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Processo n.º 751/08
3 Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
1. Relatório
1. O Ministério Público acusou A. Ldª e B., no Tribunal Judicial da Comarca de
Caminha, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma
continuada, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das
Infracções Tributárias, aprovado pelo artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de
5 de Junho (RGIT), com base em factos ocorridos em 2001 e 2002.
Já em fase de julgamento, a requerimento do Ministério Público e com
oposição das arguidas, o juiz ordenou que se solicitasse aos serviços da
Administração Fiscal a notificação dos arguidos para efeitos do disposto na
alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, aditado pela Lei n.º 53-A/2006, de
29 de Dezembro, que entrara em vigor posteriormente à acusação.
Este despacho foi impugnado pelas arguidas, mas o Tribunal da
Relação de Guimarães negou provimento ao recurso.
Retomado o julgamento, na sentença de 19 de Maio de 2008 (fls. 1004
e segs.), o Tribunal Judicial da Comarca de Caminha entendeu dever reapreciar a
questão da notificação para cumprimento da obrigação fiscal, e decidiu absolver
as arguidas com fundamento na inconstitucionalidade, por violação do artigo
32.º, n.º5, primeira parte, da Constituição, das normas constantes do “artigo
105.º, n.º 4, alínea b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção
introduzida pelo artigo 95.º da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e do artigo
2.º, n.º 4 do Código Penal, quando conjugadamente interpretadas” com os
seguintes sentidos: - A ausência de resposta por parte do agente à notificação
prevista na primeira das normas, feita depois de a acusação se encontrar
deduzida e sem que da mesma conste qualquer referência à dia notificação e
resposta do agente, pode fundamentar uma condenação penal; - Permitir ou impor
ao juiz, que presidir à fase de instrução ou que presidir à fase de julgamento,
a iniciativa de mandar proceder à notificação aí prevista”.
2. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o
Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC,
com vista à apreciação das normas “julgadas inconstitucionais” na sentença
recorrida.
Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto concluiu:
“1. Não são inconstitucionais as normas dos artigos 105.º, n.º 4, alínea b) do
Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pelo artigo
95.º, da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 2º, nº 4 do Código Penal, quando
interpretadas no sentido de que a ausência de resposta por parte do agente à
notificação prevista na primeira das normas, feita depois da acusação se
encontrar deduzida e sem que da mesma conste qualquer referência à dita
notificação e resposta do agente, pode fundamentar uma condenação penal e,
ainda, no sentido de permitir, ou impor ao juiz, que presidir à fase de
instrução ou do julgamento, a iniciativa de mandar proceder à notificação aí
prevista.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Os recorridos não alegaram.
II. Fundamentação
3. No presente recurso está em causa o bloco formado pelas normas da alínea b)
do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, de
29 de Dezembro, e pelo n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, conjugadamente
interpretados, nas duas dimensões aplicativas que a sentença recorrida “julgou
inconstitucionais” e no relatório se destacaram.
Na primeira vertente, averigua-se a conformidade com o princípio acusatório de
uma dimensão relativa à relação entre actos processuais, à função da peça
acusatória na definição do objecto do processo penal e na delimitação dos
poderes cognitivos do tribunal. Na segunda, está em consideração um aspecto
relativo à separação entre órgão acusador e órgão de julgamento. Na sua
essência, trata-se, em qualquer caso, de manifestações do princípio do
acusatório: aspectos procedimentais, quanto à primeira; aspectos
orgânico-funcionais quanto à segunda.
4. É o seguinte o teor do artigo 105º, n.º s 1 e 4 do RGIT, aprovado
pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95º da Lei n.º
53-A/2006, de 29 de Dezembro:
“Artigo 105º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente,
prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado
a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
[…]
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da
prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
[…]”
No momento em que a acusação foi deduzida, a lei não fazia depender
a punibilidade do abuso de confiança fiscal da interpelação suplementar prevista
na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. Bastava a mora pelo período de 90
dias. A Lei n.º 53-A/2006 passou o teor dispositivo que até então constava do
corpo do n.º 4 para a alínea a) e acrescentou-lhe a alínea b), ficando a punição
dependente desse incumprimento qualificado.
Na falta de disposição especial transitória, deu a alteração da lei origem a
dúvidas nos tribunais, bem espelhada neste processo, acerca da natureza da nova
exigência legal e do seu reflexo nos processos pendentes que tivessem
ultrapassado a fase de acusação. Designadamente, no aspecto substantivo, se o
legislador introduziu um novo elemento do tipo ou uma nova condição de
punibilidade e, no aspecto adjectivo embora indissociável daquele, como e a quem
compete praticar os actos necessários a assegurar a sua verificação.
5. O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre
questões de constitucionalidade que a aplicação do novo regime tem suscitado em
processos em que esteja ultrapassada a fase de acusação. Foi o que sucedeu nos
acórdãos n.ºs 409/08, 506/08 e 531/08, todos disponíveis em
wwwtribunalconstituciona.pt. No essencial, com variações de formulação,
decorrentes da fase em que o processo se encontrava, trata-se sempre do mesmo
problema de constitucionalidade que no presente recurso se discute.
Disse-se no acórdão n.º 531/2008:
“Questão de inconstitucionalidade semelhante – e não idêntica, na medida em que
envolvia a competência, não do tribunal de recurso, mas do tribunal de
julgamento, para providenciar pela realização da notificação a que se fez
referência - já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º
409/2008, de 31 de Julho, no qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma
constante do artigo 105º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções
Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo
artigo 95º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de
que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.”
É a seguinte a fundamentação do mencionado Acórdão n.º 409/2008:
“2.1. Na definição (inalterada) do n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, comete o crime
de abuso de confiança fiscal quem não entrega à Administração Tributária, total
ou parcialmente, prestação tributária (com a extensão que a este conceito é
dada nos subsequentes n.ºs 2 e 3) deduzida nos termos da lei e que estava
legalmente obrigado a entregar. Na redacção originária do n.º 4 deste preceito,
os factos descritos nos números anteriores só eram puníveis se tivessem
decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
O artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para
2007), alterou a redacção desse n.º 4 do artigo 105.º da RGIT, convertendo a
condição que constava do corpo desse número em alínea a), e inserindo uma nova
alínea b), nos termos da qual os referidos factos também só seriam puníveis se
“a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima
aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
A introdução desta nova “condição” suscitou divergências doutrinais e
jurisprudenciais, tendo, na sequência destas últimas, sido interposto recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência, que veio a ser decidido
pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008
(Diário da República, I Série, n.º 94, de 15 de Maio de 2008, p. 2672), que
fixou a jurisprudência nos seguintes termos:
“A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção
introduzida pela Lei n.º 53‑A/2006, configura uma nova condição objectiva de
punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é
aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência,
e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser
notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º
4 do artigo 105.º do RGIT).”
Esse acórdão de uniformização de jurisprudência começa por assinalar que, na
sequência da apontada alteração de redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT,
surgiram fundamentalmente duas linhas de orientação relativamente à sua
interpretação: para uns a inovação consistiu na criação de uma nova condição de
punibilidade; para outros, ela acarretou uma despenalização. A primeira
orientação – uniformemente adoptada, desde o início, pelo STJ – considera que à
anterior condição de punibilidade, agora plasmada na alínea a), foi aditada, na
alínea b), uma nova condição, mas com a manutenção do recorte do tipo legal de
crime: não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de
confiança fiscal consuma‑se com a omissão de entrega, no vencimento do prazo
legal, da prestação tributária, nada tendo sido alterado em sede de tipicidade;
porém, há que ressalvar a aplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do
Código Penal, uma vez que o regime actualmente em vigor é mais favorável para o
agente, quer sob o prisma da extinção da punibilidade pelo pagamento, quer na
óptica da punibilidade da conduta (como categoria que acresce à tipicidade, à
ilicitude e à culpabilidade). Diversamente, a segunda orientação – defendida
por aqueles para quem, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito se
reconduzia a uma mora qualificada no tempo (90 dias), sendo a mora simples
punida como contra‑ordenação, ilícito de menor gravidade – entende que o
legislador aditou agora, com a referida alteração legal, uma circunstância que,
por referir‑se ao agente e não constituindo assim um aliud na punibilidade, se
encontra no cerne da conduta proibida: existe algo de novo no recorte operativo
do comportamento proibido violador do bem jurídico património fiscal e que se
traduz precisamente no facto de a Administração Fiscal entrar em directo
confronto com o eventual agente do crime, pelo que, enquanto anteriormente o
legislador criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto
material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste, agora pretendeu
estabelecer como crime uma mora específica e num contexto relacional qualificado
– concluindo, consequentemente, pela despenalização.
O citado acórdão uniformizador de jurisprudência consagrou aquela primeira linha
de orientação, que, aliás, já fora a adoptada no acórdão ora recorrido. E em
ambos se invoca o Relatório do Orçamento Geral de Estado para 2007, no qual o
legislador justifica a introdução de distinção entre, por um lado, os casos em
que a falta de entrega da prestação tributária está associada ao incumprimento
da obrigação de apresentar a declaração de liquidação ou pagamento do imposto
e, por outro lado, os casos de não entrega do imposto que foi tempestivamente
declarado, entendendo o legislador que no primeiro grupo há uma maior gravidade
decorrente da “intenção de ocultação dos factos tributários à Administração
Fiscal”, postura esta que já não se verificaria nas situações em que a “dívida”
é participada à Administração Fiscal, isto é, nas situações em que há o
reconhecimento da dívida tributária, ainda que não acompanhado do necessário
pagamento. Estando em causa condutas diferentes, portadoras de distintos
desvalores de acção e a projectar‑se sobre o património do Fisco com
assimétrica danosidade social, elas merecerão, de acordo com o citado Relatório,
“ser valoradas criminalmente de forma diferente”. E acrescenta‑se: “neste
sentido, não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo
cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em
prazo a conceder, evitando‑se a «proliferação» de inquéritos por crime de abuso
de confiança fiscal que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do
Ministério Público na sequência do pagamento do imposto”.
A consideração destes elementos teleológico e histórico conduziram a que no
citado acórdão uniformizador de jurisprudência se concluísse que – perante uma
vontade do legislador que, claramente, assume o propósito de manutenção do
recorte do ilícito típico, mas o conjuga com a possibilidade de o agente, nos
casos em que tenha havido declaração da prestação não acompanhada do pagamento,
se eximir da punição pela efectivação do pagamento no novo prazo concedido –
nem a letra nem o espírito da lei permitiam a afirmação de que a conduta, que se
traduz numa omissão pura, se encontrava descriminalizada. A alteração legal
produzida, repercutindo‑se na punibilidade da omissão, é, todavia, algo que é
exógeno ao tipo de ilícito, devendo ser qualificada como condição objectiva de
punibilidade, que deve ser equacionada na medida em que configure um regime
concretamente mais favorável para o agente. Constata, assim, o referido acórdão
uniformizador de jurisprudência, que, tendo sido “intenção publicitada do
legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de
conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta
omissiva”, “a nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a
possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher
uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de
aplicação de uma pena”, pelo que “a conclusão da aplicação da lei nova é
iniludível face ao artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal”.
2.2. Delineado o quadro de fundo de que emerge a problemática subjacente ao
presente recurso, cumpre, antes de mais, precisar que resulta inequivocamente do
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que a
única questão de inconstitucionalidade aí identificada como integrando o seu
objecto se reporta à interpretação do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada
pelo artigo 95.º da Lei n.º 53‑A/2006, que teria sido aplicada no acórdão
recorrido, “consubstanciada na substituição por parte do tribunal de 1.ª
instância em relação às atribuições da Administração Fiscal e do Ministério
Público” e que, segundo o recorrente, desrespeitaria os “princípios
constitucionais da legalidade e da separação dos poderes, ofendendo, assim, os
ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição
da República Portuguesa”.
Aliás, fora essa a única questão de inconstitucionalidade normativa
adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso interposto para
o Tribunal da Relação (cf. conclusão 26.ª, atrás transcrita).
Assim sendo, não podem integrar o objecto do presente recurso outras questões de
inconstitucionalidade não arguidas perante o tribunal recorrido e nem sequer
mencionadas no requerimento de interposição de recurso, que o recorrente veio
suscitar, pela primeira vez, nas alegações apresentadas neste Tribunal, como,
designadamente, a reportada à pretensa violação dos “princípios da proibição da
retroactividade da lei penal, da legalidade e da independência”, derivada da
consideração, na sentença, de factos não constantes da acusação. Questão esta
que, aliás, nos termos em que é colocada, carece de natureza normativa por se
reportar directamente à referida decisão judicial, em si mesma considerada.
Constitui, assim, objecto do presente recurso, a questão da
inconstitucionalidade, por violação dos princípios da legalidade e da separação
de poderes, consagrados nos artigos 202.º e 219.º da CRP, da interpretação do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção dada pelo artigo 95.º da Lei n.º
53‑A/2006, no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a
notificação aí prevista.
Os invocados artigos 202.º e 219.º da CRP respeitam, respectivamente, à
definição da função jurisdicional e das funções e estatuto do Ministério
Público. O primeiro preceito define os tribunais como os órgãos de soberania
com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo‑lhes,
nessa função, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados. O segundo comete ao Ministério
Público a representação do Estado e a defesa dos interesses que a lei
determinar, bem como a participação na execução da política criminal definida
pelos órgãos de soberania, o exercício da acção penal orientada pelo princípio
da legalidade e a defesa da legalidade democrática.
O critério adoptado no acórdão recorrido de que competente para determinar a
notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é a entidade
titular do procedimento ou do processo (Administração, Ministério Público,
tribunal de instrução criminal ou tribunal do julgamento), consoante a fase em
que ele se encontre quando surge a necessidade de proceder a essa notificação,
em nada colide com os preceitos constitucionais citados, nem mesmo com o
princípio da separação de poderes, na perspectiva da constituição de uma reserva
da Administração.
Quando o Ministério Público, na fase do inquérito, determina essa notificação,
ele visa, não a prossecução da tarefa de cobrança de receitas típica da
Administração Tributária, mas o apuramento, que lhe incumbe enquanto titular da
acção penal, da verificação dos requisitos que o habilitem a tomar uma decisão
de acusação ou de não acusação. Similarmente, quando o juiz de instrução ou o
juiz do julgamento determina idêntica notificação, ambos se limitam a praticar
um acto instrumental necessário à comprovação da existência, ou não, de uma
condição de punibilidade, que determinará a opção entre pronúncia ou não
pronúncia e entre condenação ou absolvição (ou arquivamento). Isto é: em todas
essas hipóteses, a determinação da notificação pelo Ministério Público ou por
magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes,
invocado pelo recorrente (quanto à alegada violação do “princípio da
legalidade”, torna‑se impossível proceder à sua apreciação, dada a absoluta
falta de substanciação das razões por que o recorrente entende ocorrer tal
violação, sendo, aliás, incerto o sentido que ele pretende atribuir a tal
princípio, neste contexto).
Improcedem, assim, na totalidade, as alegações do recorrente”.
As considerações tecidas no acórdão acabado de citar a propósito da eventual
violação do princípio da separação de poderes, consagrado nos artigos 2º, 202º e
219º da Constituição - violação também invocada pelos ora recorrentes -, são
perfeitamente transponíveis para o presente caso, pois que, para a aferição
daquela violação, é indiferente que o tribunal competente para a notificação
seja um tribunal de 1ª instância ou um tribunal de recurso: ora, como se diz no
Acórdão n.º 409/2008, “a determinação da notificação pelo Ministério Público ou
por magistrados judiciais insere‑se perfeitamente dentro das atribuições
constitucionais dessas magistraturas (exercício da acção penal e administração
da justiça, respectivamente), sem qualquer invasão da reserva da Administração,
nem, consequentemente, com violação do princípio da separação de poderes”.
Essas considerações – como logo se entrevê – permitem, do mesmo modo, afastar a
pretensa violação dos princípios do acusatório, da plenitude de garantias de
defesa dos arguidos e da independência dos tribunais, também chamados à colação
pelos recorrentes.
Relativamente ao princípio do acusatório - que se extrai da referência à
estrutura acusatória do processo penal constante do artigo 32º, n.º 5, da
Constituição e que postula a diferenciação entre a entidade que julga e a
entidade que acusa ou que intervém em fase do processo anterior à do julgamento
-, consideram os recorrentes, em síntese, que o mesmo resulta violado pelo
disposto no artigo 105º, n.º 4, alínea b), do RGIT, atendendo à circunstância de
este preceito permitir que um pressuposto material da punição não esteja
preenchido aquando da dedução da acusação e não esteja descrito no libelo
acusatório.
No entanto, como se deixou esclarecido, a exigência resultante da referida
disposição, na redacção dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, foi
determinada por razões de operacionalidade judiciária, tendo sobretudo o sentido
de impedir que possa ser punido pelo crime de abuso de confiança quem entretanto
se tenha disposto a reparar o dano infringido à Administração, na sequência da
notificação que expressamente lhe tenha sido feita para esse efeito. Não está
aqui em causa, como bem se vê, um qualquer novo elemento constitutivo do crime,
nem sequer qualquer circunstância que seja susceptível de afastar o carácter de
censura ético jurídica da infracção: o que sucede é que, por considerações de
política legislativa, se entende ser de dispensar a aplicação da pena quando,
apesar de se verificarem todos os pressupostos do tipo legal, o arguido procedeu
ainda em tempo útil ao pagamento da prestação em dívida.
Estamos assim perante uma condição objectiva de punibilidade que é externa ao
recorte típico do ilícito penal – consubstanciado na não entrega à administração
da prestação tributária – e que, tendo sido introduzida em lei penal posterior
ao momento da prática do facto ilícito e da própria dedução da acusação, não
poderia deixar de ser considerada pelo julgador segundo o princípio da aplicação
retroactiva da lei mais favorável, que emerge do artigo 2º, n.º 4, do Código
Penal.
Não há, por outro lado, aqui uma qualquer violação do princípio do acusatório,
visto que não se trata de uma alteração substancial dos factos constantes da
acusação – que ao tribunal de julgamento sempre estaria vedado conhecer (artigo
358º do Código de Processo Penal) -, mas de uma mera verificação da existência
de um requisito de procedibilidade sem que o qual o tribunal não pode emitir uma
pronúncia condenatória.
Sendo de notar, aliás, que o tribunal de julgamento está sujeito a um rigoroso
ónus de averiguação oficiosa em vista à descoberta da verdade e à boa decisão da
causa (artigo 340º, n.º 1, do Código de Processo Penal, também aplicável nos
tribunais de recurso por remissão do artigo 423º, n.º 5), que naturalmente
abrange a verificação de quaisquer circunstâncias que possam obstar à aplicação
ao arguido de uma sanção penal.
Por outro lado, não estando em causa – como se anotou – a factualidade constante
do libelo acusatório, que se mantém na sua integralidade, não ocorreu qualquer
violação do princípio das garantias de defesa do arguido, a que alude o artigo
32º, n.º 1, da CRP. A notificação para o arguido proceder ao pagamento da
prestação tributária em falta, nos termos da nova redacção dada à alínea b) do
n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não constitui um novo facto punível ou um novo
elemento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao
qual se tornasse exigível que o interessado viesse a deduzir a sua defesa antes
ainda de poder ser presente a julgamento. Do que se trata é de uma nova
oportunidade que é dada ao arguido para evitar a punição (por factos pelos quais
foi acusado em devido tempo e relativamente quais teve possibilidade de se
defender), que, traduzindo-se num mero trâmite procedimental, pode ser realizado
em qualquer fase do processo (e, por conseguinte, também na própria fase de
julgamento), e que não envolve qualquer agravamento da posição processual do
arguido (competindo-lhe apenas satisfazer ou não, em função do objectivo
previsto na lei, a cominação de pagamento da prestação em dívida dentro de
determinado prazo contado a partir da notificação).
Por tudo o que se expôs, é ainda patente que não se verifica a alegada ofensa do
princípio da independência dos tribunais, protegido pelo artigo 203º da
Constituição, e que, segundo os recorrentes, resultaria de a norma do artigo
105º, n.º 4, alínea b), do RGIT vir permitir que o julgador interfira na
acusação e assim se substitua a outros órgãos do Estado.
Como ficou suficientemente demonstrado, a norma em causa, ao possibilitar que o
juiz proceda à referida notificação, na fase de julgamento, não compromete a
imparcialidade e isenção do julgador nem põe em crise o princípio da separação
de poderes. O juiz, na circunstância, não pratica qualquer acto próprio do
acusador ou do juiz de instrução, nem acata quaisquer ordens ou instruções que
provenham de outros poderes do Estado, mas limita-se a exercer uma competência
própria, em sede de julgamento, que é a de praticar uma acto instrumental
tendente a verificar a existência de condição de punibilidade que tem relevo
para efeito de emitir a decisão final de condenação ou absolvição.”.
6. Estas razões são perfeitamente transponíveis para o presente
recurso, analisando todos os aspectos de constitucionalidade que conduziram o
tribunal a quo a desaplicar as normas em causa. Delas resulta que o julgado não
pode manter-se, em qualquer das vertentes em que a decisão recorrida desdobrou a
inconstitucionalidade que julgou descortinar na iniciativa do juiz de julgamento
de mandar proceder à notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo
105.º do RGIT, em processos cuja acusação se encontrasse já deduzida à data da
entrada em vigor da Lei n.º 53‑A/2006, que introduziu tal condição de
procedibilidade.
Com efeito, embora directamente dirigidas à dimensão
orgânico-funcional da questão de constitucionalidade, tais razões são igualmente
pertinentes quanto à sua dimensão ou vertente procedimental. O acto acusatório
não faz nem podia fazer referência à notificação e à reacção do agente da
infracção pela elementar razão de que se trata de factos posteriores. Porém,
como o Tribunal tem decidido e agora confirma, dado por assente que o juiz de
julgamento pode (ou, até, deve), sem com isso infringir o princípio do
acusatório, diligenciar no sentido de assegurar a verificação da condição de
procedibilidade introduzida pela lei nova mais favorável ao arguido, a
circunstância de a sentença condenatória tomar em consideração o resultado de
tal diligência não pode infringir o mesmo princípio. Ao assim proceder o juiz
não condena o arguido por factos não constantes da acusação, uma vez que não se
trata de factos constitutivos do crime, segundo a interpretação do direito
ordinário que não foi posto em causa (Contra esse ponto do acórdão de
uniformização de jurisprudência não se insurge a sentença recorrida). O que
desse acto não consta nem podia constar são condições de punibilidade que à sua
data não eram exigidas e que só se tornou necessário averiguar em benefício do
arguido, para assegurar o princípio da aplicação da lei penal mais favorável. A
consideração de tais factos não quebra a substancial identidade de objecto do
processo entre o acto acusatório e a sentença condenatória.
7. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Não julgar inconstitucional a norma resultante da aplicação conjugada da
alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º
53‑A/2006, de 26 de Dezembro, e do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, quando
interpretados:
A1) Com o sentido de permitir ou impor ao juiz que presidir à fase de instrução
ou julgamento a iniciativa de mandar proceder à notificação aí prevista;
A2) Com o sentido de que a falta de resposta por parte do agente a essa
notificação, feita depois da acusação e sem que esta refira tal notificação e
falta de resposta, é susceptível de fundar a condenação penal.
B) Consequentemente, concedendo provimento ao recurso, ordenar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão