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Processo n.º 457/04
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acórdão na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I- Relatório
1. A. e outros, todos melhor identificados nos autos, instauraram,
nos Juízos Cíveis da Comarca do Porto, uma acção contra B. Futebol Club,
pedindo, além do mais, a condenação do réu a ver denunciado o contrato de
arrendamento de um prédio, que foi arrendado em 1945, no estado de inculto, para
ser usado para a prática desportiva.
A acção foi julgada procedente no tribunal de 1.ª instância, sendo o
réu condenado, além do mais, “a ver denunciado o contrato de arrendamento sub
judice para o termo do prazo da respectiva renovação e a entregar aos autores o
prédio locado devoluto e livre de pessoas e coisas”.
2. Desta sentença recorreu o réu, vindo o Tribunal da Relação do
Porto a julgar improcedente a apelação e a confirmar a sentença recorrida, pelo
acórdão de fls. 316 e segs.
Este aresto, na parte que importa considerar para efeitos do recurso
de constitucionalidade, fundamentou-se no seguinte:
«(…)
B – Atentemos agora na segunda questão.
Na sentença recorrida entendeu-se que o contrato de arrendamento que os AA.
pretendem denunciar tem a natureza da arrendamento rústico não sujeito a regimes
especiais, o que, por virtude da aplicação do disposto – no art.6°, n°1, do
Regime de Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo DL 321-B/90, de 15.10,
determinava que as normas da denuncia referidas nos art.1054°, n°1 e 1055° do
Código Civil (CC) se aplicavam ao caso concreto em apreço, com a consequente
atribuição aos AA. senhorios do direito de denunciar o contrato.
O apelante entende que o arrendamento em causa reveste a natureza de
arrendamento de prédio urbano em vista do respectivo objecto, da personalidade
jurídica do locatário e também pela sua destinação a actividade de natureza
comercial.
Cremos que não tem razão.
É sabido que é a lei vigente na altura da celebração do contrato de arrendamento
que regula a sua forma e a sua natureza urbana ou rústica — ver, neste sentido e
por todos, o acórdão desta Relação de 93.11.29 “in” CJ 1993 V 234. A lei vigente
sobre a matéria de arrendamento de prédios rústicos e urbanos à altura em que
foi celebrado o contrato em causa no presente processo era o Decreto n°5.411, de
19.04.17.
De acordo com o n.° 1 do art.1° deste diploma entendia-se por prédio urbano “o
edifício incorporado no solo e o terreno que lhe servia de logradouro e que não
seja de valor superior; e por prédio rústico o solo ou terreno que não faz parte
de um prédio urbano e os edifícios que nele estejam incorporados e que não sejam
de valor superior”.
A natureza rústica ou urbana do arrendamento tinha, assim, que ser definida de
acordo com estes conceitos.
No caso concreto em apreço, o arrendamento teve por objecto “um campo situado na
rua do Pinheiro Manso” comprometendo-se a Direcção do Réu a não deitar escórias
no terreno como arranjo e preparação de campo de jogos, a dar passagem para a
Rua …, através do campo ao inquilino do prédio da Rua …, n. ° .., com o qual já
tem comunicação, a vedar o terreno de forma a evitar possíveis prejuízos ao
referido inquilino e a tornar a pôr o campo da mesma maneira em que o encontrou,
ficando estabelecido que todas as benfeitorias feitas no referido campo, serão
pertença da senhoria, sem que esta tenha de indemnizar o inquilino quando este
deixe o aluguer do campo, comprometendo-se a senhoria a permitir que a Direcção
do Réu execute e construa as obras que julgar necessárias para o bom
funcionamento do Clube.
Ora, sendo assim e de acordo com os conceitos de prédio rústico e prédio urbano
acima referidos, é manifesto que o arrendamento em causa tinha que ser
classificado como rústico e nunca como urbano, na medida em que teve por objecto
um prédio rústico e não um prédio urbano.
Tratando-se de um arrendamento de um prédio rústico, no entanto, não se
destinava a fins agrícolas, pecuários ou florestais, mas antes ao “arranjo e
preparação de campo de jogos”.
Nem a fins comerciais ou industriais, porque para isso era necessário que
incidisse sobre um estabelecimento comercial ou industrial, entendendo-se como
tal “todo o prédio urbano ou parte dele, que o comerciante ou industrial tome de
arrendamento para o exercício da sua profissão” – cfr. art. 52° do citado
Decreto.
Ora não consta que na altura em que foi celebrado o contrato – nem sequer
actualmente – o réu fosse uma entidade comercial ou industrial e exercesse no
arrendado uma actividade da mesma natureza.
O que se retira do contrato é que o réu arrendou o prédio para nele construir um
campo de jogos.
Sendo que é notório que um campo de jogos se destina directamente ao exercício
de praticas desportivas e não ao exercício de comércio ou indústria.
Ora, como se refere no Ac. STJ de 99.03.03 “in” CJ STJ 1999 I 79, citando
Pereira Coelho “in” Arrendamento 1988 p.4l, uma actividade comercial ou
industrial pressupõe uma actividade de mediação nas trocas ou uma actividade de
produção (extracção ou transformação) ou circulação de riqueza.
Do contrato em análise, nenhuma destas actividades é mencionada.
As obras de “arranjo e preparação do campo de jogos” que a senhoria autorizou
não alteraram o objecto do arrendamento, que foi, como se disse, o “campo
situado na rua do Pinheiro manso”.
A qualificação de um contrato de arrendamento não deve basear-se na utilização
que o arrendatário tenha dado ao prédio arrendado, mas antes no conteúdo das
cláusulas contratuais.
Na verdade e como se diz no acórdão desta Relação de 95 05.22 “in” CJ 1995 III
219, para a qualificação da natureza do contrato não importam as obras
implantadas naquele terreno pelo réu, pois tais obras têm que ser classificadas
como benfeitorias autorizadas pela senhoria, que não podiam descaracterizar o
contrato como sendo de arrendamento de prédio rústico, definido este nos termos
acima referidos e existente à altura da celebração do contrato.
Sendo que no próprio contrato em causa as partes acordaram em que o réu se
comprometia “a tornar a pôr o campo da mesma maneira em que o encontrou na
ocasião do presente arrendamento, ficando estabelecido que todas as benfeitorias
feitas no referido campo, serão pertença da senhoria, sem que esta tenha de
indemnizar o inquilino quando este deixe o aluguer do campo”.
Ou seja, o próprio R. acordou que as obras a efectuar eram benfeitorias a um
prédio rústico.
Sempre se dirá e como também se refere naquele acórdão, que se se admitisse que
se pudesse alterar a natureza do contrato, de acordo com as obras e utilização
posteriores diferentes da nele estabelecida, teríamos que considerar, por
exemplo, como comercial um arrendamento de uma casa para habitação onde se
passasse a exercer o comércio.
No acórdão desta Relação de 93.1 1.29 acima citado decidiu-se até que “é de
natureza rústica o contrato pelo qual alguém dá de arrendamento em 79.01.17,
pelo prazo de 100 anos, um terreno de pedreira e mato para nele os arrendatários
edificarem, no prazo de três anos a contar desta data, uma casa própria para
habitação”
Concluímos, pois, que o contrato de arrendamento em causa revestia a natureza de
um contrato de arrendamento rústico não rural nem florestal, para fim diverso do
exercício do comércio, indústria ou profissão liberal.
Trata-se, pois, de um arrendamento rústico não sujeito a regimes especiais.
Neste sentido, além do acórdão acima referido desta Relação, o acórdão da RC de
96.12.10 “in” CJ 1996 V 40, Aragão Seia “in” Arrendamento Urbano anotação 2ª ao
art.6° do RAU, Pires de Lima e Antunes Varela “in” CCAnotado 2ª Ed., anotação 1ª
ao art.1083°, Carneiro da Frada “in” O Novo Regime do Arrendamento Urbano:
sistematização geral e âmbito material da aplicação – Revista da Ordem dos
Advogados Abril de 1991 Ano 51°, p.l75; Pereira Coelho “in” Breves Notas ao
Regime de Arrendamento Urbano – Revista de Legislação e Jurisprudência Ano 125°,
p.3822.
Qualificado o contrato da sobredita forma, cuidemos agora do regime legal que
lhe é aplicável.
À luz da lei actual, a tal contrato de arrendamento é aplicável o disposto no
art. 6°, n°1, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Dec. Lei 321-8/90
de 15/10 (doravante designado por RAU), já que, como vimos, se trata de um
arrendamento rústico não rural nem florestal e para fim diverso do exercício do
comércio, indústria ou profissão liberal do arrendatário – no caso, para campo
de jogos – com a consequente exclusão da aplicação a tal contrato do regime do
arrendamento urbano, salvo algumas excepções referidas naquele normativo.
Até à entrada em vigor daquele DL os arrendamentos rústicos não sujeitos a
regimes especiais, para efeito de regulamentação, eram equiparados aos urbanos
por força do disposto no art.1083°, n.° 1 do C.Civil.
A partir da entra em vigor do RAU, cessou aquela equiparação e aqueles
arrendamentos passaram reger-se apenas pelo regime geral da locação, embora lhe
sejam também extensivas algumas disposições do regime do arrendamento urbano,
conforme se estabelece no citado n°1 do art.6° do mesmo diploma.
Deduz-se, designadamente, do âmbito de transposição de regimes fixados por esta
norma, que estes arrendamentos não aparecem agora sujeitos ao principio da
renovação obrigatória do contrato no termo do prazo e às limitações impostas à
resolução e denúncia a que o arrendamento urbano continua submetido.
Quanto a esta última matéria, rege exclusivamente o art. 1055° do Cód. Civil,
norma legal que, como é sabido, consagra a livre denúncia por qualquer dos
contraentes, razão pela qual, como bem entendem os autores, os referidos
contratos de arrendamento podem ser livremente denunciados pelo senhorio, findo
que seja o prazo do contrato ou da respectiva renovação.
Põe-se agora o problema de saber se essa inovação, qual seja, a da possibilidade
da denúncia introduzida pelo regime do citado art. 6° do RAU, se aplica aos
arrendamentos anteriores a 15 de Novembro de 1990, data do início da vigência
deste diploma, como é o nosso caso, ou, diversamente, se apenas se aplica aos
contratos celebrados a partir dessa data.
Embora a questão seja controversa, afigura-se-nos ser de optar pela primeira das
referidas posições.
Na verdade e conforme refere Pereira Coelho “in” ob. cit. p.260, nota 11, a
solução proveniente do art.6°, n°1, do RAU vale mesmo quanto a arrendamentos
anteriores a 15 de Novembro de 1990, “pois a nova lei, que concedeu ao senhorio
um tal direito de denúncia, dispõe directamente sobre o conteúdo da relação
locativa independentemente do contrato de arrendamento em que a mesma relação se
originou (cf. art. 12°, n°2, 2ª parte, do Cód. Civil).
Na verdade, continuando a citar o referido autor, não se trata de um efeito do
contrato, de um efeito das declarações de vontade das partes nele exaradas mas,
antes, de um efeito decorrente da própria lei que, independentemente do que haja
sido acordado entre as partes ou do seu silêncio a tal propósito, (cf. art.51°
do RAU), alterou o estatuto dos senhorios nos arrendamentos de que se trata,
conferindo-lhes um amplo direito de denúncia.
De resto, esta doutrina, que é também sufragada por Pais de Sousa “in” Anotações
ao Regime de Arrendamento Urbano, 6ª Ed. p. 77) e está conforme à lição de
Baptista Machado, autoridade incontestada neste domínio – cf.. “Sobre a
Aplicação no Tempo do Novo Código Civil” p. 122 – conforme se refere no acórdão
esta Relação 95.05.22, acima aludido, no qual se defende com clareza, como já se
deixou dito, que “o novo regime da possibilidade de denúncia dos contratos de
arrendamento rústico não rurais, para fim diverso do exercício do comércio,
indústria ou profissão liberal, resultante do regime do art. 6°, n°1, do Regime
do Arrendamento Urbano, é de aplicação imediata aos contratos de pretérito”.
Também neste sentido vem a jurisprudência decidindo.
Assim, entre outros, além do citado acórdão desta Relação de 95.02.22, os
acórdãos da Rel. de Lisboa de 93.02.11 “in CJ, 1993 I 139 e de 94.02.18 “in”, CJ
1994 I 120).
Ou seja e sintetizando, se a lei nova se impõe e sobrepõe à vontade das partes
mesmo quando estas tenham acordado algo de diferente quanto a tal matéria ou
sobre ela nada tenham dito, por maioria de razão se imporá concluir pela sua
aplicação quando as partes tenham previsto expressamente a livre denúncia do
contrato por qualquer uma delas, como sucedeu no caso do contrato de
arrendamento a que os autos se reportam.
Outrossim, ainda se dirá que no caso “sub judice”, mesmo que a denúncia se
regesse pela “lex contractus”, o arrendamento podia ser denunciado.
Na verdade, refere-se na cláusula 3ª do contrato em causa que “o prazo de
duração é de um ano (...) podendo ser renovado em períodos de um ano.”
Estabelece-se, pois, a possibilidade de o contrato não ser renovado, ou seja,
denunciado.
O que, no que dizia respeito ao senhorio, era permitido pelo disposto no art.70°
do citado Decreto 5.411, onde se estabelecia que “o senhorio, que não queira a
continuação do arrendamento, requererá a citação do arrendatário para efectuar o
despejo no fim do contrato”.
Concluímos, pois, que os autores apelados tinham o direito de denunciar o
contrato e arrendamento em causa no presente processo.
C – Atentemos na terceira questão.
Entende o apelante que padece de inconstitucionalidade orgânica a interpretação
do art.6°, n°1, do RAU segundo a qual os “arrendamentos de prédios rústicos”
previstos e subsumíveis ao disposto no Decreto 5.411 correspondem aos
“arrendamentos não sujeitos a regimes especiais”, em violação da reserva de
competência da Assembleia da Republica quanto à definição do regime geral
relativo ao arrendamento urbano definida na Constituição, no art.168°, n°1, al.
h), porquanto ao abrigo do citado decreto, vigente à época da celebração do
contrato em causa, os “arrendamentos de prédios rústicos” constituíam
arrendamento rural.
Cremos que não tem razão.
A Lei n°42/90, de 10.08, concedeu ao Governo autorização para alterar o regime
do arrendamento urbano
E isto porque, face ao disposto na al. h) do n°1 do art.168° da Constituição, á
altura da aprovação do RAU – hoje art. 165° – é da exclusiva competência da
Assembleia da Republica, salvo autorização ao governo, legislar sobre o regime
geral do arrendamento urbano e rural.
Conforme refere Carneiro da Frada “in” ob. cit. p. 175,”devidamente
interpretada, parece que esta reserva abrange os arrendamentos rústicos não
sujeitos a regimes especiais. Embora na conceptologia técnica do direito civil
estes não sejam nem urbanos nem rurais, certamente que patenteiam aquela
constelação de interesses que justificou a instituição daquela reserva. Seria
irrazoável pretender atribuir-se à linguagem utilizada pelos deputados
constituintes o sentido preciso que os seus termos assumem no direito civil”.
E continuando, diz o mesmo professor:
“Acontece também que a lei de autorização legislativa que precedeu o novo
diploma se limita a referir a atribuição ao Governo de competência para alterar
o regime jurídico do arrendamento urbano.
Desta vez, porém, a índole da lei, da qual se espera a circunscrição exacta da
competência legislativa concedida mas sobretudo o elenco minucioso das
directrizes a que a alteração em vista devia obedecer, pelo seu art.2°, fazem
presumir que o qualificativo “urbano” foi pensado na sua acepção precisa e
restrita.
O problema é pois o de saber se o Governo se desviou das competências que lhe
foram atribuídas e invadiu as da Assembleia ao regulamentar também os
arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais.
Ora pode sustentar-se que a lei de autorização legislativa atribuiu ao menos de
forma implícita competência para alterar o regime desses arrendamentos.
Exprimo deste modo a necessidade de interpretar razoavelmente essa lei.
Este ponto de partida objectivista é tanto mais justificado quanto não há
concerteza dados precisos de que a intenção da assembleia legislativa excluiu
positivamente a modificação do regime dos arrendamentos rústicos, para
satisfazer a adequação material-valorativa recíproca dos dois regimes que é
pedida pela unidade da ordem jurídica.
Portanto, ao menos dentro destes parâmetros parece que a lei de autorização
legislativa criou efectivamente um espaço de competência do Governo no sector
dos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais”
Concordamos inteiramente com o referido mestre.
Face ao disposto na al. a) do art. 2º da Lei de Autorização citada, o Governo
estava autorizado a fazer a “codificação dos diplomas existentes no domínio do
arrendamento urbano, por forma a colmatar dúvidas, remoer contradições e
solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua
multiplicidade”.
Ora, partindo de um ponto de vista objectivista, como o referido pelo Prof.
Carneiro da Frada acima aludido, não vemos razões para não interpretar este
comando no sentido de o Governo estar autorizado a alterar todo o regime
jurídico do arrendamento urbano, nomeadamente com o relacionado com a matéria
dos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais.
Nada na letra da lei da autorização legislativa nem no pensamento do legislador,
reconstituído este “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo
que é aplicado” – art. 9º, n.º 1, do C.Civil – nos conduz à conclusão que aquele
legislador não autorizou que o Governo legislasse sobre tal matéria.
Tendo sempre em mente que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete
presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir
o seu pensamento em termos adequados” – n.º 3 do referido artigo.
Entende também o apelante que a interpretação do art. 6.º, n.º 1 do RAU, acima
referida, com a consequência de assistir ao senhorio o direito de denunciar o
contrato de arrendamento, viola expressamente o disposto na lei de autorização
legislativa na medida em que violaria o comando estabelecido na al. c) do seu
art. 2º, ou seja, a “preservação das regras socialmente úteis que tutelam a
posição do arrendatário”.
Não vemos como sustentar tal posição.
E que tal preservação, em nosso entender, aplica-se apenas para o caso de estar
em jogo um direito fundamental, constitucionalmente protegido, como é o direito
à habitação.
Ou seja, quando o arrendamento se destine a habitação.
Na verdade, não se compreenderia por que razão o legislador, não estando em
causa o direito à habitação, não poderia alterar o regime dos arrendamentos para
fins não habitacionais – terminando com a equiparação do regime dos
arrendamentos rústicos não rurais aos dos arrendamentos urbanos – após
ponderação dos interesses conflituantes em jogo – o do arrendatário e o do
senhorio – retirando peso à tutela do direito do arrendatário.
Considerou o legislador que os interesses de um arrendatário daquele tipo, como,
por exemplo, do arrendatário de um prédio rústico para fins desportivos, do
arrendatário de um prédio rústico destinado a fins comerciais ou industriais,
como seja, estaleiros de obras, armazéns de materiais e equipamentos, extracção
de areia ou de pedra, em confronto com o interesse do senhorio, não merecia
continuar a ter a protecção dos arrendamentos vinculísticos proveniente da
equiparação aos arrendamentos urbanos, estabelecida no antigo n°1 art. 1083° do
C. Civil.
Não se trata aqui de apreciar a bondade da inovação, apenas se trata de se
afirmar que esta está contemplada na autorização legislativa.
O regime instituído pelo art.6°, n°1, do RAU não viola, pois, qualquer regra
socialmente útil que tutele a posição do arrendatário.
Concluímos, pois, que o art.6°, n°1, na interpretação de que se aplica aos
arrendamentos de prédios rústicos para campos desportivos não está ferido de
inconstitucionalidade orgânica.
(…)»
Notificado, o recorrente arguiu a nulidade deste acórdão, com
fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, o
que foi indeferido.
3. Inconformado com a decisão da Relação, o recorrente B. Futebol
Clube interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e para Tribunal
Constitucional.
Após indeferimento de reclamação do despacho que não admitiu o
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido o despacho de fls.
418, admitindo o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal o relator proferiu despacho (fls. 421), ao abrigo do
artigo 75.º-A da LTC, convidando mo recorrente a precisar o sentido das normas
submetidas a apreciação de constitucionalidade.
Em resposta o recorrente disse pretender ver julgada
inconstitucional:
«a) a dimensão normativa que resulta do artigo 6° do Regime do Arrendamento
Urbano aplicado ao caso «sub iuditio», segundo a qual, no enquadramento dos
arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais, a lei de autorização
legislativa de 1990 criou um espaço de competência do Governo no sector dos
«arrendamentos de prédios rústicos» subsumíveis ao disposto no Decreto nº 5411 ,
de 17 de Abril de 1919, vigente ao tempo da celebração do contrato de
arrendamento, nos expressos termos do qual os «arrendamentos de prédios
rústicos» constituíam arrendamento rural;
e, bem assim,
b) a dimensão normativa que resulta do artigo 6º do Regime do Arrendamento
Urbano aplicado ao caso «sub iuditio», segundo a qual, aplicado aos
arrendamentos de prédios rústicos para campos desportivos, ficam preservadas as
regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário anterior a 1990,
resultantes da direito à cultura física e ao desporto, art. - 79°, n.° 2, da
Constituição e do disposto na alínea c) do art. 2° da lei de autorização
legislativa, Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto.
Em crise, a reserva de competência da Assembleia da República quanto à definição
do regime geral relativo ao arrendamento rural e urbano disposta na
Constituição, art. 168º, n.º 1, al. h).»
4. Determinado o prosseguimento do recurso, o recorrente apresentou
as suas alegações que concluiu do seguinte modo:
1) Padece de inconstitucionalidade orgânica a interpretação do art. 6°, n°1, do
Regime do Arrendamento Urbano segundo a qual os «arrendamentos de prédios
rústicos» previstos e subsumíveis ao disposto no Decreto n°5.411, de 17 de Abril
de 1919, correspondem aos «arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes
especiais», em violação da reserva de competência da Assembleia da República
quanto à definição do regime geral relativo ao arrendamento rural e urbano
disposta na Constituição, art.165°, n°1, al. h), porquanto ao abrigo do citado
Decreto, vigente à época da celebração do contrato sub iuditio, os arrendamentos
de prédios rústicos» constituíam arrendamento rural.
2) A norma do art. 6°, n°1°, do RAU, assim interpretada, escapa ao âmbito da
autorização legislativa disposta na Lei n°42/90, de 10 de Agosto de 1990, ou em
qualquer outra, não podendo ser aplicada por padecer de inconstitucionalidade
orgânica, em violação da reserva de competência da Assembleia da República
quanto à definição do regime geral relativo ao arrendamento rural e urbano
disposta na Constituição, art.165°, n°1, al. h), o que acarreta a repristinação
da norma disposta no art.1095° do Código Civil de 1966, segundo a qual o
senhorio não goza do direito e unilateralmente denunciar o contrato.
3) Deverá vir julgada inconstitucional, nos aludidos termos - por violação do
disposto no artigo 165°, n..° 1, alínea h), da Constituição (art.168°, n°1, al.
h) da Constituição na versão anterior) -, a norma constante do n°1 do artigo 6°
do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n°321-B/90, de 15 de
Outubro, com as legais consequências.
SEM PRESCINDIR,
4) A norma disposta no art. 6°, n°1, do Regime do Arrendamento Urbano aprovado
pelo Decreto-Lei n°321- B/90, de 15 de Outubro, interpretada no sentido
decidido, com a consequência de assistir ao senhorio o direito de denunciar o
contrato de arrendamento, viola expressamente o disposto na lei de autorização
legislativa que comandou que «as alterações a introduzir ao abrigo da presente
autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes: ... c)
Preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário»
(art. 2°, al. c), da Lei n°42/90, de 10 de Agosto), nas quais naturalmente se
enquadram as destinadas a proteger o direito à cultura física e ao desporto,
constitucionalmente tutelado de modo tal que incumbe ao Estado, em colaboração
com associações desportivas como a recorrente (fundada em 1922 e declarada de
utilidade pública desde 1982 - cf.. Diário da República, II série, n°278, de 2
de Dezembro de 1982, 9172), estimular e apoiar a respectiva prática (cf.. artigo
79°, n°2 da Constituição).
5) A norma do art. 6°, n.°1º, do RAU aprovado pelo Decreto-Lei n°321-8/90, de 15
de Outubro, assim interpretada, escapa ao âmbito da autorização legislativa
disposta na Lei n°42/90, de 10 de Agosto de 1990, ou em qualquer outra, não
podendo ser aplicada, por padecer de inconstitucionalidade orgânica, em violação
da reserva de competência da Assembleia da República quanto à definição do
regime geral relativo ao arrendamento rural e urbano disposta na Constituição,
art.165°, n°1, al. h).
6) Deverá, por isso, vir julgada inconstitucional, nesta dimensão normativa -
por violação do disposto no artigo 165°, n.° 1, alínea h), da Constituição
(art.168°, n°1, al. h) da Constituição na versão anterior) -, a norma constante
do n°1 do artigo 6° do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei
n°321-B/90, de 15 de Outubro, com as legais consequências.»
Os recorridos contra-alegaram, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I - Não padece de inconstitucionalidade orgânica a interpretação do art. 6.°
n.° 1 do Regime do Arrendamento Urbano segundo a qual «os arrendamentos de
prédios rústicos previstos e subsumíveis ao disposto no Decreto nº 5411, de 17
de Abril de 1919, correspondem aos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes
especiais», como ficou amplamente demonstrado.
II - A norma do art. 6.°, n.° 1, do RAU, assim interpretada está englobada no
âmbito da autorização legislativa disposta na Lei n.° 42/90 e não padece de
inconstitucionalidade orgânica pois não violou a reserva de competência da
Assembleia da República, não sendo de omitir a repristinação da norma disposta
no art. 1095 do CC de 1966, por esta ter sido revogada e sobre ela se sobrepor a
lei vigente ao tempo do contrato - lex contractus.
III - Tal norma não deverá ser julgada inconstitucional pois não se verifica
violação do disposto no art. 165.°, n.° 1, alínea h) porquanto à Assembleia da
República e, por sua vontade, à necessária competência sucedeu o Governo.
IV - A alínea c) do n.° 2 da Lei n.° 42/90 - Preservação da regras socialmente
úteis que tutelam a posição do arrendatário – não tem cabimento no art. 79º da
Constituição, antes e logicamente visa o arrendamento para habitação e
consequente protecção da situação dos seus inquilinos e nelas não se enquadram
as destinadas a proteger o direito à cultura física e ao desporto, que nada tem
a ver com situações de inquilinato.
V – A norma do art. 6.°, n.° 1 do RAU está incluída no âmbito da autorização
legislativa, o que, aliás, decorre da alínea a) do art. 2.° e do art. 3.° da Lei
n.° 42/90 de 10 de Agosto.»
Cumpre decidir
II- Fundamentos
5. Está em causa no presente recurso a constitucionalidade de uma
norma extraída do n.º 1 do artigo 6.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que é do seguinte teor:
ARTIGO 6.º
Aplicação subsidiária
1 – Aos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais e aos
arrendamentos e subarrendamentos referidos nas alíneas a) a e) do n.° 2 do
artigo anterior aplica-se o regime geral da locação civil, bem como o disposto
nos artigos 2.° a 4.°, 19º a 21.º, 44.° a 46.°, 74.° a 76.° e 83.° a 85º, 88.° e
89.º do presente diploma, com as devidas adaptações.
2- (…)
Alegam os recorrentes que a norma extraída deste preceito, quando
interpretado no sentido de que os arrendamentos de prédios rústicos subsumíveis
ao disposto no Decreto n.º 5.411, de 17 de Abril de 1919 [em vigor à data da
celebração do contrato] correspondem a arrendamentos rústicos não sujeitos a
regimes especiais, é organicamente inconstitucional, por violação da reserva de
competência da Assembleia da República quanto à definição do regime geral do
arrendamento rural e urbano, prevista no actual artigo 165.º, n.º 1, alínea h)
da Constituição.
No seu entendimento tal norma, assim interpretada:
- Não está compreendida no âmbito da autorização legislativa conferida na Lei
n.º 42/90, de 10 de Agosto, ao abrigo da qual o Governo editou o R.A.U.;
- E viola o dever de “preservação das regras socialmente úteis que tutelam a
posição do arrendatário”, constante do artigo 2.º, alínea c) desta Lei, regras
estas que o legislador estava obrigado a observar nas alterações a introduzir ao
abrigo daquela autorização legislativa e nas quais se inclui as de protecção da
cultura física e do desporto.
6. De acordo com a matéria de facto apurada, o prédio em causa foi
dado de arrendamento ao réu, em 19 de Maio de 1945, pelo período de um ano, com
início em 1 de Outubro de 1945 e termo em 30 de Setembro de 1946, podendo ser
renovado por períodos de um ano, para ser preparado pelo arrendatário e ser por
este utilizado para a prática desportiva.
À data da celebração do contrato o regime do arrendamento de prédios
rústicos e urbanos era o previsto no Decreto n.º 5.411, de 19 de Abril de 1919,
que, no seu artigo 1.º, definia como sendo prédio urbano “o edifício incorporado
no solo e o terreno que lhe servia de logradouro e que não seja de valor
superior; e por prédio rústico o solo ou terreno que não faz parte de um prédio
urbano e os edifícios que nele estejam incorporados e que não sejam de valor
superior”.
Entendeu-se na sentença da 1ª instância e no acórdão recorrido que a
forma e a natureza urbana ou rústica do arrendamento era determinada pela lex
contractus, que de acordo com esta o arrendamento em causa tinha que ser
qualificado como arrendamento rústico. Mais se assentou em que o arrendamento
não se destinava a fins agrícolas, pecuários ou florestais, retirando-se do
contrato que o prédio foi arrendado para nele se construir um campo de jogos,
destinando-se directamente a práticas desportivas e não ao exercício de comércio
e indústria.
De tudo isto se concluiu que o contrato de arrendamento revestia a
natureza de arrendamento rústico não rural nem florestal, para fim diverso do
exercício do comércio, indústria ou profissão liberal, ou seja, que era um
arrendamento de prédio rústico não sujeito a regimes especiais [Refira-se que
tal qualificação é concordante com o entendimento consagrado na doutrina (cf.
aragão seia, Arrendamento Urbano, anotação 2ª ao art.6° do RAU, Pires de Lima e
Antunes Varela, CCAnotado 2ª Ed., anotação 1ª ao art.1083°, carneiro da frada, O
novo regime do arrendamento urbano: Sistematização Geral e Âmbito Material de
Aplicação, Revista Da Ordem dos Advogados, ano 51 (1991), p. 175; Pereira
Coelho, Breves Notas ao Regime de Arrendamento Urbano – Revista de Legislação e
Jurisprudência Ano 125°, n.º 3822, p. 257 e segs.), e na jurisprudência (cf.,
entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10 de Dezembro de
1996, in CJ, 1996, V, 40, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de
Setembro de 2003, disponível em http://www.dgsi.pt/. Neste último aresto estava
em causa, à semelhança do que sucede nos presentes autos, o arrendamento de um
prédio rústico para fins desportivos – instalação de campo de jogos]
Ora, a classificação dada ao contrato como de arrendamento rústico
não rural nem florestal, para fim diverso do exercício do comércio, indústria ou
profissão liberal, ou seja um arrendamento [de prédio] rústico não sujeito a
regimes especiais, tal como delimitada no acórdão recorrido, não é passível de
sindicância pelo Tribunal Constitucional, por não consistir numa questão de
constitucionalidade normativa, mas na mera aplicação dos factos provados ao
regime jurídico infra-constitucional que o tribunal da causa entendeu aplicável.
7. Fixada a natureza jurídica do contrato em causa segundo a
natureza do prédio e a finalidade do arrendamento, entendeu-se no acórdão
recorrido ser-lhe imediatamente aplicável o regime previsto no n.º 1 do artigo
6.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de
15 de Outubro, com a consequente exclusão da submissão de tal contrato ao regime
do arrendamento urbano.
Sucede que, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 321-B/90, os
arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais eram equiparados aos
arrendamentos urbanos por força do disposto no n.º 1 do artigo 1083.º do Código
Civil (na redacção vigente até à entrada em vigor do RAU). Com a entrada em
vigor do R.A.U., cessou tal equiparação, passando aqueles arrendamentos a ficar
submetidos ao regime geral da locação, embora lhes sejam extensivas algumas
disposições do regime do arrendamento urbano. No entendimento de que, no
arrendamento predial desta natureza, o interesse do arrendatário não justifica
tutela idêntica à que lhe é concedida pelas normas do arrendamento urbano, o
legislador afastou aqui, não só a renovação obrigatória do contrato (artigo
68.º, n.º 2), mas também o carácter judicial da resolução fundada em não
cumprimento por parte do arrendatário (artigo 63.º, n.º 2) e o numerus clausus
das respectivas causas (artigo 64.º), o direito de preferência do arrendatário
na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado (artigo 47.º) o
direito a novo arrendamento quando o contrato caduque por morte do arrendatário,
etc. (cf. Pereira Coelho, loc. cit., p. 260).
Assim, a norma do n.º 1 do artigo 6.º do R.A.U., mesmo circunscrita aos
arrendamentos rústicos não rurais nem florestais para outro fim que não seja o
exercício do comércio, indústria ou profissão liberal – domínio de regulação que
correntemente se exemplifica com os arrendamentos para campos de jogos ou de
treinos, picadeiros, recintos de exposições ou de diversões ao ar livre e
utilizações semelhantes de prédios rústicos –, introduz uma significativa
inovação no regime destes arrendamentos, que passaram a poder ser livremente
denunciados pelo senhorio findo o prazo do contrato ou da respectiva renovação,
nos termos gerais do artigo 1055.º do Código Civil. Uma solução que passa a
valer, no entender do acórdão recorrido, também para os contratos celebrados
antes da entrada em vigor da lei [Cf., no mesmo sentido: Pais de Sousa, ob.
cit., p. 76 e 77, e Carneiro da Frada, ob. cit., p. 174 e segs.; em sentido
contrário: Menezes Cordeiro e Castro Fraga, Novo Regime do Arrendamento Urbano,
1990. A orientação do acórdão recorrido, foi também a adoptada no acórdão da
Relação do Porto, de 22 de Maio de 1995 (in CJ 1995, III, 219), no qual se
defendeu que o novo regime da possibilidade de denúncia dos contratos de
arrendamento rústico não rurais, para fim diverso do exercício do comércio,
indústria ou profissão liberal (no caso o arrendamento destinava-se à instalação
de um campo hípico e instalações inerentes), resultante do regime do n.º 1 do
artigo 6.° do Regime do Arrendamento Urbano, é de aplicação imediata aos
contratos de pretérito].
8. Importa, pois, averiguar se a norma do n.º 1 do artigo 6.º do
R.A.U., tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido, ou seja, no sentido de
que o regime estabelecido neste preceito é aplicável aos arrendamentos rústicos
não rurais nem florestais para fim diverso do exercício do comércio, indústria
ou profissão liberal, celebrados na vigência do Decreto n.º Decreto n.º 5.411,
de 17 de Abril de 1919:
1.º - Viola a reserva de competência da Assembleia da República
quanto à definição do regime geral do arrendamento rural e urbano, ao tempo
prevista no artigo 168.º, n.º 1, alínea h) da Constituição, por ser matéria
dessa reserva e não caber no âmbito da autorização legislativa conferida na Lei
n.º 42/90, de 10 de Agosto;
2.º - Viola o dever de “preservação das regras socialmente úteis que
tutelam a posição do arrendatário”, constante do artigo 2.º, alínea c) desta
Lei, na medida em que desprotege o direito à cultura física e ao desporto
(artigo 79.º da Constituição).
O que implica responder às seguintes subquestões:
- Se os arrendamentos de prédios rústicos, não destinados a fins
rurais ou a comércio, indústria ou profissão liberal, se incluíam no âmbito da
reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista na
alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (na redacção vigente à data
da aprovação do R.A.U.; actualmente, alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP);
- Perante resposta positiva, se cabe no objecto e extensão da
autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, legislar
sobre tal espécie de arrendamento;
- Por último, se a norma em causa, na medida em que conduz a que o
senhorio possa denunciar livremente o arrendamento para o termo do prazo
contratual ou da renovação em curso, respeita o sentido da autorização
legislativa constante da alínea c) do artigo 2.º da Lei de autorização
legislativa.
9. A partir da revisão constitucional de 1982, passou a ser da
exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo
(reserva relativa de competência legislativa), legislar sobre o “regime geral do
arrendamento rural e urbano” (artigo 168.º, n.º 1, alínea h), nas versões de
1982 e 1989, artigo 165.º, n.º 1, alínea h), na versão de 1997).
Como é sabido, o alcance da reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República não é idêntico em todas as matérias, sendo possível
distinguir três níveis: a) um nível mais exigente, em que toda a disciplina
legislativa da matéria é reservada à Assembleia da República; b) um nível menos
exigente, em que a reserva da Assembleia da República se limita ao regime geral
[alíneas d), e), h) e p)], ou seja, em que compete à Assembleia da República
definir o regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo de regimes especiais
que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias
regionais); c) um terceiro nível, em que a competência da Assembleia da
República é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico
da matéria [alíneas f), g), n) e u)].
Quanto ao arrendamento, a reserva é de grau intermédio, reportado ao regime
geral, ou seja ao regime “comum ou normal” da matéria, sem prejuízo de regimes
especiais, que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas
assembleias legislativas das regiões autónomas), desde que respeitados os
princípios fundamentais do regime geral, entre os quais se conta “seguramente”,
segundo observam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, págs. 670, 673 e 674), “o regime da
celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das
partes”. Como dizem os mesmos autores, “[e]m qualquer caso, trata-se, entre
outras coisas, de dar execução, às directivas constitucionais do artigo 65.º n.º
3 (arrendamento urbano) e do artigo 99.º, n.º 1 (arrendamento rural)”
O Tribunal Constitucional já explicitou, em diversas ocasiões, o que
se deve considerar abrangido na reserva assim definida. Desde logo, no acórdão
nº 77/88 (publicado no Diário da República, I série, de 28 de Abril de 1988), em
que se escreveu:
«Refere-se ele [o preceito do artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição]
ao «regime geral do arrendamento rural e urbano» - numa fórmula que encontra
paralelo na das alíneas d) e e) do mesmo artigo (ambas tratando igualmente de
«regimes gerais»), e é diferente da das alíneas f), g) ou n), por exemplo, as
quais incluem na reserva apenas as «bases» dos correspondentes regimes. Ora,
logo este ponto de partida textual mostra que a reserva em causa não se limita à
definição dos «princípios», «directivas» ou standards fundamentais em matéria de
arrendamento (é dizer, das «bases» respectivas), mas desce ao nível das próprias
«normas» integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil.
Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de «arrendamento rural e urbano»,
nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às
suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das
relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e
definidoras, bem assim, das condições e causa da sua extinção — pois tudo isso é
«regime jurídico» dessa figura negocial. Por outras palavras e em suma: cabe,
reservadamente, ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições
e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa.
Por outro lado, reportando-se a alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º ao
arrendamento «rural e urbano», é óbvio que abrange estas duas modalidades de
arrendamento, e também nenhuma razão há para, no tocante a qualquer delas,
restringir o seu âmbito. É certo que entre todas as espécies de arrendamento
assume relevo social específico o arrendamento urbano para habitação e que o
regime deste não pode deixar de ser perspectivado no quadro da consagração
constitucional de um direito fundamental à habitação (artigo 65.º, em particular
n.º 3). Mas é também inquestionável o relevo, seja social seja económico, não só
do arrendamento rural mas também do arrendamento urbano para outros fins,
mormente para o exercício do comércio ou de indústria. Ainda aí, e nomeadamente
nesta última espécie de arrendamentos, se está perante matérias «importantes» –
perante matérias «politicamente» importantes –, e susceptíveis, a esse título,
de justificarem amplamente uma reserva de legislação parlamentar. Assim sendo,
atenta a clara letra do preceito, e não ocorrendo qualquer elemento lógico,
sistemático ou histórico que imponha um seu entendimento restritivo, é
seguramente de concluir que, no respeitante ao arrendamento urbano, aquele
abrange (é o ponto que interessa agora salientar) quer o arrendamento para
habitação quer para outros fins.»
E, mais adiante – depois de se sublinhar que esta reserva “não é esgotante e
absoluta”, antes permitindo que “nesse domínio venham ainda a intervir outros
órgãos com competência legislativa” – disse-se, para o que aqui importa, mais o
seguinte:
«[…] Com efeito, ao reservar à Assembleia da República a definição apenas do
regime «geral» do arrendamento rural e urbano, o preceito em apreço, pelo menos
na sua letra, deixa também aberta a possibilidade de caber na competência
legislativa «primária» do Governo a regulamentação de regimes «especiais» de
arrendamento - naturalmente com o limite e a ressalva de não vir o Executivo,
por esse caminho, a esvaziar e a subverter o alcance da reserva parlamentar.
Por outro lado - e aí não apenas o teor, mas também a razão de ser do preceito o
inculcam -, é de entender a reserva como respeitando unicamente aos aspectos
significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos, do regime legal do
contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja
puramente adjectivo ou processual (em suma, «regulamentar»).
Como quer que seja, à Assembleia da República estará sempre reservada a
definição das regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de
arrendamento rural e urbano, e tenham estes últimos como finalidade a habitação
ou quaisquer outros fins.»
O mesmo critério para a fixação do sentido e alcance da reserva de
legislação parlamentar foi adoptado no já citado acórdão n.º 311/93, e, mais
recentemente, seguido nos acórdãos n.ºs 410/97 (Diário da República, I Série-A,
de 8 de Julho de 1997), 127/98 (Diário da República, II Série, de 28 de Maio de
1998), 55/99 (Diário da República, de 19 de Fevereiro de 1999), 273/99 (Diário
da República, de 21 de Outubro de 1999), 391/99 (Diário da República, II Série,
de 8 de Novembro de 1999), ou 97/2000 (Diário da República, II Série, de 17 de
Março de 2000) e 461/2002 (Diário da República, II Série, de 26 de Fevereiro de
2002).
10. Todavia, reafirmadas estas ideias, uma dúvida radical pode colocar-se, face
ao teor literal do preceito constitucional: a de saber se, mesmo quanto ao
regime geral, o tipo de arrendamento em causa se compreende no âmbito da reserva
de competência legislativa da Assembleia da República.
Com efeito, não é destituído de razoabilidade sustentar que a matéria não cai no
âmbito da reserva de competência legislativa traçado pelo preceito, uma vez que
o contrato não respeita a arrendamento “rural” (é arrendamento de prédio
rústico, mas não é arrendamento rural) nem “urbano”. Se a resposta for essa, já
não interessará averiguar se a Lei de autorização concede poderes ao Governo
neste domínio e se a norma em causa respeitou o sentido dessa autorização.
Seguramente que não estamos perante matéria de arrendamento rural porque a
cedência do gozo do prédio, embora este seja rústico, não se destina a que o
locatário aí exerça actividade agrícola, pecuária ou florestal. E não será
também arrendamento urbano stricto sensu porque para isso lhe falta um elemento
essencial que é (segundo o acórdão recorrido) ter a coisa cedida a natureza de
prédio urbano (cfr. artigo 204.º, n.º 2, do Cód. Civil).
Dito de outro modo e avançando um pouco, pode sustentar-se que, também para
efeito da (então) alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição – tal como
no direito civil (cfr. artigos 1064.º e 1083.º do Código Civil) –, se deveriam
distinguir três espécies de arrendamentos prediais em função do objecto (do
objecto real ou mediato; da coisa cujo gozo é cedido): arrendamento rural,
arrendamento urbano e arrendamentos não rurais de prédios rústicos. E só o
regime geral dos dois primeiros caberia na reserva de competência legislativa
imposta pela expressão “regime geral do arrendamento rural e urbano”. Fora da
reserva ficaria, face ao teor literal do preceito constitucional, o arrendamento
de prédios rústicos para fins não rurais, nem directamente relacionados com uma
actividade comercial e industrial (a utilização do prédio no exercício de uma
profissão liberal é dificilmente imaginável), que assim cairia, mesmo quanto ao
seu regime geral, no domínio da competência legislativa concorrente do Governo e
da Assembleia da República.
A favor desta interpretação da norma constitucional pode argumentar-se que se o
legislador constituinte pretendesse incluir nesta reserva de regime geral as
diversas (todas as) modalidades de arrendamento predial, em função da natureza
da coisa locada e do fim do arrendamento, diria simplesmente 'regime geral do
arrendamento'. Numa primeira análise, tendo aditado os qualificativos 'rural' e
'urbano' e não esgotando este o universo dos arrendamentos prediais, parecerá
que a Constituição limitou o alcance da reserva em função dessa especificação.
Recorrendo a um argumento de lógica formal, dir-se-ia que, na medida em que a
enunciação se socorre de elementos de especificação que não perfazem a
universalidade dos arrendamentos prediais, se diminui a extensão do conceito e,
portanto, do objecto da reserva de competência legislativa por ele delimitada.
E não é possível encontrar elementos relevantes para esta questão específica nos
trabalhos preparatórios que deram origem ao texto constitucional em análise.
Efectivamente, na revisão constitucional de 1982, os debates travados em torno
da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º na Comissão Especial para a Revisão
Constitucional (CERC) revelam que a preocupação maior que aí esteve presente foi
a de salvaguardar os regimes especiais de arrendamento rural e urbano nas
regiões autónomas. Não se quis que o alargamento da reserva legislativa
parlamentar à matéria do arrendamento viesse excluir a possibilidade da
existência de tais regimes e a sua definição pelas assembleias regionais
respectivas, no exercício do seu poder legislativo próprio (como vinha
acontecendo até então). Daí, precisamente, haver a CERC proposto a limitação da
reserva ao regime «geral» do arrendamento [cf., em especial, Diário da
Assembleia da República, 2ª série, n.º 64, 2º suplemento, de 10 de Março de
1982]. Foi o correspondente texto que, por sua vez, o Plenário da Assembleia da
República veio a aprovar. Praticamente sem discussão, registando-se apenas
intervenções dos deputados Nunes de Almeida (pelo Partido Socialista) e Sousa
Tavares (pelo Partido Social-Democrata), em que de novo se salientou não pôr o
preceito aprovado em causa a mencionada competência dos órgãos legislativos
insulares para estabelecerem nas respectivas regiões regimes especiais de
arrendamento [Cf. Diário … cit. I série, n.º 124, de 22 de Julho de 1982, p.
5229].
Obviamente, para quem assim entendesse – i.e., o arrendamento de prédios
rústicos para este fim não é, também para a Constituição, arrendamento rural nem
urbano – a questão de inconstitucionalidade orgânica ficaria imediatamente
decidida, em qualquer das vertentes em que o recorrente a coloca. Não haveria
vício da norma por falta ou inobservância do fim da autorização legislativa,
pela elementar razão de que o Governo não carecia de autorização para legislar
na matéria.
11. Não foi este, porém, o caminho do acórdão recorrido.
A Relação entendeu que esta reserva abrange os arrendamentos de prédios rústicos
não sujeitos a regimes especiais e que a lei de autorização legislativa atribuiu
ao Governo, pelo menos de forma implícita, competência para alterar o regime
desses arrendamentos, sufragando, nesta matéria, a tese defendida por Carneiro
Frada ( loc. cit. p.175), que sustenta que «[d]evidamente interpretada, parece
que esta reserva abrange os arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes
especiais. Embora, na conceptologia técnica do direito civil, estes não sejam
nem urbanos nem rurais, certamente que patenteiam aquela constelação de
interesses que justificou a instituição daquela reserva. Seria irrazoável
pretender atribuir-se à linguagem utilizada pelos deputados constituintes o
sentido preciso que os seus termos assumem no direito civil.»
É esta a leitura da alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição
(actualmente, a alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º) que se tem por acertada,
dando ao texto a sua significação mais lata, de acordo com a razão de ser da
reserva e as regras de interpretação que neste domínio devem adoptar-se.
Com efeito, por um lado, a força do argumento literal diminui se atendermos a
que o legislador constituinte teve perante si, ao desenhar a reserva de
competência em apreciação, uma realidade normativa em que o arrendamento não
rural de prédios rústicos (o que se não destinava a fins de exploração agrícola,
pecuária ou florestal) desde há muito vinha sendo equiparado ao arrendamento
urbano. O Código Civil submetia os arrendamentos de prédios urbanos e os
arrendamentos de prédios rústicos para fins não rurais ao mesmo regime
fundamental (artigo 1083.º), de modo que a mesma base legislativa que patenteava
a distinção (mas repare-se que no Código o termo usado não é “arrendamento
urbano” mas “arrendamento de prédios urbanos”) revelava a essencial coincidência
valorativa do direito ordinário.
Por outro lado, se bem que com menor frequência e intensidade do que os
resultantes do arrendamento de prédios urbanos (para habitação ou para comércio
e indústria ou profissão liberal) ou de prédios rústicos para exploração da
terra, o arrendamento de prédios rústicos para fins não rurais também é
susceptível de colocar o legislador perante importantes opções e problemas
económicos e políticos, na configuração normativa do conflito de interesses
entre o senhorio e o inquilino quanto ao gozo da coisa, um dos mais relevantes
dos quais será precisamente o que respeita aos termos em que pode ser imposta a
manutenção do vínculo contra vontade do locador.
Ora, na interpretação das normas constitucionais de competência legislativa do
Parlamento deve preferir-se, se não uma interpretação extensiva, pelo menos uma
interpretação não restritiva (Neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, pg. 518). Como dizem Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, 3.º ed., pg. 663)
“as dificuldades interpretativas em torno do âmbito de normas de competência
devem solucionar-se recorrendo ao principio da conformidade funcional,
completado pelo princípio da preminência legislativa da AR, como consequência do
princípio da representação democrática”, preferindo-se nos casos de fronteira “o
sentido mais favorável à reserva parlamentar de lei, por ser a mais conforme com
a função constitucional da AR e com o primado da sua competência legislativa”.
Nesta perspectiva, tem-se por constitucionalmente adequado ao primado do
Parlamento, no plano político e legisferante, a leitura da alínea h) do n.º 1 do
artigo 168.º da Constituição (actual alínea h) do n.º 1 do artigo 165.º) no
sentido de que a reserva de competência parlamentar quanto ao “arrendamento
urbano” abrangia o regime geral do arrendamento rústico não rural, como foi
ponto de partida do acórdão recorrido, por ser nesse âmbito que a matéria vinha
a ser tradicionalmente regulada (sendo, portanto, essa a extensão do conceito
que esteve no horizonte do legislador constituinte) e porque a reserva, com esse
alcance, tem justificação na relevância económica e política das opções que
ainda estão presentes ao conformar os princípios gerais de tal espécie de
arrendamento.
Importa, portanto, passar à apreciação das questões concretamente colocadas.
12. Admitido o que antecede, não parece que se justifiquem grandes dúvidas
quanto à interpretação da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/90,
de 10 de Agosto, como abrangendo os arrendamentos de prédios rústicos para fins
não rurais, apesar de o texto dizer, apenas, que é concedida autorização ao
Governo para “alterar o regime do arrendamento urbano” (artigo 1.º).
Em primeiro lugar, a interpretação extensiva da norma definidora do objecto da
autorização legislativa (atribuindo à expressão “arrendamento urbano” o
significado de arrendamento de prédios urbanos e de arrendamento de prédios
rústicos para fins não rurais) é justificada pela matriz que se utiliza (a norma
definidora da reserva de competência legislativa como se interpretou) e pela
função típica do acto legislativo em que a norma se insere. Se para efeito da
reserva está consagrado esse conceito amplo, se o que pretende é arredar o
obstáculo à intervenção legislativa do Governo que dessa reserva decorre e se a
realidade normativa a transformar (o regime legal existente) equiparava
substancialmente os dois tipos ou as duas espécies de arrendamento, nada tem de
anómalo ou surpreendente que se atribua ao mesmo termo idêntico significado
quando se trata de determinar o objecto e extensão da autorização legislativa.
Em segundo lugar, mexer no regime dos arrendamentos [de prédios] urbanos
envolveria sempre tocar nos arrendamentos a eles equiparados. Seria técnica
legislativa deficientíssima e geradora de incertezas interpretativas a que
mantivesse em vigor muitas dessas disposições legais, designadamente os arts.
1083.º a 1120.º do Código Civil, com o restritíssimo campo de aplicação aos
arrendamentos rústicos não sujeitos a regime especial, ao lado de um novo
diploma sobre arrendamento urbano, como no acórdão recorrido se salienta. No
contexto da extensa intervenção legislativa perspectivada pela Lei n.º 42/90,
não seria razoável subtrair o conjunto normativo existente ao propósito de
simplificação, harmonização e codificação do direito material e agilização do
direito adjectivo, deixando-o sobreviver apenas na parte aplicável aos
arrendamentos em causa. Em vez de simplificar, harmonizar e racionalizar, isso
implicaria a introdução no ordenamento de mais um factor de complexidade e
incerteza. O que não é de presumir ter sido querido pelo legislador, de acordo
com as regras gerais de hermenêutica (artigo 9.º do Código Civil).
Conclui-se, portanto, que no objecto e extensão da lei de autorização
legislativa concedida pela Lei n.º 42/90, se abrange o regime dos arrendamentos
rústicos não rurais para fins diversos do comércio, indústria e profissão
liberal.
13. Argumenta o recorrente que esta autorização não abrange os
«arrendamentos de prédios rústicos» celebrados ao abrigo do Decreto n°5.411, de
17 de Abril de 1919, porquanto tais arrendamentos de prédios rústicos
constituíam arrendamento rural, com a consequente inconstitucionalidade orgânica
da inclusão desses arrendamentos de pretérito no conceito de “ arrendamentos
rústicos não sujeitos a arrendamentos especiais”.
Esta argumentação que, se bem se compreende, assenta na errada
identificação entre “arrendamento de prédios rústicos” e “arrendamento rural”, é
manifestamente improcedente, ao menos no plano em que o recorrente a mobiliza,
que é a do vício de inconstitucionalidade orgânica.
É certo que a autorização legislativa não contempla o arrendamento rural. Porém,
como considerou o acórdão recorrido, os arrendamentos de prédios rústicos para
fins diversos da exploração agrícola, pecuária e florestal, não eram
considerados arrendamento rural. Com o Código Civil, a classificação dos
arrendamentos rústicos e urbanos, feita pelo antigo direito, perdera
praticamente todo o seu interesse, passando a haver, por um lado, o arrendamento
rural e, por outro, arrendamentos de prédios urbanos ou arrendamentos não rurais
de prédios rústicos (P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª
ed.., pág. 526).
Ora, nem essa classificação, nem a determinação do regime jurídico aplicável aos
arrendamentos rústicos de pretérito estão em apreciação no presente recurso. E
não se vê que a não atribuição da natureza rural a tais arrendamentos comporte
algo de contrário à Constituição, designadamente quanto à repartição de
competência legislativa, que é o que agora se aprecia (Note-se que está fora do
objecto do presente recurso a apreciação de qualquer inconstitucionalidade
material que pudesse pretender-se decorrer da aplicação imediata do novo regime
aos contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor). Efectivamente, a
Constituição não impõe que todos os arrendamentos de prédios rústicos,
designadamente aqueles que não consistam na afectação do prédio à exploração
agrícola, pecuária e florestal, sejam considerados como arrendamento rural.
Improcedem, portanto, as conclusões do recorrente que sustentam que a norma do
artigo 6.º, n.º 1, do RAU, interpretada no sentido de que os «arrendamentos de
prédios rústicos» previstos e subsumíveis ao disposto no Decreto n.º 5.411, de
17 de Abril de 1919, correspondem aos «arrendamentos rústicos não sujeitos a
regimes especiais», sofre de inconstitucionalidade por não se compreender a
disciplina de tais arrendamentos no objecto e extensão da autorização
legislativa concedida pela Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto.
14. Adquirido que estava autorizado a legislar sobre tal espécie de
arrendamento, importa averiguar se o Governo desrespeitou, com o conteúdo da
norma em causa, o sentido dessa autorização. Mais concretamente, se deixou de se
conformar com a alínea c) do artigo 2.º da Lei n.º 42/90 que sujeita as
alterações a introduzir ao abrigo da autorização legislativa por ela concedida à
“preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do
arrendatário”.
Como já se deixou entender, dos plúrimos efeitos da norma ao remeter
para o regime geral da locação civil, com a sua consequente subtracção ao regime
dos denominados “arrendamentos vinculísticos”, só um aspecto interessa ao
presente recurso de constitucionalidade: aquele que consiste na faculdade de o
senhorio denunciar livremente (observadas determinadas exigências formais) o
contrato para o fim do período contratual ou da renovação em curso. Essa é,
repete-se, uma significativa alteração do regime jurídico destes arrendamentos
de prédios rústicos que, sendo até então equiparados a arrendamento urbano,
estavam sujeitos à regra da renovação obrigatória (sem ou contra a vontade do
senhorio), típica dos arrendamentos vinculísticos.
Argumenta o recorrente que ao retirar aos arrendamentos em causa
essa característica, permitindo a sua denúncia livre pelo senhorio no termo do
período contratual, o Governo se desviou do sentido da lei de autorização
legislativa, deixando de preservar uma regra que tinha um efeito de protecção do
direito à cultura física e ao desporto.
Vejamos.
14.1. O Tribunal já apreciou em diversas ocasiões o sentido desta norma da
autorização legislativa conferida pela Lei n.º 42/90. A começar pelo acórdão n.º
311/93 (Diário da República, I Série A, de 17 de Março de 2000) em que,
apreciando a sua constitucionalidade em fiscalização abstracta sucessiva, o
Tribunal considerou que “a autorização comporta o entendimento de que o Governo
ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do
arrendatário, no entanto, se revelaram socialmente imprestáveis, designadamente
porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam
desigualmente os contraentes, sem que para tanto houvesse fundamento” e julgou
satisfeitas as exigências postas às leis de autorização legislativa pelo (então)
n.º 2 do artigo 168.º da Constituição.
Como se disse no acórdão n.º 658/98, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Março de 1999, “ [n]ão se pode, pois, divisar
nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas
regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao
arrendatário. Tal entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente
pelo Tribunal não consideraria, desde logo, a limitação da alínea c) apenas às
regras ‘socialmente úteis’, nem a natureza da fórmula empregue pelo legislador
parlamentar, de molde a permitir ao Governo um juízo sobre a utilidade social
das regras, ficando obrigado a preservar aquelas em relação às quais esse juízo
fosse positivo. Aquela posição restritiva poderia, aliás, fazer o legislador da
Lei n.º 42/90 incorrer numa contradição, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º
desse diploma, uma vez que qualquer facilitação do funcionamento da cessação do
contrato - ainda que através da mera simplificação das suas regras processuais –
deveria ser considerada violadora da referido imperativo legal de manutenção de
todas e cada uma das concretas regras do regime do arrendamento favoráveis ao
inquilino. Tem, pois, de entender-se que o legislador ficou habilitado pela
alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 a formular um juízo sobre a ‘utilidade
social’ das regras do regime do arrendamento urbano, podendo eliminar ou
reformular aquelas que se revelavam ‘socialmente imprestáveis, designadamente
porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam
desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material’
(formulação adoptada no citado Acórdão n.º 311/93).”
Como o Tribunal disse no acórdão n.º 225/03, publicado no Diário da
República, II Série, de 27 de Janeiro de 2004, preocupação social subjacente a
esta orientação prende‑se primacialmente, ainda que não exclusivamente, com os
arrendamentos para habitação, domínio onde são particularmente relevantes as
responsabilidades constitucionais do Estado (cf. artigo 65.º da CRP),
designadamente na veste de legislador. Quanto ao arrendamento urbano para
habitação, a regra da renovação automática do arrendamento contra a vontade do
senhorio, defende não só o interesse do concreto inquilino e seus familiares na
estabilidade da disposição de um lugar para viver, como o interesse público de
dar satisfação adequada às carências habitacionais existentes. No que se refere
ao arrendamento para comércio, indústria a profissão liberal, com essa regra a
lei pretende garantir, como diz PEREIRA COELHO (op. cit., pág. 70) “a
continuidade da exploração comercial ou industrial ou da profissão exercida no
prédio arrendado, facilitar a circulação da empresa (de que o direito ao
arrendamento constitui, por vezes, o elemento mais importante e defender a
integridade do valor económico do estabelecimento ou a profissão liberal do
arrendatário, valor criado por iniciativa deste e que poderia ser considerado
afectado se o comércio, indústria e profissão liberal tivesse de passar a
exercer-se em local diferente. Trata-se, pois, fundamentalmente, de proteger o
interesse do arrendatário para comércio e indústria ou exercício de profissão
liberal e ainda, reflexamente, o interesse geral, dado o valor social de que as
respectivas actividades se revestem profissão liberal e ainda, reflexamente, o
interesse geral, dado o valor social de que as respectivas actividades se
revestem”.
Assim, em qualquer destes tipos de arrendamento, é possível discernir para a
imposição da renovação obrigatória do contrato ao locador uma utilidade social –
isto é, que transcende o interesse do concreto locatário - directa e
imediatamente correlacionada com o fim contratual típico em função do qual o
regime jurídico se define.
Mas já não se vislumbra que desrespeite a orientação de preservação
das regras socialmente úteis que, na legislação anterior, tutelavam a posição do
arrendatário, a opção tomada no uso dessa autorização legislativa de não impor a
renovação automática dos contratos de arrendamento não rural que tivessem por
objecto prédios rústicos arrendados para outros fins (diversos do exercício do
comércio e indústria).
Ao estabelecer o indirizzo político de preservação das regras socialmente úteis,
a Assembleia da República não pretendeu impor a imutabilidade de todas as regras
favoráveis ao locatário, antes cometeu ao Governo a tarefa de proceder à
reavaliação da utilidade social desse tratamento mais favorável ao inquilino,
com a inescapável margem de apreciação e ponderação que a isso é inerente.
Ora, o arrendamento de prédios rústicos para fins não rurais pode destinar-se a
uma grande diversidade de fins, que não se afigura possível congregar numa
finalidade típica identificável com uma utilidade social determinada. Cabem nele
todos os usos lícitos de prédios rústicos que não constituam uso agrícola,
florestal ou pecuário nem se relacionem, directamente, com actividade comercial
e industrial. Deste modo, não é aqui viável identificar ou eleger um uso típico
ou predominante (v. gr. a habitação, a actividade comercial e industrial, o
exercício de profissão liberal, a agricultura, a silvicultura, a pecuária) que
imediatamente convoque a imposição constitucional de políticas públicas que
possam ser prosseguidas com um regime contratual em que a vontade ou o interesse
do locador (geralmente, o proprietário) deva ceder perante a vontade ou o
interesse contraposto do inquilino. Pelo que, devendo o legislador autorizado
ocupar-se deste tipo de arrendamento com carácter genérico, configurando um
regime que dê resposta equilibrada aos interesses conflituantes das partes na
generalidade das situações, não é razoável interpretar a autorização legislativa
como impondo a preservação de regras cuja utilidade social só seria possível
identificar, caso a caso, por referência a um desses fins para que o contrato
pode ser celebrado.
14.2. De todo o modo, não pode imputar-se à não preservação da regra
da renovação automática do arrendamento de prédios rústicos destinados a que o
locador neles desenvolva ou promova actividades desportivas, violação da
incumbência do Estado, em colaboração com as associações e colectividades
desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da
cultura física e do desporto (artigo 79.º, n.º 2, da Constituição).
À semelhança de outros preceitos relativos aos direitos económicos, sociais e
culturais, o artigo 79º da Constituição comporta duas partes. No seu nº 1,
consagra o direito fundamental dos cidadãos, de natureza social, à cultura
física e ao desporto. No seu nº 2, o referido preceito constitucional estabelece
as incumbências do Estado nesse domínio, elegendo as associações e
colectividades desportivas como sujeito privilegiado da colaboração com o Estado
( lato sensu ), para dar satisfação a esse direito.
Neste modelo colaborativo com as associações e colectividades desportivas, que
além de prestações materiais, pode desenvolver-se mediante “prestações
legislativas”, o legislador goza de grande margem de escolha e conformação.
Nesta dimensão social, trata-se de um direito a prestações, de conteúdo não
determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor um tarefa de
concretização e mediação legislativa.
É certo que a regra da renovação obrigatória do contrato de arrendamento dos
terrenos que as associações e colectividades desportivas utilizem para
desenvolver as actividades desportivas a que se dedicam poderia justificar-se
como forma de apoio à prática e difusão do desporto. Mas nada na Constituição ou
na lei de autorização legislativa obriga a legislar nesse sentido, sacrificando
o interesse oposto do locador em recuperar ao gozo do prédio findo o período a
que contratualmente se obrigou. E também a liberdade contratual e a faculdade do
proprietário dispor da coisa cessado o período de cedência a que se obrigou
merecem tutela constitucional. Só poderia haver inconstitucionalidade se o
legislador estabelecesse uma solução normativa desprovida de fundamento com
dignidade constitucional que comprometesse em absoluto o associativismo
desportivo. Ora, a não renovação dos arrendamentos de terrenos usados para
práticas desportivas pode afectar a actividade de algumas dessas agremiações que
tenham optado por esse instrumento civilístico para obter as suas instalações,
mas não compromete o associativismo desportivo nem o direito dos cidadãos à
cultura física e desporto, que sempre podem recorrer a outros equipamentos
desportivos.
De tudo resulta que a inquestionável relevância das associações e
colectividades desportivas na promoção da educação física e do desporto pode
justificar o reconhecimento do respectivo interesse público e correspondentes
medidas de apoio por parte do Estado, mas não conduz a que a alínea c) do artigo
2.º da Lei n.º 42/90 deva ser interpretada como impondo a preservação dos
aspectos vinculisticos do regime do arrendamento dos terrenos rústicos por tais
entes utilizados para a prossecução do seu escopo.
Em conclusão: a norma do n.º 1 do artigo 6.º do Regime do
Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro,
interpretado no sentido de que o locador goza da faculdade de denúncia, para o
termo do período contratual ou da renovação em curso, relativamente ao
arrendamento de prédios rústicos para a prática de actividades desportivas, não
viola a directriz constante da alínea c) do n.º 2 da Lei n.º 42/90, de 10 de
Agosto.
Consequentemente, improcedendo as conclusões do recorrente, o
presente recurso não merece provimento.
III- Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e condenar o recorrente nas
custas, com 25 (vinte e cinco) UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão