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Processo n.º 213/08
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao abrigo
do disposto no artigo 281.º, n.º 2, g), da Constituição da República Portuguesa
(C.R.P.), deduziu pedido de fiscalização abstracta sucessiva, requerendo a
declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade, com força obrigatória
geral, de todos os artigos da Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro.
Após convite do Presidente deste Tribunal para precisar quais as disposições da
Constituição ou os princípios nela consignados e os preceitos do EPARAM que
entendia terem sido violados, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira apresentou novo requerimento em que invocou os seguintes
fundamentos para o pedido formulado:
− A Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, que foi aprovada pela Assembleia da
República, viola os direitos e a autonomia legislativa e financeira da Região
Autónoma da Madeira.
- O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira é parte
legítima para requerer a declaração de inconstitucionalidade e de ilegalidade da
referida lei.
− A aprovação da Lei n.º 28/92 constitui uma flagrante violação da autonomia
legislativa regional tal como surge consagrada no artigo 225.º, n.º 2, da
Constituição e no artigo 5.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da
Região Autónoma da Madeira.
- Na matéria em apreço, a Região Autónoma da Madeira tem competência para
legislar de um modo próprio e exclusivo, sendo ilegítimo ao Estado aprovar o
diploma legislativo impugnado.
− Na verdade, nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea p), da C.R.P., a
disciplina legislativa do orçamento e da conta regionais só à Região Autónoma
concerne. Ora não se compreenderia que a Constituição atribuísse essa
competência e não atribuísse, também, o poder de proceder ao respectivo
enquadramento normativo. Trata-se, pois, de uma 'competência implícita' que não
pode ser negada. Acresce, ainda, o facto de ser da exclusiva competência
legislativa da Região a elaboração de legislação sobre a organização e o
funcionamento dos respectivos órgãos de governo, a Assembleia Legislativa e o
Governo Regional.
- A Lei n.º 28/92 constitui também uma total desconsideração pela autonomia
financeira regional, consagrada no artigo 225.º, n.º 2, da C.R.P. e no artigo
105.º, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
- A revisão constitucional de 1997 acrescentou nas competências legislativas do
Estado, a serem exercidas pela Assembleia da República, a competência para a
elaboração do enquadramento dos orçamentos do Estado, das Regiões Autónomas e
das Autarquias Locais. Mas nem mesmo esta alteração constitucional, já de si
muito discutível, chegou ao exagero em que se traduziu a Lei n.º 28/92. De
facto, o preceito do artigo 164.º, alínea r), da C.R.P. refere-se apenas ao
'regime geral' da elaboração e organização dos orçamentos.
- Ora a simples observação da Lei n.º 28/92 revela uma total incompreensão do
fenómeno da autonomia financeira regional, pois que até desprovida ficaria −
caso a tese da sua constitucionalidade por absurdo vingasse − de poder
acrescentar o que quer que fosse na edificação de um regime legislativo que diz
respeito a uma instituição financeira puramente regional, como é o seu
orçamento.
- A pretensão exclusivista de tudo regular no tocante ao enquadramento
legislativo do orçamento da Região Autónoma da Madeira viola não só o artigo
105.º, n.º 2, do EPARAM, como, ainda, o seu artigo 40.º, alínea vv), que,
conjugado com o artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da C.R.P., permite que a Região
Autónoma legisle, através de um regime especial, no âmbito do enquadramento
legislativo do respectivo orçamento.
- Houve, finalmente, uma violação do direito de audição da Região consagrado no
artigo 229.º, n.º 2, da C.R.P., nos artigos 90.º e seguintes, do EPARAM, e na
Lei n.º 40/96, de 31 de Agosto, pois, durante o processo legislativo que
conduziu à aprovação da Lei n.º 28/92, a Assembleia da República não solicitou a
emissão de qualquer parecer por parte da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira.
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, o Presidente da
Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, enviando cópia da
documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 28/92, de 1 de
Setembro.
Acrescentou, porém, que do processo legislativo da Proposta de Lei 25/IV não
consta qualquer consulta à Região Autónoma, o que se poderá explicar pelo facto
de tal proposta ter sido, à época, apresentada pela própria Assembleia
Legislativa Regional da Madeira.
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º,
da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos
termos do n.º 2, do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a
orientação que o tribunal fixou.
*
Fundamentação
O requerente fundamenta o seu pedido de declaração de inconstitucionalidade e
ilegalidade de todas as normas contidas na Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, por
um lado, na falta de competência da Assembleia da República para legislar sobre
o conteúdo das normas impugnadas, e, por outro lado, no incumprimento do dever
de audição da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
A existência dos vícios apontados deve ser verificada à luz das disposições
vigentes à data da aprovação do diploma em causa, uma vez que ao dever de
audição dos órgãos regionais e à competência para a prática de actos
legislativos se aplica o princípio tempus regit actum.
1. Da falta de
competência da Assembleia da República
O requerente alega que a Assembleia da República não tinha competência para
aprovar a lei impugnada, uma vez que a sua matéria integra a reserva
legislativa regional.
A C.R.P., na versão introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho
(C.R.P./89), reconhecia como princípio da organização e do funcionamento do
Estado o regime autonómico insular, conferindo aos arquipélagos da Madeira e dos
Açores o estatuto de Regiões Autónomas (artigos 6.º e 227.º).
Uma das manifestações típicas deste regime autonómico político-administrativo
residia nos poderes legislativos atribuídos às Assembleias Legislativas
Regionais (artigos 229.º e 234.º, da C.R.P./89).
Nesses poderes incluía-se a competência para aprovar o orçamento regional e as
contas da região (artigos 229.º, n.º 1, o), e 234.º, n.º 1, da C.R.P./89, e
artigo 29.º, n.º 1, o) e q), do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho –
E.P.A.R.A.M./91), como revelação de um determinado grau de autonomia financeira
constitucionalmente assumido.
Contudo, a Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, não aprovou qualquer orçamento
regional, nem quaisquer contas da região, limitando-se a definir as regras
gerais referentes à elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração,
fiscalização, responsabilidade pela execução e elaboração das contas,
respeitantes a todos os Orçamentos da Região Autónoma da Madeira.
Podem as normas contidas neste diploma serem mais ou menos minuciosas,
conferirem maior ou menor liberdade de manobra ao legislador orçamental, mas não
deixaram de se limitar a definir as regras gerais de elaboração e organização
dos orçamentos da Região Autónoma da Madeira, não retirando a esta região o
poder de aprovar o seu orçamento e contas.
É, pois, uma lei de Enquadramento Orçamental Regional, a qual assume uma
natureza paramétrica específica face às sucessivas leis orçamentais da região da
Madeira.
A autonomia das regiões, nomeadamente nos aspectos legislativo e financeiro,
exerce-se no quadro da Constituição (artigo 227.º, n.º 3, in fine, da
C.R.P./89), e esta reservou expressamente a competência para aprovação do regime
geral de elaboração e organização dos orçamentos das regiões autónomas à
Assembleia da República, permitindo apenas que este órgão concedesse
autorização ao Governo da República para legislar em tal matéria (artigo 168.º,
n.º 1, p), da C.R.P./89).
Assim, a Assembleia da República não só tinha competência para aprovar a Lei n.º
28/92, de 1 de Setembro, como existia uma reserva relativa parlamentar da
República, relativamente à aprovação deste diploma.
E esta reserva foi perfeitamente entendida e respeitada pela Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira quando exerceu o seu poder de
iniciativa legislativa, nos termos dos artigos 170.º, 229.º, n.º 1, f), e 234.º,
n.º 1, da C.R.P./89, ao enviar em 8 de Maio de 1992 para a Assembleia da
República uma Proposta de Lei de Enquadramento do Orçamento da Região Autónoma
da Madeira, por si aprovada em Plenário realizado em 28 de Abril de 1992
(Proposta de Lei n.º 25/IV), a qual, após discussão e pequenas alterações de
pormenor, deu origem ao diploma agora impugnado.
Nestes termos se conclui que a Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, respeita a
repartição constitucional e legal de competências entre os órgãos de soberania e
os órgãos de governo próprios da região autónoma, pelo que as suas normas não
são inconstitucionais, nem ilegais.
2. Do incumprimento do dever de audição
A C.R.P./89, dispunha no artigo 231.º, n.º 2, que “os órgãos de soberania
ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às
regiões autónomas, os órgãos de governo regional”.
A consagração deste dever visa assegurar a participação dos órgãos de governo
regional no processo de elaboração das leis que versem matérias respeitantes às
regiões autónomas, através da atribuição de um poder de influenciar o conteúdo e
sentido dessa legislação, concretizado numa faculdade de pronúncia sobre os
respectivos projectos legislativos.
Estamos perante uma lei aprovada pela Assembleia da República que estabelece as
regras referentes à elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração,
fiscalização, responsabilidade pela execução e elaboração da conta respeitante
ao Orçamento da Região Autónoma da Madeira, pelo que, em princípio, estariam
reunidos os pressupostos para a existência de um dever de audição da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, t),
do E.P.A.R.A.M./91.
Todavia, há que ter presente que a Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, teve origem
em Proposta de Lei aprovada em Plenário da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira realizado em 28 de Abril de 1992 (Proposta de Lei n.º
25/IV).
Esta Proposta deu entrada na Assembleia da República no dia 11 de Maio de 1992 e
depois de um parecer favorável da Comissão de Economia, Finanças e Plano, em 22
de Junho de 1992, foi discutida e aprovada na generalidade, na especialidade e,
finalmente, em votação final global na sessão plenária do dia 17 de Junho de
1992.
O texto da Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro, corresponde, à excepção de alguns
ajustes de redacção e de ligeiras alterações de pormenor, ao texto da Proposta
apresentada pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, pelo que,
neste caso, não se justificava a audição deste órgão.
Não faz qualquer sentido que se mantenha o dever de audição relativamente a quem
é o próprio autor do objecto da pronúncia, uma vez que o conteúdo da proposta já
exprime a opinião sobre essa matéria de quem a elabora.
Na verdade, tendo a iniciativa legislativa partido precisamente da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira, apenas era exigível a audição deste
órgão, caso na Assembleia da República se tivessem introduzido alterações
substanciais à Proposta inicial.
Só nesta hipótese é que estaríamos perante uma pretensão legislativa, diferente
da inicialmente proposta, que justificava a concessão da possibilidade de
pronúncia do órgão de governo competente da Região Autónoma da Madeira.
Sendo as alterações de mera redacção ou de pormenor, não se modificando
relevantemente o diploma em formação, não havia lugar à audição da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
Nestes termos não existia na situação concreta um dever de audição da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira, pelo que não se verifica o apontado
vício de incumprimento deste dever no processo formativo da Lei n.º 28/92, de 1
de Setembro.
*
Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a
inconstitucionalidade nem a ilegalidade das normas contidas na totalidade dos
artigos da Lei n.º 28/92, de 1 de Setembro.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2009
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos
[1] Rectificado pelo Acórdão nº 59/2009, de 3 de Fevereiro de 2009