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Processo n.º 943/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 10 de Dezembro de 2008, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não
conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade por ele interposto.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto (TRP), de 14 de Julho de 2008, que, concedendo provimento a
recurso do Ministério Público contra o acórdão do Tribunal Colectivo da 1.ª Vara
Criminal da Comarca do Porto, de 7 de Fevereiro de 2008, que suspendera pelo
período de 4 anos e 6 meses a execução da pena de 4 anos e 6 meses de prisão que
lhe fora aplicada pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes,
previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de
Janeiro, por referência às Tabelas IA e IC anexas a tal diploma, manteve a
anterior condenação na pena de 4 anos e 6 meses de prisão efectiva.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, o
recorrente pretende que o Tribunal Constitucional se pronuncie «sobre a
ilegalidade / inconstitucionalidade decorrente da completa desconsideração e,
assim, exclusão do subjacente ao preenchimento do invocado conceito de
‘humanidade’, enquanto substrato co‑vinculante para determinar‑se a suspensão da
pena de prisão aplicada, para nós, com o sempre mui grande e elevado respeito
por melhor e douta opinião, plenamente contemplado e abarcado no n.º 1 do artigo
50.º do Código Penal (‘condições da sua vida’ – do arguido), na novel redacção
da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, necessariamente preponderante e
prevalecente quando é posto em crise o ‘direito à saúde’ e / ou o ‘direito à
vida’ do arguido, em violação dos artigos 64.º, n.º 1, e / ou 24.º, n.º 1, ambos
da Constituição da República Portuguesa, destarte também violando o naquela
apontada norma substantiva, ao desaplicá‑la no sentido propugnado pelo Tribunal
Colectivo e pelo arguido – porque não mera faculdade do Tribunal, mas antes um
poder‑dever, ou poder funcional, cuja aplicação se mostrava e é a adequada,
formal e materialmente, em termos de prevenção geral e de prevenção especial e
da realização da justiça penal –, e, bem assim, o n.º 1 do artigo 205.º da
Constituição da República Portuguesa, tal como o n.º 4 do artigo 97.º do Código
de Processo Penal, por falta de fundamentação decisória, a propósito – maxime,
‘de facto’ –, atento o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC».
Mais referiu ter suscitado tais questões em sede de resposta à motivação do
recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto e também na
resposta apresentada, ao abrigo do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal (CPP), quanto ao parecer emitido pelo representante do Ministério Público
junto do Tribunal da Relação.
O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do TRP, decisão
que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3,
da LTC) e, de facto, entende‑se que o recurso em causa é inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da
LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi,
das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. No presente caso, o recorrente não suscitou – designadamente nas
peças processuais por ele identificadas – qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, limitando‑se a defender a correcção da decisão
de suspensão da execução da pena de prisão em que fora condenado.
A argumentação por ele desenvolvida na resposta à motivação do
recurso do Ministério Público foi sintetizada nas seguintes conclusões:
«1 – O douto acórdão recorrido, tomado por unanimidade, fez uma
correcta apreciação, ponderação e valoração da prova, subsunção e aplicação do
direito adjectivo e substantivo aplicável, na bastante censura da conduta do
arguido e da sua desejada e plena reinserção social, em liberdade.
2 – A suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, em regime
de prova e sujeito a obrigações é, in casu, formal e materialmente a adequada e
em termos de prevenção geral e especial – maxime, de ‘humanidade’.
3 – Na procedência do recurso do Ministério Público, em concreto
(face ao já ocorrido em E. P.), ficariam em crise o ‘direito à saúde’ e / ou o
‘direito à vida’ do respondente.
4 – Pelo que seriam violados os artigos 64.º, n.º 1, e / ou 24.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.»
Como é patente, não foi suscitada pelo então recorrido qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, não sendo imputado a qualquer norma
ou interpretação normativa, dotadas de generalidade e abstracção, a violação de
normas ou princípios constitucionais, limitando‑se o recorrente a sustentar a
justeza da concreta decisão judicial que havia concedido a suspensão da
execução da pena de prisão.
De igual modo, nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa
foi suscitada pelo recorrente na resposta ao parecer do Ministério Público no
Tribunal da Relação do Porto. E nem sequer no requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional – apesar de tal ser manifestamente modo
e momento inadequados para o efeito – logrou o recorrente enunciar, com o mínimo
de precisão e clareza, um critério normativo cuja conformidade constitucional
pudesse ser apreciada por este Tribunal, limitando‑se a criticar directamente a
decisão judicial de não suspensão da execução da pena de prisão, por a reputar
injusta e desrespeitadora do princípio da «humanidade», atentas as
características especiais do caso concreto.
Não tendo o recorrente suscitado, em termos adequados, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, o
presente recurso surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do
seu objecto.”
1.2. A reclamação do recorrente assenta nos seguintes
fundamentos:
“1. Naquela Decisão Sumária, com relevo, tem‑se que:
a) A admissão do recurso pelo «Desembargador Relator do TRP ... não
vincula o Tribunal Constitucional ...»;
b) «A competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao
controlo da inconstitucionalidade normativa ...» e «tratando‑se de recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC … a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada ‘durante o processo’, ‘de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer’ ..., e de a decisão recorrida ter
feito aplicação, como sua ratio decidendi, das suas dimensões normativas
arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente»; e,
c) «Quando o recorrente questiona a conformidade constitucional de
uma interpretação normativa, deve identificar essa interpretação com um mínimo
de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o uso de fórmulas como ‘na
interpretação dada pela decisão recorrida’ ou similares».
Isto posto,
2. Sendo inequívoco o em 1. a), não menos o é que no entendimento
daquele Venerando Desembargador Relator – e no nosso, percute‑se – a questão da
ilegalidade/inconstitucionalidade havia sido – e havia sido adequadamente –
suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado e em termos de o
tribunal recorrido estar obrigado a dela conhecer.
3. Sustenta‑se na, aliás douta, Decisão Sumária que «no presente
caso, o recorrente não suscitou – designadamente nas peças processuais por ele
identificadas – qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
limitando‑se a defender a correcção da decisão de suspensão da execução da pena
de prisão em que fora condenado». Será assim?
4. Aqui chegados, atente‑se nos teores do
a) Requerimento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional:
« (…) A., arguido no processo em epígrafe referenciado e nele melhor
identificado, em vista do no, aliás douto, acórdão datado de 17 de Julho de
2008, dele vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em Secção, a fim
de este pronunciar‑se sobre a ilegalidade/inconstitucionalidade decorrente da
completa desconsideração e, assim, exclusão do subjacente ao preenchimento do
invocado conceito de ‘humanidade’, enquanto substrato co‑vinculante para
determinar‑se a suspensão da pena de prisão aplicada, para nós, com o sempre mui
grande e elevado respeito por melhor e douta opinião, plenamente contemplado e
abarcado no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal (‘condições da sua vida’ – do
arguido), na novel redacção da Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto, necessariamente
preponderante e prevalecente quando é posto em crise o ‘direito à saúde’ e/ou o
‘direito à vida’ do arguido, em violação dos artigos. 64.º, n.º 1, e/ou 24.º,
n.º 1, ambos da CRP, destarte também violando o naquela apontada norma
substantiva, ao desaplicá‑la no sentido propugnado pelo Tribunal Colectivo e
pelo arguido – porque não mera faculdade do Tribunal, mas antes um poder‑dever,
ou poder funcional, cuja aplicação se mostrava e é a adequada, formal e
materialmente, em termos de prevenção geral e de prevenção especial e da
realização da justiça penal –, e, bem assim, o no n.º 1 do artigo 205.º da CRP,
tal como o no n.º 4 do artigo 97.º do CPP, por falta de fundamentação decisória,
a propósito – maxime, ‘de facto’ –, atento o disposto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC.
Estas questões foram suscitadas pelo recorrente, em sede de resposta
(n.º 1 do artigo 413.º do CPP – v., também, a resposta, nos termos do n.º 2 do
artigo 417.º do CPP) e dela decorrem.
O recurso interposto segue os termos do recurso cível de apelação,
com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
E porque legal e tempestivo, requer a V. Ex.as se dignem admiti‑lo.»
b) Resposta, nos termos do n.º 1 do artigo 413.º do CPP:
«(…) A – Introdução:
Inconformado, interpôs o Ministério Público recurso do doutíssimo
acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo, em 7 de Fevereiro de 2008.
Com o sempre mui grande e elevado respeito, diga‑se, todavia, que
não tem qualquer base sólida em que se alicerce.
Isto, porque essa, percute‑se, douta decisão não merece um qualquer
reparo ou a mínima censura.
Suficiente seria oferecer o merecimento dos autos e propugnar a sua
manutenção.
No entanto, permita‑se focar alguns aspectos que, por certo,
contribuirão para uma melhor apreciação.
Assim,
Com relevo, colhe‑se do referido Acórdão:
‘1. (…) Para fundamentar a abertura da audiência, este arguido
alegou que:
Foi condenado, por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de
Justiça de 26 de Abril de 2007, na pena de quatro anos e seis meses de prisão
efectiva;
Dispõe o artigo 2.º, n.º 3, do Código Penal que “quando as
disposições penais vigentes no momento ... da prática do facto punível forem
diferentes das estabelecidas em leis penais posteriores, é sempre aplicado o
regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”;
A redacção do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal antes e à data da
prolação do aresto do STJ obstava à substituição de tal pena por pena suspensa;
A novel redacção do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, introduzida
pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, consagra regime mais favorável para o
arguido ao estatuir que o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão
aplicada em medida não superior a cinco anos;
O simples alargamento da pena de prisão de três para cinco anos
impõe a reapreciação da condenação em pena efectiva, o que se requer;
Requereu também e em conformidade que fosse produzida prova
suplementar sobre a sua personalidade, condições de vida e conduta posterior ao
crime, para que, a final, lhe fosse suspensa a execução da pena de prisão
imposta, por ter como esbatidas as exigências punitivas, em termos de prevenção
geral e de prevenção especial e desaconselhada a aplicação/cumprimento da pena
efectiva de prisão.
Face ao que, “procedeu‑se à audiência de discussão e julgamento com
observância do legal formalismo, nada impedindo o conhecimento do mérito da
causa”.
2. Donde, a mais, terem resultado provados os seguintes factos
novos, ‘com interesse para a presente decisão’:
‘(…) Efectuado exame médico‑legal ao arguido, concluiu a Ex.ma
Perita que, de acordo com a informação clínica de que dispunha, foi
diagnosticado àquele:
Infecção VIH, com carga vírica não detectada e CD4+0426/mmc em
2/11/2007 e SIDA, diagnosticada por pneumonia pneumocystis carinii, em Novembro
de 1998, estando o arguido a ser seguido no Hospital Joaquim Urbano desde 1986,
sob tratamento anti‑retrovírico;
Hepatite C crónica tratada em 2006 e com resposta virológica
mantida;
Linfoma não Hogkin de grandes células B, diagnosticado em 2004,
tratado com quimioterapia e radioterapia, actualmente em seguimento na consulta
de hematologia clínica do Hospital Geral de Santo António;
Apneia do Sono à qual é seguido no Hospital Geral de Santo António,
encontrando‑se em tratamento com oxigénio nocturno, tendo a Ex.ma Perita
esclarecido em audiência que pode existir risco de paragem respiratória caso não
seja assegurado tal tratamento;
Hipotiroidismo, diagnosticado durante o tratamento com “interferão e
ribavirina”, sob tratamento de Thirax;
Efectuou cirurgia a varizes, sendo seguido em consulta de cirurgia
vascular do HGSA; esclareceu a Ex.ma Perita em audiência que, em caso de
imobilização prolongada, este tipo de doença pode originar tromboses;
Da avaliação clínica efectuada durante o exame referiu a Ex.ma
Perita a presença de tosse e expectoração purulenta com 2‑3 semanas de evolução
e cefaleias esporádicas, o examinado referiu hipersudorese nocturna até há
alguns dias antes do exame.
Na exploração física efectuada foi detectada hepatomegalia de 3 cm e
adenopatias cervicais infracentimétricas, móveis e não dolorosas; esclareceu a
Perita que tal patologia é consequência da radioterapia a que o arguido foi
sujeito, podendo a mesma agravar‑se, pelo que exige vigilância médica.
Segundo esclareceu ainda a mesma Perita em audiência, as patologias
de que sofre o arguido estão neste momento estáveis porque controladas através
de tratamento médico e medicamentosos. Mais esclareceu que este estado de saúde,
para além de tais tratamentos, exige que o arguido seja objecto de vigilância
médica regular, tenha alimentação variada e adequada e ainda outros cuidados,
nomeadamente evitar apanhar frio, correntes de ar e humidade.
A subsistência do agregado do arguido continua a ser assegurada
pelas verbas provenientes da sua reforma por invalidez no valor de € 230
mensais, e ainda pelos subsídios auferidos pela esposa em sede de rendimento
social de inserção no valor mensal de € 290, uma vez que não está inserida
laboralmente e do abono de família no valor mensal de € 50. Para fazer face às
despesas conta ainda o agregado com o apoio da sogra.
Ao nível da dinâmica familiar, verifica‑se maior estabilidade
relativamente a tempos passados em que era frequente a conflitualidade que se
enquadrava no estilo de vida do arguido, condicionado pela sua
toxicodependência.
Actualmente, as repercussões dessa vivência fazem‑se sentir no seu
estado de saúde, que requer cuidados continuados de acompanhamento clínico e de
prescrição medicamentosa, nomeadamente substitutiva de opiáceos e para as outras
doenças de que padece. Neste contexto, quando em liberdade, o quotidiano do
arguido estava preenchido nas inúmeras deslocações que efectua às várias
instituições de saúde que o acompanham (Hospital Geral de Santo António,
Hospital Joaquim Urbano e antigo CAT Oriental, agora designado de Centro de
Resposta Integrada Oriental).
No contexto sócio‑residencial, a imagem do arguido encontra-se
marcada pelo seu percurso de toxicodependente e de contactos com a justiça,
apesar de, actualmente, lhe ser reconhecido maior enquadramento normativo.
O arguido beneficia do apoio da sua esposa e filhas.
Durante a sua actual detenção, que ocorreu em 4 de Janeiro de 2008,
o arguido já emagreceu alguns quilos, de forma visível.
Em audiência, o arguido referiu‑se às suas condições pessoais
actuais, designadamente ao seu estado de saúde, dizendo que no EP não lhe foi
assegurado oxigénio nocturno e que se encontra a tomar metadona e não o
medicamento denominado “Subtex”, que tomava quando em liberdade, o que disse
afectar‑lhe o fígado, já fragilizado por causa da hepatite C de que padece.
Referiu ainda ter já emagrecido cerca de cinco quilos por causa da alimentação
que lhe é fornecida no EP.’
3.1. Subsumindo a factualidade ao Direito, disse o Colectivo:
‘ (…) Nos termos do disposto no artigo 371.º‑A do Código de Processo
Penal, norma aditada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que entrou em vigor
no dia 15 de Setembro de 2007, “se, após trânsito em julgado da condenação mas
antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais
favorável, o condenado pode requerer a reabertura do processo para que lhe seja
aplicado o novo regime”.
Foi ao abrigo de tal disposição legal que o arguido A., que se
encontra a cumprir uma pena de quatro anos e seis meses de prisão pela autoria
de um crime de trafico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º,
n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, requereu a reabertura da
audiência, a fim de que este Tribunal aprecie a eventual aplicação da suspensão
da execução daquela pena de prisão, de acordo com o regime legal agora em vigor,
que se pode afigurar mais favorável para o ora requerente que o vigente, quer à
data dos factos, quer à data em que foi proferido o acórdão condenatório.
Na verdade, o regime do instituto da suspensão da execução da pena
de prisão sofreu várias alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de
Setembro, que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2007.
No regime vigente, quer à data dos factos quer à data da prolação do
acórdão, dispunha o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que o tribunal podia
suspender a “execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três
anos”. Estabelecia ainda o n.º 5 da mesma disposição legal que “O período da
suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da
decisão”.
Foi precisamente nestes dois aspectos – medida da pena de prisão que
permite a suspensão da respectiva execução e duração do período da suspensão –
que se verificaram as alterações mais significativas ao regime em causa, com a
entrada em vigor da Lei n.º 59/2007. Assim, actualmente, o Tribunal pode
suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco
anos, sendo que o período de suspensão tem duração igual à pena de prisão
determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em
julgado da decisão (cf. artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, na redacção actualmente em
vigor). Acresce que, quando a pena de prisão cuja execução se deva suspender for
superior a três anos, tal suspensão tem obrigatoriamente que ser acompanhada de
regime de prova (cf. artigo 53.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal na versão em
vigor).
Em face do exposto, importa verificar se o novo regime pode ou não
ser aplicado ao arguido, ou seja, se a pena de prisão que lhe foi aplicada,
insusceptível de suspensão na sua execução no regime vigente à data dos factos
atenta a respectiva medida, pode agora beneficiar de tal suspensão,
necessariamente acompanhada de regime de prova porque superior a três anos, por
a tal não obstar já a referida medida, caso em que o novo regime seria mais
favorável em concreto para o condenado.
A aplicação da lei mais favorável deverá obedecer ao critério do
artigo 2.º, n.º 4, primeira parte, do Código Penal (até aqui apenas aplicável no
caso de não haver condenação transitada, o que se justificava em nome da
segurança e estabilidade), ou seja, deve aplicar‑se ao agente, em “bloco”, o
regime legal que, em concreto lhe for mais favorável.
Ora, a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão não é
automática, já que, tal como dispõe a segunda parte do artigo 50.º, n.º 1, do
Código Penal, que, neste aspecto, manteve a redacção anterior à Lei n.º 59/2007,
só pode ser determinada pelo julgador “se, atendendo à personalidade do agente,
às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às
circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena
realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Tais finalidades estão expressas no artigo 40.º do Código Penal.
A primeira dessas finalidades tem que ver com a “tutela necessária
dos bens jurídicos no caso concreto” (cf. Direito Penal – Questões Fundamentais
da Doutrina do Crime, tomo I, Jorge Figueiredo Dias, pág. 76) e refere‑se à
prevenção geral positiva ou de integração, ou seja, à ideia de que a pena serve
para “manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de
vigência das suas normas e, assim, no ordenamento jurídico‑penal”. Anote‑se que,
como refere o Professor Figueiredo Dias na obra citada (pág. 78), a vertente da
prevenção geral negativa ou de intimidação das outras pessoas através do
sofrimento que com ela se inflige ao condenado não constitui por si mesma uma
finalidade autónoma da pena, apenas podendo surgir como um efeito lateral da
necessidade de tutela dos bens jurídicos.
A segunda das finalidades, a reintegração do condenado na sociedade,
reconduz‑se à prevenção especial, em qualquer uma das suas funções: seja a
positiva de socialização, seja a negativa, de “advertência individual, ou de
segurança ou inocuização” (cf. obra citada, pág. 79).
A decisão de suspender a execução da pena deve, pois, ter na sua
base, para além da protecção dos bens jurídicos, um juízo de prognose favorável,
isto é, o julgador deve assegurar‑se de que o arguido compreendeu a advertência
que a condenação implica e que, por isso, não irá cometer novos crimes.
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de
Novembro de 1993, citado por Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, I
vol., em anotação ao artigo 50.º, págs. 447/448, “factor essencial à filosofia
do instituto da suspensão da pena é a capacidade da medida para apontar ao
próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de
acordo com as exigências do direito penal, impondo‑se‑lhe como factor pedagógico
de contenção e de auto‑responsabilização pelo comportamento posterior”. Ou, nas
palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As consequências
jurídicas do crime, 1993, pág. 343), “… decisivo é aqui o conteúdo mínimo da
ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência”. Ou seja, nos
termos previstos no artigo 50.º, a averiguação da capacidade de a socialização
em liberdade poder ser alcançada deve ser aferida em concreto, a partir de
razões fundadas e sérias que levem a crer na capacidade do delinquente para a
auto‑prevenção do cometimento de novos crimes. Deverá assim negar‑se a suspensão
sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade, uma vez que com a
aplicação da suspensão da execução da pena se visa, acima de tudo, que o
delinquente não volte a cometer, no futuro, novos crimes.
Importa ainda notar, como refere F. Dias na obra citada, a pág. 76,
que as referidas finalidades de prevenção geral e especial devem coexistir e
combinar‑se da melhor forma e até ao limite possíveis, para que umas e outras
se encontrem no propósito comum de prevenir a prática de futuros crimes.’
3.2. Revertendo, então, para ‘o caso concreto’:
‘(…) O arguido A. foi condenado pela prática de um crime de tráfico
de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto‑Lei
n.º 15/93, de 22 de Janeiro, praticado entre data não apurada de 2002 e 6 de
Julho de 2005.
Tal como ficou apurado, a motivação deste crime residiu não só na
necessidade que o arguido tinha de financiar a sua toxicodependência de drogas
duras, mas também para fazer face às despesas do seu agregado, após ter
encerrado o seu negócio por falta de rentabilidade.
A. confessou a quase totalidade dos factos apurados, explicitando a
sua motivação e condição pessoal, referindo que, com a sua conduta, apenas
pretendia financiar a aquisição de heroína para seu consumo.
Sofria e sofre de graves problemas de saúde, elencados na
factualidade provada, que vão de infecção VIH, a Hepatite C crónica, Linfoma,
Apneia do Sono, que exige a utilização de oxigénio sob pena de poder sofrer
paragem respiratória, problemas vasculares (varizes) com risco de ocorrência de
tromboses, hipertiroidismo, consequência da hepatite C e hepatomegalia de 3 cm e
adenopatias cervicais bilaterais infacentimétricas, situação que pode
agravar‑se e é consequência da radioterapia que lhe foi aplicada para cura do
linfoma.
Como resulta dos relatórios sociais constantes dos autos, A.
iniciou, entretanto, tratamento à sua toxicodependência e apresenta
comportamento mais estável e normativo, beneficiando de suporte familiar, sendo
o seu quotidiano, quando em liberdade, preenchido pelas inúmeras deslocações que
efectuava às várias instituições de saúde onde trata as suas doenças.
Por outro lado, já esteve privado da liberdade quando foi sujeito a
medida de obrigação de permanência na habitação, que cumpriu, encontrando‑se
actualmente em cumprimento da pena em que foi condenado nos presentes autos.
Todas estas circunstâncias nos levam a crer que, no caso concreto,
se pode fazer o juízo de prognose favorável que exige a aplicação do instituto
da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Na verdade, as exigências de prevenção especial, na vertente
positiva ou de socialização, serão melhor asseguradas através da suspensão da
execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova, como exige a lei: a
socialização do arguido só será plenamente alcançada se este continuar a tratar
a sua toxicodependência e as doenças de que padece da forma mais adequada, ou
seja, no caso concreto e tal como resulta dos factos provados, em meio livre,
com apoio familiar, como já vinha sucedendo antes da sua detenção, considerando
a gravidade do estado de saúde geral de A..
Por outro lado, a prevenção especial, na sua vertente negativa de
advertência individual, pode ainda ser alcançada com a dita suspensão: o
arguido, ao confessar os factos nos termos referidos, ao mudar o seu estilo de
vida, agora “mais estável e normativo”, e ao esforçar‑se para tratar a sua
toxicodependência, revelou que tem consciência da gravidade da sua conduta e
está disposto a reintegrar‑se. Aliás, acreditamos que esta tomada de consciência
não é passageira nem leviana, mas será antes o resultado de reflexão sobre as
consequências que a toxicodependência, que motivou em parte o crime que
cometeu, trouxe para a sua vida e para o seu estado de saúde e também para a
sua liberdade da qual já esteve e está privado no âmbito destes autos. E, embora
o arguido já tenha sofrido outras condenações, não podemos esquecer que a última
delas já data de 1994, altura em que as condições pessoais do arguido eram
necessariamente diferentes.
No que respeita à tutela dos bens jurídicos em causa, não se vê que
a mesma não possa ser garantida com a suspensão da execução da pena. Em
primeiro lugar, importa referir que este instituto pode ser aplicado
independentemente da natureza dos crimes cometidos, desde que se verifiquem os
pressupostos do artigo 50.º do Código Penal, devendo fazer‑se a análise de cada
caso concreto e não partir do princípio de que determinados crimes nunca podem
beneficiar da suspensão por razões de prevenção geral. A protecção dos bens
jurídicos não passa pela maior ou menor severidade das penas aplicadas, mas
antes pela sua adequação, justeza e até humanidade. Aliás, cada vez mais se
instala na comunidade em geral a convicção de que, quando está em causa a
punição de crimes motivados pela toxicodependência, tão importante é punir como
prevenir e tratar o delinquente da forma mais eficaz, o que nem sempre passa
pela aplicação de pena de prisão efectiva.
No caso concreto, e não obstante a gravidade do crime cometido, a
protecção dos bens jurídicos e até a prevenção geral na sua vertente negativa
estão asseguradas quer com a medida da pena aplicada e respectivo período de
suspensão, quer com regime de prova e obrigações a que o condenado está sujeito
e às consequências que advirão do incumprimento de tal regime e deveres ou do
cometimento de novos crimes.’
4. Isto posto,
‘(…) Assim e em conclusão, suspender‑se‑á a pena de 4 anos e 6 meses
de prisão aplicada ao arguido pelo mesmo período de quatro anos e seis meses,
com sujeição a regime de prova e a condições que permitam, para além da censura
da sua conduta, a sua desejada e plena reinserção (cf. artigos 50.º a 54.º do
Código Penal).’
B – Análise do na, aliás douta, motivação e conclusões do Ministério
Público:
Quanto à materialidade subjacente e às retiradas conclusões em 1, 2
e 3, nada há a contrapor.
Em relação ao mais cabe, desde logo, dizer que o Supremo Tribunal de
Justiça, num outro quadro legal – muitíssimo mais restritivo (excepção da
excepção à regra geral) e já afastado –, apenas e tão‑só fez a subsunção dos
factos ao direito em função dos requisitos necessários à ‘atenuação especial da
pena’, que, então e em primeira instância, haviam sido tidos como
suficientemente preenchidos e aplicáveis, in casu.
Ora, o disposto na novel redacção do artigo 50.º do Código Penal, ao
invés do que se pretende inculcar, não faz depender a suspensão da execução da
pena de pressupostos semelhantes ou, sequer, aproximáveis aos constantes do
artigo 72.º do Código Penal.
Donde, com o devido e merecido respeito, as extrapolações e
‘colagens’ efectuadas mostrarem‑se a despropósito e inadequadas, como é
evidenciado, à saciedade, pelo em 3.1. e 3.2., que antecedem e a que
integralmente se adere – dando‑se aqui, na totalidade, por reproduzido.
As necessidades de prevenção geral e de prevenção especial, num são
e correcto entendimento do que subjaz, ficaram e ficam devidamente asseguradas
e acauteladas.
Não só o ‘quadro motivacional’ se mostra profundamente alterado – v.
A – 2. –, como as ‘garantias’ de sucesso no tratamento da toxicodependência
surgem em crescendo – devidamente alicerçadas, com o factor ‘tempo’ –, como o
‘arrependimento’ é mostrado (demonstrado) com actos e materialidade nova,
designadamente o ‘reconhecido maior enquadramento normativo’ – sendo certo que,
com anterioridade e entre o mais, já havia ‘confessado a quase totalidade dos
factos apurados, explicitando a sua motivação e condição pessoal, referindo que,
com a sua conduta, apenas pretendia financiar a aquisição de heroína para seu
consumo’.
Reduzir o agora factualmente dado por provado (treze parágrafos!)
quanto ao estado de saúde do arguido a mais uma doença (‘apneia de sono’) é, no
mínimo, caricato.
Mesmo que (ainda) se (man)tivesse que as patologias de que o arguido
sofre e padece, em abstracto, ‘não constituem problema para o qual o Direito
Penitenciário não tenha solução’, em concreto (‘... encontrando‑se em
tratamento com oxigénio nocturno, tendo a Ex.ma Perita esclarecido em audiência
que pode existir risco de paragem respiratória caso não seja assegurado tal
tratamento’ / ‘Mais esclareceu que este estado de saúde, para além de tais
tratamentos, exige que o arguido seja objecto de vigilância médica regular,
tenha alimentação variada e adequada e ainda outros cuidados, nomeadamente
evitar apanhar frio, correntes de ar e humidade’ / ‘Durante a sua actual
detenção, que ocorreu em 4 de Janeiro de 2008, o arguido já emagreceu alguns
quilos, de forma visível’ / Em audiência o arguido referiu‑se às suas condições
pessoais actuais, designadamente ao seu estado de saúde, dizendo que no EP não
lhe foi assegurado oxigénio nocturno e que se encontra a tomar metadona e não o
medicamento denominado ‘Subtex’, que tomava quando em liberdade, o que disse
afectar‑lhe o fígado já fragilizado por causa da hepatite C de que padece.
Referiu ainda ter já emagrecido cerca de cinco quilos por causa da alimentação
que lhe é fornecida no EP, após um mês e três dias de cárcere, só por mero acaso
se encontra vivo, já que não lhe foram propiciados os cuidados médicos e
medicamentosos exigidos e exigíveis!
A proceder o recurso, sempre haveria violação do disposto no n.º 1
do artigo 64.º da CRP (direito à saúde) e/ou do no n.º 1 do artigo 24.º da CRP
(direito à vida), ainda que hipoteticamente – e tal, para nós e salvo melhor e
douta opinião, é o suficiente.
A ‘personalidade, condições de vida e conduta posterior ao crime’ do
arguido justificam plenamente a – diríamos mais: obrigam à – suspensão da
execução da pena de prisão.
Assim, no que tange à ilicitude / à gravidade objectiva da conduta /
à culpa e sem procurar‑se branquear comportamentos contrários à Lei, dir‑se‑á
que, comprovadamente, era ‘arraia miúda’, ‘simples correio’ (actuação por conta
doutrem), que financiava a sua dependência com o tráfico de estupefacientes –
basta atentar nos extractos bancários juntos aos autos, nos seus parcos haveres
e no facto de ‘desde há (mais de) dois anos que o agregado familiar do arguido
passou a residir na morada da avó materna da esposa do arguido, que também lhes
prestava auxilio económico e que entretanto faleceu’, e que, apesar de
constarem do seu CRC várias condenações, ‘não podemos esquecer que a última
delas já data de 1994’.
É evidente que a droga é um flagelo. E as consequências desse
flagelo sofreu‑o, sofre‑o e sofrê‑lo‑á, mais que alguém, o arguido enquanto for
vivo.
Dúvidas não subsistem – não podem subsistir – que a sua
personalidade alterou‑se, para melhor e a todos os níveis, as suas condições de
vida são muito mais estáveis e a sua conduta posterior ao crime ajuizado é
absolutamente exemplar e conforme ao Direito.
Daí ser merecedor de ‘prognóstico favorável’, a ele não se opondo
‘as necessidades de reprovação e prevenção do crime’.
Falecem, pois, as, aliás doutas, conclusões do Ministério Público,
em 4., 5., 6., 7., 8., 9. e 10.
C – Em conclusão:
1. O douto acórdão recorrido, tomado por unanimidade, fez uma
correcta apreciação, ponderação e valoração da prova, subsunção e aplicação do
direito adjectivo e substantivo aplicável, na bastante censura da conduta do
arguido e da sua desejada e plena reinserção social, em liberdade.
2. A suspensão da execução da pena aplicada ao arguido, em regime de
prova e sujeita a obrigações, é, in casu, formal e materialmente a adequada e em
termos de prevenção geral e especial – maxime, de ‘humanidade’.
3. Na procedência do recurso do Ministério Público, em concreto
(face ao já ocorrido em EP), ficariam em crise o ‘direito à saúde’ e/ou o
‘direito à vida’ do respondente,
4. Pelo que seriam violados os artigos 64.º, n.º 1, e/ou 24.º, n.º
1, ambos da CRP.
Termos em que o douto acórdão recorrido não merece qualquer reparo
ou censura e obriga a boa administração da justiça que se mantenha, com o que se
fará a mais lídima justiça.»
c) Resposta, nos termos do n.º 2 do artigo 417.º do CPP:
«(…) Notificado o arguido para, querendo e em dez dias, responder ao
no parecer do Ex.mo Sr. Procurador‑Geral Adjunto, cabe, em acréscimo do já
aduzido e como reforço, dizer o seguinte:
Não se desconhece que, em alguns recentes arestos, o STJ, em tese
geral, vem defendendo a aplicação de penas de prisão efectiva para crimes como o
nos autos, considerando que a sua suspensão, nestes casos e entre o mais, ‘seria
atentatória da necessidade de estratégia nacional e internacional de combate a
este tipo de crime’, em vista de dar respostas punitivas firmes ao tráfico de
droga. Tanto que, como pode ler‑se em Acórdão de 19 de Dezembro de 2007, ‘só em
casos ou situações especiais, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e
o sentimento de reprovação social se mostre esbatido, será admissível o uso do
instituto de suspensão da execução da pena de prisão’.
Com o sempre mui grande e elevado respeito por melhor e douta
opinião, in casu verificam‑se tais pressupostos.
Na verdade e dando aqui, no mais, por integrado e reproduzido o, a
propósito, no douto acórdão recorrido e em sede da antecedente resposta,
assumindo a pena de suspensão autonomia face à de prisão, certo é que coenvolve
um juízo de forte desvalor ético‑social e constitui uma chamada à razão do
condenado, saindo reforçada por esta poder vir a ser executada em caso de
comportamento(s) desviante(s) futuro(s) e constituindo eficaz meio pedagógico
efectivo de apoio à correcção de conduta social do agente, conforme à Lei e ao
Direito.
A sociedade pode e deve tolerar uma certa perda do efeito preventivo
geral, desde que a pena de substituição não se mostre, de todo em todo,
ineficaz ou perversa.
Ora, o ‘alarme social’ causado pelo arguido mostra‑se esbatido e o
poder punitivo do Estado / Tribunal sai reforçado com a sua manutenção em
liberdade – atentas as vincadas condicionantes derivadas do seu mais que
precário e abalado estado de saúde (consabidamente doente irreversível, em
estado físico decrépito, a carecer de cuidados médicos e medicamentosos e
desvelos constantes, vários e continuados, de dia e à noite) e sincero
arrependimento (consubstanciado em actos e factos, que não meras ‘palavras’).
A simples ameaça de execução da pena de prisão é, destarte e em
concreto, elemento dissuasor bastante e suficiente para obstar ao cometimento
de futuros crimes, sem olvidar que as restritivas, mas adequadas, condições
impostas para tal também concorrem – e, por certo, asseguram e sustentarão o
sucesso (geral e especial) das finalidades das penas.
Somatório de fundamentos e razões que levam a que o arguido mereça e
continue a merecer um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da
pena de prisão em que foi condenado.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto
suprimento de V. Ex.as, a, aliás douta, decisão recorrida não merece qualquer
reparo ou censura e obriga a boa administração da justiça que seja mantida, com
o que se fará a mais lídima justiça.».
Donde,
5. As conclusões 3. e 4. (e o a final da 2.) na resposta ao na
motivação do recurso do Ministério Público irem para além – muito para além – do
«defender a correcção da decisão de suspensão da execução da pena de prisão em
que fora condenado», já que, manifestamente, tal havia‑se quedado pelo aí em 1.
e 2., traduzindo («pelo que seriam violados») o inequívoco suscitar de
ilegalidade / inconstitucionalidade do preconizado entendimento do no n.º 1 do
artigo 50.º do Código Penal («direito à saúde» e/ou «direito à vida», face aos
«artigos 64.º, n.º 1, e/ou 24.º, n.º 1, ambos da CRP.»).
6. Aliás, expressamente nessa resposta consta «A proceder o recurso
(que visava a não manutenção da suspensão da execução da pena de prisão) sempre
haveria violação do disposto no n.º 1 do artigo 64.º da CRP (direito à saúde)
e/ou do no n.º 1 do artigo 24.º da CRP (direito à vida), ainda que
hipoteticamente – e tal, para nós e salvo melhor e douta opinião, é o
suficiente».
7. Em causa, sempre em causa e obviamente, estava a interpretação
normativa do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, na novel redacção da Lei n.º
51/2007, de 31 de Agosto (o que informa, decorre e consubstancia o nessas
alegações e, salienta‑se, o na resposta apresentada ao abrigo do n.º 2 do artigo
417.º do CPP).
8. A «ilegalidade/inconstitucionalidade decorrente da completa
desconsideração e, assim, exclusão do subjacente ao preenchimento do invocado
conceito de ‘humanidade’, enquanto substrato co‑vinculante para determinar‑se a
suspensão da pena de prisão aplicada» vê‑se a fls. 2354 («4 – O arguido, em
resposta ao recurso, pugna pela bondade do decidido»), na desvalorização da
prova produzida ex novo – cf., por todas, fls. 2357 verso a 2358 verso, ab
initio – resumida a mais uma «patologia» («apneia do sono»), «atirada» para os
considerandos tecidos a propósito de anterior decisão – esta, então, no distinto
quadro do disposto no artigo 72.º do Código Penal – e onde nem sequer é, mesmo
en passant, referida a existência da apresentada resposta, nos termos do n.º 2
do artigo 417.º do CPP («dando..., no mais, por integrado e reproduzido o, a
propósito, no douto acórdão recorrido e em sede da antecedente resposta»).
9. Dizer «e, de facto, não poderia ser apenas pela existência dessas
doenças que se poderia justificar a suspensão da execução da pena, quando os
demais pressupostos falham totalmente» é ou não postergar os
constitucionalmente protegidos direito à vida e à saúde do aqui recorrente?
10. Concede‑se que, embora, em bom rigor, não se possa entender que
o Tribunal da Relação do Porto não deixou de pronunciar‑se sobre o objecto do em
apreciação, a verdade é que decidiu sem procurar elucidar ou esclarecer os
motivos e fundamentos, o que equivale a conclusão sem premissas, havendo, pois,
erro de actividade (erro de construção ou de formação) – no mesmo sentido,
acórdão do STJ, de 9 de Dezembro de 1987, in BMJ, n.º 372, p. 369.
11. A necessidade de fundamentação prende‑se com a própria garantia
de direito ao recurso e tem a ver com a necessidade de legitimação da decisão
judicial em si mesma – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/85, de 25
de Março de 1985, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., págs. 467 e
seguintes.
12. «III – A exigência de fundamentação tem natureza imperativa, é
um princípio geral que a própria Constituição consagra no artigo 208.º (ora
205.º), n.º 1, e tem que ser observado nas decisões judiciais, mesmo nas
proferidas em processo de jurisdição voluntária ou em processo tutelar» –
acórdão da Relação do Porto, de 17 de Outubro de 1991, in BMJ, n.º 410, pág.
876.
13. «O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma
das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado social de
direito contra o arbítrio do poder judiciário» – Pessoa Vaz, Direito Processual
Civil – Do Antigo ao Novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211.
14. A interpretação normativa do no recurso do Ministério Público,
acolhida pelo acórdão recorrido, salvo melhor e douta opinião, faz prevalecer a
tese de que a saúde e/ou a vida são elementos meramente concorrentes e não
preponderantes/prevalecentes sobre todos os demais.
15. Em nossa opinião, tal resolve‑se, indubitavelmente, em que esses
mais altos e decisivos direitos e valores relativos à vida humana prevalecem e
afastam os demais e eram a ratio decidendi plenamente contemplada e abarcada
pelo invocado n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal («condições da sua vida» – do
aqui recorrente), susceptível de aplicação a outras situações análogas.
16. Afigura‑se, destarte e também, que a (in)conformidade
constitucional da interpretação normativa foi identificada com, pelo menos, «um
mínimo de precisão» e havia/há‑de ser tida e decidida em conformidade.”
1.3. O representante do Ministério Público neste
Tribunal apresentou resposta, no sentido de que “a presente reclamação carece
manifestamente de fundamento”, dado que “o arrazoado ora apresentado pelo
reclamante em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que toca à
evidente inverificação dos pressupostos do recurso interposto”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária ora reclamada assentou o não
conhecimento do recurso na constatação de o recorrente não ter suscitado
adequadamente, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, já que não imputou a qualquer norma
de direito ordinário (ou a qualquer interpretação normativa dele extraída,
dotada de generalidade e abstracção, e com o respectivo sentido devidamente
identificado) a violação de princípios ou normas constitucionais.
A extensa reclamação do recorrente em nada infirma essa
constatação, antes a reforça. Na verdade, o recorrente continua a imputar a
violação dos direitos à vida e à saúde, consagrados nos artigos 24.º, n.º 1, e
64.º, n.º 1, da CRP, à decisão judicial que não manteve a suspensão da execução
da pena de prisão, decisão essa, que, em si mesma considerada, teria procedido a
uma incorrecta aplicação do critério de “humanidade” (crítica que, perante o
Tribunal da Relação, imputara à pretensão nesse sentido deduzida no recurso
interposto pelo Ministério Público), atentas as especificidades do caso
concreto, em especial as suas condições de saúde. É, assim, a decisão judicial
de, atentos os elementos particulares da situação concreta em causa, entender
não se justificar a suspensão da execução da pena de prisão, por não
preenchimento dos requisitos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que o
recorrente considera inconstitucional, e não qualquer interpretação, dotada de
generalidade e abstracção e minimamente identificada, deste preceito legal. Ora
– repete‑se – não cabe no âmbito da fiscalização concreta da
constitucionalidade a cargo do Tribunal Constitucional a sindicância de alegadas
violações da Constituição imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas, enquanto procedem à subsunção dos casos concretos aos
critérios normativos aplicáveis,
3. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos