Imprimir acórdão
Processo n.º 799/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., e B., S.A., interpuseram acção, com processo ordinário (processo n.º
6436/05.3TVLSB, da 1ª Secção, da 1ª Vara Cível de Lisboa), contra a C., S.A.,
requerendo ao tribunal que “determinando qual o sentido da interpretação dos n.º
4 das Cláusulas 1ª e 4.ª do Contrato celebrado em 7 de Junho de 2002, declare:
a) - que a 1.ª Autora é devedora pelo capital de € 9.975.957,94;
b) -que a esse capital acrescem juros calculados à taxa anual de 3,572%, desde 8
de Fevereiro de 2002 até efectivo e integral pagamento (juros que em 16 de
Novembro de 2005 ascendiam a € 1.344.333,85);
c) - que a 2.ª autora é responsável solidária pelos montantes devidos pela 1.ª
autora;
d) - que para a remuneração do Contrato não foi prevista qualquer mora ou outros
encargos para além dos fixados e das obrigações fiscais que incidem sobre os
mesmos (como por exemplo, o imposto de selo) e;
e) - que não foi, nem está prevista a capitalização de juros”
Foi proferido despacho que absolveu a Ré da instância por falta de interesse em
agir.
Desta decisão recorreram as Autoras para o Tribunal da Relação de Lisboa que,
por acórdão proferido em 11-2-2008, julgou improcedente o recurso.
De novo inconformadas as Autoras recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça
que, por acórdão de 16-9-2008, negou provimento ao recurso.
Desta decisão recorreram então as Autoras para o Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos:
“…não se conformando com o teor do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal
de Justiça, vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com
fundamento na alínea b) do n.° 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional (Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro), o que faz nos termos
seguintes:
Face ao sentido e alcance atribuídos ao pressuposto processual inominado do
interesse em agir/interesse processual no âmbito das acções de simples
apreciação, a Decisão ora recorrida acolhe uma interpretação inconstitucional do
referido pressuposto e, bem assim do artigo 2.° e da alínea a) do n.° 2 do
artigo 4° todos do Código de Processo Civil - normas legais estas donde o
referido pressuposto decorre e tem aforamento legal -, porque totalmente
desconforme ao estipulado nos ns.° 1, 4 e 5 do artigo 20° da Constituição da
República Portuguesa.
Na decisão ora recorrida as normas em causa foram objecto de interpretação
inconstitucional na medida em que considera inexistir interesse em agir no
recurso à tutela jurisdicional quando as Recorrentes pretendem a definição de um
dever jurídico que integra o núcleo essencial dos direitos e obrigações a que as
partes - Recorrida e Recorrentes - se obrigaram contratualmente, tanto mais que
a configuração que a Recorrida faz do conteúdo e alcance de tal dever, e
necessariamente da correspectiva prestação, leva a que às ora Recorrentes seja
exigido o cumprimento de um programa contratual distinto daquele a que razoável
e previsivelmente se haviam vinculado aquando da celebração do aludido
contrato.
Tal interpretação e aplicação é, também assim, constitucionalmente desconforme,
porquanto considera que a contestação do sentido e alcance do direito de crédito
de que a Recorrida se arroga titular, bem como a contestação da correspectiva
prestação a que as Recorrentes se vincularam (contestações essas que decorrem,
em concreto, das diversas interpelações admonitórias - também estas
sucessivamente alteradas - e suficientemente documentadas nos autos), não
correspondem à existência de interesse em agir in casu.
Porém, a incerteza decorrente de tal divergência - que desde já se pode
quantificar em cerca de um milhão de euros - que paira entre partes, quanto ao
sentido e alcance dos direitos e obrigações a que as mesmas se vincularam, é,
pelo contrário, manifesta, séria e objectiva, consistindo a acção de simples
apreciação, além do mais, o único meio processual idóneo e adequado para a
definição de tais direitos e obrigações e, por conseguinte, para a apreciação
da existência/inexistência do direito de crédito invocado pela Recorrida.
Nestes termos, a Decisão ora recorrida denega a obrigação constitucional e
legal de uma tutela jurisdicional adequada à definição do âmbito dos referidos
direitos e deveres.
Pretende-se, por isso, sindicar a inconstitucionalidade do aludido pressuposto
processual em sede de acções de simples apreciação assim como do artigo 2° e da
alínea a) do n.° 2 do artigo 4º, todos do Código de Processo Civil, quando
interpretados e aplicados - nos termos em que foram - de forma a descurar, tal
como aconteceu in casu, o direito de acção das Recorrentes e a obrigação de
tutela jurisdicional decorrente dos ns.° 1. 4 e 5 do artigo 20.º da
Constituição da República Portuguesa. Impunha-se, na verdade, em concreto e
substancialmente, a apreciação da existência/inexistência do direito de crédito
invocado pela Recorrida, assegurando-se, igualmente, a possibilidade de
cumprimento do programa contratual cm crise.
O aludido pressuposto processual - sempre em sede de acções de simples
apreciação - e, bem assim, o artigo 2.° e a alínea a) do n.° 2 do artigo 4°,
todos do Código de Processo Civil, em qualquer das indicadas interpretações e
aplicações, violam as regras constitucionalmente protegidas pelos n.° 1, 4 e 5
do aludido artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa…”
Convidadas a esclarecer qual a interpretação normativa sustentada pela decisão
recorrida cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada, apresentaram
requerimento com o seguinte conteúdo:
“…A interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida cuja conformidade
constitucional se pretende ver apreciada é aquela segundo a qual resulta dos
artigos 2º e 4º do Código de Processo Civil que nas acções de simples apreciação
se exige, como pressuposto processual, a verificação do interesse em agir e que
esse pressuposto não se verifica quando uma das partes num contrato (um banco) o
interpreta arrogando-se um direito de crédito que exerce directamente mediante
débitos em conta bancária que a contraparte mantém junto de si, colocando esta
contraparte numa posição devedora que considera injusta e sem suporte
contratual, desejando vê-la esclarecida em termos de ser declarada a existência
ou inexistência daquele putativo direito.
Subsidiariamente para o caso de se entender que a mencionada interpretação
normativa não foi obtida na decisão recorrida, dos citados artigos 2º e 4º do
Código de Processo Civil, mas resulta, tão-só, de construção doutrinal, ainda
assim deverá - em face da força expansiva do conceito de norma fiscalizável
pelo Tribunal Constitucional e porque a mencionada interpretação foi
efectivamente sustentada como ratio decidendi conhecer-se do vertente pedido de
fiscalização concreta da constitucionalidade…”
Foi proferida decisão sumária em 25-11-2008 de não conhecimento do recurso, com
a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea
b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Os recorrentes alegando que no acórdão recorrido se sustentou que “resulta dos
artigos 2º e 4º do Código de Processo Civil que nas acções de simples
apreciação se exige, como pressuposto processual, a verificação do interesse em
agir e que esse pressuposto não se verifica quando uma das partes num contrato
(um banco) o interpreta arrogando-se um direito de crédito que exerce
directamente mediante débitos em conta bancária que a contraparte mantém junto
de si, colocando esta contraparte numa posição devedora que considera injusta e
sem suporte contratual, desejando vê-la esclarecida em termos de ser declarada a
existência ou inexistência daquele putativo direito”, pretendem que se fiscalize
a constitucionalidade deste entendimento.
Em primeiro lugar o raciocínio exposto reconduz-se a uma operação de subsunção
da necessidade de existir um interesse em agir na interposição de uma acção de
simples apreciação ao caso concreto, pelo que o entendimento cuja
constitucionalidade se pretende ver apreciada, não é um critério normativo
dotado de generalidade e abstracção, mas sim o próprio juízo subsuntivo de
aplicação do direito ao caso concreto.
Não admitindo o nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade
o chamado “recurso de amparo”, não pode a questão proposta ser apreciada.
E, mesmo que se entendesse, por hipótese de raciocínio, que tal entendimento
consubstanciava um critério normativo, dotado de suficiente generalidade e
abstracção para poder ser objecto de fiscalização constitucional, nunca se
poderia considerar que o mesmo havia sido sustentado pela decisão recorrida.
Da leitura desta resulta que não se considerou que em todas as situações em que
uma das partes num contrato (um banco) o interpreta arrogando-se um direito de
crédito que exerce directamente mediante débitos em conta bancária que a
contraparte mantém junto de si, colocando esta contraparte numa posição
devedora que considera injusta e sem suporte contratual, desejando vê-la
esclarecida em termos de ser declarada a existência ou inexistência daquele
putativo direito, não há um interesse que justifique a propositura duma acção de
simples apreciação, uma vez que para chegar a tal conclusão se ponderaram e
valoraram decisivamente particularidades do caso concreto, como seja o facto dos
autores da acção de simples apreciação terem sido demandados em acções
executivas onde “poderão, na oposição que lhes é consentida, pugnar pela
interpretação que reputam ser a juridicamente correcta”.
A pretensão dos recorrentes não cumpre, pois, os requisitos necessários ao
conhecimento do recurso de constitucionalidade, pelo que deve ser proferida
decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78º - A, n.º 1, da LTC.”
As recorrentes reclamaram desta decisão, invocando os seguintes argumentos:
“Conforme resulta da Decisão Sumária ora proferida, a possibilidade de
conhecimento do presente recurso foi excluída com base em dois diferentes e
muito distintos fundamentos.
Considera o Ex.mo Senhor Conselheiro Relator, em primeiro lugar, que (i) não se
está perante uma questão de inconstitucionalidade de uma norma jurídica e que,
por outro lado, ainda que assim não se entendesse e mesmo a ser esse o caso,
(ii) a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça não fora a questionada
pelas Recorrentes.
Sucede, no entanto, que – salvo o devido respeito, que é muito – se discorda, em
absoluto, de ambos os fundamentos apontados.
Assim, e no que respeita àquele segundo fundamento, reporta-se o mesmo à
circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça não ver reconhecido interesse em
agir às Recorrentes, na acção que as mesmas propuseram, por estarem já em curso
acções executivas, respeitantes ao cumprimento do contrato em apreço, em que
lhes seria possível defender o seu direito.
Seria, desta forma, uma interpretação do requisito do interesse em agir,
incorporando e valorizando esse facto – da pendência das execuções –, aquela que
o Supremo Tribunal de Justiça teria acolhido e aplicado (e não a interpretação
questionada pelas Recorrentes).
Acontece, porém, que, no Acórdão de tal Supremo Tribunal não chega a dar-se por
assente e a afirmar-se a pendência de tais acções executivas, pois apenas que
«parece» resultar dos autos a existência de tais acções.
E acontece, além disso, que é absolutamente inexacto que qualquer acção desse
tipo – ou de qualquer outro – já haja sido interposta pela Recorrida e se
encontre a decorrer.
Diga-se, aliás, que nem os autos (ao contrário do que infundadamente presumiu o
mesmo Supremo Tribunal de Justiça) permitiam – ou em qualquer caso permitem –
inferir o contrário.
Assim – e porque só erradamente e certamente por manifesto lapso poderia ter o
Supremo Tribunal de Justiça baseado a sua decisão num tal entendimento do
requisito do interesse em agir – sempre se deveria entender que não podia ser
essa a interpretação relevantemente aplicada por tal Tribunal, para confirmar o
Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Mas a isso acresce que tal circunstância – da pretensa ou presumida pendência
das acções executivas – só é invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça como
argumento adjuvante ou de maioria de razão: assim inequivocamente resulta do
aludido argumento vir introduzido pela expressão «tanto mais que [parece
resultar dos autos que a aqui Ré intentou acções executivas]».
Este modo de apresentar o argumento é, na verdade, denotativo e bem elucidativo
de que tal fundamento não é, efectivamente, decisivo e de que, mesmo na sua
falta, o Supremo Tribunal de Justiça não teria deixado de decidir do mesmo modo:
recusando o interesse em agir na acção.
Daí – e ainda que não só do que acaba de dizer-se, mas reforçadamente em
conjunção com o que foi dito antes – que se tenha de concluir que a
interpretação normativa que foi determinante da decisão do Supremo Tribunal de
Justiça, e que o mesmo efectivamente aplicou, foi outra e justamente aquela que
as Recorrentes procuraram delinear no requerimento de recurso e na resposta ao
convite do Ex.mo Senhor Conselheiro Relator.
Por outro lado, no que se refere ao primeiro dos aludidos fundamentos, segundo
a Decisão Sumária ora reclamada, as Recorrentes ao identificarem a interpretação
questionada não estariam a colocar a questão da inconstitucionalidade de uma
norma, mas, verdadeiramente, a questão (da inconstitucionalidade) da subsunção
que o Supremo Tribunal de Justiça (com as instâncias) fez do seu caso concreto à
norma sobre a exigência processual do «interesse em agir».
Não está em causa – diz-se – um «critério normativo, dotado de suficiente
generalidade e abstracção», mas antes aquele juízo subsuntivo.
Note-se, antes de mais, que na Decisão Sumária proferida não se põe em causa a
indicação, pelas Recorrentes, dos artigos 2º e 4º do Código de Processo Civil
como aqueles preceitos a que poderia ligar-se o requisito do «interesse
processual» nas acções de simples apreciação (aliás salvaguardando que, a não se
considerar correcta essa ligação, então deveria considerar-se, sem mais, a
norma, doutrinariamente construída, em que se funda tal requisito processual, já
que a lei, efectivamente, não fala dele expressis verbis).
Mas justamente esta circunstância não pode deixar de assumir relevância e há-de
levar-se em conta, quando se trata de apreciar se está invocada ou não, na
espécie, uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Com efeito, nem sequer definindo a lei o que seja o «interesse processual», nem
muito menos especificando as circunstâncias exigidas para que esteja preenchido
em cada tipo de acção, é-se remetido, nessa matéria, para enunciados doutrinais
muito abertos – como o de MANUEL DE ANDRADE, de «interesse objectivo e grave» –
que só são susceptíveis de ganhar densidade normativa justamente na sua
projecção nos casos ou tipos de casos concretos, face aos quais se vão
descobrindo as plúrimas dimensões normativas desse ou desses enunciados.
Ora, a verdade é que as Recorrentes não pretendem, em caso algum, questionar a
conformidade constitucional da exigência, em si mesma, do «interesse
processual» nas acções de simples apreciação, e nem sequer que esse haja de ser
um interesse «objectivo e grave».
O que questionam é um entendimento dessa exigência (da «objectividade», mas
sobretudo da «gravidade» do interesse) tal que exclua a existência do mesmo
interesse em casos com o perfil daquele, ou com o tipo daquele que se acha sub
judicio.
Ou seja: o que questionam é uma certa dimensão possível (e que foi justamente a
adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça) do enunciado aberto que dá expressão
ao requisito do «interesse processual».
Utilizando o esquema metodológico da silogismo judiciário, está-se ainda, pois,
no domínio da sua premissa maior, no domínio da norma, portanto.
Mas, se é assim, então o único modo de que as Recorrentes podiam e podem
socorrer-se, para identificar o entendimento ou a dimensão normativa que
questionam, é o de descrever as características do tipo do caso a que respeita
tal entendimento ou dimensão, características essas que, como é óbvio, estarão,
também, presentes no caso de espécie.
E com isso – repete-se – não se está a sair para fora da apreciação da premissa
maior (a norma) do silogismo judiciário.
E – por isso – também não deixa a questão de reportar-se a um critério dotado
de «generalidade e abstracção», pois que ele será sempre generalizável a todos
os casos com o perfil ou do tipo que é descrito.
Naturalmente que o recorte do perfil ou do tipo de casos pode ser mais amplo ou
mais restrito, mas isso em nada pode mudar as coisas.
E, no tipo de casos em apreço, bem se compreende que esse recorte seja mais
preciso, dada a especificidade do tipo de contrato (contrato bancário) no quadro
do qual a questão se suscitou.
De qualquer modo, o que se questiona é a dimensão da norma relativa ao
«interesse em agir» que o Supremo Tribunal de Justiça, tendo aplicado no caso
concreto de espécie, entendeu aplicável a todos os casos do mesmo tipo ou com o
mesmo perfil.
De resto, este Tribunal Constitucional tem, sem discrepâncias, admitido a
possibilidade de questionar-se a constitucionalidade, não só de uma simples
interpretação, mas também de uma simples dimensão aplicativa de uma norma
jurídica (a norma enquanto justamente aplicável a certo tipo de casos, ou a
casos de certo tipo) e, com isso, não tem deixado de examinar, e com
frequência, normas ou dimensões normativas que se identificam e delimitam
justamente pelas notas identificativas e individualizadoras desses casos-tipo.
E não é raro, inclusivamente, que, questionada uma norma, seja o próprio
Tribunal a «reduzi-la» precisamente ao tipo de casos em que foi aplicada, tipo
esse por vezes delimitado em termos muito estreitos (nomeadamente para
circunscrever o alcance de uma pronúncia de inconstitucionalidade) e
perfeitamente equiparáveis àqueles que as Recorrentes utilizaram no presente
recurso.
Nestes termos, novamente se conclui: deverá, em face da força expansiva do
conceito de norma fiscalizável pelo Tribunal Constitucional e porque a
interpretação já apontada dos autos foi efectivamente sustentada como ratio
decidendi, conhecer-se do vertente pedido de fiscalização concreta da
constitucionalidade.”
A recorrida respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
A decisão reclamada recusou o conhecimento do recurso de constitucionalidade
interposto pelas reclamantes por entender que o objecto do recurso delimitado
por estas no respectivo requerimento de interposição corrigido não integrava uma
norma, mas sim um raciocínio subsuntivo, e não correspondia à ratio decidendi do
acórdão recorrido.
As recorrentes reclamam, sustentando que a indicação por elas feita da
interpretação cuja constitucionalidade pretendem ver fiscalizada tem carácter
normativo e foi fundamento do acórdão recorrido.
Foi a seguinte a questão de constitucionalidade colocada a este Tribunal pelas
reclamantes:
- é inconstitucional o entendimento de que “resulta dos artigos 2º e 4º do
Código de Processo Civil que nas acções de simples apreciação se exige, como
pressuposto processual, a verificação do interesse em agir e que esse
pressuposto não se verifica quando uma das partes num contrato (um banco) o
interpreta arrogando-se um direito de crédito que exerce directamente mediante
débitos em conta bancária que a contraparte mantém junto de si, colocando esta
contraparte numa posição devedora que considera injusta e sem suporte
contratual, desejando vê-la esclarecida em termos de ser declarada a existência
ou inexistência daquele putativo direito”.
Apesar de nem sempre ser fácil distinguir onde na aplicação do direito ao caso
concreto, acaba a formulação de juízos interpretativos de disposições legais,
com cariz normativo, e começa o necessário juízo subsuntivo daquelas disposições
e respectivas interpretações normativas, tendo em consideração as
particularidades do caso concreto, a questão colocada pelas reclamantes situa-se
já neste último nível do raciocínio judiciário.
Na verdade, a questão constitucional formulada pelas reclamantes não incide
sobre uma regra, vocacionada para uma aplicação genérica, relativa à
interpretação abstracta do que é o interesse em agir, nas acções de simples
apreciação. Apesar de não se referir o nome dos sujeitos da relação jurídica em
causa, nem os montantes do direito de crédito que integra essa relação, estamos
perante uma mera valoração do julgador da existência de interesse em agir
perante os dados concretos da situação fáctica integrante da causa de pedir
nesta acção.
Quanto à segunda discordância, importa reler os termos da fundamentação do
acórdão recorrido, após tecer considerações, estas sim genéricas e abstractas,
sobre o interesse em agir nas acções de simples apreciação negativa:
“…Em suma, para saber se, in casu, as AA. demonstram interesse em agir
importaria, partindo do princípio de que são verdadeiras e aceites pela parte
contrária as suas alegações, no mais que não se relaciona directamente com as
concretas cláusulas, saber se, somente, através da acção de simples apreciação
elas poderiam satisfazer a sua pretensão, ou seja, “se para evitar esse
prejuízo, necessita exactamente da intervenção dos órgãos jurisdicionais”.
A nossa resposta é negativa.
Não se verifica o interesse em agir quando as AA. têm outros meios de fazer
vingar a sua tese, tanto mais que parece resultar dos autos que a aqui Ré
intentou acções executivas; se assim for as AA., enquanto executadas, poderão,
na oposição que lhes é consentida legalmente, pugnar pela interpretação que
reputam ser a juridicamente correcta.
Neste entendimento não merece censura a decisão recorrida.
Sustentam as recorrentes que, a manter-se o Acórdão recorrido, isso seria o
mesmo que sujeitar as Recorrentes à vontade da Recorrida, sem qualquer hipótese
de recurso ou tutela pelo Direito, considerando assim violado o art. 20°, da
Constituição da República Portuguesa.
Salvo o devido respeito, não se vislumbra que a divergente interpretação dos
termos do contrato pela Ré sujeite as AA. à sua vontade, em termos de impedir a
discussão da divergência nos tribunais; seria uma entidade privada no contexto
de um litígio também privado a impedir o acesso aos Tribunais e à Justiça o que
constituiria um perfeito absurdo.
O facto do Tribunal confirmar a decisão recorrida – especialmente tendo em conta
a peculiar natureza da acção de simples apreciação – não as priva de aceder ao
judiciário para defesa dos seus interesses, pelo que não existe a temida
inconstitucionalidade”.
Da leitura da fundamentação do acórdão recorrido resulta que este não entendeu
que não se verifica interesse em agir numa acção de simples apreciação porque
“uma das partes num contrato (um banco) o interpreta arrogando-se um direito de
crédito que exerce directamente mediante débitos em conta bancária que a
contraparte mantém junto de si, colocando esta contraparte numa posição devedora
que considera injusta e sem suporte contratual, desejando vê-la esclarecida em
termos de ser declarada a existência ou inexistência daquele putativo direito”,
mas sim quando a intervenção meramente declarativa do direito pelos órgãos
jurisdicionais é necessária para evitar o prejuízo invocado pelas demandantes,
o que, no caso concreto, não se verificava porque estas tinham “outros meios
para fazer vingar a sua tese”.
O fundamento da decisão de não conhecimento da acção de simples apreciação
proposta pelas reclamantes não foi, pois, aquele que estas formularam no seu
requerimento corrigido de interposição de recurso, mas outro bem diferente, pelo
que também por falta deste requisito essencial do recurso de constitucionalidade
se justificava o sentido da decisão sumária.
Nestes termos deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A., S.A., e Imobiliária
B., S.A., da decisão sumária proferida nestes autos em 25-11-2008.
*
Custas pelas reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos