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Processo n.º 896/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., tendo sido notificada do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de
Justiça, e com ele não concordando, interpôs, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, recurso de constitucionalidade,
com o seguinte teor:
“A., Recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificada do teor
do acórdão proferido por V. Exas. e com ele não concordando, nomeadamente na
interpretação adoptada na decisão recorrida quanto à norma constante do artigo
1273.º do Código Civil relativamente às benfeitorias úteis e bem assim como
quanto à interpretação da norma constante do artigo 473.º também do Código Civil
no respeitante ao preenchimento dos requisitos exigidos para a verificação do
enriquecimento sem causa vem dele interpor para o Venerando Tribunal
Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82
de 15 de Novembro, e por violação do principio da igualdade, recurso a subir
imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Com efeito, a ora Recorrente foi confrontada com uma situação de aplicação /
interpretação normativa, no que aos pontos atrás aludidos se refere, de todo
imprevista e inesperada feita pela decisão recorrida.
À ora Recorrente não era exigível que anteviesse a possibilidade da aplicação
das atrás aludidas normas com a interpretação já referida ao caso concreto, de
modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.
A ora Recorrente não dispôs assim da oportunidade processual para suscitar a
questão antes de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal “a quod” por não
poder antever a possibilidade da interpretação das referidas normas de forma tão
insólita e imprevisível quanto é a de que a construção de uma casa de habitação
em determinado lote de terreno não implica, tal incorporação um aumento de valor
do lote em causa, facto evidentemente público e notório (a este propósito vide
Acórdão do TC 61/92, 188/93, 569/95, 596/96, 499/97, 642/99, 674/99, 124/00,
155/00, 192/00, 79/02, 120/02).”
2. Por despacho de 16 de Outubro de 2008 proferido pelo Exmo. Conselheiro do
Supremo Tribunal de Justiça o recurso não foi admitido por “O Tribunal não
aplicou (ou recusou aplicar) qualquer norma, designadamente a dos artigos 1273.º
ou 473.º do Código Civil. O que o Tribunal salientou é que não podia qualificar
de benfeitoria útil a construção em causa por falta de alegação da matéria de
facto. Nada mais do que isso. Não há qualquer insólita interpretação que pudesse
surpreender a recorrente, de modo que não tendo sido suscitada qualquer
inconstitucionalidade, não é admissível o recurso para o Tribunal
Constitucional.”
Vem então deduzida a presente reclamação, de acordo com o artigo 76.º, n.º 4,
da Lei do Tribunal Constitucional, tendo sido invocado, nomeadamente, o
seguinte:
“1. O acórdão do S.T.J. de que se interpõe o presente recurso revogou o acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa que por sua vez confirmava a sentença da 1.ª
instância, ambos os anteriores arrestos favoráveis à pretensão da A ora
recorrente.
2. E fê-lo dando interpretação absolutamente insólita e imprevisível as normas
constantes dos art. 1273.º do Código Civil relativamente às benfeitorias úteis e
bem assim como quanto à interpretação da norma constante do art. 473.º também do
Código Civil no respeitante ao preenchimento dos requisitos exigidos para a
verificação do enriquecimento sem causa.
3. A interpretação dada pelos M.° Juízes Conselheiros do S.T.J. a essas normas é
manifestamente inconstitucional.
Porém, tendo surgido apenas nesta fase do processo, em que já não é admitido
recurso ordinário em virtude da lei não o prever a questão só agora é colocada,
como aliás prevê o n.°2 do art.° 70° da L.T.C.
4. E ao contrário do que invoca o M.° Juiz Conselheiro Relator a questão não é
de insuficiência de matéria fáctica, que aliás, permitiu aos outros anteriores
Tribunais decidirem em sentido diametralmente oposto ao ora decidido.
A questão é mesmo da interpretação das normas atrás referidas.
Com efeito, a recorrente foi confrontada, apenas nesta fase do processo, com uma
situação de aplicação e interpretação normativa de todo imprevista e inesperada
feita pela decisão.
E a recorrente não dispôs de ‘oportunidade processual’ para suscitar a questão
antes de esgotado o poder jurisdicional do Tribunal ‘a quo’, por não antever a
possibilidade dessa aplicação (vide a este propósito acórdãos n.° 61/92, 188/93,
569/95, 596/96, 499/97, 642/99, 674/99, 124/00, 155/00, 192/00, 79/02 e 120/02
entre outros).
Como já se disse não era exigível à recorrente que antevisse, num prévio juízo
de prognose relativo à sua aplicação e interpretação, a possibilidade de
aplicação das atrás aludidas normas com a interpretação e aplicação que lhe
foram dadas pelos M.° Juízes Conselheiros, de modo a impor-se-lhe o ónus de
suscitar a questão antes da decisão.
Ou seja nunca a recorrente podia ter previsto que para verificação da existência
de benfeitorias úteis, face a tudo o que já consta do processo e ao que os
Meritíssimos Srs. Juízes Conselheiros deveriam atender, face ao que dispõe quer
o art.° 515° quer o art.° 514° do Código do Processo Civil, a interpretação que
nos autos assumem foi a que conduziu à improcedência do pedido e
consequentemente ao decesso na acção.
Dispõe o n.1 art.º 1273° do Código Civil que ‘tanto o possuidor de boa fé como o
de má fé tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que hajam
feito e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde
que o possam fazer sem detrimento dela’:
E dispõe o n.º 2 do mesmo preceito que ‘quando, para evitar o detrimento da
coisa não haja lugar ao levantamento das benfeitorias satisfará o titular do
direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do
enriquecimento sem causa.’
Ora, provado que ficou que a A construiu nesses lotes, que despendeu quantia não
apurada nos mesmos como pode interpretar-se tal norma no sentido de que ‘a
construção de uma casa sobre determinado lote de terreno não constitui aumento
de valor do mesmo’ e que tal facto, independentemente do já alegado nos autos,
‘não constitui um facto notório’.
5. Na esteira do que atrás ficou referido também o art. 473° do Código Civil
referente ao enriquecimento sem causa veio a ser interpretado no sentido de que
tal prova não foi realizada.
6. Qualquer uma das interpretações das normas atrás referidas padecem de
inconstitucionalidade por violação do princípio de igualdade, pelo que o recurso
deveria ter sido recebido no efeito deduzido pela recorrente.”
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto a este Tribunal,
manifestou-se no sentido da improcedência da reclamação, dizendo não ter sido
invocada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
4. Na resposta a este parecer, veio a Reclamante dizer o seguinte, e no que ora
importa:
“2. A questão que aqui e então se colocou não é de inconstitucionalidade
normativa mas antes de interpretação adoptada na decisão recorrida quanto às
normas constantes quer do artigo 1273.º do Código Civil relativamente a
benfeitorias úteis, quer do artigo 473.º do mesmo diploma, no respeitante ao
preenchimento dos requisitos exigidos para a verificação do enriquecimento sem
causa.
3. O que a reclamante, efectivamente, evidenciou com a presente reclamação foi a
interpretação dada às respectivas normas pelo Supremo e não às normas em si
mesmo consideradas.
4. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado recai sobre as partes as diversas
probabilidades interpretativas susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas
na decisão e adoptarem as necessárias precauções, de modo a poderem em
conformidade com a orientação processual considerar mais adequada, salvaguardar
a defesa dos seus direitos (Acs. 479/89, 439/91, 40/92, 118/92, 263/92, 291/92,
116/93, 605/94, 35/95, 38/95, 134/95, 367/96, 595/96 e 66/99).
5. Porém, no caso dos autos, a interpretação que foi dada pelo Supremo aos dois
mencionados preceitos é de tal modo insólita e imprevista que não seria razoável
exigir ao interessado um prévio juízo de prognose relativo à sua aplicação, em
termos de se antecipar ao proferimento da decisão.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A reclamação deduzida carece manifestamente de fundamento.
Como resulta do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do artigo
70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para que se possa
lançar mão do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade ali
previsto, é necessária a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade
normativa, não cabendo a este Tribunal apreciar a conformidade da decisão
recorrida nem, de qualquer outro modo, sindicar as decisões proferidas por
outros tribunais.
A suscitação de questão de constitucionalidade dita normativa, apta a
adequadamente convocar a pronúncia do Tribunal Constitucional implica que “a
parte identifique expressamente [ess]a interpretação ou dimensão normativa, em
termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder
enunciar na decisão, de modo a que os respectivos destinatários e os operadores
do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal
sentido.” (Lopes do Rego, O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta
da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004,
p. 8).
Assim, o objecto do recurso de constitucionalidade apenas poderá incidir sobre a
apreciação, à luz das regras jurídico-constitucionais, de um juízo normativo
efectuado pelo tribunal recorrido. Este pressuposto constitui o traço distintivo
do sistema português de fiscalização da constitucionalidade face a outros
modelos como o da queixa constitucional ou recurso de amparo.
Como se escreveu no Acórdão n.º 584/2005, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, o recurso “visa[r] a determinação contida em
regra jurídica geral e abstracta aplicada na decisão recorrida como ratio
decidendi, ficando de fora o juízo concretizador da norma, ou seja, a valoração
que no caso concreto e mercê das particulares circunstâncias da situação, o
tribunal comum aplicou.”
6. Nos presentes autos, a arguição de inconstitucionalidade é imputada à decisão
recorrida – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça –, portanto a uma decisão
judicial e não a qualquer norma jurídica.
A Reclamante reitera, nos vários requerimentos, a sua discordância em relação à
decisão, dizendo, por exemplo: “A interpretação dada pelos M.° Juízes
Conselheiros do S.T.J. a essas normas é manifestamente inconstitucional”, “O que
a reclamante, efectivamente, evidenciou com a presente reclamação foi a
interpretação dada às respectivas normas pelo Supremo e não às normas em si
mesmo consideradas.”, “A questão é mesmo da interpretação das normas atrás
referidas.” e “Qualquer uma das interpretações das normas atrás referidas
padecem de inconstitucionalidade por violação do princípio de igualdade (…)”.
O que se verifica é que a Reclamante apenas não concorda com a decisão do
Supremo Tribunal de Justiça, não estando em causa qualquer tipo de juízo
normativo.
Com efeito, na expressão de Lopes do Rego, (O objecto idóneo dos recursos de
fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, in Jurisprudência Constitucional, n.º
3, Julho a Setembro de 2004, p. 7), “como genérica directriz, poderá partir-se
da afirmação de que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada
interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão,
sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação
potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro
acto de julgamento, que enquanto ponderação casuística da singularidade e
irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração
ou subsunção do julgador, exclusivamente imputável à latitude própria da
conformação interna da decisão judicial (...).”
Falta, portanto, o requisito atinente à idoneidade do objecto do recurso.
7. Para além disso, e em relação ao segundo argumento invocado pela
Reclamante, também a decisão do Supremo Tribunal de Justiça não pode ser
considerada uma “decisão surpresa”, não possuindo carácter insólito ou
imprevisível para efeitos de dispensa do cumprimento adequado do de suscitação
da questão de constitucionalidade durante o processo.
Com efeito, como se disse no Acórdão n.º 489/94 (publicado no Diário da
República, II Série de 16 de Dezembro de 1994) deste mesmo Tribunal
Constitucional: “cabe às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses
de interpretação razoáveis das normas em questão e suscitar antecipadamente as
inconstitucionalidades daí decorrentes antes de ser proferida a decisão.”
Assim sendo, resta concluir pela improcedência da Reclamação.
III – Decisão
8. Sem necessidade de maiores considerações, acordam em indeferir a presente
reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não
admissão do recurso.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2008
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos