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Processo n.º 389/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., Lda., inconformada com o despacho do Tribunal da Póvoa do Varzim que não
admitiu o recurso por si interposto da decisão que havia julgado improcedente a
impugnação judicial anteriormente interposta na sequência de decisão
administrativa da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) que
ordenou a suspensão da laboração do estabelecimento denominado Bar …, reclamou
para o Tribunal da Relação do Porto, tendo invocado, nomeadamente, o seguinte:
“15. Sem prescindir, deve ainda considerar-se que a interpretação do Regulamento
n.º 882/2004 al. e) n.º 2 Art. 54º no sentido de que é possível a aplicação a
título preventivo e sem a prévia audição do visado da medida de suspensão e
consequente encerramento de estabelecimento comercial,
16. Bem como a interpretação do Art.º 55º e 59º do RGCO no sentido de que da
decisão que recair sobre o pedido de declaração de nulidade da aplicação da
medida de suspensão de laboração como sanção acessória e a título preventivo,
não comporta recurso, são ambas violadoras dos Art.s 31º e 32º da CRP, sendo por
tal facto inconstitucionais.”
A reclamação foi indeferida com os seguintes fundamentos:
“O aspecto que é discutido nesta reclamação prende-se com o disposto no n. ° 3
do aludido preceito, onde se diz que a decisão desse recurso é feita em ‘última
instancia’, ou seja, o tribunal judicial decide a impugnação das decisões
interlocutórias lesivas, sem que dessa decisão seja admissível recurso. Há,
assim, como diz o MP, uma norma legal de sentido inequívoco, a consagrar apenas
um grau de jurisdição. E daí que se coloque o problema de saber se este regime é
ou não violador do ‘direito ao recurso’, consagrado constitucionalmente.
Creio que a reclamante não tem razão.
O direito ao recurso a que alude o artigo 32°, 1 da Constituição da República
está garantido com a possibilidade de recurso para o Tribunal.
O acto em causa é um acto materialmente administrativo, que só é objecto de
impugnação para os tribunais judiciais, por estar inserido num procedimento
contra-ordenacional. Assim, é de aceitar como razoável e equitativo (art. 20° da
CRP) um processo onde legislador, não obstante a alteração da competência do
tribunal do recurso, define um regime de recorribilidade idêntica à dos demais
actos administrativos. É que ocorre nestes casos, onde o critério da
recorribilidade assente na lesividade dos actos procedimentais é o do art. 268°,
4 da CRP.
Por outro lado, a existência de um único grau de jurisdição no controle da
legalidade dos actos administrativos com potencial lesivo, idêntico ao que agora
nos ocupa (nos casos em que a lei o previa), foi sempre considerado compatível
com o texto constitucional. Foi o que ocorreu durante a vigência do art. 103°,
d) da LPTA, como se pode ver da decisão sumária proferida no acórdão do Tribunal
Constitucional n. ° 170/98, de 10-02-98:
‘A dita alínea d) do artigo 103° já foi apreciada por este Tribunal, por
diversas vezes, sub specie constitutionis. Tal se fez nos acórdãos n°s 202/90,
447/93 e 249/94 (publicados no Diário da República, II série, de 20 de Janeiro
de 1991, de 23 de Abril de 1994 e de 27 de Agosto de 1994), da 1° Secção, e no
acórdão n° 99/95 (por publicar), da 2° Secção. Em tais arestos, sempre se
concluiu que a norma em causa não é inconstitucional, pois que ela não viola,
designadamente, o direito de acesso aos tribunais (recte, o direito ao recurso
ou ao duplo grau de jurisdição), nem o princípio da igualdade, nem tão-pouco a
reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias ou à
competência dos tribunais’.
Creio assim que a garantia do direito ao recurso, consagrada constitucionalmente
no art. 268°, n. ° 4 da Constituição, não é posta em causa com a existência de
um único grau de jurisdição, no que diz respeito a decisões intermédias, isto é,
proferidas antes da decisão final. A garantia do ‘direito ao recurso’, prevista
no artigo 32° da CRP, só consagra um ‘duplo grau de jurisdição’ quando a
primeira decisão já seja uma decisão judicial. Nos casos em que a primeira
decisão é proferida por uma autoridade administrativa, o direito ao recurso é
garantido através da possibilidade de impugnação judicial da decisão
administrativa.
Deste modo, deve manter-se o despacho reclamado (uma vez que a decisão do
tribunal era, no caso, irrecorrível) e, consequentemente, indeferir-se a
reclamação.”
2. Notificada desta decisão, interpôs então a Recorrente recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, dizendo, no que ora importa:
“2. O recurso tem por base as seguintes questões:
— A interpretação do Art. ° 55° e 59° do RGCO ( Dec.-Lei n.° 433/82) no sentido
de que, não é passível de recurso a decisão proferida em primeira instância do
recurso judicial deduzido da aplicação de sanção acessória de estabelecimento
comercial a título preventivo, por aplicação plena do n. ° 3 do Art.° 55.º;
— A interpretação do Art.° 54° n.° 2, al. e) do Regulamento CE 884, no sentido
em que tal confere poderes à ASAE para proceder ao encerramento preventivo de um
estabelecimento de restauração e bebidas, como medida cautelar e sem dependência
de prazo, e sem previsão expressa no RGCO;
Com vista à declaração de inconstitucionalidade de tais interpretações, por
violação do disposto nos Arts.° 31° e 32° da CRP;
3. Para os devidos efeitos, esclarece que as questões em causa, foram
suscitadas:
— No pedido de impugnação da medida, dirigido ao tribunal de primeira instância;
— Nas Alegações de Recurso que não foi admitido;
— Na reclamação para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto;
4. Que as questões colocadas, foram desatendidas;”
3. Notificada para alegar, a Recorrente concluiu da seguinte maneira:
“A – Pelas razões acima enunciadas, e que aqui se repetem, a interpretação do
disposto nos Arts. 55° e 59° do RGCO ( Dec.-Lei n.° 433/82), no sentido de que
não cabe recurso para o tribunal superior da decisão que recair sobre a arguição
de nulidade da aplicação, como medida provisória, da medida de encerramento de
estabelecimento comercial, por aplicação tout court do disposto no n.° 3 do
Art.° 55.º do RGCO, desatendendo assim à natureza da concreta medida aplicada,
viola do disposto no Artigo 32° n.° 1 da CRP;
B – Ainda e pelas razões indicadas supra e que ora se renovam, a interpretação
do Art.° 54.º n.º 2 al. e) do Regulamento CE 884, no sentido em que este permite
a aplicação de medida de encerramento de estabelecimento comercial como medida
provisória de procedimento de contra ordenação, sem prévia audição e sem que
seja proferida a decisão final, viola o disposto no Art.° 29.º n.° 3 e 32° n.° 1
da CRP;”
O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, nas suas
contra-alegações, após suscitação de questão prévia relativa à segunda das
questões de constitucionalidade arguidas, concluiu o seguinte:
“1. Não são inconstitucionais as normas dos artigos 55° e 59.º do RGCO quando
interpretadas no sentido de não ser passível de recurso para o Tribunal da
Relação a decisão proferida em 1.ª instância que conhece de decisão
administrativa que impõe, em sede cautelar, a suspensão de actividade de
estabelecimento comercial, por não existir, no regime contra-ordenacional, um
direito a duplo grau de jurisdição;
2. Não é inconstitucional a norma do artigo 54.º do Regulamento CE n° 882/2004,
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004 quando interpretada
no sentido de permitir (à ASAE) a aplicação, em sede cautelar, de medida de
encerramento de um estabelecimento de restauração e bebidas, sem previsão
expressa no RGCO, por tais poderes resultarem (também) de lei nacional e não
violarem direitos fundamentais, como o direito de audição e direitos de defesa
em geral.”
4. Notificada da questão prévia invocada, veio então a Recorrente dizer o
seguinte:
“A questão que o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto suscita, como sendo
questão prévia, e na verdade, apenas e só uma questão aparente, não havendo
diversidade, se se atentar no que foi alegado pela parte.
Com efeito, na alegação sucinta para efeito de introdução do recurso, o que se
referiu foi a questão atinente à aplicação da medida cautelar,” sem precedência
de prazo, e sem previsão expressa no RGCO, pretendendo a Recorrente englobar na
falta de previsão expressa no RGCO todas as questões atinentes ao ‘due process
of law’ que se pré ordena, na ordem jurídica nacional, na aplicação das medidas
de natureza contra ordenacional.
Trata-se de uma mesma realidade, porquanto, na previsão legal do RGCO, a
aplicação de medidas de suspensão de funcionamento, apenas podem ter lugar de
acordo com as regras processuais impostas, após a audição do visado, e apenas
com a aplicação da sanção final. Ora, se é este o processo previsto para a
aplicação da medida de suspensão de funcionamento, dizer-se que não pode ser
aplicada a medida sem cumprir com a previsão do RGCO, ou dizer-se que não pode
ser aplicada a medida sem que sejam asseguradas as garantias processuais de
defesa previstas no RGCO (que é precisamente o que está em causa) é uma e a
mesma coisa.
Da mesma forma que a questão de fundo não é a de que se defende a ofensa da
constituição por se não prever um duplo grau de recurso. Porque essa resposta,
ou melhor, essa questão já está resolvida no RGCO.
A empresa a quem for aplicada, após o cumprimento do processo devido e previsto
no RGCO a medida de suspensão da actividade, tem direito a um duplo grau de
recurso — Art. 73.º n.° 1 al. b) e d) do RGCO.
O consentir-se que a medida possa ser aplicada a título preventivo (e como tal,
fora da previsão do RGCO) é que determinaria, para um mesmo acto material de
encerramento, a não admissão do duplo grau de recurso.
E também não está em crise uma qualquer hierarquia de normas ou desrespeito
pelos tratados internacionais, os quais, não podem ser integrados na lei
nacional com o mais completo atropelo das garantias de defesa dos administrados,
nem as competências funcionais da ASAE ou de uma qualquer outra entidade, podem
ser exercidas sem que o seu exercido seja devidamente compaginado com as
garantias dos administrados.
O sistema jurídico tem que ser apercebido no seu todo, e não apenas nas suas
partes.
A lei nacional que atribui poderes para fazer cessar a ilicitude e preservar as
provas necessárias, tem que ser compaginada com as garantias dos administrados,
nomeadamente, as que se referem à legalidade da recolha de provas e da aplicação
de medidas cautelares. Se assim não fosse, permitir-se-ia que a tortura fosse
uma forma de assegurar a obtenção de provas…
Diga-se ainda, que não se pode perder de vista que a questão se circunscreve ao
RGCO.
Porque é pacífico que, no uso das competências administrativas, a ASAE pode
aplicar uma medida administrativa de natureza cautelar. Contudo, em tal caso, a
medida em causa fica sujeita à disciplina administrativa e não à disciplina
contra ordenacional. E aí também, sujeita fica às garantias previstas, no
contencioso administrativo, aos particulares.
O que não pode, é exercer poderes de natureza contra ordenacional e não se
vincular às regras de processo que constituem a garantia dos administrados.
E, salvo o devido respeito, confundem-se as atribuições administrativas, com as
atribuições contra ordenacionais e cria-se uma perigosa zona sem lei para os
administrados.
É hoje pacífico, em sede de contencioso administrativo, que a ordem de demolição
de obra ilegal, ou as medidas preventivas, se regem pelas regras do contencioso
administrativo, não obstante integrem a previsão de norma contra ordenacional.
Mas no que tange ao exercício de competências pela ASAE, confundem-se as águas.
E nega-se que em concreto se trate do exercício de competências administrativas.
EM CONCLUSÃO
Que em concreto, ocorre uma compressão manifesta das garantias de defesa dos
administrados, ocorre.
Apurar se tal compressão de direitos gera a aplicação não conforme com a
constituição, é mister a resolver em sede de julgamento.
Que os administrados fundam as suas aspirações nos direitos fundamentais
conferidos pela Constituição, é uma realidade.”
A Recorrente, por despacho do Relator de fls. 159, foi notificada para: “(…)
dizer o que se lhe oferecer, face à eventualidade do Tribunal não vir a conhecer
do recurso, no que concerne ao artigo 54.º, n.º 2, alínea e), do Regulamento CE
882/2004, por tal norma não ter sido aplicada pela decisão recorrida.”
Por requerimento de fls. 161 e seguintes, veio sustentar que:
“Salvo o devido respeito, o entendimento sugerido é manifestamente restritivo,
considerando até a limitação legal da intervenção do Tribunal Constitucional,
i.e., de que o recurso apenas é admissível quando esgotados os recursos
ordinários sendo equiparado a recurso ordinário a reclamação de não admissão de
recurso.
ASSIM.
2. Em crise está, como sempre esteve, a decisão proferida em primeira instância
sobre as questões cuja constitucionalidade continua a ser suscitada nos
presentes autos.
3, Dessa decisão proferida em primeira instância, duas situações se podiam
prefigurar:
— Ou o recurso imediato para o Tribunal Constitucional se a questão em causa não
comportasse recurso ordinário:
— Ou a prévia interposição de recurso ordinário;
Sendo certo que, na primeira das hipóteses, poderia prefigurar e bem o Tribunal
Constitucional, que não se tinha esgotado o recurso ordinário.
4. Ao ser recusada a admissão de recurso, e porque a reclamação contra a não
admissão de recurso é tida como sendo ainda recurso ordinário, a Recorrente
estava obrigada a intentar a correspondente reclamação, e em relação a esta,
estava ainda obrigada a invocar os vícios internos do próprio despacho de não
admissão de recurso.
5. A decisão que recaiu sobre a reclamação deduzida limitou-se apenas a apreciar
a questão da admissibilidade processual do recurso e a sua conformidade com a
constitucionalidade, em especial, e assim o entende a Recorrente, com omissão de
pronuncia sobre as demais questões, que se consideraram como prejudicadas atenta
a decisão de confirmar a não admissão de recurso.
PORÉM,
6. A omissão de pronuncia constante da decisão que incidiu sobre a reclamação
apresentada, não pode reverter em prejuízo da Recorrente, i.e., pelo facto de o
tribunal não ter apreciado a questão que tinha sido suscitada, resumindo apenas
a decisão a parte das questões, não pode ser um factor de limitação de objecto
de recurso para o Tribunal Constitucional.
7. Aliás, será sempre necessário atender às cautelas e dificuldades processuais
inerentes a suscitar a apreciação do Tribunal Constitucional, para se conceder
que as limitações de apreciação das demais instâncias, não podem por um lado,
agrilhoar o Tribunal Constitucional, e por outro limitar o recurso às questões
adjectivas, as quais a final impediriam a apreciação da constitucionalidade, e
concomitantemente, a correspondente defesa dos direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados.
ALIÁS,
8. Num exercício de ‘reverse engeneering’ (sic), prefigure-se como seria
possível suscitar a intervenção do Tribunal Constitucional no caso vertente, sem
seguir as vias que foram seguidas no presente processo — admitir-se-ia o recurso
directo para o Tribunal Constitucional da decisão proferida em 1.ª instância? E
pelo facto de se intentar recurso ordinário, como se fez no caso vertente,
preclude-se a possibilidade de suscitar a apreciação do Tribunal Constitucional?
E se a inconstitucionalidade resultar da concreta interpretação da lei plasmada
na sentença, e que não seria previsível aquando do recurso?
9. No deve pois, limitar-se sem mais o conhecimento do objecto do recurso agora
interposto.
MAIS REQUER,
l0. Seja relevada a falta no atraso da resposta agora presente, dado que, no
caso, tal se ficou a dever ao atraso no tratamento do correio causado pelos
feriados do mês de Dezembro, aliados à greve dos correios.
11. Não sendo relevada a falta, se proceda à liquidação da multa nos termos do
n. 5 do Art. 145° do CPC.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Do objecto do recurso
5. Os recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional carecem, em ordem à efectiva possibilidade do seu
conhecimento, da prévia verificação de alguns requisitos processuais,
designadamente a aplicação de uma norma, pela decisão recorrida, enquanto ratio
decidendi, cuja inconstitucionalidade haja sido adequadamente suscitada durante
o processo pelo recorrente.
5.1. Independentemente de equacionar a questão relativa a poder o Tribunal
Constitucional conhecer, em sede de recurso de constitucionalidade, de
Regulamentos aprovados pela União Europeia, constata-se que a segunda norma
questionada pela Recorrente – referente ao artigo 54.º, n.º 2, alínea e), do
Regulamento CE n.º 882/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril
de 2004 – não foi aplicada na decisão recorrida.
Na verdade, essa decisão recorrida consubstancia-se no despacho da Exma. Vice
Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Fevereiro de 2008 (fls. 72 e
seguintes), decisão essa que é equiparada ao recurso ordinário, face ao que se
dispõe no artigo 70.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional.
Assim, não pode o recurso ser conhecido nesta parte.
5.2. Relativamente à primeira questão – versando os artigos 55.º e 59.º do
Regime Geral das Contra-Ordenações (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27
de Outubro) – verifica-se que apenas o artigo 55.º, n.º 3, foi aplicado na
decisão recorrida, pelo que o objecto do recurso terá de se circunscrever à
apreciação deste preceito na dimensão normativa questionada pela Recorrente.
Essa dimensão radica na questão de constitucionalidade invocada, e apreciada na
decisão recorrida, reportada à inadmissibilidade de recurso das decisões
judiciais proferidas pelo Tribunal de 1.ª instância, nos termos do artigo 55.º,
n.º 3 do RGCO.
Ora, sobre a aludida questão tem havido reiterada e uniforme jurisprudência por
banda deste Tribunal (vide, Acórdãos n.ºs 2/2006, 659/2006, 313/2007 e 522/2008
(publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 13 de
Fevereiro, 9 de Janeiro de 2007, 2 de Julho, e, o último, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Exarou-se no segundo aresto citado:
“2.4. Assente que, dada a diferente natureza dos ilícitos em causa e a menor
ressonância ética do ilícito de mera ordenação social, com reflexos nos regimes
processuais próprios de cada um deles, não é constitucionalmente imposto ao
legislador a equiparação das garantias em ambos esses regimes, é evidente que
não se pode considerar inconstitucional a não admissibilidade de recurso
jurisdicional de decisões proferidas em sede de impugnação judicial de decisões
administrativas aplicadoras de coimas quando nem sequer relativamente às
correspondentes decisões no âmbito do processo criminal idêntica garantia é
exigida.
Como é sabido, constitui entendimento reiterado deste Tribunal
(cf., por último, o Acórdão n.º 2/2006 e demais jurisprudência aí citada) que a
Constituição não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da
existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes
espécies. Perspectivando – como cumpre – a problemática do direito ao recurso
em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um
lado, e aos outros ramos do direito, por outro, por a consideração
constitucional das garantias de defesa implicar um tratamento específico desta
matéria no processo penal (a consagração, após a revisão de 1997, no artigo
32.º, n.º 1, da CRP, do direito ao recurso mostra que o legislador
constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o
princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida,
por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das
garantias de defesa), mesmo aqui e face a este específico fundamento da
garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, o Tribunal
Constitucional entendeu que não decorre desse fundamento que os sujeitos
processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas
diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões
penais condenatórias e ainda quanto às decisões respeitantes à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos
fundamentais. Fora destas espécies de decisões, consideraram‑se, assim,
conformes à Constituição normas processuais penais que deneguem a
possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões
proferidas na pendência do processo.
Por maioria de razão, em processo contra‑ordenacional não é
constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas
as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial da decisão
administrativa sancionatória.
De acordo com a interpretação acolhida na decisão ora recorrida
– cuja correcção, ao nível da interpretação do direito ordinário, não cumpre a
este Tribunal sindicar –, só são recorríveis para o Tribunal da Relação a
sentença ou o despacho que decidam o caso, verificadas as condições referidas
nas alíneas a) a e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 73.º do RGCO, não sendo
recorrível o despacho, posterior à decisão de rejeição da impugnação (decisão
esta entendida como constituindo a decisão que põe termo ao processo), que
julgou improcedente arguição de nulidade processual.
Esta interpretação, que assegura a possibilidade de recurso das
decisões “centrais” da impugnação judicial (decisões que “põem termo” ao
processo, embora sem prejuízo da suscitação de incidentes pós‑decisórios), não
se pode considerar, pelas razões expostas, violadora das garantias de defesa do
processo criminal, referidas no n.º 1 do artigo 32.º da CRP, na parte em que
sejam extensíveis ao processo contra‑ordenacional.”
Assim, não estando constitucionalmente consagrado um direito ao recurso de
todas as decisões proferidas em processo penal, por maioria de razão não pode
entender-se que a Constituição imponha tal garantia em processo contra
ordenacional.
III – Decisão
6. Nestes termos, acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em não
conhecer do recurso no tocante ao Regulamento CE 882/2004, alínea e) e n.º 2 do
artigo 54.º, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004 e,
ainda, dos artigos 55.º e 59.º do Regulamento Geral das Contra Ordenações;
negando provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos