acidentalmente permita o conhecimento do acto notificando.
As palavras de Pedro Gonçalves (“Notificação dos Actos Administrativos (Notas
sobre a génese, âmbito, sentido e consequências de uma imposição
constitucional)”, em Ab Vno Ad Omnes – 75 Anos da Coimbra Editora – 1920‑1995,
Coimbra, págs. 1091‑1121, pág. 1115) são, a este respeito, claras quando escreve
que
O dever de notificar exige da Administração o exercício de uma actividade
comunicativa especialmente dirigida ao interessado (…) O direito à notificação
do acto administrativo não é apenas o direito de aceder a uma informação que é
posta à disposição do interessado, que a pode procurar, mas o direito à recepção
do acto na esfera da perceptibilidade normal do destinatário.
Argumenta, pois, com razão o recorrente quando refere que
V. A notificação há de ser um acto individual, regido pelo princípio da
recepção: o direito à notificação do acto administrativo não é apenas o direito
de aceder a uma informação que é posta à disposição do interessado, que a pode
procurar, mas o direito à recepção do acto na esfera da perceptibilidade normal
do destinatário.
Do exposto decorre que a publicação, na medida em que não se ocupa em garantir o
efectivo conhecimento do acto, não é, à luz da nossa Constituição, um
instrumento adequado para garantir a posição jurídica dos particulares
destinatários de actos lesivos.
II.4 O dever de notificar enquanto remédio para um fácil acesso à justiça
14. Ainda ao delimitar o dever de notificação, estabelecendo as suas fronteiras
quanto ao dever de publicação, o Tribunal considerou que uma das razões que
determinavam a notificação de um acto lesivo, ainda que o mesmo tivesse sido
publicado, era a necessidade de não tornar particularmente oneroso ao
destinatário do acto o acesso à justiça administrativa, porquanto a publicação
obriga o destinatário a estar atento sem que haja qualquer elemento que
justifique a predisposição para tal atenção.
Foi este o sentido do Acórdão n.º 489/97, publicado em Diário da República,
II Série, n.º 242, de 18 de Outubro de 1997, e do Acórdão n.º 579/99 publicado
em Diário da República, II Série, n.º 43, de 21 de Fevereiro de 2000.
Outros acórdãos vieram ainda sancionar legislação infra-constitucional que
consagrava exigências desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil que
condicionavam o direito de recorrer contenciosamente de actos lesivos. Foi este
o sentido do Acórdão n.º 384/98, publicado em Diário da República, II Série, n.º
277, de 30 de Novembro de 1998 e do Acórdão n.º 438/2002 publicado em Diário da
República, II Série, n.º 276, de 29 de Novembro de 2002.
Nesta linha, há ainda que considerar os casos em que o Tribunal foi chamado a
decidir sobre normas infra-constitucionais que faziam recair sobre os
interessados o ónus de requerer, em determinado prazo fixado na lei, a
notificação da fundamentação em falta do acto. Nestes arestos, em que a
Administração procedia à notificação ao interessado do sentido da decisão
tomada, a data em que o foi e quem a tomou, o Tribunal pronunciou-se pela não
inconstitucionalidade dos preceitos em causa fundando a sua decisão na
circunstância de a norma sob juízo não dispensar a Administração da notificação
integral do acto administrativo, prevendo apenas, prevenindo a hipótese de tal
não ter sido feito, que o prazo para impugnação contenciosa se conte da data em
que o interessado tome efectivamente conhecimento do acto (Cfr. Acórdão n.º
245/99, de 29 de Abril disponível para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt).
Estas foram pois as preocupações do Tribunal para justificar o dever de
notificação enquanto corolário do disposto no artigo 268.º, n.º 4 da
Constituição.
O que importa reter, a este respeito, é acima de tudo, a posição que vem sendo
assumida pelo Tribunal quanto à relação estreita existente entre os ns.º 3 e 4
do artigo 268.º.Como se disse no Acórdão n.º 384/98, publicado em Diário da
República, II Série, de 30 de Novembro de 1998, em fundamentação a que aderiu o
Tribunal no acórdão n.º 438/02, de 23 de Outubro,
a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos respectivos
fundamentos. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao raciocínio argumentativo
que subjaz à decisão tomada, não pode formar a vontade de recorrer, porque não
dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza de decisão.
Do que se expõe decorre que a notificação deve ser sempre um acto comunicativo
que garanta, ao respectivo destinatário, a efectiva cognoscibilidade do acto
notificando, de modo a não tornar excessivamente oneroso o acesso à justiça
administrativa. Pode eventualmente a notificação vir a ser incompleta (não
podendo esta incompletude equivaler à sua falta absoluta) deixando a
Constituição, nestes casos, abertura para que o legislador infra-constitucional,
sempre garantindo o efectivo e integral conhecimento do acto, imponha ao
destinatário a adopção de determinadas condutas (regra geral, um requerimento
dirigido à administração, em determinado prazo, para que a mesma venha completar
a notificação do acto). Nestas situações, ponderam-se o valor da eficiência
administrativa, necessário à prossecução do interesse público por parte da
Administração (artigo 266º, nº 1 da CRP), e os valores tutelados pelos direitos
e garantias dos administrados; e da ponderação resulta a já mencionada
possibilidade de o legislador ordinário prever a necessidade de adopção, por
parte dos particulares, de comportamentos tendentes a requerer a completude da
notificação. Tal não significa, porém, que se possa confundir a notificação
incompleta com aquele outro acto comunicativo que, ao não preencher os
requisitos já mencionados (recorde-se: de pessoalidade da notificação; de
cognoscibilidade efectiva do acto notificando; de não excessiva onerosidade de
acesso à justiça administrativa) se distancie de sobremaneira do conceito
constitucional decorrente do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 268º da CRP.
II.5 As excepções à pessoalidade da notificação
15. Para além do que ficou dito quanto ao conteúdo do dever de notificação –
conteúdo este determinado muito em função da distinção que cumpre fazer entre
publicação e notificação de acto administrativo – resta ainda referir as
excepções que têm sido consagradas entre nós quanto à notificação pessoal de
actos administrativos.
Estas excepções (cuja conformidade constitucional, tal como as de dispensa de
notificação, não cabe, aliás, agora apreciar) justificar-se-ão, em princípio,
pelo que pode ser considerado como sendo a «outra face da moeda» da notificação
dos actos: o privilégio da autotutela declarativa.
É com efeito este privilégio que justificará, em última instância, as duas
especiais situações em que, conforme decorre do que dispõe o artigo 70.º, n.º 1,
do Código de Procedimento Administrativo, se prescinde da notificação pessoal de
actos administrativos lesivos: a saber, quando os interessados forem
desconhecidos e quando os interessados forem em tal número que se torne
inconveniente outra forma de notificação.
Nestes casos, o valor da “eficiência administrativa” ou da “impossibilidade
objectiva de comunicar pessoalmente o acto administrativo ao interessado”
explicam – na esteira da doutrina jus-administrativista dominante e se bem que
sendo sempre ressalvada a necessidade de interpretar estas normas à luz do que
dispõe o artigo 268.º, n.º 3, da Constituição – o desvio à regra segundo a qual
a notificação deve ser sempre individual e autonomamente endereçada ao
destinatário do acto.
Como é bom de ver, no caso sob juízo não ocorre nenhuma das excepções que
acabámos de analisar. Na verdade, não se trata aqui de uma situação em que o
destinatário do acto seja desconhecido nem tão pouco haverá qualquer razão
aliada à “eficiência administrativa” que permita ao recorrido prescindir de uma
notificação pessoal. Assim, é à luz dos requisitos atrás enunciados, e que
integram afinal o conceito constitucional de notificação, que importa, no âmbito
do presente recurso, concluir.
III. Conclusão. Do conceito constitucional de notificação
16. Decorre de tudo quanto atrás se disse que o dever de notificar, que impende
sobre a administração nos termos do nº 3 do artigo 268º da CRP, tem um conteúdo
– determinado em parte, e como já se sabe, pelo princípio da tutela
jurisdicional efectiva consagrado no nº 4 do mesmo preceito constitucional – que
pode ser compreendido pela reunião dos seguintes requisitos essenciais: a
pessoalidade, a efectiva cognoscibilidade do acto notificando, e a não excessiva
onerosidade do acesso à justiça administrativa.
Já se sabe que o acto de notificação deve ser, antes do mais, pessoalmente
dirigido ao seu destinatário (salvo as excepções atrás analisadas), por não
valerem aqueles casos em que o mesmo destinatário só acidentalmente pode vir a
ter conhecimento da prática do acto lesivo. Depois, deve a notificação, pelo seu
conteúdo, possibilitar ao seu destinatário a efectiva cognoscibilidade do acto
notificando, nos seus elementos essenciais, de modo a não tornar excessivamente
oneroso o acesso do particular à justiça administrativa.
In casu, não restam dúvidas de que seria excessivo impor ao recorrente a
«obrigação» de se manter atento a todos os actos administrativos que lhe são
dirigidos, fazendo uma “autopsia” a números e quadros, sob pena de não poder
lançar mão – por força do decurso do prazo – dos meios de natureza judicial
postos ao seu dispor para a defesa do seus «direitos e interesses legalmente
protegidos».
Assim, é de concluir que não constituiu um acto de notificação
constitucionalmente admissível a emissão, por parte do seu autor, de uma
comunicação por forma não autónoma e individualizada do acto notificando, que
torne excessivamente oneroso o acesso à justiça administrativa. Na verdade, tal
forma de comunicação, ao ser, quando muito, um mero “alerta genérico” para a
existência daquele acto, não garante que o mesmo se torne cognoscível para o seu
destinatário, impedindo-se assim que a notificação seja instrumento adequado
para realizar as funções para as quais foi gizada: a função informativa,
processual e constitutiva.
Neste contexto, e uma vez que não estamos perante uma das situações que
justificam uma eventual postergação do dever de notificação pessoal dos actos
administrativos, não se antevêem razões para considerar que a recorrida pudesse
estar dispensada de notificar, de forma autónoma e individualizada, o acto em
que se consubstanciou o primeiro apuramento da matéria tributável, acto este
que, conforme decorre dos autos, por ser lesivo de um direito e interesse
legalmente protegido do ora recorrente, deveria ter sido objecto de um acto de
notificação pessoal, formal e oficial.
III
Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 268.º, n.º 3 e n.º 4
da Constituição da República, a norma contida no artigo 63º do Código de
Processo Tributário, quando interpretada no sentido de que uma declaração que
não comunique de forma autónoma e individualizada
o acto notificando, tornando excessivamente oneroso o acesso à justiça
administrativa, deve, ainda assim, ser configurada como notificação; e,
consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da
decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa,11 de Fevereiro de 2009
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão