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Processo n.º 938/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 15 de Dezembro de 2008, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não
conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade por ele interposto.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte
fundamentação:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), de 21 de Outubro de 2008, que negou provimento ao
recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Abril
de 2008, que, por seu turno, negara provimento ao recurso de apelação do
despacho saneador‑sentença da 11.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, de 5 de
Novembro de 2007, que julgou totalmente improcedente a acção intentada contra o
Estado, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização, por via de
erro judiciário, no montante de € 10 879,40, a título de danos morais e
patrimoniais, bem como por danos futuros.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, o
recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
«constitucionalidade das normas vertidas nos artigos 156.º, 467.º, 660.º e
666.º, n.º 2, do CPC, conjugadas com o artigo 169.º do CPA, artigo 27.º da LAJ
e Decreto‑Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na interpretação dada pelo
Ac. do TRL e STJ, que julgaram a apelação e a revista, respectivamente, por
violação dos artigos 20.º e 22.º da CRP e artigos 6.º, 7.º e 18.º da CEDH, cuja
inconstitucionalidade foi suscitada nas alegações de recurso para o STJ».
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do STJ, decisão que,
como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da
LTC) e, de facto, entende‑se que o recurso em causa é inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da
LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi,
das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. No presente caso, o autor, ora recorrente, para
fundamentar o pedido deduzido na acção, aduziu, em suma, que: (i) para efeitos
de litigar judicialmente requereu benefício de apoio judiciário, o qual foi
indeferido; (ii) mandatou um advogado para responder a tal decisão e,
posteriormente, impugnou‑a judicialmente, tendo tal impugnação improcedido;
(iii) a resposta dada pelo seu advogado à decisão que indeferiu o pedido de
apoio judiciário foi judicialmente tratada como se de uma impugnação judicial
se tratasse, razão pela qual a verdadeira impugnação não foi apreciada por se
ter considerado estar esgotado o poder jurisdicional; (iv) tal entendimento
resultou de um clamoroso erro judiciário, pois nunca o requerimento de 27 de
Abril de 2004 poderia ter sido entendido corno uma impugnação judicial; (v) tal
erro impediu o acesso do autor à justiça.
No entanto, os factos que as instâncias deram por apurados foram os
seguintes: 1) para efeitos de litigar judicialmente foi requerido pelo autor
apoio judiciário; 2) tal pedido foi indeferido pelos fundamentos constantes da
decisão de fls. 14; 3) o autor mandatou advogado para responder a tal decisão,
tendo‑o este último feito, a 27 de Abril de 2004, nos moldes do requerimento de
fls. 15 e 15 verso; 4) a 7 de Maio de 2004, o autor apresentou no Centro
Distrital de ISSS de Lisboa o requerimento constante de fls. 17 e seguintes, a
que denominou de «impugnação judicial»; 5) no âmbito do Proc. n.º 3140/2004 do
2.º Juízo, 3.ª Secção, do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, para o qual
havia sido pedido o benefício de apoio judiciário, foi proferido despacho, a 21
de Junho de 2006, o qual, tratando o requerimento referido em 3) como se de uma
impugnação se tratasse, indeferiu o mesmo; 6) a 22 de Setembro de 2004 foi
apresentado novo requerimento junto do Tribunal de Família e Menores, constante
de fls. 31 e seguintes, e no qual se pedia ao Tribunal que decidisse o
requerimento de impugnação judicial, como tal apresentado; 7) sobre tal
requerimento recaiu o despacho de fls. 39, no qual se considerou esgotado o
poder jurisdicional relativamente ao requerimento de impugnação judicial.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Abril de 2008,
após definir como objecto do recurso de apelação a aferição do alegado erro
judiciário, a fim de o Estado ser, ou não, responsabilizado
extracontratualmente, desenvolveu a seguinte argumentação, conducente ao
improvimento do recurso:
«Na sequência dos ensinamentos da doutrina, vem sendo
jurisprudência fortemente maioritária do Supremo Tribunal, a opinião de que a
responsabilidade do Estado prevista no artigo 22.º da Constituição da
República abrange os danos decorrentes de actos e omissões praticadas no
exercício da função jurisdicional.
Preceitua o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa que
‘o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma
solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções
ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse
exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou
prejuízo para outrem’.
Esta norma consagra o princípio da responsabilidade patrimonial
directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, sendo
inequívoco – dado que a Constituição se refere, sem quaisquer restrições, a
actos ou omissões praticados no exercício das suas funções pelos titulares dos
seus órgãos, funcionários ou agentes – que no seu âmbito estão abrangidos também
os actos dos titulares dos órgãos jurisdicionais, ainda que os titulares desses
órgãos possam não ser civilmente responsáveis (artigo 216.º, n.º 2, da
Constituição).
Tratando‑se aí, todavia, ‘da previsão de direitos de natureza
análoga a direitos fundamentais, desfruta o referido artigo 22.º da lei
fundamental, à sombra do artigo 18.º, n.º 1, de aplicabilidade directa,
independente de mediação normativa institucional, nesta medida pressupondo,
todavia, complementar recurso aos princípios gerais da responsabilidade civil,
envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpa que vão implicadas
na específica natureza da actividade jurisdicional’ [acórdão do STJ, de 19 de
Fevereiro de 2004, no Proc. 4170/03, da 2.ª Secção].
Todavia, se bem que a obrigação de indemnizar por parte do Estado
pressuponha sempre a verificação dos requisitos previstos na legislação civil:
o facto (comissivo ou omissivo), a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de
causalidade entre a conduta e o dano, certo é que ‘alguns desses pressupostos
podem assumir um enfoque diferente quando se discute a responsabilidade do
Estado, por contraposição ao enfoque resultante da área civil. Tal acontecerá,
por exemplo, com a ilicitude e com o nexo de causalidade’ [cf. Gomes Canotilho,
O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1994, pp.
74 e seguintes e 313 e seguintes].
O exercício da função jurisdicional – a situação em apreço –
enquadra‑se num contexto regido por valores e normas como a independência dos
tribunais e da subordinação do juiz à Constituição, à lei e aos juízos de valor
legais que brotam do artigo 203.º do diploma fundamental e do artigo 4.º do
Estatuto dos Magistrados Judiciais, propiciando compreensivelmente
divergências de interpretação e aplicação aos casos da vida; para tanto existe
a garantia de reapreciação das decisões judiciais, em via de recurso, sem que
se possa avançar com um juízo material de verdade ‘absoluta’, ou de erro
evidente, mas apenas de opiniões divergentes, sem qualquer controle funcional do
julgador da 1.ª Instância.
É que a ciência do Direito não é uma ciência exacta, fazendo parte
da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação, sendo o número
de casos possíveis na vida real muito superior às previsões da lei.
Assim, os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da
função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado,
conforme o artigo 22.º da Constituição, só podem dar‑se como verificados nos
casos de mais gritante denegação da justiça, ou seja, ‘o erro de direito
praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil
quando, salvaguardada a essência daquela função jurisdicional, seja grosseiro,
evidente, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial
uma decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas’ [acórdão do
STJ, de 31 de Março de 2004, no Proc. 51/04, da 6.ª Secção].
Não está em causa a discordância da parte que se diz lesada, nem
sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que
não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe‑se que haja a certeza de que
um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela
forma como o fez, extravasando esta os cânones minimamente aceitáveis.
Ademais, no que, em concreto, diz respeito ao prejuízo causado pela
actividade jurisdicional, isto é, por actos praticados pelos tribunais, rege o
Decreto‑Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, sendo que nesta área de
actividade de gestão pública, o Estado responde civilmente perante terceiros
pelas ofensas dos direitos ou das disposições legais destinadas a proteger os
seus interesses, resultantes, não só de actos ilícitos culposamente praticados
pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas
funções e por causa desse exercício (artigo 2.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 48
051) como também de factos ilícitos praticados em idênticas circunstâncias
(artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma legal). Ainda no campo dos factos ilícitos,
o artigo 3.º do mesmo diploma refere‑se à responsabilidade dos próprios
titulares do órgão e agentes administrativos, quando excederem os limites das
suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido
dolosamente, sendo, neste último caso, a pessoa colectiva solidariamente
responsável com o titular do órgão ou agente (n.ºs 1 e 2).
Sendo certo que, para tal efeito, se consideram ilícitos ‘os actos
jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais
aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda
as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em
consideração’ (artigo 6.º).
Feita esta exposição, vamos averiguar se no caso em apreço na
decisão do Tribunal de Família e Menores se pode detectar erro grosseiro.
O apelante intentou responsabilizar o Estado Português pelas
alegadas consequências danosas de um pretenso ‘erro judiciário’, que
consistiria na circunstância de o Tribunal de Família e Menores ter entendido e
decidido a ‘resposta’ dada à decisão de indeferimento do seu anterior pedido de
apoio judiciário como se fosse uma ‘impugnação judicial’, quando aquela mais
não seria do que uma ‘missiva particular’ dirigida à Técnica do Instituto de
Solidariedade e Segurança Social. Mais alegou que, assim, o Tribunal acabou por
não conhecer da verdadeira e subsequente impugnação daquela decisão.
Nos termos dos artigos 27.º, 28.º e 29.º da Lei n.º 30‑E/2000, de 20
de Dezembro, a decisão sobre o pedido de protecção jurídica não admite
reclamação, nem recurso hierárquico ou tutelar, sendo susceptível de
impugnação judicial.
Contudo, notificado da decisão de indeferimento desse pedido, o
apelante apresentou ‘resposta’ àquela (cf. art. 4 da petição inicial),
materializada no ‘requerimento’ que o Sr. Dr. B., previamente mandatado pelo
autor para o efeito, dirigida à Ex.ma Senhora Dr.ª C., endereçado ao Centro
Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa (que eram,
respectivamente, a Técnica proponente da decisão de indeferimento e o serviço de
segurança social que apreciou o pedido de apoio judiciário do autor).
A ‘resposta’ compreendia a afirmação de não terem sido consideradas
na decisão de indeferimento todas as documentadas despesas do requerente,
designadamente as ‘despesas médicas actuais’, e a circunstância de ter a pensão
em vias de penhora, adiantando‑se, depois, que os correspondentes documentos ou
foram sonegados ou simplesmente ignorados, com expressa alusão à
responsabilidade criminal e/ou disciplinar que tal acarretaria. E essa
‘resposta’ finalizava com a formulação de um novo pedido, o deferimento para
final do pagamento das custas processuais.
É evidente que a ‘resposta’ respeitava directamente à decisão
notificada, tal como é inegável que questionava os respectivos fundamentos e
acerto, pressupondo que a insuficiência económica do requerente estivesse
documentalmente demonstrada e que, por isso, o pedido deveria ter sido
deferido. Mais, pretendia‑se a revisão do caso, mediante a formulação de um novo
pedido.
Não se tratava, pois, de qualquer pedido de esclarecimento de
ambiguidade, obscuridade ou deficiência, perfeitamente compreensíveis no
contexto de uma decisão sobre uma pretensão do apelante [E como tal ‘final’, ou
seja, por se pronunciar acerca do peticionado pelo apelante, ainda que
susceptível de modificação, por via da impugnação].
Assim sendo, à luz do citado artigo 27.º, este requerimento é
incompreensível e anómalo.
Ora, atenta essa natureza e o próprio teor do requerimento, tal como
já o analisamos, afigura‑se‑nos como provável o facto de o julgador poder ser
levado a interpretá‑lo em conformidade com a tramitação processual adequada, por
outra não ser possível.
A circunstância de a ‘resposta’ em causa ter sido pessoalmente
dirigida à Técnica do Organismo de Segurança Social, que não ao Tribunal, nunca
seria impeditiva de que fosse considerada como ‘impugnação judicial’, tanto
assim que a lei obriga à respectiva interposição no Organismo da Segurança
Social e prevê que lhe seja dirigido por escrito – artigo 28.º, n.º 1, da Lei
n.º 30‑E/2000.
Por outro lado, aquela tinha sido deduzida em prazo para a
impugnação judicial.
Daí que concordemos com o raciocínio da Ex.ma Juíza:
‘Queremos com tudo isto dizer que, mesmo a entender‑se ter havido um
erro judiciário na qualificação do requerimento que consubstancia o doc. de
fls. 15, nunca tal erro se poderia considerar como grosseiro, crasso, palmar e
indiscutível. Mais, tal erro seria sempre desculpável pela ambiguidade do
requerimento: se com tal requerimento não pretendia o requerente impugnar
judicialmente a decisão de indeferimento de apoio judiciário, então o quê que
se pretendia com o mesmo? Se a decisão do ISSS era definitiva, se não era
passível de reclamação nem de recurso hierárquico, então o que se pretendia com
um requerimento em que se atacava a bondade e a ponderação da prova junta a tal
processo?
E uma das interpretações possíveis não pode deixar de ser que, com
tal requerimento, se pretendia impugnar a decisão do ISSS pela única forma
legalmente admissível – impugnação judicial.’
O despacho só surge na sequência de uma tramitação processual
anómala levada a cabo pelo apelante. E foi esta que motivou o referido
despacho. Daí que, atenta a normal tramitação, o despacho analisado não se possa
considerar como extravasando, por absurdo, as regras adjectivas e substantivas
que formam o mundo do direito.
Por outro lado, não podemos afirmar com a certeza exigível que ao
agravante fosse vedado o acesso à justiça, com consequentes danos. É que não é
possível afirmar que a sua pretensão fosse bem sucedida, porquanto há sempre
que colocar a hipótese da confirmação da decisão administrativa. Logo, também
não se afigura líquido o pressuposto do nexo causal entre o invocado erro
judiciário e os danos.
A este enquadramento acresce uma outra perspectiva:
– não colocamos em causa que o despacho analisado enferma de
nulidade, à luz do artigo 666.º, n.º 3, e 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, a
qual deveria ter sido arguida logo que o apelante foi notificado do mesmo
(artigos 205.º e 668.º, n.º 3, do CPC).
Todavia, o apelante não accionou este expediente processual [o
requerimento de fls. 40 foi junto aos autos após junção do requerimento de fls.
31], pelo que não se pode concluir, inequivocamente, pelo nexo causal entre o
despacho em causa e eventuais danos. É que accionando a devida tramitação
processual, por via da arguição atempada da nulidade, o requerimento de
impugnação judicial seria apreciado, anulando qualquer motivo para invocação de
erro judiciário.»
Notificado deste acórdão, na alegação do recurso de revista dele
interposto para o STJ – que era o local e o momento adequados para a suscitação
da questão de inconstitucionalidade normativa, em termos de assegurar a
abertura da via do recurso de constitucionalidade –, o recorrente não suscitou
qualquer questão desse tipo, como ressalta da síntese dessa alegação feita nas
respectivas conclusões, do seguinte teor:
«1.ª – A responsabilidade civil extracontratual do Estado, quanto ao
erro judiciário, basta‑se em que este ultrapasse os limites da interpretação da
lei e do caso concreto, quando totalmente subjectivos.
2.ª – No caso sub judice, o erro ultrapassou tais limites, pois que
um julgador normal saberia distinguir uma missiva particular de um requerimento
de impugnação judicial.
3.ª – Tanto mais que tal ‘peça’ não tinha o mínimo formalismo
processual e tendo falhas de conteúdo, para efeitos de impugnar um
indeferimento administrativo.
4.ª – Tal erro é possível de ser sancionado à luz da lei vigente,
mesmo na jurisprudência atinente à mesma, pois não há dúvidas que com a actual
lei o é.
5.ª – Verifica‑se, assim, erro na determinação, bem como de
interpretação/aplicação dos artigos 169.º do CPA e 467.º do CPC e da Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho.
6.ª – Bem como nulidade nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea
d), do CPC, por não se terem julgado todas as conclusões vertidas nas alegações
do recurso.
7.ª – Pelo que, a não ser assim, a interpretação dada aos artigos
156.º, 467.º, 660.º e 666.º, n.º 2, do CPC, conjugado com o artigo 169.º do CPA,
artigo 27.º da LAJ e Decreto‑Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, os
torna inconstitucionais por violarem os artigos 20.º e 22.º da CRP e artigos
6.º, 7.º e 18.º da CEDH.»
Como é patente, não se mostra adequadamente suscitada qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, não se imputando a qualquer
interpretação normativa, dotada de generalidade e abstracção, e minimamente
identificada, a violação de normas ou princípios constitucionais. O que, em
rigor, o recorrente manifestou foi a sua discordância com o juízo formulado nas
decisões judiciais da 1.ª instância e da Relação, que, atentas as particulares
especificidades do caso concreto, não consideraram erro grosseiro a
qualificação da «resposta» do mandatário do recorrente como uma «impugnação
judicial» da decisão administrativa de indeferimento do apoio judiciário
peticionado – o que, como de início se salientou, não constitui objecto idóneo
de recurso de constitucionalidade.
Esta constatação resulta igualmente do teor do acórdão do STJ, de 21
de Outubro de 2008, ora recorrido, que, após transcrever a atrás reproduzida
fundamentação do acórdão do TRL, acrescentou:
«2. Há responsabilidade extracontratual do Estado por factos
ilícitos desde que concorram todos os tradicionais pressupostos deste tipo de
responsabilidade: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade
entre o facto e o dano.
Na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos – artigo
483.º, n.º 1, do Código Civil – é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor
da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa – artigo 487.º, n.º 1, do mesmo
diploma.
Podemos dizer que a culpa pode resultar de uma conduta negligente
por inconsideração, imprevidência, imperícia ou falta de destreza, ou de uma
violação de normas específicas a que o agente deveria atender.
No caso dos presentes autos, não podemos deixar de concordar com o
decidido nas instâncias.
Na verdade, não estamos perante qualquer erro grosseiro do Senhor
Juiz do Tribunal de Família e Menores de Lisboa.
Segundo o n.º 3 do artigo 27.º da Lei n.º 30‑E/2000, de 20 de
Dezembro (diploma então em vigor, a incidir sobre o ‘Acesso ao direito e aos
tribunais’), ‘A decisão sobre o pedido de apoio judiciário não admite
reclamação, nem recurso hierárquico ou tutelar, sendo susceptível de impugnação
judicial nos termos dos artigos 28.º e 29.º’.
Prescreve o n.º 1 do artigo 28.º da mesma Lei que ‘O recurso de
impugnação pode ser interposto directamente pelo interessado e dirigido por
escrito no serviço de segurança social que apreciou o pedido de apoio
judiciário, no prazo de 15 dias após o conhecimento da decisão’.
‘O pedido de impugnação não carece de ser articulado, sendo apenas
admissível prova documental, cuja obtenção pode ser requerida através do
tribunal’ – n.º 2 do mesmo artigo.
‘Recebido o recurso, o serviço de segurança social dispõe de 10 dias
para revogar a decisão sobre o pedido de apoio judiciário ou, mantendo‑a, enviar
aquele cópia integral do processo administrativo ao tribunal competente’ – seu
n.º 3.
Mostra‑se provado que o autor mandatou advogado (depreende‑se dos
autos que o advogado constituído foi o Dr. B.) para responder à decisão que
indeferiu o seu pedido de apoio judiciário.
Sendo assim, e como decorre do disposto no citado n.º 3 do artigo
27.º da Lei n.º 30‑E/2000, o mandatário em causa só poderia e deveria impugnar
judicialmente a proferida decisão que denegou ao aqui recorrente o pedido de
apoio judiciário (cf. artigo 28.º do mesmo diploma).
O que fez então o aludido causídico?
Apresentou o requerimento de fls. 15, no qual, atacando a decisão
em causa, alegando não terem indevidamente sido consideradas certas despesas
invocadas (chegando mesmo ao ponto de insinuar ter havido prática de crimes por
parte de elementos da Segurança Social e ameaçando com o accionamento de meios
civis e criminais!), acaba por pedir que se defira o pagamento das taxas de
justiça da acção para que foi solicitado o apoio judiciário para final, nos
termos do artigo 15.º, alínea b), da LAJ, ‘a fim de evitar‑se o não acesso à
justiça e a consequente responsabilidade do Estado e de V. Ex.ª pelos prejuízos
causados’.
Tal requerimento veio a ser interpretado como a impugnação judicial
daquela decisão, pelo que o Senhor Juiz, em 21 de Junho de 2004, proferiu
despacho a julgar improcedente tal impugnação.
Ora, tratando‑se de um técnico de direito – o advogado constituído
–, tinha obrigação de saber que a única reacção admissível à decisão em causa
seria a impugnação judicial, aliás, como o próprio requerente do apoio
judiciário, também ele advogado de profissão.
É certo que, ainda dentro do prazo para a apresentação da
impugnação judicial (cf. artigo 28.º, n.º 1, da LAJ), o aqui recorrente
apresentou uma impugnação judicial daquela decisão.
De tudo isto resulta que quem criou toda a confusão no processado
respeitante ao pedido de apoio judiciário foram o aqui autor e o mandatário a
quem ele conferiu poderes para ‘responder’ à decisão de indeferimento do apoio
judiciário.
Admitamos que o recorrente não tinha apresentado aquilo a que
denominou de impugnação judicial e, perante o requerimento apresentado pelo
seu mandatário, o Senhor Juiz considerava que este requerimento não podia ser
tido como impugnação judicial e abstinha‑se de tomar qualquer posição sobre o
mesmo.
O que sucederia?
Certamente, o interessado no apoio judiciário teria apresentado um
requerimento a pedir que o Senhor Juiz se pronunciasse sobre aquele
requerimento, alegando que o mesmo consubstanciava uma verdadeira impugnação
judicial.
Sendo assim, podemos concluir que não estamos perante qualquer erro
grosseiro cometido pelo julgador, ficando, portanto, afastada qualquer hipótese
de haver por parte do aqui recorrente qualquer direito a uma indemnização, a
pagar pelo Estado.
3. Se bem que o desfecho do recurso esteja encontrado, temos que o
recorrente argui, na conclusão 6.ª, a nulidade do acórdão recorrido, nos
termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, invocando não terem sido
julgadas todas as conclusões vertidas nas suas alegações de recurso de apelação.
É manifesta a sua falta de razão.
Segundo o referido normativo legal, é nula a sentença quando o juiz
deixe de pronunciar‑se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de
questões de que não podia tomar conhecimento.
Tal regime é aqui aplicável, por força dos artigos 716.º e 732.º do
referido diploma.
Lendo as alegações do recorrente, apresentadas na presente revista,
não vislumbramos a que conclusões se reporta o recorrente, pois as não
concretiza.
De qualquer forma, compulsando as conclusões oferecidas na
apelação, verificamos que dizem respeito a argumentos tendentes a demonstrar
estarmos perante um erro grosseiro e, em consequência, à obrigação de reparação
dos danos.
Ora, a omissão de pronúncia existe quando o julgador deixa de
proferir decisão sobre questão que devia conhecer, isto é, quando omita o dever
de solucionar o conflito dentro dos limites peticionados pelas partes, devendo
entender‑se por ‘questão’ os elementos que integram a causa de pedir, o pedido e
as excepções. Por isso, não consubstanciando ‘questões’ os argumentos ou as
razões de facto ou de direito invocados pelas partes, a nulidade não se verifica
quando o julgador deixa de apreciar qualquer argumento ou razão apresentada pela
parte (cf. artigo 664.º do CPC).
Transpondo o exposto para a situação vertente, que se reporta ao
acórdão proferido na Relação e às conclusões das alegações apresentadas pelo
apelante, concluímos que o acórdão recorrido não padece da nulidade que lhe é
imputada, pois conheceu de todas as questões que eram suscitadas no recurso.
4. De forma pouco clara, refere o recorrente que a interpretação
dada a determinados preceitos legais viola os artigos 20.º e 22.º da
Constituição da República Portuguesa.
O artigo 22.º alude ao acesso ao direito e tutela jurisdicional
efectiva, enquanto que o artigo 22.º se reporta à responsabilidade das
entidades públicas.
Ninguém põe em causa a responsabilidade do Estado e das demais
entidades públicas em termos abstractos.
O que sucede é que, no presente caso, a factualidade apurada não
permite concluir que exista tal responsabilidade.
Se a decisão não está correcta – o recorrente entende que não está,
mas nós entendemos de forma diferente –, estaremos perante um erro de julgamento
e nunca perante uma interpretação ofensiva de princípios constitucionais,
designadamente dos constantes dos citados artigos 20.º e 22.º da CRP.
5. Infere‑se, assim, do exposto que não colhem as conclusões do
recorrente, tendentes ao provimento do recurso.»
Efectivamente, a crítica do recorrente dirige‑se directamente à não
qualificação como grosseiro do «erro» denunciado, o que, obviamente, é questão
insusceptível de integrar o objecto do recurso de constitucionalidade.
Não tendo o recorrente suscitado, perante o tribunal recorrido,
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, e nem sequer logrando, no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional –
apesar de tal ser manifestamente modo e momento inadequados para o efeito –
enunciar, com o mínimo de precisão e clareza, um critério normativo cuja
conformidade constitucional pudesse ser apreciada por este Tribunal, o presente
recurso surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu
objecto.”
1.2. A reclamação do recorrente assenta nos seguintes
fundamentos:
“1 – No requerimento de interposição do recurso requereu‑se a
apreciação da inconstitucionalidade não de normas jurídicas mas de
interpretações normativas.
2 – Entende este douto Tribunal que o recorrente deveria indicar o
sentido da interpretação que reporta inconstitucional.
3 – Ora, se é assim, deveria ter havido lugar à aplicação do n.º 6
do artigo 75.º‑A da LTC, que visa evitar a denegação de justiça por aplicação
cega do formalismo processual, a fim de julgar‑se de mérito, fazendo‑se a
justiça material que o legislador quer e aos Tribunais compete.
4 – Não o tendo sido, deveria ter‑se permitido ao recorrente alegar,
pois aí sim se explicaria detalhadamente a questão.
5 – Assim sendo, requer‑se se dê a oportunidade ao recorrente de
elaborar novo requerimento, em conformidade com a decisão do Ex.mo Senhor Juiz
Conselheiro Relator.”
1.3. O representante do Ministério Público neste
Tribunal apresentou resposta, no sentido do indeferimento da reclamação, por ser
“manifestamente improcedente”, dado que “a argumentação do reclamante – que
confunde os planos das deficiências formais do requerimento de interposição de
recurso e da falta de pressupostos processuais, obviamente insuprível – em nada
abala os fundamentos da decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação
dos pressupostos do recurso interposto”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária ora reclamada assentou o não
conhecimento do recurso na constatação de o recorrente, na alegação do recurso
de revista endereçada ao tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, não ter
adequadamente suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não
imputando a qualquer interpretação normativa, dotada de generalidade e
abstracção, e minimamente identificada, a violação de normas ou princípios
constitucionais, pois o que, em rigor, o recorrente manifestou nessa alegação
foi a sua discordância com o juízo formulado nas decisões judiciais da 1.ª
instância e da Relação, que, atentas as particulares especificidades do caso
concreto, não consideraram erro grosseiro a qualificação da “resposta” do
mandatário do recorrente como uma “impugnação judicial” da decisão
administrativa de indeferimento do apoio judiciário peticionado – o que não
constitui objecto idóneo de recurso de constitucionalidade. Por isso se concluiu
que “não tendo o recorrente suscitado, perante o tribunal recorrido, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, e nem sequer logrando, no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional –
apesar de tal ser manifestamente modo e momento inadequados para o efeito –
enunciar, com o mínimo de precisão e clareza, um critério normativo cuja
conformidade constitucional pudesse ser apreciada por este Tribunal, o presente
recurso surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu
objecto” (sublinhados acrescentados).
O recorrente não contesta a verificação da deficiência
apontada (falta de identificação da interpretação normativa cuja
constitucionalidade pretendia ver apreciada), antes defende que devia ter‑lhe
sido formulado convite para proceder à sua correcção. Mas a previsão do n.º 6 do
artigo 75.º‑A da LTC apenas contempla as situações em que as deficiências
respeitam directamente ao requerimento de interposição do recurso para o
Tribunal Constitucional, susceptíveis de suprimento através do aperfeiçoamento
formal deste requerimento, sendo obviamente inaplicável às situações em que a
causa do não conhecimento do recurso respeita à falta de requisitos processuais
que deviam estar preenchidos em fases processuais anteriores, como ocorre no
presente caso, em que faltou a adequada suscitação, perante o tribunal
recorrido, antes de proferida a decisão impugnada, da questão de
inconstitucionalidade normativa que se pretendia ver apreciada. Nesta hipótese,
sendo a falha cometida insusceptível de correcção através de aperfeiçoamento do
requerimento de interposição de recurso, carece de qualquer sentido a formulação
do convite previsto no n.º 6 do artigo 75.º‑A da LTC.
3. Termos em que acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano