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Processo nº 822/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e é recorrida B. foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do
nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 16 de Setembro de 2008.
2. Em 11 de Novembro de 2008, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do
disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, com o seguinte fundamento:
«2. Estabelece a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC – ao abrigo da qual foi
interposto o presente recurso – que cabe recurso para o Tribunal Constitucional
das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo.
No requerimento de interposição de recurso o recorrente afirma, em cumprimento
do disposto na parte final do nº 2 do artigo 75º-A da LTC, que levantou a
questão da inconstitucionalidade nas alegações que apresentou no recurso de
apelação. Analisada esta peça processual, verifica-se que não foi suscitada
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, reportada ao artigo 1406º,
nº 1, do Código Civil. No que respeita à reserva da intimidade da vida privada e
familiar, o recorrente sustenta apenas que o decretamento da providência
violaria o disposto no artigo 26°, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa. Em conformidade, tão-pouco a decisão recorrida apreciou qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa (cf. fl. 394 e ss. dos autos).
Uma vez que o recorrente não suscitou, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma cuja apreciação requer, nunca poderia conhecer-se
do objecto do recurso. “Se o tribunal recorrido não for confrontado com a
questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir. E, não a
decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso, em vez
de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria conhecer
dela ex novo” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/94, Diário da
República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao
abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, invocando o seguinte:
«- Entendeu-se na douta decisão de que ora se reclama que “analisada esta peça
processual (as alegações apresentadas na apelação) verifica-se que não foi
suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, reportada ao
artigo 1406° nº1, do Código Civil. (...) Em conformidade, tão pouco a decisão
recorrida apreciou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (cfr. fl.
394 e ss dos autos).
Assim, conclui, “uma vez que o recorrente não suscitou, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma cuja apreciação se requer, nunca poderia
conhecer-se do objecto do recurso.”
- Ora, com o devido respeito, tem o ora Reclamante entendimento diferente.
- Com efeito, nas alegações que apresentou na apelação interposta para o
Tribunal da Relação de Coimbra, o Reclamante, o ora reclamante, aí apelado,
concluiu, além do mais, o seguinte:
(...)
6) O decretamento da providência de restituição de posse violaria o direito do
Requerido à reserva da intimidade da sua vida privada e familiar, previsto e
consagrado no artigo 26° da CRP.
(...)
- Por seu turno, e em face de tais alegações, no douto Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, diz-se o seguinte:
“Quanto à questão da privacidade do requerido, que merece alguma ponderação pelo
facto de ele ter instalada na casa a que se reportam os autos a sua residência
familiar, temos que (como flui da factualidade assente) há anos ambos vêm
utilizando o imóvel, o qual permite o alojamento das duas famílias, sem
inconveniente de maior, tendo, até à ocorrência a que se reportam os autos
havido entendimento nesse sentido. Ora essa utilização conjunta está conforme
com o que prescreve o artigo 1406°. 1 do Código Civil, quanto ao uso da coisa
comum por parte dos comproprietários. Por outro lado, atento o comando da parte
final do mencionado artigo 1406°, 1, e, sobretudo o direito à “reserva da
intimidade da vida privada e familiar” consagrado no artigo 26°, 1 da
Constituição da República Portuguesa, a requerente, uma vez restituída à sua
posse, terá, sem margem para dúvidas, de usar a casa, tendo sempre em conta que
o requerido nela tem instalada a sua residência.”
- Assim, com o devido respeito, e em face do que fica exposto, verifica-se que,
não só o Reclamante levantou a questão da inconstitucionalidade – propugnando
que interpretação do normativo legal aplicável que levasse a considerar como
possível o decretamento da providência violaria um direito fundamental e
constitucionalmente consagrado – como o Tribunal que apreciou o recurso se
pronunciou expressamente sobre essa questão.
- Ora, a questão da inconstitucionalidade da interpretação dada ao normativo
legal aplicável que considerou (através de providência cautelar decretada sem
audição da parte contrária) que o direito, constitucionalmente consagrado, à
reserva da intimidade da vida privada e familiar, se deve subordinar ao direito
ao uso da coisa comum pelo comproprietário – interpretação essa que o douto
Tribunal da Relação concretizou na interpretação dada ao artigo 1406° nº1 do CC
– foi, em nossa opinião, clara, atempada e regularmente levantada nas alegações
do recorrente (…)».
4. Notificada, a recorrida respondeu, concluindo pela manutenção e confirmação
da decisão de não admissão do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão reclamada concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso por não
se verificar um dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da LTC: a suscitação, durante o processo, da questão de
inconstitucionalidade normativa.
O reclamante sustenta que levantou a questão da inconstitucionalidade e que o
tribunal que apreciou o recurso se pronunciou expressamente sobre essa questão.
Para demonstrar tais afirmações, procede à transcrição de um excerto das
contra-alegações e de uma passagem do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.
Contudo, tais transcrições confirmam apenas o não cumprimento, por parte do
recorrente, do ónus da suscitação prévia de uma questão de inconstitucionalidade
normativa.
Durante o processo, o recorrente não questionou a conformidade constitucional de
determinada norma de direito infra-constitucional, designadamente do artigo
1406º, nº 1, do Código Civil, por referência a uma norma ou princípio
constitucional, designadamente face ao disposto no artigo 26º, nº 1, da
Constituição. O ónus da suscitação prévia não pode dar-se como verificado
perante uma mera alusão à Constituição da República Portuguesa, desde logo
porque o Tribunal Constitucional procede ao controlo normativo da
constitucionalidade (e da legalidade) de normas e não de decisões judiciais. Por
outro lado, a transcrição da decisão recorrida confirma que esta não apreciou
uma questão de inconstitucionalidade normativa que tivesse sido suscitada, nos
termos do disposto no nº 2 do artigo 72º da LTC, com o intuito de abrir a via do
recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
mesma lei.
Não podendo dar-se como verificado o requisito da suscitação prévia da questão
de inconstitucionalidade normativa (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC), é de
confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso interposto.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2008
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão