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Processo n.º 742/08
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que são
recorrentes A. e recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte
decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
foi interposto recurso de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Guimarães, em 28 de Abril (fls. 798 a 830), posteriormente complementado pelo
acórdão proferido em 10 de Julho de 2008, que recusou conhecer do pedido de
aclaração entretanto formulado (fls. 841 a 845) para apreciação da
constitucionalidade da norma extraída do n.º 2 do artigo 374º do CPC, quando
interpretada “no sentido de que afirmações genéricas e não concretizadas possam
constar do elenco dos factos dados como provados e servir de fundamento de facto
da decisão”, por alegada violação dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da CRP (fls.
858).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 860), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator verificar que não foram preenchidos alguns desses pressupostos pode
proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do
artigo 78º-A da LTC.
3. Independentemente de o recorrente insistir em colocar em crise a própria
justeza da subsunção dos factos dados como provados ao Direito
infra-constitucional aplicável, inclusive invocando a violação de normas
processuais penais por parte da decisão recorrida – questão a que este Tribunal
é absolutamente estranho por não dispor dos poderes para a sindicar, nesses
termos –, resulta desde logo evidente que aquela decisão não aplicou
efectivamente a norma reputada de inconstitucional, tal como configurada pelo
recorrente.
Com efeito, em momento algum da decisão recorrida se afirma acolher uma
interpretação do n.º 2 do artigo 374º do CPP que permitisse a inclusão na
matéria de facto dada como provada de afirmações genéricas e não concretizadas
que viessem, posteriormente, a servir de fundamentação ao acórdão condenatório.
Pelo contrário, a decisão recorrida é cristalina, ao afirmar expressamente que
“tanto basta para o cometimento do referido crime, sem que se possa dizer, como
faz o arguido, que se trata de imputações genéricas que não constituem «factos»
susceptíveis de sustentar uma condenação penal” (fls. 822). A recusa de
aplicação da interpretação agora reputada de inconstitucional pelo recorrente é
tão evidente que, no acórdão sobre o pedido de aclaração, o tribunal recorrido
se limita a remeter precisamente para o excerto supra citado (fls. 845).
Em suma, é manifesto que a decisão recorrida não aplicou efectivamente a
interpretação normativa que o recorrente pretende vir a ser sindicada pelo
Tribunal Constitucional, pelo que, por força do artigo 79º-C da LTC, existe um
impedimento legal ao conhecimento do objecto do presente recurso.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7
UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de
Outubro.»
2. Inconformado com esta decisão, vem o recorrente reclamar, para a conferência,
contra a não admissão do recurso, nestes precisos termos:
«(…) O douto despacho, ora em crise, vem alegar a impossibilidade de sindicar o
desrespeito da violação das normas processuais penais e invocar a
impossibilidade de conhecer o objecto de recurso, uma vez que, a douto Acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães não colhe uma interpretação do
nº 2 do artigo 274° do Código de Processo Penal que permita a inclusão na
matéria de facto dada como provada de afirmações genéricas e não concretizadas.
Com o devido respeito, somos forçados a discordar.
Senão vejamos,
o nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional prevê a fiscalização
concreta da constitucionalidade das normas aplicadas a cada caso.
A fiscalização concreta não analisa questões prejudiciais mas, antes, questões
de fundo e apenas pode ter por objecto decisões definitivas não susceptíveis de
recurso ordinário.
O artigo 280º da Constituição da República Portuguesa ao prever a fiscalização
concreta da constitucionalidade prevê a possibilidade de recurso para o Tribunal
Constitucional.
Neste sentido, o Tribunal Constitucional é um verdadeiro Tribunal Penal.
Na verdade, a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães,
limitou - se a confirmar a decisão proferida em Primeira Instância.
Ora, tal decisão, proferida em primeira instância, condenou, com base em
afirmações genéricas e não concretizadas, o Arguido A. a dois anos e seis meses
de prisão.
Não é por acaso que o artigo 204° da Constituição da República Portuguesa
reforça a ideia da fiscalização “nos feitos submetidos a julgamento” e
contrárias às disposições da Lei Fundamental.
Refira-se, com base na transcrição efectuada supra que, a fase de audiência
discussão e julgamento é o paradigma da apreciação da questão em primeira
instância.
Nestes termos, a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães deve ser
sindicada na medida em que confirma a decisão proferida em primeira instância.
Por outro lado, aquele douto despacho não pode apenas remeter a sua
fundamentação para a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de
Guimarães para explicar a decisão do não conhecimento do objecto de recurso.
Nem pode - uma vez que tal não corresponde à realidade - limitar-se a afirmar
que a decisão recorrida não colhe qualquer interpretação do nº 2 do artigo 374º
do Código de Processo Penal que permitisse a inclusão na matéria de facto dada
como provada, de afirmações genéricas e não concretizadas que viessem a servir
de fundamentação ao Acórdão condenatório.
Na verdade, tanto a decisão proferida em primeira instancia como a decisão
daquele Venerando Tribunal que confirmou aquela mesma decisão, “bastam-se” com
narrações vagas e incompletas, das condutas alegadamente praticadas pelo
Arguido.
Durante o iter processual percorrido pelos presentes autos, nunca qualquer
qualificação subjectiva — dolosa ou negligente — foi imputada à conduta do
Arguido.
Desta forma, as decisões proferidas quer em Primeira Instância, quer em
Instâncias Superiores, ficaram-se sempre pelas imputações genéricas constantes
de uma acusação deficiente.
Vejamos os factos nºs 1, 2 e 3 dados como provados, na douta sentença proferida
em Primeira Instância,
“O Arguido A. dedicou-se à venda de haxixe a terceiros consumidores, actividade
que empreendeu pelo menos desde 18 de Setembro a 20 de Novembro de 2006.”
“Para o efeito,... munido de pequenas quantidades de haxixe que depois vendia a
terceiros consumidores Uma vez vendido o produto regressava a casa para
abastecer-se de mais produto estupefaciente e continuar a sua vida.”
“No dia 18 de Setembro de 2006, na Rua de … na cidade de Braga, o Arguido A. foi
interceptado e revistado pela PSP tendo na sua posse, no bolso das calças, três
línguas de haxixe com o peso de 16,73 gramas e a importância de €75,00 (setenta
e cinco euros).”
A inclusão destas considerações nos factos dados como provados em Primeira
Instância e confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães são a prova da
interpretação inconstitucional conferida àquele no 2 do artigo 374° do Código de
Processo Penal.
Como ficou claro, estas admitem a condenação do arguido pela prática de um crime
de tráfico de estupefacientes de menor gravidade ao darem como provadas meras
imputações genéricas.
O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães considera que:
“Lendo a decisão em recurso e proferida nos autos, e sobretudo a motivação da
decisão de facto, dúvidas não há que o Tribunal a quo se pronunciou sobre todos
os factos relevantes para a decisão da causa, sendo os dados como assentes
suficientes para a aplicação do direito (....)“
Salvo o devido respeito, somos forçados a discordar, tais imputações genéricas
não são suficientes, sequer, para determinar a pena aplicável ao agente.
A interpretação daquela disposição legal, no sentido de permitir a condenação do
Arguido com base nos factos dados como assentes e supra transcritos é
inconstitucional.
Afirmações tais como: “O Arguido A. dedicou-se à venda de haxixe a terceiros
consumidores, actividade que empreendeu pelo menos desde 18 de Setembro a 20 de
Novembro de 2006.”
Não são, sequer, suficientes para determinar a culpa do agente.
Por desconhecer os factos que lhe são imputados, o Arguido vê limitado o seu
direito de defesa e consequentemente a possibilidade de exercer um contraditório
completo e digno, nos termos do disposto no artigo 32° da Constituição da
República Portuguesa.
É que, tal como ficou alegado no requerimento de interposição de recurso para
este douto Tribunal, a permissão de condenação deste Arguido com base nos factos
genéricos dados como provados viola outras disposições constitucionais,
designadamente a alínea b) do artigo 9º, no nº 4 do artigo 20º, no nº 1 do
artigo 32º e nos nºs 1 e 2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa
e sobre os quais aquela decisão não se pronunciou.
A este respeito o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que:
“As imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de
estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o
aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem
passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa
constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da
conduta do agente”— Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/4/2008 in
www.dgsi.pt
Por outro lado, aquele douto despacho não faz qualquer referência ao que
respeita à violação do artigo 21° do Decreto — Lei 15/93 de 22 de Janeiro.
Nem à violação das normas processuais penais indicadas, mormente, os artigos
283º, 119º, a alínea d) do nº 2 do artigo 120º e a alínea a) do nº 2 do artigo
410° do Código de Processo Penal, bem como as disposições constantes dos artigos
92° a 102º do mesmo diploma legal.
Na verdade, a violação daquelas normas processuais decorre da admissão da
condenação do Arguido com base em imputações genéricas.
Afirma, o Tribunal Constitucional ser alheio à justeza da subsunção doa factos
dados como provados no que respeita ao direito infra — constitucional.
Mais uma vez somos forçados a discordar.
Diz a alínea b) do artigo 9° da Constituição da República Portuguesa que são
tarefas fundamentais do Estado garantir o respeito pelos direitos e liberdades
fundamentais e respeito pelos princípios do Estado de Direito democrático.
Os preceitos constitucionais constantes daquele diploma fundamental e que dizem
respeito a direitos liberdades e garantias - nos termos do artigo 18° da
Constituição da República Portuguesa - são directamente aplicáveis e vinculam
tanto entidades públicas como privadas.
Ao Tribunal Constitucional foram atribuídas duas funções fundamentais: o
controlo da constitucionalidade das normas (em abstracto) e controlo da
constitucionalidade por via de recurso suscitada nos Tribunais comuns durante a
apreciação e a aplicação da norma, aos casos concretos o que confere àquele
Tribunal a característica de órgão jurisdicional.
É a alínea b) do n°1 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa,
introduzida pela revisão de 1982 que cria a figura do recurso das decisões
judiciais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade tenha sido levantada no
processo. Tal significa, que a fiscalização concreta da constitucionalidade, tem
na base um verdadeiro recurso de uma decisão proferida pelo Tribunal a quo que
aplique uma norma cuja constitucionalidade foi suscitada durante o processo
Logo, pode o Tribunal Constitucional sindicar decisões que apliquem normas cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não pode aquele douto despacho simplesmente ignorar a violação das normas
processuais identificadas, em virtude da inconstitucionalidade da interpretação
conferida ao nº 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal.
O Tribunal Constitucional é considerado “um Supremo Tribunal em questões de
constitucionalidade” para o qual são dirigidos os recursos provenientes de todos
os outros Tribunais e nos quais se suscitam questões de apreciação de
inconstitucionalidade ou não aplicação da lei com tal fundamento.» (fls. 872 a
878)
3. Notificado da reclamação, o Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Na verdade, a argumentação do reclamante não tem na devida conta a natureza do
controlo normativo, cometido a este Tribunal Constitucional, insistindo numa
perspectiva que toma o recurso de fiscalização concreta como traduzindo o
exercício de um novo grau de jurisdição quanto ao decidido pelas instâncias, na
ordem dos Tribunais Judiciais.» (fls. 882)
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Através da presente reclamação, o reclamante parece esquecer o âmbito e o
sentido do recurso de constitucionalidade, tal como configurado pela
Constituição da República Portuguesa, pretendendo que este Tribunal coloque em
causa a aplicação do Direito infra-constitucional pelo tribunal “a quo”, como se
o Tribunal Constitucional pudesse funcionar como órgão de recurso ordinário.
Ora, este Tribunal não pode substituir-se aos tribunais recorridos, adoptando
aquela que entende ser a interpretação mais correcta ou mais consentânea com o
regime jurídico ordinário aplicável ao caso. Pelo contrário, em sede de
fiscalização sucessiva concreta, este Tribunal apenas pode partir da norma ou da
interpretação normativa acolhida por uma decisão recorrida e confrontar essa
mesma norma ou interpretação normativa com os princípios e as normas
constitucionais.
Independentemente do entendimento que o ora reclamante possa fazer da decisão
jurisdicional que lhe foi desfavorável, certo é que a mesma não aplicou a norma
constante do n.º 2 do artigo 374º do CPP no sentido de que a fundamentação de
uma decisão condenatória em processo penal se bastaria com “imputações
genéricas”. Pelo contrário, a decisão nega-o peremptoriamente, a fls. 822.
Em suma, não se vislumbra qualquer fundamento que possa colocar em crise o juízo
de não conhecimento formulado pela decisão sumária reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 17 de Novembro de 2008
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão