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Processo nº 255/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
(Conselheiro José Borges Soeiro)
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A.e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Tribunal de 22 de Janeiro de 2008.
2. Em requerimento de recusa do juiz o ora recorrente suscitou a seguinte
questão de inconstitucionalidade:
«10. Os artigos 43º, 308º, n.º 1 e 3, 310º, n.º 1 e 120º, n.º 3, todos do CPP,
quando prevêem que possa ter competência para intervir como juiz de instrução,
na fase de instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada
pelo arguido para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na
decisão instrutória e sem admissibilidade de recurso, são materialmente
inconstitucionais, por violação dos artigos 32º, n.º 1 (direito de defesa e de
recurso), 203º (independência dos juízes) da CRP».
3. O acórdão recorrido negou provimento à requerida recusa de juiz, com os
fundamentos que se seguem:
«Alega o requerente que o Senhor Juiz visado tendo exercido funções
jurisdicionais em fase de inquérito deveria ser objecto de recusa por na fase de
instrução poder vir a ser parcial na medida em que cumprindo-lhe apreciar
nulidades suscitadas sobre actos praticados na fase de inquérito sendo por isso
juiz em causa própria e que tendo o legislador alterado a lei processual (de
acordo com a nova redacção conferida pela Lei n.° 48/07, de 29 de Agosto, ao
artigo 310°, n.° 1 do CPP) de modo a não permitir recurso do despacho que viesse
a ser proferido pelo Senhor Juiz visado, tal ofenderia princípios
constitucionais.
Alega ainda que o juiz visado se envolveu na obtenção da prova indiciária, “não
só por via dos actos que deveria praticar, mas também pelo modo como no caso
interveio, numa lógica de acompanhamento directivo da investigação e com imersão
em directo até nas escutas telefónicas que são núcleo essencial da prova
recolhida”, e que o mesmo Senhor Juiz foi consignando quando da prática dos
actos processuais que praticou, atinentes a buscas e a escutas telefónicas,
motivos pelos quais formava a sua convicção quanto às responsabilidades do ora
arguido, que interrogou, após busca por si ordenada e presidida e a quem
determinou a aplicação de uma medida de coacção fundada na forte indiciação que
declarou existir.
Conclui o requerente afirmando relativamente ao Senhor Juiz visado que “a sua
intervenção como juiz de instrução corre o risco de ser suspeita de
parcialidade”.
Dispõe o art.º 43º nº1 do, Código de Processo Penal que a intervenção de um juiz
no processo pode ser recusada quando ocorrer risco de ser considerada suspeita
por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade.
A seriedade e gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a
imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa do mesmo quando
objectivamente consideradas, não bastando um puro convencimento subjectivo por
parte de um dos sujeitos processuais para que se tenha por verificada a
suspeição, e também não basta a constatação de qualquer motivo aparente,
necessário é que tal motivo seja objectivo e mais que isso, que seja grave e
sério.
(…)
Ora perscrutada a motivação do requerente não se vislumbra a existência de tal
motivo objectivo, grave e sério, capaz de gerar desconfiança sobre a
imparcialidade do Senhor Juiz visado, uma vez que tal como reconhecido pelo
próprio requerente “a sua intervenção como juiz de instrução corre o risco de
ser suspeita de parcialidade”, o que não quer dizer que seja suspeita por
qualquer abuso ou acto denunciador de quebra de imparcialidade, e surge aos
olhos do arguido requerente apenas e tão só, por o Senhor Juiz visado ter
exercido o poder jurisdicional na fase de inquérito, e ter agora de apreciar os
actos praticados em inquérito que lhe cumpria praticar e cumpre ora fazê-lo na
fase de instrução, porque tal decorre da Lei.
O conhecimento que o Senhor Juiz visado tenha dos autos, as escutas que
acompanhou, num tempo em que tal meio de aquisição de prova é atacado com o
argumento de que não é suficientemente controlado, com a necessária proximidade
e brevidade temporal, pelos juízes, os despachos que exarou no processo,
independentemente do seu acerto, que aqui não cumpre apreciar e também não é
posto em causa, assim como o facto de o requerente com eles discordar ou não,
decorreram do exercício das competências que legalmente já lhe eram cometidas.
As controvérsias jurídicas sobre a realização das escutas e validade das mesmas,
aconselham a que o juiz, no exercício do controlo da legalidade de tal meio de
aquisição de prova, tenha redobrados cuidados, o que o Senhor Juiz visado fez,
dando conta do tratamento jurisprudencial que tais questões têm desde há muito
sucessivamente merecido, a que aliás faz referência na sua fundamentada
resposta, (ainda que não fosse necessária, tal a notoriedade da relevância de
tais cuidados,) como resulta do seguinte excerto:
(…)
Também o facto invocado de não ter concordado com tudo o que lhe foi proposto
pelos agentes no terreno, que acompanhava de perto, revelando a sua isenção,
poderia suscitar interpretação oposta à do requerente, a de que o Senhor Juiz
visado não mereceria também a confiança dos agentes policiais, por em relação às
sugestões destes manifestar discordância, afigurando-se suspicaz aos olhos
destes.
O senhor Juiz visado dedicou-se a verificar as transcrições das próprias escutas
de modo a assegurar que eram fidedignas como resulta do despacho de 25 de
Outubro de 2005 em que ordenou, entre outras, a transcrição de uma negativa
(“não é”) que sem ela se alteraria obviamente o sentido da conversa escutada.
Ora não constitui fundamento para a suspeição ou recusa do juiz “a consideração
no inquérito de uma escuta como revestindo interesse para a investigação com a
concomitante ordem para transcrição” (Ac. do STJ de 2.2.2005, in Col.ª Jur.ª Ano
XIII, tomo I, pág. 185),
De quanto o requerente alega resulta, e só, que a intervenção do Senhor Juiz
visado na fase de inquérito se reduziu ao que a lei lhe impunha fazer, o que não
é fundamento, objectivo, nem sequer subjectivo, para a procedência da requerida
recusa.
O facto de ter intervido na fase de inquérito não faz que o juiz julgue em causa
própria na fase de instrução, não só porque não é parte, como porque na fase de
inquérito o titular do mesmo é o M°P°, “sendo as intervenções do Juiz meramente
circunstanciais, e sempre com a finalidade de acautelar a rigorosa observância
das normas e procedimentos que possam contender com os direitos fundamentais do
cidadãos” (Ac. proferido no Proc.° 10547/07.9 do TRL, Relator Almeida Cabral). E
assim sendo nada impede o juiz de instrução criminal, a quem sistematicamente
compete o controlo jurisdicional do inquérito e a direcção da instrução, art.°s
17°, (268° e 269°, 288° e 290°, etc...) todos do CPP, de dirigir a instrução
após a realização do inquérito titulado pelo M°P°, sendo a validade e acerto da
sua actuação novamente que tenham lugar da decisão resultante da audiência de
discussão e julgamento.
Aludindo o requerente às alterações legislativas, não observou que estas não
expressaram o propósito de que o juiz que interviesse no inquérito ficasse
impedido ou inabilitado de dirigir a instrução, nem que consagrasse o princípio
de o juiz ficasse “contaminado” por qualquer conhecimento ainda que adquirido
parcialmente em função de tal intervenção seguementária, a que acresce
finalmente o argumento de que se assim o pretendesse, e tendo o Tribunal Central
de Instrução Criminal um só titular, declararia que o juiz de inquérito não
dirigiria a instrução, como sistematicamente estabelecido e sucessivamente
mantido no ordenamento jurídico apesar de todas as alterações produzidas desde a
sua redacção inicial que nos guindam ao podium dos recordes das alterações dos
principais compêndios penais desde 1982 e 1987, com 15 e 23 novas fórmulas, que
geram a maior perplexidade dos estudiosos do direito comparado.
A intervenção do juiz de instrução em fase de inquérito e depois em instrução,
como sistemática e estruturalmente previsto no CPP (art.° 17°) mantém-se
inalterada, não sendo por isso aplicável o disposto no n° 2 do art.° 43° do CPP.
(…)
Nunca a Lei, ou sequer qualquer jurisprudência, se pronunciaram no sentido,
peregrinamente, pretendido pelo recorrente, como aliás muito bem sabe uma vez
que não encontra, uma única decisão no sentido da defesa da sua pretensão.
Já no sentido oposto ao da pretensão do requerente se podem sumariar, entre
muitas outras, as seguintes conclusões da jurisprudência nacional do STJ, das
Relações e do Tribunal Constitucional, e do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem:
(…)
O presente incidente apresenta, assim, natureza manifestamente dilatória,
colocando, em primeiro lugar, a suspeição pública sobre o Senhor Juiz visado,
apenas e tão só porque “estará contaminado” pelo conhecimento do processo, e que
por isso até irá “julgar em causa própria” na fase de instrução, como se o
conhecimento de parte do processo dirigido pelo M°P°, pudesse ser prejudicial,
ou por esse motivo pela Lei imposto, o juiz pudesse ser parte interessada no
processo, numa forma pouco elegante de desviar o centro das questões para a
pessoa que tem o dever de se pronunciar, distante, gratuita e
desinteressadamente do objecto do processo, como se fosse legítimo
infundadamente transferir para o domínio público a suspeição, sobre quem
intervém, por dever profissional, sem interesse de ganhos ou custos na causa – e
procurando, por outro lado, o entorpecimento da acção da Justiça e do curso
normal do processo – por pretender que nele se conheçam inconstitucionalidades
conexas com a possibilidade ou não de recurso de despacho de pronúncia, que não
foi proferido, e que, muito Honestamente, ninguém pode neste momento dizer que
vai (ou não) ser proferido.
E por se encontrar fora dos pressupostos do conhecimento da recusa, já que
pretende antecipar-se a acto não praticado e reagir à legal previsão da não
admissão de recurso do despacho de pronúncia, que se desconhece se vai ou não
ter lugar; pretendendo o requerente, por essa via, o dilatório prosseguimento do
incidente, o qual o actual quadro legal não admite, na medida em que não quis o
legislador, (cujo o espírito o requerente melhor conhece,) que houvesse recurso
também da decisão do presente incidente, de modo a obviar aos conhecidos efeitos
de incidentes de recusa interpostos no domínio da anterior redacção, (o que fez
com a redacção do art.° 45º n° 6 do CPP, introduzida pela Lei n° 48/2007, de 29
de Agosto,) não conheceremos de inconstitucionalidades de actos não praticados,
nem da inadmissibilidade de recurso do despacho de pronúncia, por não
proferido!!!
A fiscalização preventiva da constitucionalidade é da exclusiva competência do
Tribunal Constitucional, o qual também nunca se pronunciou em qualquer dos
sentidos pretendidos pelo requerente.
Termos em que se indefere ao requerido por a sua improcedência se nos afigurar
manifesta dado que não é apresentado motivo de facto ou de direito do qual
resulte motivo concreto, nem sério nem grave, gerador da desconfiança de perda
de imparcialidade do Senhor juiz visado, a qual (imparcialidade) é uma presunção
(neste sentido, verbi gratia, o Ac. do TEDH Craxi v. Itália de 5.12.2002), que o
requerente não ilidiu ou sequer suficientemente apresentou fundamento ou motivo,
pessoal e objectivo, para que ela se pudesse pôr em causa, partindo o requerente
do princípio oposto, e fazendo uso anormal do processo, invocando fundamentos
manifestamente inviáveis em claro abuso do direito».
4. Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional para
apreciação dos:
«artigos 43.º, 308.º, n.ºs 1 e 3, 310.º, n.º 1 e 120.º, n.º 3, todos do CPP,
quando prevêem que possa ter competência para intervir como juiz de instrução,
na fase de instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada
pelo arguido para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na
decisão instrutória e sem admissibilidade de recurso».
5. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
«1.ª Os artigo 43º, 308º, n.º 1 e 3, 310º, n.º 1, e 120º, n.º 3 do CPP, quando
prevêem que possa ter competência para intervir como juiz de instrução, na fase
de instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo
arguido para ser conhecida nessa fase, actos seus que assim julgará na decisão
instrutória e sem admissibilidade de recurso, são materialmente
inconstitucionais, por violação dos artigos 32º, n.º1 (direito de defesa) e 203º
(independência dos juízes) da CRP.
2.ª Tal é o caso de complexo normativo que permita, sem que isso integre
fundamento de recusa, a intervenção em sede de inquérito de um juiz de instrução
a quem caiba a prática de actos jurisdicionais de inquérito e a autoria de ou a
comparticipação em outros actos de produção probatória e de avaliação indiciária
da prova e que esteja onerado com o encargo de funcional de ser ele e não outro
juiz a conhecer, na fase de instrução, a validade desses actos e ainda a
suficiência indiciária daquela prova.
3.ª A inconstitucionalidade material em causa ocorre também em função do artigo
32º, n.º5 da CRP, pois que o princípio da separação endo-processual, ínsita a um
processo de estrutura acusatória, está posto em crise.
4.ª Tal violação da Constituição ocorre mesmo que a decisão judicial em fase de
instrução admita recurso, pois que os princípios estruturantes da independência
judicial e da defesa, estão postos em causa, ao contaminar-se a objectividade e
a equidistância de um juiz face aos interesses do caso, fazendo-o intervir
cumulativamente na fase de inquérito e de instrução.
5.ª A decisão recorrida, ao ter denegado a recusa de um juiz que integrava a
situação referida, aplicou lei materialmente inconstitucional, pelo que deve
esta ser decretada e reformado, em consequência, o Acórdão, decretando-se a
impossibilidade de intervenção do juiz em causa na fase de instrução».
6. Notificado para o efeito, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o
seguinte:
«1. Por não estar em causa uma verdadeira questão normativa, não deverá
conhecer-se do objecto do recurso.
2. Entendendo-se, porém, que deve-se conhecer do recurso, não há que considerar
inconstitucional a norma extraída dos artigos 43º, 308°, n° 1 e 3, 310º, n° 1 e
120º, n° 3, do Código de Processo Penal, enquanto prevê que possa ter
competência para intervir como juiz de instrução, na fase de instrução, quem
praticou actos cuja validade haja sido suscitada pelo arguido para ser conhecida
nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão instrutória e sem
admissibilidade de recurso.
3. Termos em que o presente recurso não deverá proceder».
7. Respondendo à questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso
levantada pelo Ministério Público, o recorrente concluiu “no sentido segundo o
qual estamos ante uma situação normativa – enunciada nas alegações de recurso –
que está ferida de inconstitucionalidade material”.
8. O recorrente e o recorrido foram notificados pelo primitivo relator da
“eventualidade do Tribunal não vir a conhecer do objecto do recurso por não
haver coincidência da dimensão normativa constante da decisão recorrida e da que
foi configurada pelo recorrente, no requerimento de interposição do aludido
recurso”.
O recorrente respondeu, sustentando, para o que agora releva, o seguinte:
«20. No seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal
Constitucional, o recorrente delimitou a questão de constitucionalidade do
seguinte modo:
«Norma jurídica cuja inconstitucionalidade material está em causa: artigos 43º,
30º, n.º 1 e 3, 310º, n.º 1 e 120º, n.º 3, todos do CPP, quando prevêem que
possa ter competência para intervir como juiz de instrução, na fase de
instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido
para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão
instrutória e sem admissibilidade de recurso.»
21. Atentas as considerações expendidas, é esta, portanto, a delimitação da
dimensão normativa operada pelo recorrente: a norma que se extrai da conjugação
dos artigos 43º, 308º, n.º 1 e 3, 310º, n.º 1 e 120º, n.º 3, todos do CPP,
quando interpretada e aplicada no sentido de que possa ter competência para
intervir como juiz de instrução, na fase de instrução, quem praticou actos cuja
invalidade haja sido suscitada pelo arguido para ser conhecida nesta fase, actos
seus que assim julgará na decisão instrutória e [eis o que decorre da lei] sem
admissibilidade de recurso.
22. Uma dimensão que, no entender do recorrente, será materialmente
inconstitucional por violação das normas constantes dos artigos 32º, n.º 1
(direito de defesa e de recurso) e 203º (independência dos juízes) da CRP.
23. Refira-se, aliás, que foi exactamente esta a dimensão normativa invocada
quando (em tempo) o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade no
seu requerimento de incidente de recusa do Exmo. Senhor Juiz de Instrução do
Tribunal Central de Instrução Criminal. A coincidência é pois tripla, pois
ocorre entre o prevenido, o recorrido, o aplicado.
24. Sucede é que perscrutar a decisão recorrida em busca da referida dimensão
normativa, não é tarefa fácil, pois ela parece ter sido redigida [e porque não
dizê-lo?] em termos de se blindar pela ininteligibilidade e escapar-se, assim
defensivamente, ao já anunciado recurso de inconstitucionalidade. Vejam-se estes
elucidativos trechos:
«(...) – e procurando, por outro lado, o entorpecimento da acção da Justiça e do
curso normal do processo – por pretender que nele se conheçam
inconstitucionalidades conexas com a possibilidade ou não de recurso do despacho
de pronúncia, que não foi proferido (...)“ (sic pág. 32.);
«(...) não conheceremos de inconstitucionalidades de actos não praticados, nem
da inadmissibilidade de recurso de despacho de pronúncia, por não proferido.»
(sic, pág. 33).
25. Ora, a dimensão normativa em crise nada tem que ver com a mera questão da
recorribilidade do despacho de pronúncia, pois, embora possa com ela ter algum
grau de conexão, não lhe está circunscrita, nem, como é evidente, é esse o seu
âmago, não podendo, por isso, permitir que se não olhe para o busílis da questão
de [in]constitucionalidade.
26. O que se passa é que, se numa primeira linha, o que está em causa é a
interpretação dada ao artigo 43º do CPP, enquanto enuncia as razões da recusa –
no caso, da recusa do Juiz para intervir na instrução –, a verdade é que para a
colocar e resolver tal questão é em absoluto imprescindível delimitar a
globalidade das funções às quais o juiz se há-de considerar impedido. Trata-se
de um acervo normativo que permita ao juiz ter tido uma actuação em fase de
inquérito e a totalidade de outra na fase de instrução, nos precisos termos em
que a lei a configura em cada uma das fases.
27. Foi por isso que o recorrente se viu forçado a chamar à colação, para além
do artigo 43º do CPP, aquelas disposições que delimitam a função de instrução –
função cuja cumulação com a actividade desenvolvida no inquérito suscita um
problema de imparcialidade [e de constitucionalidade da regulamentação legal e,
portanto, cuja ponderação é indispensável para o apreender.
28. E exactamente o mesmo fez o Tribunal recorrido, replicando. Veja-se:
O Juiz surge aos olhos do requerente «apenas e tão-só, por o Juiz visado ter
exercido o poder jurisdicional na fase de inquérito, e ter agora de apreciar os
actos que na fase de inquérito lhe cumpria praticar e cumpre ora fazê-lo na fase
de instrução, porque tal decorre da Lei» (página 26);
«Nada impede o juiz de instrução criminal, a quem sistematicamente compete o
controlo jurisdicional do inquérito e a direcção da instrução, arts. 17º, 268º e
269º, 288 e 290º, etc.) todos do CPP, de dirigir a instrução após a realização
do inquérito titulado pelo Mº Pº, sendo a validade e acerto da sua actuação
novamente verificadas em julgamento e nos recursos que tenham lugar da decisão
resultante da audiência de julgamento» (página 29).
“Aludindo o requerente às alterações legislativas, não observou que estas não
expressaram o propósito de que o juiz que interviesse no inquérito ficasse
impedido ou inabilitado de dirigir a instrução, nem que consagrasse o princípio
de o juiz ficasse “contaminado” por qualquer conhecimento ainda que adquirido
parcialmente em função de tal intervenção segmentária, a que acresce finalmente
o argumento de que se assim o pretendesse, e tendo o Tribunal Central de
Instrução Criminal um só titular, declararia que o juiz de inquérito não
dirigiria a instrução, como sistematicamente estabelecido e sucessivamente
mantido no ordenamento jurídico [...]. A intervenção do juiz de instrução em
fase de inquérito e depois em instrução, como sistemática e estruturalmente
previsto no CPP (art.º 17.º) mantém-se inalterada, não sendo por isso aplicável
o disposto no n.º 2 do art.º 43º do CPP. » (páginas 29-30).
29. Mostra-se assim à saciedade, que a norma sobre delimitação do caso de recusa
não pode ser interpretada, nem aplicada, sem ter presentes as funções [todas]
relativamente a cujo exercício a questão da imparcialidade se coloca – para o
que se impõe ter presentes as normas que as definem e as disposições legais que
as estabelecem.
30. Isso não quer dizer, que quando se discute a norma sobre recusas se esteja a
pôr em causa a constitucionalidade das normas estabelecidas nessas disposições
em si e por si: só por absurdo se poderia pretender que, ao invocá-las no
presente contexto, o recorrente, num assomo de insensatez, quis pôr em questão
as normas dos artigo 308º, nº 1 e 3, ou 120º, nº 3, do CPP e só por absurdo
idêntico se pode dizer que, ao referir os «art.º s 17º, (268º e 269º, 288 e
290º, etc.) todos do CPP», o Tribunal da Relação estava a conhecer da respectiva
constitucionalidade.
31. O que se está a pôr em causa é, antes, a constitucionalidade de uma
interpretação e aplicação em matéria de recusas, que é extraída da conjugação
[em lógica de inserção intra-sistemática] das referidas disposições legais, e
segundo a qual não há fundamento de recusa para o exercício das funções
definidas pelo conjunto normativo que formam. Trata-se de sindicar, em suma, uma
universalidade jurídica, decorrência da consciência de que o Direito se não
reduz a uma norma jurídica, atomizada, mas ao corpus complexo dela própria e de
outras que são convocadas a operarem em lógica articulação consigo, tudo no
contexto da plenitude do ordenamento jurídico.
32. Em causa, em suma, o haver-se convocado o artigo 310º, nº 1 do CPP que, na
recente reforma, e ao arrepio da jurisprudência fixada pelo Assento do STJ nº
6/2000, estabeleceu a irrecorribilidade do despacho de pronúncia no que respeita
a nulidades e outras questões prévias ou incidentais.
33. Tal como as disposições acima referidas, ela foi invocada, não em si e por
si, [para suscitar a questão da sua inconstitucionalidade], mas como forma de
identificação das funções atribuídas ao Juiz de instrução, na instrução e em
relação à qual se está a suscitar um problema de recusa.
34. A possibilidade de julgar irrecorrivelmente tem reflexos ao nível das
garantias de imparcialidade do Juiz, pois a irrecorribilidade exasperará sempre
os problemas de imparcialidade que no caso se verifiquem, ademais quando se
trata de juiz que a si julga e à sua obra prévia.
35. Assim, a menção à irrecorribilidade do despacho de pronúncia prende-se,
tão-só, com a intensidade da violação dos preceitos constitucionais invocados,
uma vez que o facto de o Juiz de Instrução, que decide em fase de inquérito, ser
a mesma pessoa que, em fase de instrução, decide sobre a validade de actos por
si praticados, assume redobrada relevância (intensidade) com a alteração
introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no artigo 310, nº 1, do CPP.
36. Aliás, não vá sem se assinalar que nem sequer se pode dizer com verdade que,
apesar das suas interjectivas afirmações, o Tribunal recorrido se absteve de
tomar, dentro da interpretação que subjaz à decisão, posição quanto a essa
questão – e posição clara no sentido da irrecorribilidade do despacho de
pronúncia nessa parte.
37. Outro não pode ser o significado da afirmação, por duas vezes feita na
decisão, segundo a qual “nada impede o juiz de instrução criminal, a quem
sistematicamente compete o controlo jurisdicional do inquérito e a direcção da
instrução, artigos 17º, 268º e 269º, 288 e 290º, etc.), todos do CPP, de dirigir
a instrução após a realização do inquérito titulado pelo Mº Pº, sendo a validade
e acerto da sua actuação novamente verificadas em julgamento e nos recursos que
tenham lugar da decisão resultante da audiência de julgamento” [página 29.
Afirmação similar se encontra na subscrição do trecho do Acórdão da 9ªSecção da
Relação de Lisboa, a página 30].
38. Quer dizer-se: de facto, a interpretação feita pelo Tribunal das normas em
questão passa pela admissão de que não há fundamento para a recusa, mesmo
considerando que o despacho de pronúncia seja irrecorrível na parte pertinente
e, portanto, que – para usar dos termos reiterados do acórdão recorrido – a
validade e acerto da sua actuação só sejam novamente verificadas em julgamento e
nos recursos que tenham lugar da decisão resultante da audiência de julgamento.
39. A matéria que integra o presente recurso configura-se, pois, como a da
sindicabilidade da constitucionalidade de lei que permite a um juiz que praticou
determinados actos processuais como Juiz de Instrução, em fase de inquérito, e
cuja invalidada foi suscitada por arguido, possa, mais tarde, já na fase de
instrução, intervir como Juiz de Instrução, conhecendo da legalidade dos seus
próprios actos na [agora absoluta e desesperantemente irrecorrível], decisão
instrutória.
40. É esta mesma dimensão normativa que pode ser encontrada na decisão
recorrida, nomeadamente quando se lê:
Na pág. 26: «Ora, perscrutada a motivação do requerente não se vislumbra a
existência de tal motivo objectivo, grave e sério, capaz de gerar desconfiança
sobre a imparcialidade do Senhor Juiz visado, uma vez que tal como reconhecido
pelo próprio requerente “a sua intervenção como juiz de instrução corre o risco
de ser suspeita de parcialidade”, o que não quer dizer que seja suspeita por
qualquer abuso ou acto denunciador de quebra de imparcialidade, e surge aos
olhos do arguido requerente apenas e tão só, por o Senhor Juiz visado ter
exercido o poder jurisdicional na fase do inquérito, e ter agora de apreciar os
actos praticados em inquérito que lhe cumpria praticar e cumpre ora fazê-lo na
fase de instrução, porque tal decorre da Lei.»;
Na pág. 29: «O facto de ter intervindo na fase de inquérito não faz que o juiz
julgue em causa própria na fase de instrução, não só porque não é parte como
porque na fase de inquérito o titular do mesmo é o Mº Pº (...). E assim sendo
nada impede que o juiz de instrução criminal, a quem sistematicamente compete o
controlo jurisdicional do inquérito e a direcção da instrução, art.º s 17, [268º
e 269º, 288º e 290º, etc...) todos do CPP, de dirigir a instrução após a
realização do inquérito titulado do pelo Mº Pº, sendo a validade e acerto da sua
actuação [actuação também no inquérito] novamente verificadas em julgamento e
nos recursos que tenham lugar da decisão resultante da audiência de discussão e
julgamento.»;
Na pág. 30: «Como muito bem observado no já referido acórdão da 9ª secção deste
tribunal anteriormente citado, “se o mesmo juiz, na fase de instrução vem
reafirmar posições já assumidas durante o inquérito, isso apenas prova a boa
sustentação das mesmas, e que se está perante um magistrado que, respeitando a
lei, é também, coerente e determinado nas suas convicções. E aquilo sobre a que
se houver pronunciado, sendo lesivo dos interesses de algum dos sujeitos, não
deixará de ser reapreciado em fase de julgamento, e porventura, até mesmo em
recurso das respectivas decisões venha a ser interposto.”. Nunca a Lei, ou
sequer qualquer jurisprudência, se pronunciaram no sentido, peregrinamente,
pretendido pelo recorrente (...)”; “Já no sentido oposto ao da pretensão do
recorrente se podem sumariar, entre muitas outras as seguintes conclusões (...)
“Não é motivo de suspeição a intervenção do juiz de julgamento (o que por
maioria de razão se aplica ao juiz de instrução) em fase prévia do processo,
onde tomou as seguintes decisões: o prolongamento da prisão preventiva, as
diligências de cooperação internacional com vista à obtenção de documentos
(...)»;
Na página 32: «O presente incidente apresenta, assim, natureza manifestamente
dilatória, colocando, em primeiro lugar, a suspeição pública sobre o Senhor Juiz
visado, apenas e tão só porque está contaminado pelo conhecimento do processo e
que por isso irá julgar em causa própria na fase de instrução, como se o
conhecimento do processo dirigido pelo MºPº, pudesse ser prejudicial, ou por
esse motivo pela Lei imposto, o juiz pudesse ser parte interessado no processo
(...).”.
41. Como se pode verificar, o Tribunal da Relação de Lisboa considera que a
mesma pessoa pode intervir na fase de inquérito, como Juiz de Instrução, e que,
na mesma qualidade, pode intervir em fase de instrução, apreciando a legalidade
dos actos que praticou na precedente fase processual, sendo que a sua actuação
sempre poderá ser sindicada em fase de julgamento ou nos recursos das decisões
que aí se tomarem.
42. Conclui-se, assim, que o Tribunal a quo, ainda que socorrendo-se de citações
de outros arestos e por oposição à argumentação do ora recorrente, interpreta os
artigos 43º, 308º, n.º 1 e 3, 310º, n.º 1 e 120º, n.º 3, do CPP, no sentido de
considerar que o mesmo Juiz de Instrução Criminal que, em fase de inquérito,
praticou um conjunto de actos processuais, pode, como Juiz de Instrução
Criminal, presidir à fase de instrução, aí decidindo o que houver para decidir,
designadamente na decisão instrutória, sobre a invalidade suscitada pelo arguido
de actos por si praticados no inquérito.
43. Adiantando-se, na decisão recorrida, que o facto de o despacho de pronúncia
ser agora irrecorrível não prejudica tal entendimento extraído das normas legais
em apreço.
44. Tal interpretação resulta do caso concreto, mas possui suficiente abstracção
para que a sua constitucionalidade possa ser sindicada por este Tribunal
Constitucional.
45. E nem sequer se pode dizer que a interpretação co-envolve uma tomada de
posição simplesmente implícita sobre a questão de constitucionalidade colocada
ao Tribunal recorrido pelo ora recorrente, como se vê, não só pelo teor global
do Acórdão, como, de forma especialmente clara, dos seguintes aspectos:
46. Ao resumir a alegação do ora recorrente no que respeita ao conhecimento das
nulidades, o próprio Tribunal recorrido deixa ver que, a seu ver, a questão que
lhe é colocada e que ele tem para decidir não é outra senão justamente a de que
a não recusa “ofenderia princípios constitucionais” [página 25];
47. Na sua argumentação marca clara presença a ponderação da jurisprudência
especificamente em matéria de direitos fundamentais em matéria processual penal
[cfr. páginas 30 ss], a qual culmina na afirmação segundo a qual o Tribunal
Constitucional “nunca se pronunciou em qualquer dos sentidos pretendidos pelo
requerente” [página 33].
48. Ante o exposto, conclui-se que se verifica uma coincidência entre a dimensão
normativa prevenida pelo ora recorrente a da decisão recorrida e do seu
requerimento de interposição de recurso».
Após mudança de relator, por vencimento, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O recorrente requer a apreciação dos artigos 43º, 308º, nºs 1 e 3, 310º, nº 1
e 120º, nº 3, do Código de Processo Penal, quando prevêem que possa ter
competência para intervir como juiz de instrução, na fase de instrução, quem
praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido para ser
conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão instrutória e sem
admissibilidade de recurso.
As disposições legais a que se reporta a norma que é objecto do recurso
interposto para este Tribunal têm a seguinte redacção:
«Artigo 43º
Recusas e escusas
1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco
de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar
desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do
juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do
artigo 40º.
3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo
assistente ou pelas partes civis.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao
tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições
dos nºs 1 e 2.
5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento
em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se
verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os
praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente
e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do
processo.
Artigo 120º
Nulidades dependentes de arguição
1 – (…)
2 – (…)
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto
esteja terminado;
b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco
dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao
encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco
dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.
Artigo 308º
Despacho de pronúncia ou de não pronúncia
1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios
suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao
arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho,
pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho
de não pronúncia.
2 – (…)
3 - No despacho referido no nº 1 o juiz começa por decidir das nulidades e
outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Artigo 310º
Recursos
1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da
acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283º ou do nº 4
do artigo 285º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e
outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos
ao tribunal competente para o julgamento.
2 – (…)
3 – (…)».
2. Constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio
decidendi, da norma cuja apreciação é requerida pelo recorrente.
O Tribunal Constitucional tem vindo a entender que o controlo de
constitucionalidade tem como objecto a norma na sua totalidade, em determinado
segmento ou segundo certa interpretação, quer seja reportada a determinado
preceito legal quer resulte das disposições conjugadas de vários preceitos
legais. Ponto é que a norma, assim considerada, seja “mediatizada pela decisão
recorrida” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 232/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), face ao carácter instrumental do recurso de
constitucionalidade interposto em sede de fiscalização concreta (neste sentido,
cf., ainda, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 139/95, 187/95, 497/99 e
155/2000, disponíveis no mesmo sítio).
3. No requerimento de interposição de recurso – a peça processual onde o
recorrente definiu o objecto do recurso –, foram indicados os artigos 43º, 308º,
nºs 1 e 3, 310º, nº 1 e 120º, nº 3, do Código de Processo Penal, quando prevêem
que possa ter competência para intervir como juiz de instrução, na fase de
instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido
para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão
instrutória e sem admissibilidade de recurso.
A norma recorrida não coincide, porém, com a norma aplicada pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso interposto.
O Tribunal da Relação acordou em “negar provimento à requerida recusa do Senhor
Juiz visado” aplicando, como razão de decidir, o artigo 43º, nºs 1 e 2, do
Código de Processo Penal, quando prevê que possa ter competência para intervir
como juiz de instrução, na fase de instrução, quem praticou actos cuja
invalidade haja sido suscitada pelo arguido para ser conhecida nesta fase.
Tal resulta do teor do acórdão daquele Tribunal, na parte em que é apreciado o
requerido estritamente à luz do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 43º (Recusas e
escusas), merecendo um especial destaque as passagens em que se conclui que:
«Ora perscrutada a motivação do requerente não se vislumbra a existência de tal
motivo objectivo, grave e sério, capaz de gerar desconfiança sobre a
imparcialidade do Senhor Juiz visado, uma vez que tal como reconhecido pelo
próprio requerente “a sua intervenção como juiz de instrução corre o risco de
ser suspeita de parcialidade”, o que não quer dizer que seja suspeita por
qualquer abuso ou acto denunciador de quebra de imparcialidade, e surge aos
olhos do arguido requerente apenas e tão só, por o Senhor Juiz visado ter
exercido o poder jurisdicional na fase de inquérito, e ter agora de apreciar os
actos praticados em inquérito que lhe cumpria praticar e cumpre ora fazê-lo na
fase de instrução, porque tal decorre da Lei» (itálico aditado);
«Aludindo o requerente às alterações legislativas, não observou que estas não
expressaram o propósito de que o juiz que interviesse no inquérito ficasse
impedido ou inabilitado de dirigir a instrução, nem que consagrasse o princípio
de o juiz ficasse “contaminado” por qualquer conhecimento ainda que adquirido
parcialmente em função de tal intervenção seguementária, a que acresce
finalmente o argumento de que se assim o pretendesse, e tendo o Tribunal Central
de Instrução Criminal um só titular, declararia que o juiz de inquérito não
dirigiria a instrução, como sistematicamente estabelecido e sucessivamente
mantido no ordenamento jurídico (…)» (itálico aditado).
A não aplicação, como ratio decidendi, da norma recorrida decorre, ainda, das
razões aduzidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa para não conhecer da questão
de constitucionalidade que o recorrente suscitou no requerimento de recusa de
juiz, prevenindo o recurso de constitucionalidade que veio a interpor. Para não
conhecer a questão de saber se os artigos 43º, 308º, nºs 1 e 3, 310º, nº 1, e
120º, nº 3, do Código de Processo Penal, quando prevêem que possa ter
competência para intervir como juiz de instrução, na fase de instrução, quem
praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido para ser
conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão instrutória e sem
admissibilidade de recurso, são materialmente inconstitucionais, por violação
dos artigos 32º, nº 1, (direito de defesa e de recurso) e 203º (independência
dos juízes) da Constituição da República Portuguesa, a decisão recorrida deixou
claro que não aplicou – nem poderia aplicar – a norma prevenida. Concretamente,
na medida em que tal norma se reportava também aos artigos 308º, nºs 1 e 3,
310º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a disposições legais sobre a
decisão instrutória e a recorribilidade da mesma.
Face ao momento processual em que o acórdão recorrido foi proferido – depois de
ter sido requerida a fase de instrução e antes de ter sido proferida a decisão
instrutória – e porque o motivo alegado no requerimento de recusa se reporta
exclusivamente ao juiz visado – no caso, ao juiz de instrução que, nos presentes
autos, interveio nesta qualidade na fase de inquérito –, bem se compreende que o
Tribunal da Relação de Lisboa não tenha aplicado a norma cuja apreciação foi
requerida ao Tribunal Constitucional. Esta norma pressupõe, por um lado, que o
juiz que intervém no inquérito, o juiz que dirige a instrução e o juiz que
profere a decisão instrutória seja o mesmo e, por outro, que a decisão
instrutória seja irrecorrível.
Em suma, a não aplicação pelo tribunal recorrido da norma cuja apreciação foi
requerida a este Tribunal – e não a circunstância de o Tribunal da Relação de
Lisboa não ter conhecido da questão de constitucionalidade que lhe foi posta –
obsta ao conhecimento do objecto do recurso interposto.
Na medida em que um eventual julgamento de inconstitucionalidade não seria
susceptível de influir utilmente na decisão da questão de fundo, o conhecimento
do objecto do presente recurso traduzir-se-ia na apreciação de uma questão
meramente académica, contrariando o carácter instrumental do recurso de
constitucionalidade interposto.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de
conta.
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro (vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencido, relativamente ao conhecimento, pelos seguintes fundamentos:
O Recorrente pretende ver apreciado o bloco normativo integrado pelos artigos
43.º, 308.º, n.ºs 1 e 3, e 120.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal
(CPP), na dimensão segundo a qual pode ter competência para intervir como juiz
de instrução, na fase de instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja
sido suscitada pelo arguido para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim
julgará na decisão instrutória e sem admissibilidade de recurso.
1.1. Assinala-se que os artigos 308.º, n.ºs 1 e 3, e 120.º, n.º 3, do CPP não
foram sequer aplicados pela decisão a quo pelo que não poderiam tais normas
integrar o objecto desta fiscalização concreta. Por outro lado, estando em causa
uma situação de recusa de juiz, as normas às quais se reporta, em rigor, a
questão de constitucionalidade são as do artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
1.2. Já no que diz respeito à dimensão normativa contestada, alegadamente
extraída pela instância recorrida de tais preceitos legais, desdobra-se a mesma
em dois fundamentos: o facto de o juiz de instrução ser o mesmo que autorizou e
praticou actos durante o inquérito (e, assim, tomar posição sobre invalidades
imputadas a actos seus); e, o facto de, na instrução, o juiz decidir sobre as
invalidades arguidas sem admissibilidade de recurso.
1.3. O último fundamento apontado – em sede de instrução o juiz decide sobre as
invalidades arguidas de modo irrecorrível – não coincide com a interpretação que
a decisão recorrida efectuou do direito aplicável. Com efeito, consignou-se
naquela que “a validade e acerto da sua actuação [do juiz de instrução] [serão]
novamente verificadas em julgamentos e nos recursos que tenham lugar da decisão
resultante da audiência de discussão e julgamento” (fls. 62). Assim, e
constituindo tal interpretação o ponto de partida para a apreciação do objecto
do recurso de constitucionalidade, não competindo a este Tribunal pronunciar-se
sobre a respectiva correcção ou adequação, teria de se concluir pela
impossibilidade de conhecimento de critério normativo não coincidente com o que
foi aplicado pelo tribunal recorrido.
No entanto, sempre se diga que:
1.4. A apreciação de um recurso de constitucionalidade deve pôr em destaque,
naturalmente, a “questão de constitucionalidade”.
Na situação em apreço, a questão de constitucionalidade que foi suscitada é uma
e única, quer no requerimento de interposição de recurso, quer nas respectivas
alegações, ou seja, a imputada violação constitucional do disposto no artigo
43.°, n.°s 1, e 2, do CPP, na interpretação segundo a qual pode ter competência
para intervir como juiz de instrução, na fase de instrução, quem praticou actos
cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido para ser conhecida nessa fase,
actos seus que assim julgará na decisão instrutória. Como parâmetros, o
Recorrente convocou os comandos constitucionais contidos nos artigos 32.°, n.°
1, e 203.°, da CRP.
Sucede no entanto que o Recorrente, para reforçar a tese da
inconstitucionalidade, aditou um argumento concernente à irrecorribilidade do
despacho de pronúncia que aprecia nulidades e outras questões prévias ou
incidentais. A partir deste argumento, considerado no requerimento de resposta
ao Ministério Público no tocante a eventual existência de questão prévia que
obstasse ao conhecimento do mérito do recurso, o aludido Recorrente afirmou “não
pretendemos sindicar a lei que estatui a irrecorribilidade da decisão
instrutória em si no que à sua função saneadora respeita; discordante embora,
por entendermos a intolerabilidade constitucional de tal sistema, não é essa a
dimensão do problema que para aqui se convoca. A irrecorribilidade, nesta
vertente, é apenas a ‘exasperação’ (...) da inconstitucionalidade, ou seja, o
levar aos limites do intolerável a situação normativa de cuja
inconstitucionalidade está em causa (...)”.
A partir deste argumento a decisão recorrida encetou um processo argumentativo
entendendo-se no Acórdão que “a norma recorrida não coincide, porém, com a norma
aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa”, o que impossibilitaria o
conhecimento do objecto do recurso interposto.
Ora, encontrando-se a tramitação do recurso constitucional sujeita ao “princípio
do pedido”, e fundando-se este princípio no efeito jurídico pretendido pelo
recorrente e não na literalidade da sua enunciação, constata-se que o efeito
jurídico pretendido foi, efectivamente, o julgamento de inconstitucionalidade do
artigo 43.°, n.°s 1, e 2, do CPP, na apontada dimensão normativa.
Assim, por entender que a temática trazida à fundamentação pelo Recorrente
respeitante à irrecorribilidade da decisão relativa a questões prévias ou
nulidades, no despacho de pronúncia, não passa de um argumento adjuvante, ou
segundo o seu dizer, “exasperante”..., não integra a mesma o “pedido”, tal como
este conceito veio de ser explicitado.
Neste sentido, não pode considerar-se haver diversidade da dimensão normativa
entre a decisão recorrida e o requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade. Tratou-se naquela decisão de proferir um juízo assente numa
determinada interpretação de norma adjectiva, de direito infra-constitucional,
sobre o âmbito de recursos jurisdicionais, cuja correcção não cabe ao Tribunal
Constitucional sindicar.
Determinante para que haja conhecimento do recurso, é “a circunstância de a
decisão judicial ter aplicado como ‘ratio decidendi’ a norma ou a interpretação
normativa questionada ‘sub specie constitucionis’ e o reconhecimento de que essa
questão foi efectivamente suscitada pelo Recorrente perante o tribunal que
proferiu aquela decisão” (Acórdão n.° 355/2005, publicado no Diário da
República, II série, de 3 de Novembro de 2005).
E da decisão recorrida resulta claramente que o recurso é negado, no que
respeita à temática da intervenção cumulativa de magistrado que, durante o
inquérito, autoriza actos instrutórios e, posteriormente, vem a dirigir a fase
de instrução, porque o Tribunal a quo entendeu que tal actuação concomitante não
é susceptível de “contaminar” a função judicial, na medida em que as vestes em
que a mesma se desenvolve obedecem a esquemas e fins (legais e constitucionais)
bastante diversos. Vejam-se os seguintes excertos do Acórdão: “O facto de ter
intervido na fase de inquérito não faz que o juiz julgue em causa própria na
fase de instrução, não só porque não é parte, como porque na fase de inquérito o
titular do mesmo é o M°P°, ‘sendo as intervenções do Juiz meramente
circunstanciais, e sempre com a finalidade de acautelar a rigorosa observância
das normas e procedimentos que possam contender com os direitos fundamentais do
cidadãos’ (…) E assim sendo nada impede o juiz de instrução criminal, a quem
sistematicamente compete o controlo jurisdicional do inquérito e a direcção da
instrução, (…) de dirigir a instrução após a realização do inquérito titulado
pelo M°P°, sendo a validade e acerto da sua actuação novamente verificadas em
julgamento e nos recursos que tenham lugar da decisão resultante da audiência de
discussão e julgamento. (…) Nunca a Lei, ou sequer qualquer jurisprudência, se
pronunciaram no sentido, peregrinamente, pretendido pelo recorrente, como aliás
muito bem sabe uma vez que não encontra, uma única decisão no sentido da defesa
da sua pretensão. Já no sentido oposto ao da pretensão do requerente se podem
sumariar, entre muitas outras, as seguintes conclusões da jurisprudência
nacional do STJ, das Relações e do Tribunal Constitucional, e do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem (…).” Por aqui se confere que a ratio decidendi do
julgamento anterior assentou, portanto, no facto de não se comprovar qualquer
comprometimento da imparcialidade judicial pelo facto de permitir que o juiz que
autorizou a prática de determinados actos durante a fase de inquérito seja o
mesmo que, a posteriori, dirige a instrução do mesmo processo. Esta foi a
resposta fornecida pelo Tribunal a quo à questão de constitucionalidade que
vinha suscitada e que constitui, em si mesma considerada, critério essencial de
decisão.
O que a Relação dispôs a seguir relativamente a inconstitucionalidades de actos
não praticados ou a fiscalização preventiva da constitucionalidade não pode
fundamentar, em meu entender, a conclusão de que apenas relativamente a esta
matéria houve pronúncia sobre questão de constitucionalidade, nem, de igual
modo, que só esta pronúncia constitui critério decisório essencial do aresto.
Por um lado, da análise do raciocínio argumentativo expendido resulta claramente
que este outro aspecto – impossibilidade de recurso do despacho de pronúncia
que, pronunciando o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público, aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais – tendo sido
invocado pelo Recorrente, foi apreciado enquanto questão distinta (embora,
logicamente, conexa com a anterior). E aqui sim, resultou, por um lado, que o
Tribunal, embora referindo genericamente que “a validade e acerto da sua
actuação [do juiz de instrução] [serão] novamente verificadas em julgamentos e
nos recursos que tenham lugar da decisão resultante da audiência de discussão e
julgamento”, considerou que a apreciação desse problema era extemporânea na
medida em não se poderia antecipar – a não ser em termos especulativos mas esses
não teriam já cabimento na decisão concreta – a eventual irrecorribilidade de um
despacho que não havia ainda sido proferido. No entanto, a questão da cumulação
de funções controvertida (juiz que autoriza actos durante o inquérito/juiz de
instrução) surge como perfeitamente destacável e distinta destoutra, não só no
modo como a questão de constitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente perante
o Tribunal a quo mas também no tratamento que esta instância lhe conferiu. E não
me parece correcto entender-se que só a segunda constitui ratio decidendi do
Acórdão da Relação. Também o é – é certo. Mas essa será, quiçá, a maioria das
situações, particularmente quando os tribunais apreciam questões complexas ou
pedidos múltiplos, alternativos ou subsidiários. E, logicamente, quando são
apresentados – como sucedeu nos autos – argumentos adjuvantes à posição
sustentada pelas partes.
O que é necessário é que a questão de constitucionalidade, tendo sido suscitada
adequadamente pelo recorrente perante a instância recorrida, tenha sido
apreciada e decidida, repercutindo-se tal decisão de modo útil nos autos. E,
quanto a mim, estes pressupostos encontravam-se preenchidos in casu: a questão
de constitucionalidade que vem colocada, pelo Recorrente, é, na sua essência, a
inconstitucionalidade do artigo 43.°, n.°s 1, e 2, do CPP, na dimensão
referenciada, sendo certo que tal questão foi suscitada no tribunal recorrido,
tendo havido pronúncia sobre a mesma como ratio decidendi.
2. Pelo que passaria a conhecer do objecto do recurso:
O artigo 43.º, do CPP, ao dispor sobre recusa e escusa do juiz, estabelece um
regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que
possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do julgador. Esta norma tem, tal
como as disposições relativas aos impedimentos, uma função de garantia da
imparcialidade judicial.
2.1. Prevêem-se assim mecanismos que o legislador considerou adequados para
assegurar a imparcialidade do tribunal a qual constitui um direito fundamental
dos destinatários das decisões judiciais. Com efeito, as garantias de defesa em
processo criminal englobam, na sua matriz estruturante, o direito à
imparcialidade do julgador, o qual resulta, de igual modo, das exigências
constitucionais atinentes à estrutura acusatória do processo penal e à
independência dos juízes (artigos 32.º, n.º 5, e 203.º, da Constituição). Não
obstante o direito à imparcialidade do julgador não resultar literalmente do
texto constitucional, o certo é que tal dimensão não deixa de integrar o núcleo
essencial dos direitos de defesa bem como, em termos mais gerais, do próprio
direito de acesso aos tribunais e, até, do princípio do estado de direito
democrático (cfr. Acórdão n.º 129/2007, publicado no Diário da República, II
Série, de 24 de Abril de 2007).
2.2. A imparcialidade do juiz, enquanto denominador da sua equidistância face às
partes no pleito, impõe a incerteza relativamente à sua actuação até ao momento
em que é proferida a decisão final. Sendo uma exigência de funcionamento de
qualquer tribunal, facilmente se intui que reveste especial intensidade no que
concerne à actividade dos tribunais criminais nos quais o juiz assume variadas
vestes e funções ao longo das diferentes fases do processo.
3. A imparcialidade do juiz e do tribunal, contudo, não se apresenta sob uma
noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos
destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos,
diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a
imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva. A imparcialidade
subjectiva, enquanto garantia de distanciamento pessoal do juiz em face da
causa, tem-se por presumida até prova em contrário. Já o teste objectivo se
refere à dimensão da imparcialidade aferida em face da comunidade, exigindo que,
aos olhos do cidadão comum, a isenção do juiz não pode colocar dúvidas.
3.1. Nos termos do Acórdão n. ° 297/2003 (publicado no Diário da República, II
Série, de 3 de Outubro de 2003), “a independência dos juízes é, antes de mais,
‘uma responsabilidade que terá a ‘dimensão’ ou a ‘densidade’ da fortaleza de
ânimo do carácter e da personalidade moral de cada juiz”, referindo-se à
necessidade de existir um quadro legal que ‘promova’ e facilite aquela
‘independência vocacional’, garantindo a imparcialidade do julgador e
assegurando ‘a confiança geral’ (ou ‘a confiança do público’) naquela
imparcialidade, finalidade esta (de algum modo enquadrável na ‘teoria das
aparências’) que o Tribunal sempre ponderou nos juízos que depois veio a
proferir sobre a matéria.”
Efectivamente, na abordagem subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver
com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração
sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo
perante um certo dado ou circunstância, e se conserva qualquer motivo para
favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.
3.2. Já no regime processual precedente de 1929, conforme dá notícia o Acórdão
n.º 227/97 (publicado no Diário da República, II Série de 27 de Junho de 1997),
sucedia que:
“Quando ocorre um impedimento, o juiz não pode ‘funcionar em processo penal’
(art. 104°). Igualmente, a verificação de incompatibilidades impede os
magistrados afectados de ‘fazer parte de qualquer tribunal colectivo de comarca’
ou de intervir em qualquer decisão a proferir pelos tribunais superiores (art.
108°). Diferentemente, no caso de suspeição, o juiz não pode declarar-se
voluntariamente suspeito, mas o Ministério Público, a parte acusadora ou o
arguido, logo que seja admitido a intervir, pode recusá-lo como suspeito
invocando algum dos fundamentos previstos na lei (art. 112°). Como referia Luís
Osório, no seu “Comentário ao Código de Processo Penal” (2° volume, Coimbra,
1932, pág. 225): ‘quando às pessoas, que intervêm no processo, se exige um
comportamento imparcial e independente, a capacidade em concreto pode faltar
pela presença duma circunstância especial da causa que ameaça aquela
imparcialidade e independência […]. Chegamos assim aos impedimentos e
suspeições’. Ainda segundo o mesmo comentador, nas causas de impedimento
‘classificou o legislador aquelas circunstâncias que entendeu afectarem sempre a
imparcialidade ou a independência dos funcionários; e nas causas de suspeição
classificou aquelas que podem afectar essa imparcialidade ou independência’. Daí
que os impedimentos devessem ‘ser denunciados pelos impedidos – art. 104°, § 2 –
ao passo que as suspeições só pelas partes podem ser alegadas – 112°; pois só
elas são juízes para determinar se aquela possibilidade se pode tornar ou não em
realidade’. (ob. cit. pág. 227).
Relativamente ao elenco de impedimentos e de suspeições consagrado no Código de
Processo Penal, desde cedo se considerou haver aí uma enumeração de causas
‘taxativas’ (Luís Osório, e vol. citados, pág. 227). Este comentador, a
propósito dessa solução, contrapunha-a ao sistema germânico, em que se consagrou
tradicionalmente uma ‘regra’ ou ‘cláusula’ geral, confiando-se a determinação
dos casos de suspeição ao próprio tribunal. Os sistemas latinos – com excepção
porventura, da lei processual penal italiana – caracterizavam-se antes pela
enumeração de ‘cada uma das causas de suspeição’ (ob. e vol. citados, pág. 291).
A jurisprudência passou a aceitar maioritariamente que havia uma enumeração
taxativa no artigo 112° do Código de Processo Penal, mas tal entendimento veio a
ser criticado no ensino de Figueiredo Dias, em especial após a publicação do seu
‘Direito Processual Penal’, 1, em 1974, ainda no domínio da Constituição
Política de 1933. Este penalista interrogava-se sobre se os artigos 104° e 112°
do Código de Processo Penal não poderiam revelar lacunas que devessem ser
preenchidas, nomeadamente por recurso às disposições correspondentes do Código
de Processo Civil, de âmbito mais lato. E afirmava que lhe parecia, em matéria
de impedimentos, ‘que uma razão tão premente como a de boa administração da
justiça penal vivamente [aconselhava) a que se integre, nesta parte, o CPP pela
regulamentação contida no CPC e que se mostre em concreto aplicável […], como
aconselha ainda a que se interpretem o mais latamente possível os fundamentos
referidos pelo art. 104° do CPP […]’ (ob. cit. páginas. 317-318). Relativamente
às suspeições punha o mesmo autor igualmente em dúvida a bondade de se acolher
uma enumeração taxativa das causas de suspeição:
‘(…) melhor seria, sem dúvida, ter utilizado - à semelhança, v.g., do § 24 II do
CPP alemão ocidental – uma cláusula geral que dissesse poder ser recusado o
«quando exista qualquer fundamento capaz de gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade» ‘ (ob. cit., pág. 319).
A orientação de Figueiredo Dias veio a ser acolhida por Maia Gonçalves, o qual
acentuou que aquele autor demonstrara que a enumeração dos casos de impedimentos
e de suspeições comportava lacunas que deviam ser preenchidas através da
analogia, sendo essa ‘a doutrina mais defensável’ por estar ‘escudada em
argumentos convincentes’ (Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 4 ed.,
Coimbra, 1980, págs. 185 e 192).
Não pode, por isso, causar admiração que o novo Código de Processo Penal de 1987
tenha abandonado o sistema de enumeração casuística do diploma antecedente,
caracterizador do chamado ‘sistema latino’ consagrando um sistema de cláusula
geral na matéria de suspeições, mas mantendo uma enumeração taxativa dos casos
de impedimento. Assim, o art. 43°, n° 1, estabelece que pode ser recusada a
intervenção de um juiz no processo ‘quando correr o risco de ser considerada
suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre
a sua imparcialidade’ (sobre este artigo, veja-se Germano Marques da Silva,
“Curso de Processo Penal”, 1, 2.ª ed., 1994, págs. 198-199).
O novo Código de Processo Penal acolhe, assim, como ‘verdadeiro princípio geral
de direito, actuante no domínio da politica judiciária, que se esconde atrás de
toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz, o de que é
tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os
participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de
incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço,
quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não – uma vez
mais o acentuamos – enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a
imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele
a perdeu […]’ (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 320).”
3.3. Na sequência da revisão do Código de Processo Penal de 1998, que procedeu,
no que ora importa, à alteração dos artigos 40.º, e 43.º, tipificando, por um
lado, a impossibilidade de intervir como juiz de julgamento aquele que tivesse
anteriormente aplicado e mantido a prisão preventiva do arguido, e,
estabelecendo, por outro, em termos gerais, a possibilidade de constituir
fundamento de recusa e de escusa a intervenção do juiz em fases anteriores do
processo quando tal possa gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (na
redacção do n.º 2 do artigo 43.º que ainda hoje se mantém em vigor),
pronunciou-se criticamente aquele Ilustre Autor nos seguintes termos:
“(…) isto significa, a meus olhos, uma pobre tentativa — impossível — de todos
contentar: com a redacção do artigo 43.º reafirma-se a boa doutrina de
considerar a intervenção anterior do juiz relativa a actos isolados no quadro
das recusas e escusas, não nos impedimentos; com a nova redacção do artigo 40. °
pretende salvar-se, em todo o caso, a jurisprudência (errada, em meu parecer,
como salientei) do Tribunal Constitucional em matéria de efeito da intervenção
judicial na prisão preventiva. O quadro daqui resultante é teleologicamente
contraditório e racionalmente insustentável. E tanto mais o é quanto, suponho,
ficará definitivamente por se compreender porque fique impedido o juiz que
aplique e mantenha a prisão preventiva do arguido, mas já não o que só a aplique
(mas não a mantenha, inclusivamente porque o incidente não chega a ser
suscitado) ou o que só a mantenha (mas não a tenha aplicado....); como
definitivamente ficará por compreender, atento o fundamento político-criminal
subjacente, porque haja o impedimento de valer relativamente à prisão preventiva
mas não, por exemplo, à obrigação de permanência na habitação. O que tudo só
mostra uma vez mais, em meu juízo, como em matéria de legislação penal nunca é
de bom conselho e rendimento tergiversar sobre proposições político-criminais
básicas em favor de compromissos que nem respeitam as finalidades do processo
penal, nem as exigências da sua concordância prática.
(…) a prática pelo juiz de instrução de actos isolados não deve constituir causa
de impedimento, mas tão só, como previa a lei anterior e a proposta de revisão
tornou claro, motivo de eventual suspeição. E isto porque só a decisão que o
juiz de instrução tome a final — a de pronunciar ou não pronunciar o arguido —
contende directa e necessariamente com o objecto do processo, por isso que
também a pronúncia serve para limitar e fixar os poderes de cognição do tribunal
de julgamento. Só um mecanismo como o da suspeição, em minha opinião, responde
satisfatoriamente — porque depende de uma avaliação das circunstâncias concretas
da intervenção do juiz de instrução num momento anterior ao julgamento — à razão
de ser da não intervenção daquele no julgamento: a garantia da imparcialidade e
da objectividade da decisão final, a garantia, afinal, que está mesmo no cerne
da acusação.
Por mais que me esforce, continuo a não conseguir divisar que «direitos
liberdades e garantias» do arguido serão de outro modo mais justamente
defendidos, face à tensão em que estes têm de existir e à composição em que têm
de entrar com as necessidades de realização do ius puniendi estadual e com as
exigências da sua eficiência e efectividade num processo justo e equitativo. Em
vão continuo a perguntar-me que sentido garantístico para as liberdades do
arguido pode ter que um juiz de instrução que aplique e mantenha na fase de
inquérito uma prisão preventiva requerida pelo Ministério Público (...) fique
automaticamente impedido de participar no futuro julgamento. Como continuo a
pensar que afirmar que o juiz fica deste modo (...) preso a pré-juízos constitui
um prejuízo tão grande, pelo menos, como pretender que o juiz do julgamento
ficará agarrado ao pré-juízo que lhe advém do facto de já outro juiz, o de
instrução, ter pronunciado o arguido. (Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
Ano 8, Fasc. 2.º, Abril - Junho 1998, pp. 207-209).”
4. O Tribunal Constitucional já apreciou, em diversas ocasiões, a conformidade
jusconstitucional de normas que permitem que o juiz que teve determinadas
intervenções durante a fase de inquérito possa, subsequentemente, integrar o
julgamento do mesmo processo.
4.1. Assim, por exemplo, o Acórdão n.º 297/2003 não julgou inconstitucional a
norma do artigo 40.º, do CPP, interpretada no sentido de permitir a intervenção
em julgamento de juiz que, no início do inquérito, interroga os arguidos que lhe
são apresentados detidos e decreta a prisão preventiva desses arguidos,
autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária.
O Acórdão n.º 399/2003, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
56, p. 859 e seguintes, não julgou inconstitucionais as normas dos artigos 40.º
e 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, na interpretação que não abrange o impedimento do
juiz de julgamento por ter participado em anterior julgamento no mesmo processo,
o qual foi anulado por não ter sido efectuada a gravação da prova prestada
oralmente em audiência.
4.2. Inversamente, o Acórdão n.º 656/97, publicado no Diário da República, II
Série, de 6 de Abril de 1998, julgou inconstitucional a norma do artigo 40.º, do
CPP, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de
inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido.
Outros arestos se seguiram no mesmo sentido o que veio quiçá a motivar a
alteração do artigo 40.º de modo a incluir a impossibilidade de intervenção no
julgamento de juiz que, durante o inquérito, autorizou e manteve a aplicação de
medida de prisão preventiva. Esta alteração suscitou controvérsia por parte de
alguma doutrina, realçando-se a crítica de Figueiredo Dias à confirmação
legislativa da jurisprudência constitucional (cfr. supra).
4.3. Nunca foi objecto de apreciação, no entanto, questão de constitucionalidade
relacionada com a apreciação da imparcialidade de juiz que cumule a prática de
actos instrutórios durante o inquérito com a direcção da fase de instrução. A
jurisprudência constitucional anterior, no entanto, nomeadamente a já
mencionada, não deixa de fornecer importantes pistas para a resolução do
problema que se oferece nos autos. Com efeito, atentas as funções que impendem
sobre o juiz do julgamento, compreende-se que seja relativamente a este que os
temores de contaminação pela prática de actos em fase anterior do processo se
façam sentir com maior acuidade. Como refere Mouraz Lopes, “é no acto de julgar
que a imparcialidade surge como essência na concretização do estado de justa
distância” (in A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal
português, Studia Iuridica 83, Coimbra Editora, 2005, p. 71). E adianta ainda o
mesmo Autor que “só um juízo ex post factum, sobre a intervenção funcional do
juiz num determinado processo poderá levar, objectivamente, à «suspeita» da sua
nova intervenção por carência de garantia da absoluta imparcialidade nesse
processo” (ob. cit. p. 115).
4.4. Relativamente à relação entre a imparcialidade do julgador e a estrutura
acusatória do processo penal português, no Acórdão n. ° 29/99, publicado no
Diário da República, II Série, de 12 de Março de 1999, este Tribunal teve a
oportunidade de apreciar a influência que a consagração jurídico-constitucional
de tal estrutura opera ao nível legislativo, impondo-se, no essencial, a não
contaminação do juiz de julgamento pela eventual actividade em fases anteriores
do processo. Tal não significa, no entanto, como já se referiu, que a
Constituição exija um juiz de julgamento que não tenha tido qualquer contacto
prévio com o processo. A opção pelo modelo de garantias de imparcialidade do
tribunal cabe, portanto, no âmbito da margem de opção político-legislativa desde
que observada a estrutura essencial do princípio acusatório. E o que desta
decorre é a divisão de tarefas entre quem acusa e quem decide. Escreveu-se assim
no aresto citado:
“7. O sentido e a função das garantias de imparcialidade e isenção do julgador
estão constitucionalmente associados à estrutura acusatória do Processo Penal.
Porém, não basta esta estrutura para que aquelas garantias sejam asseguradas,
nem tem que existir um sistema único e rígido de satisfação de tais garantias.
Assim, a par de uma distinção entre as autoridades judiciais competentes para a
instrução e para o julgamento, pode e deve existir um mecanismo processual de
recusa do juiz que realiza o julgamento (conforme o previsto genericamente no
artigo 43°, n° 1, da versão original do Código de Processo Penal de 1987,
abrangendo especificamente a intervenção noutros processos ou em fases
anteriores do mesmo processo, ou no artigo 43°, n°2, da nova versão, aprovada
pela Lei n° 59/98, de 25 de Agosto). Este mecanismo visa, em face de
circunstâncias graves, assegurar a imparcialidade e a isenção de quem julga.
Mas será igualmente possível que o legislador integre na configuração concreta
da estrutura acusatória do Processo Penal uma rígida separação entre os
intervenientes na fase de inquérito de instrução e as entidades que julguem, ou
até mesmo que retire ao juiz de julgamento toda e qualquer possibilidade de
decretar uma medida de coacção ao mesmo tempo que julga. Uma tal rigidez na
configuração da estrutura acusatória do Processo Penal não é, todavia,
decorrência necessária da configuração constitucional do Processo Penal. O
Processo Penal de estrutura acusatória está fundamentalmente associado à
garantia do princípio do contraditório na instrução e no julgamento (artigo 32°,
n°5, da Constituição).
[...]
Também o facto de o artigo 43.º, n° 2, ter consagrado como fundamento de recusa
do juiz a intervenção do mesmo noutro processo ou em fases anteriores do
processo fora dos casos do artigo 40° não prova, (...) que estas situações
tenham sido equiparadas às do artigo 40°, mas apenas que o legislador quis
remeter para um plano de análise concreta das condições de imparcialidade e
isenção situações que não atingem, por si mesmas, em abstracto, a intensidade da
situação desenhada no artigo 40.º. Com efeito, não só o artigo 43°, n° 2, apenas
prevê a possibilidade da recusa do juiz, não sendo portanto automática nem
obrigatória para o juiz a não participação na audiência de julgamento
(diferentemente do funcionamento do impedimento no processo, artigo 41°, n° 1),
como também se verifica uma diferença substancial no valor dos actos praticados,
que no caso do artigo 40° são nulos (artigo 41°, n° 3) e no caso do artigo 43°
só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da
decisão do processo (artigo 43°, n° 5). Por outro lado, a própria versão
originária do Código de Processo Penal de 1987 não excluía que, em concreto, a
participação do juiz de julgamento em fase preliminar do processo pudesse ser
fundamento de recusa, se o caso concreto fosse subsumível na previsão do artigo
43°, n° 1, isto é, suscitasse “risco de ser considerada suspeita, por existir
motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua
imparcialidade”.
Por todas estas razões, não se poderá atribuir à evolução legislativa qualquer
equiparação valorativa da generalidade de situações de participação do juiz do
julgamento em fases anteriores do processo com as situações de decretação e
cumulativa manutenção da prisão preventiva que fundamentam um impedimento do
juiz do julgamento (artigo 40° do Código de Processo Penal) (…).”
5. Assim, dizer que qualquer intervenção do juiz em sede de inquérito que não se
traduza em actos de mero expediente contraria e põe em causa a imparcialidade do
juiz é, por certo, inadequado, como resulta igualmente da reflexão de Figueiredo
Dias supra transcrita, já que são diversas as finalidades do inquérito e do
julgamento, assim como da instrução. Já o Acórdão n.º 114/95, publicado no
Diário da República, II Série, de 22 de Abril de 1995, concluía que “nem toda a
intervenção do julgador no processo, na fase de inquérito, é, por si, idónea
para comprometer a sua independência e imparcialidade.”
5.1. E se o acabado de referir é pertinente para a intervenção do juiz na fase
de julgamento, por maioria de razão o é para o juiz que, tendo autorizado a
prática de determinados actos durante o inquérito, posteriormente vai ter
intervenção na fase de instrução.
5.2. Assim, se está certo o que vem de ser afirmado, relativamente ao juiz de
julgamento, não se conclui que o juiz que determinou e presidiu a actos no
inquérito esteja impedido de presidir à fase (eventual) da instrução pelo facto
de ter sido invocada a invalidade de alguns desses actos. Destina-se a
instrução, nos termos do artigo 286. °, n. ° 1, do CPP, à “comprovação judicial
da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em a submeter ou não a
causa a julgamento”, sendo que esta é formada pelo conjunto de actos de
instrução que o juiz entenda dever levar a cabo.
5.3. Este juiz que assim actua na instrução, não é, naturalmente, aquele que vai
julgar a causa, pelo que as garantias de defesa, tal como se preconizam no
artigo 32.°, n.° 1, da Constituição, não saem minimamente beliscadas. Não
resulta demonstrado que, da actuação do Exmo. Juiz durante o inquérito, atento o
carácter garantístico que a mesma revestiu, bem como a respectiva frequência,
resultem sérias suspeitas acerca da sua imparcialidade, aos olhos do arguido e
do público em geral, de molde a ser inadequada a direcção da fase de instrução
pelo mesmo. É que tanto quando intervém a autorizar a prática de determinados
actos durante o inquérito como quando surge a dirigir a fase de instrução, actua
enquanto “juiz das liberdades”, isto é, enquanto órgão jurisdicional que
garante, “sem limites, a manutenção dos direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos num patamar constitucional previamente assumido” (Mouraz Lopes, Dos
actos do Ministério Público e do Juiz no inquérito. A relevância do «tempo
razoável» para a prática e o seu controlo, in I Congresso de Processo Penal –
Memórias, Almedina, Coimbra, 2005, p. 205).
5.4. Não tem procedência, portanto, no plano do juízo de constitucionalidade,
por se situar ao nível da opção da lei ordinária, uma argumentação, como a
sustentada pelo Recorrente nas suas alegações para o Tribunal Constitucional já
que, pelas razões aduzidas, o bloco normativo referenciado não contende com o
parâmetro constitucional atinente ao artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
5.5. Note-se neste particular que, considerando a actividade referida pelo Exmo.
Juiz, na fase de inquérito, conforme ele próprio a identifica, a fls. 26,
constata-se que os despachos por si proferidos se destinaram, nomeadamente, a
autorizar intercepções telefónicas, proceder à audição das conversações
interceptadas, determinar as transcrições e validação das mesmas, autorizar a
realização de buscas em escritórios de advogados e estabelecimentos bancários e
a aplicar medidas de coacção.
5.6. Não deixando de ter presente o critério da “intensidade, relevância e
frequência” da intervenção do juiz (cfr. Acórdão n.º 297/2003, citado, e Mouraz
Lopes, ob. cit. pp. 122 e seguintes), não se antevê, ex post factum, que da
actuação identificada resulte qualquer margem de “suspeita” ou hipótese de
“contaminação” que possa abalar o grau de objectividade com que o mesmo
magistrado deve presidir à instrução do processo, já que quer numa quer na outra
fase processual a sua intervenção é marcada pela mesma referência garantística,
assegurando o escrupuloso respeito pelos direitos fundamentais dos diversos
intervenientes no processo.
5.7 Ora, na situação em apreço não se encontra o problema de
inconstitucionalidade, como vem suscitado, focalizado no juiz do julgamento, mas
antes no juiz de instrução, pelo que, por maioria de razão, não se equaciona
sequer tal problemática.
6. E, ainda que se aceitasse integrar no objecto do recurso a norma contida no
artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, atinente à estrutura acusatória do
processo, também a tal parâmetro não assistem as consequências que o Recorrente
pretende ver assacadas: tal estrutura impõe a clara distinção entre a acusação e
o julgador. O que a estrutura acusatória do processo exige é a impossibilidade
de acumulação no mesmo órgão de funções instrutórias e decisórias. Ora, o que
está em causa nos autos é a actuação concomitante do mesmo juiz em determinados
actos durante a fase de inquérito e, posteriormente, durante a instrução. O
recorte jurídico-constitucional da estrutura acusatória não releva, por
conseguinte, para a apreciação da situação presente dos autos.
7. Já no que se refere ao artigo 203.º, da Constituição, não pode o mesmo, de
igual modo, fundamentar o juízo de inconstitucionalidade que o Recorrente
sustenta. Com efeito, do princípio da independência dos tribunais decorre a
proibição absoluta de ingerência de outros poderes do Estado no exercício da
função judicial, encontrando-se os juízes apenas e somente sujeitos à lei. É
certo que esta independência judicial tem como corolário, entre outros, a
imparcialidade do julgador mas esta garantia, como já pudemos constatar, não se
encontra violada.
Resta assim concluir que o artigo 43.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, na interpretação de
que pode ter competência para intervir como juiz de instrução, na fase de
instrução, quem praticou actos cuja invalidade haja sido suscitada pelo arguido
para ser conhecida nesta fase, actos seus que assim julgará na decisão
instrutória, não viola o artigos 32.º, n.º 1, e 203.º, n.º 1, da Constituição.
Assim, negaria provimento ao recurso.
Entrelinhei : “concluir
pela”
Lisboa, 26 de Novembro de 2008
José Borges Soeiro