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Processo n.º 371/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos da 9.ª Vara Cível de Lisboa, em que é recorrente
o Ministério Público e recorridas A., Lda., e B., foi interposto recurso
obrigatório de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea
a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão
daquele Tribunal, de 25.03.2008, que recusou a aplicação das normas dos artigos
1.º, n.º 1, alínea a), 4.º a 11.º, e 24.º a 27.º do Decreto-Lei n.º 157/2006, de
8 de Agosto, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do
artigo 165.º, n.º 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa.
2. O presente recurso emerge de acção declarativa de condenação, com processo
ordinário, que A. (Portuguesa), Lda., intentou contra B., pedindo, a título
principal, que fosse decretada a denúncia do contrato de arrendamento
identificado nos autos, ordenando-se a imediata desocupação do locado e a sua
entrega pela ré à autora.
A autora fundamentou o pedido, nomeadamente, no Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8
de Agosto, alegando que pretende demolir o prédio, que integra a local arrendado
à ré, e proceder à construção de um novo edifício, em regime de propriedade
horizontal, tendo já sido aprovado, pela Câmara Municipal de Lisboa, o
respectivo projecto de arquitectura.
Na sua contestação, a ré invocou, além do mais, a inconstitucionalidade orgânica
do Decreto-Lei n.º 157/2006, por entender que o diploma ultrapassa o sentido e a
extensão definidos na respectiva lei de autorização legislativa, a Lei n.º
6/2006, de 27 de Fevereiro.
Por decisão da 9.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, agora impugnada, foi
recusada a aplicação das normas do Decreto-Lei n.º 157/2006, acima referidas,
com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
3. O despacho ora recorrido fundamentou-se, em síntese, no seguinte:
«(…) Os Artigos 1.°, n.° 1, alínea a), 4.º a 11.º, 24.° a 27.° do Decreto-lei
n.° 157/2006, de 8.8, regulam a realização de obras por iniciativa do senhorio
em termos que extravasam o âmbito e sentido da autorização legislativa
decorrente do Artigo 63.°, n.°1, alínea a) e n.° 2 da Lei n.° 6/2006, de 27.2.
Estes artigos vêm, designadamente, prever a extinção do contrato de arrendamento
por denúncia do senhorio quando este pretenda efectuar obras de remodelação
profundas (Artigo 5.°, n.°1), para demolir o locado (Artigos 7.° e 24.°),
conferindo-se ainda a faculdade de demolição quando esta for considerada pelo
município a solução tecnicamente mais adequada e a demolição seja necessária à
execução de plano municipal de ordenamento do território ( Artigo 24.°, n.° 2),
regime e causas essas de extinção do contrato de arrendamento que não estão
minimamente referidas e delimitadas na Lei de autorização legislativa.
Trata-se de um regime totalmente novo face ao de pretérito — Lei n.° 2088, de 3
de Junho de 1957.
Não se obtempere com a circunstância de o Artigo 1103.°, n.° 8 do Código Civil
na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27.2., prever que “A denúncia do contrato
para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos é
objecto de legislação especial” porquanto esta disposição não consubstancia, ela
própria, uma lei de autorização legislativa e não tem a virtualidade de afastar
o regime do Artigo 165.°, alínea h) da Constituição.
A aplicação das normas mencionadas é directa e essencial para a pretensão
deduzida pela Autora.
Acresce que, “Desaplicada a norma inconstitucional, o tribunal deve julgar o
caso como se não existisse a norma julgada inconstitucional, aplicando, se for
caso disso, em vez dela, a norma que ela tenha vindo revogar ou substituir”
(cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª Ed., Coimbra Editora, pg. 1028), o que, no caso em apreço, implica
reflexos imediatos na (im)procedência da acção.
*
Pelo exposto:
a) declaro organicamente inconstitucionais as normas dos Artigos 1.°, n.°1,
alínea a), 4.º a 11.º, 24.° a 27.° do Decreto-lei n.° 157/2006, de 8 de Agosto,
por violação do Artigo 165.°, n.°1, alínea h) da Constituição;
b) recuso a aplicação das normas referidas em a) com fundamento na
inconstitucionalidade orgânica das mesmas (Artigo 204.° da Constituição).
(…)»
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
concluiu da seguinte forma as respectivas alegações:
«1º
Inclui-se no âmbito da “reserva de parlamento”, estabelecida no artigo 165.º,
n.º 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, a definição dos
pressupostos materiais que condicionam, se um arrendamento “vinculístico”, a
faculdade de denúncia pelo senhorio, nomeadamente com fundamento na demolição do
prédio arrendado.
2º
Tais pressupostos – que se não mostram minimamente definidos nos artigos 1101.º
e 1103.º do Código Civil, na redacção emergente da Lei n.º 6/2006 – são
estabelecidos, em termos constitutivos e inovatórios, pelo Decreto-Lei n.º
157/06, em particular pelas disposições conjugadas dos artigos 7.º, n.º 2, e
24.º deste último diploma legal.
3º
Não estando o Governo, ao aditar o Decreto-Lei n.º 157/06, legitimado, face ao
objecto e extensão da respectiva lei de autorização legislativa, constante do
artigo 63.º da Lei n.º 6/2006, para regular os aspectos substantivos da extinção
do arrendamento urbano, na sequência do exercício pelo senhorio do direito de
denúncia, com base na pretendida demolição do locado, são organicamente
inconstitucionais as normas que integram o objecto do presente recurso.
4º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.»
5. As recorridas não apresentaram contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
6. Desde a revisão constitucional de 1982, é da exclusiva competência da
Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre o “regime
geral do arrendamento rural e urbano” (artigo 165.º, n.º1, alínea h), na versão
em vigor a partir de 1997).
Considerando que a matéria regulada cabia no âmbito desta previsão e que as
soluções adoptadas não se continham dentro dos limites da autorização
legislativa conferida ao Governo, pela alínea a) do n.º1 e pelo n.º 2 do artigo
63.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, a sentença recorrida pronunciou-se
pela inconstitucionalidade orgânica dos artigos 1.º, n.º1, alínea a), 4.º a
11.º, e 24.º a 27.º do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto, tendo, em
conformidade, recusado a sua aplicação.
As disposições declaradas inaplicadas rezam assim:
«SECÇÃO I
Disposições comuns
Artigo 1.º
Objecto
1 — O presente decreto-lei aprova o regime jurídico aplicável:
a) À denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou
realização de obras de remodelação ou restauro profundos, nos termos do n.º 8 do
artigo 1103.º do Código Civil;
b) (…);
c) (…).
2 — (…);
a) (…);
b) (…).»
«Regime geral
SUBSECÇÃO I
Iniciativa do senhorio
Artigo 4.º
Remodelação ou restauro profundos
1 — São obras de remodelação ou restauro profundos as que obrigam, para a sua
realização, à desocupação do locado.
2 — As obras referidas no número anterior são qualificadas como estruturais ou
não estruturais, sendo estruturais quando originem uma distribuição de fogos sem
correspondência com a distribuição anterior.»
Artigo 5.º
Denúncia ou suspensão para remodelação ou restauro
1 — O senhorio que pretenda realizar obras de remodelação ou restauro profundos
pode denunciar o contrato ou suspender a sua execução pelo período de decurso
daquelas.
2 — A suspensão do contrato é obrigatória quando as obras não sejam estruturais,
ou quando, sendo estruturais, se preveja a existência de local com
características equivalentes às do locado após a obra.
Artigo 6.º
Denúncia para remodelação ou restauro
1 — A denúncia do contrato para remodelação ou restauro profundos obriga o
senhorio, mediante acordo e em alternativa:
a) Ao pagamento de todas as despesas e danos, patrimoniais e não patrimoniais,
suportados pelo arrendatário, não podendo o valor da indemnização ser inferior
ao de dois anos de renda;
b) A garantir o realojamento do arrendatário por período não inferior a cinco
anos.
2 — Na falta de acordo entre as partes, aplica-se o disposto na alínea a) do
número anterior.
3 — O realojamento do arrendatário é feito no mesmo concelho e em condições
análogas às que aquele já detinha, quer quanto ao local quer quanto ao valor da
renda e encargos.
4 — A indemnização prevista na alínea a) do n.º1 tem em conta o valor das
benfeitorias realizadas e dos investimentos efectuados em função do locado.
Artigo 7.º
Denúncia para demolição
1 — O senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento quando pretenda demolir
o locado.
2 — À denúncia para demolição aplica-se o disposto no artigo anterior, excepto
quando, cumulativamente:
a) A demolição seja necessária por força da degradação do prédio, incompatível
tecnicamente com a sua reabilitação e geradora de risco para os respectivos
ocupantes;
b) Os pressupostos constantes da alínea anterior sejam atestados pelo município,
ouvida a comissão arbitral municipal (CAM).
8.º
Efectivação da denúncia
1 — A denúncia do contrato é feita mediante acção judicial, onde se prove
estarem reunidas as condições que a autorizam.
2 — A petição inicial é acompanhada de comprovativo de aprovação pelo município
de projecto de arquitectura relativo à obra a realizar.
3 — Nos 15 dias seguintes à propositura da acção, o senhorio, quando não
pretenda assegurar o realojamento, deposita o valor correspondente a dois anos
de renda.
4 — No caso de a indemnização apurada ser de montante superior ao valor
correspondente a dois anos de renda, a sentença não é proferida sem que se
mostre depositada a sua totalidade.
5 — O arrendatário pode levantar o depósito após o trânsito em julgado da
sentença que declare a extinção do arrendamento.
6 — Por convenção das partes, a acção a que se refere o n.º1 pode ser decidida
por tribunal arbitral.
Artigo 9.º
Suspensão
1 — A suspensão da execução do contrato pelo período de decurso das obras obriga
o senhorio a assegurar o realojamento do arrendatário durante esse tempo.
2 — Aplica-se ao realojamento do arrendatário o disposto no n.º 3 do artigo 6.º
Artigo 10.º
Efectivação da suspensão
1 — O senhorio que pretenda a suspensão do contrato comunica ao arrendatário os
seguintes elementos:
a) Intenção de proceder a obras que obrigam à desocupação do locado;
b) Local e condições do realojamento fornecido;
c) Data de início e duração previsível das obras.
2 — O arrendatário, em alternativa à suspensão, pode denunciar o contrato,
produzindo a denúncia efeitos em momento por si escolhido entre o da comunicação
prevista no número anterior e a data de início das obras.
3 — O arrendatário que não aceite as condições propostas ou a susceptibilidade
de suspensão do contrato comunica-o ao senhorio, que pode então recorrer à CAM.
4 — No caso de o arrendamento ser para fim não habitacional, o arrendatário pode
declarar preferir ao realojamento uma indemnização por todas as despesas e
danos, patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes da suspensão, sendo a CAM
competente para a sua fixação.
5 — A denúncia do contrato ou a não aceitação da suspensão são comunicadas ao
senhorio no prazo de 30 dias a contar da comunicação referida no n.º 1.
6 — O contrato de arrendamento suspende-se no momento da desocupação do locado.
7 — O senhorio comunica ao arrendatário o fim das obras, devendo o arrendatário
reocupar o locado no prazo de três meses, salvo justo impedimento, sob pena de
caducidade do contrato de arrendamento.
Artigo 11.º
Edificação em prédio rústico
O disposto na presente subsecção é aplicável, com as necessárias adaptações, à
denúncia de arrendamento de prédio rústico quando o senhorio pretenda aí
construir um edifício.»
«SECÇÃO III
Regime especial transitório
(…)
SUBSECÇÃO II
Iniciativa do senhorio
Artigo 24.º
Denúncia para demolição
1 — A faculdade de demolição só existe quando se verifiquem os pressupostos do
n.º 2 do artigo 7.º, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 — Existe ainda a faculdade de demolição quando esta for considerada pelo
município a solução tecnicamente mais adequada e a demolição seja necessária à
execução de plano municipal de ordenamento do território.
Artigo 25.º
Denúncia no arrendamento para habitação
1 — Em caso de denúncia para realização de obras de remodelação ou restauro
profundo ou para demolição do prédio, o arrendatário habitacional tem o direito
de ser realojado, devendo na petição inicial da acção ser indicado o local
destinado ao realojamento e a respectiva renda.
2 — O realojamento é feito no mesmo concelho e em condições análogas às que o
arrendatário já detinha, não podendo o local a tal destinado encontrar-se em
estado de conservação mau ou péssimo.
3 — A sentença fixa a renda a pagar pelo novo alojamento, a qual é determinada
nos termos do artigo 31.º do NRAU, bem como o faseamento aplicável, nos termos
dos artigos 38.º e seguintes da mesma lei.
4 — Na contestação da acção de denúncia, o arrendatário pode invocar as
circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 37.º do NRAU.
5 — A morte do arrendatário realojado é causa de caducidade do arrendamento,
devendo o locado ser restituído no prazo de seis meses a contar do decesso.
6 — O arrendatário pode, na contestação, optar entre o realojamento nos termos
dos números anteriores e o recebimento da indemnização prevista na alínea a) do
n.º 1 do artigo 6.º, a qual tem por limite mínimo o valor correspondente a 24
vezes a retribuição mínima mensal garantida.
Artigo 26.º
Denúncia no arrendamento para fim não habitacional
1 — Em caso de denúncia para realização de obras de remodelação ou restauro
profundo ou para demolição do prédio, o arrendatário não habitacional tem
direito ao pagamento de todas as despesas e danos, patrimoniais e não
patrimoniais, considerando-se o valor das benfeitorias realizadas e dos
investimentos efectuados em função do locado, não podendo o valor da
indemnização ser inferior ao valor de cinco anos de renda, com o limite mínimo
correspondente a 60 vezes a retribuição mínima mensal garantida.
2 — Nos 15 dias seguintes à propositura da acção, o senhorio deposita o valor
correspondente a 60 vezes a retribuição mínima mensal garantida.
3 — No caso de a indemnização apurada ser de montante superior, a sentença não é
proferida sem que se mostre depositada a totalidade daquela.
Artigo 27.º
Actualização da renda
O senhorio que realize obras de reabilitação nos três anos antes de proceder à
actualização da renda nos termos da secção II do NRAU, das quais resulte a
atribuição à totalidade do prédio onde se situa o locado de nível de conservação
bom ou excelente, nos termos do Decreto-Lei n.º 156/2006, de 8 de Agosto, pode
actualizar a renda anual tendo por base a fórmula seguinte:
R=VPC×CC×4%
em que:
VPC — valor patrimonial corrigido, correspondente ao valor da avaliação
realizada nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal
sobre Imóveis (CIMI), sem consideração do coeficiente de vetustez;
CC — coeficiente de conservação, previsto no artigo 33.º do NRAU;
R — renda anual.»
Como se vê, estamos perante preceitos de conteúdo diversificado, quer quanto à
previsão, quer quanto à estatuição.
O tribunal recorrido entendeu expressamente que “a aplicação das normas
mencionadas é directa e essencial para a pretensão deduzida pela Autora”.
Esta pretensão – recorde-se — teve por objecto a denúncia de um contrato de
arrendamento para habitação, com fundamento em demolição do locado para
construção de um novo edifício.
Pode bem sustentar-se que uma decisão conforme ao pedido não convocaria a
aplicação, in toto, desse conjunto de normas, já que algumas delas – e
designadamente as referidas à remodelação ou restauro profundos, à suspensão do
contrato, à edificação em prédio rústico, à denúncia no arrendamento para fim
não habitacional e à actualização da renda — nada têm a ver com a matéria em
juízo.
Não é, todavia, da competência deste Tribunal alterar, em via recursiva, os
juízos aplicativos ao caso concreto, ratione materiae, do direito ordinário,
levados a cabo pelas instâncias. Deste modo, o juízo de constitucionalidade que
nos cabe emitir recairá sobre todas as normas acima referidas, declaradas
organicamente inconstitucionais pela sentença recorrida e, em conformidade,
inaplicadas, especificamente mencionadas como objecto do recurso pelo Ministério
Público, no requerimento da sua interposição e abrangidas pelo juízo de
inconstitucionalidade orgânica emitido pelo recorrente nas suas alegações (art.
3.º da conclusão).
7. O primeiro passo a dar, nesse percurso decisório, será o de indagar se as
soluções constantes das normas impugnadas integram ou não a previsão da alínea
h) do n.º 1 do artigo 165.º.
Como objecto da reserva relativa de competência parlamentar vem aí referido o
“regime geral” do arrendamento. O qualificativo por nós sublinhado denota bem
que não cabe na reserva todo o regime do arrendamento, pelo que ela não é
“esgotante e absoluta”, como fundadamente realçou o Acórdão n.º 311/93. Estamos
perante uma reserva relativa ou de densificação parcial.
Mas, por outro lado, o confronto com o enunciado de outras alíneas, como a f),
g), ou n), que definem a sua área de incidência como sendo as “bases” dos
respectivos regimes, evidencia, com não menor clareza, a grande amplitude das
matérias arrendatícias cuja disciplina só pode ser estabelecida por lei
parlamentar, ou diploma parlamentarmente autorizado.
Como põe em destaque o Acórdão n.º 77/88:
«Ora, logo este ponto de vista textual mostra que a reserva em causa não se
limita à definição dos “princípios”, “directivas” ou standards fundamentais em
matéria de arrendamento (é dizer, das “bases” respectivas), mas desce ao nível
das próprias “normas” integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu
perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção “arrendamento rural e
urbano”, nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais
contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou
supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua
vigência, e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção –
pois tudo isso é “regime jurídico” dessa figura negocial.»
Sendo este o alcance da reserva de lei fixada na alínea h) do n.º 1 do artigo
165.º, dúvidas não há de que o Governo só poderia regular os aspectos da
disciplina do arrendamento urbano sobre que incidiram as normas impugnadas,
através de decreto-lei, se para tal estivesse munido da competente autorização
legislativa. Trata-se de pontos axiais do regime geral do arrendamento urbano,
pois dizem respeito à extinção ou suspensão de eficácia do contrato e a uma
alteração do montante da renda, a prestação principal a cargo do arrendatário.
Aí estão em jogo interesses primários dos sujeitos em relação, e muito
especialmente do inquilino – matéria de particular melindre político-social,
cuja regulação o legislador constituinte quis manter sob a alçada, de forma
directa ou indirecta, do órgão de representação da vontade popular.
Importa, pois, averiguar, se, no caso, existiu lei habilitante e, se assim foi,
se as soluções consagradas se contiveram dentro dos limites da autorização
legislativa.
8. Como consta do seu preâmbulo, o Decreto-Lei n.º
157/2006 foi emitido no uso da autorização legislativa concedida pela alínea a)
do n.º1 e pelo n.º 2 do artigo 63.º da própria lei que introduziu o Novo Regime
do Arrendamento Urbano (Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
Estas normas dispõem como segue:
«Artigo 63.º
Autorização legislativa
1 — Fica o Governo autorizado a aprovar no prazo de 120 dias os diplomas
relativos às seguintes matérias:
a) Regime jurídico das obras coercivas;
b) (…).
2 — Em relação ao regime jurídico das obras coercivas, a autorização tem os
seguintes sentido e extensão:
a) O diploma a aprovar tem como sentido permitir a intervenção em edifícios em
mau estado de conservação, assegurando a reabilitação urbana nos casos em que o
proprietário não queira ou não possa realizar as obras necessárias;
b) A extensão da autorização compreende a consagração, no diploma a aprovar, das
seguintes medidas:
i) Possibilidade de o arrendatário se substituir ao senhorio na realização das
obras, com efeitos na renda;
ii) Possibilidade de as obras serem efectuadas pela câmara municipal, ou por
outra entidade pública ou o sector público empresarial, com compensação em
termos de participação na fruição do prédio;
iii) Possibilidade de o arrendatário adquirir o prédio, ficando obrigado à sua
reabilitação, sob pena de reversão;
iv) Limitações à transmissão do prédio adquirido nos termos da subalínea
anterior;
v) Possibilidade de o proprietário de fracção autónoma adquirir outras fracções
do prédio para realização de obras indispensáveis de reabilitação.
3 — (…)
a) (…);
b) (…):
i) (…);
ii) (…);
iii) (…);
c) (…).»
Por sua vez, a disciplina constante do Decreto-Lei n.º 157/2006, para além do
regime especial transitório apontado no n.º 2 do artigo 1.º, reparte-se por três
blocos normativos distintos, separadamente identificados nas três alíneas do
n.º1 do citado artigo. Resulta destas normas que o diploma versa sobre a
“denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento para demolição ou realização
de obras de remodelação ou restauro profundos (alínea a)), a “realização de
obras coercivas pelos municípios, nos casos em que o senhorio as não queira ou
não as possa realizar (alínea b)) e a “edificação em prédio rústico arrendado e
não sujeito a regime especial” (alínea c)).
Da simples leitura, salta à vista que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 157/2006 é
mais extenso do que o enunciado na norma de autorização legislativa: enquanto
que esta, para o que ora interessa, define como objecto do acto autorizado
apenas o “regime jurídico das obras coercivas” (alínea a) do n.º1 do artigo 63.º
da Lei n.º 6/2006), o diploma que exercita a autorização consagra, para além
deste regime, o atinente à denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento e à
denúncia por edificação em prédio rústico arrendado.
É manifesto que estes dois regimes extravasam da matéria definida na norma
habilitante como objecto de autorização. Na verdade, este reporta-se a obras
coercivas, o mesmo é dizer, a obras que não resultam da iniciativa e da vontade
do senhorio, visando, justamente, suprir a inércia deste na sua realização. A
denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento, pelo contrário, são soluções
facultadas, em certos termos, ao senhorio, quando é ele a tomar a iniciativa de
obras de remodelação ou restauro profundos, ou de demolição. Trata-se, é bom de
ver, de vicissitudes contratuais distintas, de que promanam consequências de
tipo completamente diferente. E a autonomia substancial da previsão de extinção
ou suspensão dos efeitos do contrato, em face da matéria da realização de obras
coercivas, espelha-se bem, a nível formal e sistemático, não só na enunciação em
separado, na norma definidora do objecto (artigo 1.º), dos dois segmentos
normativos, como também na localização da disciplina respeitante a cada um deles
em subsecção própria.
É inevitável retirar a conclusão de que o regime de denúncia ou suspensão do
contrato de arrendamento, constante do Decreto-Lei n.º 157/2006, inovador e de
sentido não coincidente com o disposto na Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957,
foi emitido sem credencial parlamentar bastante, que habilitasse o Governo a
tomar uma iniciativa legislativa com esse conteúdo. De entre os limites que as
leis de autorização legislativa, de acordo com o n.º 2 do artigo 165.º da CRP,
fixam aos diplomas autorizados, o vício dá-se logo no primeiro deles, pela não
coincidência, nessa parte, do objecto sobre que recai o decreto-lei em causa e
aquele individualizado no artigo 63.º, n.º1, alínea a), da Lei n.º 6/2006.
9. Esta conclusão não é infirmada, nem sequer abalada, pelo facto de o artigo
1103.º, n.º 8, do Código Civil, posto em vigor pela Lei n.º 6/2006, prever o
seguinte:
«A denúncia do contrato para demolição ou realização de obra de remodelação ou
restauro profundos é objecto de legislação especial.»
Na verdade, esta norma tem uma natureza e uma função puramente remissivas e
integradoras, não podendo, de forma alguma, ser tida como operando uma delegação
de competência para uma intervenção legislativa governamental, neste domínio.
Sendo assim, ao ser tomada a opção de editar tal “legislação especial” sob a
forma de decreto-lei, o Governo não estava dispensado, naturalmente, de obter a
prévia autorização legislativa da Assembleia da República, como suporte
legitimador dessa actividade legiferante e parâmetro de validade das soluções,
dela advenientes, que se integram no regime geral do arrendamento urbano.
De resto, a qualificar-se aquela norma como de autorização legislativa – o que
já vimos, não corresponde ao seu alcance, e só por escrúpulo de completude
argumentativa agora se perspectiva — ela não preencheria minimamente os
requisitos substanciais da sua validade constitucional, já que se limita a
enunciar uma área de intervenção — a facultação ao senhorio de um direito
extintivo do contrato com um determinado objectivo —, sem nada definir quanto
aos seus pressupostos materiais, as medidas compensatórias em tutela dos
interesses do inquilino e a orientação a seguir quanto à disciplina de outros
aspectos relevantes da situação. Tratar-se-ia de um verdadeiro “cheque em
branco” endossado ao legislador, quando é certo que, como oportunamente salienta
JORGE MIRANDA, “autorizações em branco ou globais subverteriam a distribuição
constitucional de competências” (—/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa
Anotada, II, Coimbra, 539).
É seguro, pois, que esta simples previsão de uma actividade legislativa futura,
consagradora da disciplina da solução apenas enunciada na alínea b) do artigo
1101.º, sem nada adiantar quanto aos contornos dos pontos essenciais desse
regime, deixados inteiramente à autonomia decisória do órgão emitente da
legislação complementar, não concede a este uma delegação de competência, que
respeite a reserva instituída pela alínea h) do artigo 165.º da CRP.
10. Mutatis mutandis, as considerações acima expendidas, no ponto 8 desta
fundamentação, quanto à inobservância do limite substancial definido pelo
objecto da norma de autorização, são extensíveis ao disposto no artigo 27.º do
Decreto-Lei n.º 157/2006 – também incluído no conjunto de normas que a sentença
recorrida declarou inaplicadas, por inconstitucionalidade orgânica.
Está agora em causa, não a extinção ou suspensão da eficácia do contrato de
arrendamento, mas a faculdade concedida ao senhorio de actualização de renda, no
caso de realizar obras de reabilitação do prédio, em certas condições temporais
e substanciais. Ainda que identicamente reportada a obras destinadas a manter o
locado, com consequências apenas ao nível do conteúdo da relação, e não na sua
continuidade, a previsão não se refere a obras coercivas, pelo que se encontra
igualmente fora do âmbito da autorização legislativa outorgada pela alínea a) do
n.º1 do artigo 63.º da Lei n.º 6/2006.
É certo que o regime revogado por esta Lei já contemplava a possibilidade de
actualização da renda, pela efectivação de obras pelo senhorio (artigos 38.º e
39.º do RAU). Mas o regime instituído pelo artigo em questão é profundamente
inovador em relação a esta disciplina, dela divergindo em pontos fundamentais,
quer na previsão, quer na estatuição.
Estando em juízo a conformação de um elemento essencial do contrato de
arrendamento, reformuladora, em termos de agravamento, da prestação principal do
arrendatário — o sujeito protegido, em muitos aspectos do regime legal — dúvidas
não há que estamos perante uma solução inovadora que faz parte do “regime geral”
do arrendamento urbano, pelo que a sua consagração por decreto-lei exigia
autorização legislativa.
Não tendo sido esta emitida, em termos constitucionalmente conformes, a norma do
artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 157/2006 padece de inconstitucionalidade
orgânica.
III − Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.º,
n.º1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos
1.º, n.º 1, alínea a), 4.º a 11.º, e 24.º a 27.º do Decreto-Lei n.º 157/2006, de
8 de Agosto;
b) Em consequência, confirmar a decisão recorrida no que respeita ao juízo
de inconstitucionalidade nela formulado.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos