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Processo nº 559/2008
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. formulou um pedido, ao abrigo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, de
concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e
demais encargos com o processo. Este pedido foi indeferido pelos serviços de
segurança social de Coimbra. A decisão dos serviços fundou-se na circunstância
de a então requerente não ter demonstrado, perante aquelas entidades
administrativas e através dos meios previstos no diploma já citado (artigos 8.º,
23.º, 27.º e 37.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), a sua efectiva situação
de carência económica.
Notificada desta decisão, veio a ora recorrida deduzir impugnação judicial na
qual requereu, a final, a produção de prova testemunhal.
2. Decidindo desta impugnação judicial, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Coimbra, por sentença de 18 de Abril de 2008, julgou materialmente
inconstitucional, por violação do artigo 20° da Constituição da República, a
norma do artigo 27º, n° 2, da Lei n.º 34/04 de 29 de Julho, na parte em que
estatui que é apenas admissível, para efeito da dedução do pedido de impugnação,
prova documental.
Esta decisão apresenta os seguintes fundamentos:
Na presente impugnação judicial, interposta da decisão de não concessão do apoio
judiciário, ao abrigo do art. 27°, n° 2, da Lei n° 34/04, de 29 de Julho, a
impugnante A. arrolou prova testemunhal.
A referida norma apenas admite prova documental.
A impugnante A. veio alegar factos que carecem de prova testemunhal.
Além disso acrescem factos que só através deste meio de prova poderá
demonstrá-los.
São estes: vive em casa emprestada pelos sogros; vive com ajuda económica dos
pais para a satisfação das necessidades básicas dos seus filhos menores uma vez
que não tem emprego nem rendimentos para além da prestação mensal de 200 € que
recebe do seu marido de quem está separada de facto desde finais de 2006.
Acontece, porém que a norma que regula este tipo de recurso não admite prova
para além da documental (art. 27°, n° 2, da Lei 34/04, de 29 de Julho, que nesta
parte não sofreu alterações com a Lei n° 47/07, de 28 de Agosto).
Contudo, afigura-se-nos que tal norma à luz da Constituição da República
Portuguesa poderá ser inconstitucional, em concreto violando o art. 20º da Lei
Fundamental.
Com efeito tem-se entendido que a efectiva garantia de acesso ao direito e aos
Tribunais importa a consagração de um verdadeiro «direito de prova» e «a
eliminação de disposições especiais que (...) limitassem o tipo de meios
probatórios admissíveis»’
Não se pretende, como é claro, que o princípio seja interpretado como a
consagração constitucional da livre admissibilidade dos meios de prova. A lei
ordinária consagrava várias limitações ao exercício do direito de defesa no
acesso aos meios probatórios umas de índole material, (como as dos arts. 364° e
393° do Código Civil) e outras adjectivas, com finalidades como a eficácia e
celeridade processuais.
No presente caso a lei determina que “recebida a impugnação, esta é distribuída
e imediatamente conclusa ao juiz, que por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide” por conseguinte a produção da prova testemunhal não é
incompatível com tal procedimento.
Apesar de o prazo para tal efeito não ter sido fixado na lei, ele não poderá ser
menor que aquele que está previsto para os processos urgentes, e, também, não se
vê que a eficácia da actuação da administração ou do cidadão saia prejudicada.
Diga-se por fim que, no âmbito do processo tributário, inúmeros processos
urgentes (recurso da decisão do órgão de execução fiscal, arrolamentos e
arresto) comportam prova testemunhal sem qualquer prejuízo para a celeridade
processual.
A oportunidade da admissão deste meio de prova é, no direito tributário,
concretamente ponderada pelo juiz, que poderá dispensar ou não as provas através
de um juízo de prognose sobre a necessidade da mesma.
Por outro lado, ainda sob a motivação de descongestionamento dos tribunais foi
substancialmente reformulado o regime decorrente dos DLs 387/87, de 29 de
Dezembro, e 391/88, de 26 de Outubro, através da Lei 30-E/00, de 20 de Dezembro,
e das Portarias n°s 1200C/2000, de 20 de Dezembro, e 1223-A/2000, de 29 de
Dezembro, atribuindo aos serviços de segurança social a apreciação dos pedidos
de concessão de apoio judiciário, mas manteve sempre a prova da insuficiência
económica por qualquer meio idóneo, também a prova testemunhal, não se olvidando
que a mais das vezes esta é a prova mais adequada e a única para determinados
factos que estão em apreciação no âmbito da necessidade de apoio judiciário.
Não há dúvida que uma tutela efectiva tem de passar também pela consagração
efectiva de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas na
tramitação processual, como decorre do n° 4 do art. 20° da Lei Fundamental.
Não é, por isso, difícil descortinar que a prova testemunhal nestes processos,
em que está em causa insuficiência ou até ausência de meios económicos para
assegurar a defesa dos seus direitos em tribunal, se apresente como a mais
adequada e até a única capaz de esclarecer alguns dos factos controvertidos.
Desta feita, julgando-se materialmente inconstitucional, à luz do art. 20° da
Constituição, a norma do art. 27, n° 2, da Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, na
parte em que estatui que: «sendo apenas admissível prova documental», impede o
recurso à prova testemunhal, admito a inquirição da prova arrolada.
3. Notificado desta decisão, veio o Ministério Público, ao abrigo do que dispõe
o artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada
por último pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, interpor recurso
obrigatório para este Tribunal tendo concluído pela confirmação do juízo de
inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.
4. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, veio nele apresentar
alegações o representante do Ministério Público, que concluiu do seguinte modo:
1°
A norma constante do n° 2 do artigo 27° da Lei n° 34/04, de 29/07, na parte em
que estabelece uma limitação absoluta à prova documental a apresentar pelo
interessado que pretende impugnar o indeferimento pela Segurança Social do apoio
judiciário, independentemente da natureza dos factos controvertidos e das
efectivas possibilidades probatórias do requerente, envolve restrição ou
limitação substancial ao conteúdo do direito de acesso aos tribunais, consagrado
no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
2°
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na
decisão recorrida.
Não houve contra‑alegações.
Analisados os autos, cumpre decidir.
II
Fundamentos
5. A questão de constitucionalidade que constitui objecto do presente recurso
foi já objecto de decisão anterior deste Tribunal. Na verdade, no período de
tempo que mediou a data de apresentação dos autos conclusos à Relatora deste
recurso e a prolacção do presente acórdão, este Tribunal, em particular a
presente secção, foi confrontado com a questão de saber se a norma do artigo
27º, n° 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na sua redacção originária, na
parte em que estatui que é apenas admissível, para efeito da dedução do pedido
de impugnação judicial, prova documental, quando a obtenção dessa prova estava
ao alcance do requerente do apoio judiciário e este prescindiu de a apresentar,
estaria ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 20° da
Constituição da República.
Perante esta questão, o Tribunal Constitucional, em acórdão de 11 de Novembro de
2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), e a cuja fundamentação se
aderiu no Acórdão n.º 592/2008, de 10 de Dezembro de 2008 (disponível no mesmo
sítio), decidiu no sentido e com a fundamentação que se seguem, de que se
transcreve apenas os passos essenciais para decisão do objecto do presente
recurso:
A questão essencial que se coloca – tal como se expendeu no acórdão nº 646/2006,
que também abordou esta temática - é, pois, a de saber se, na emissão de uma
norma restritiva do uso dos meios de prova, o legislador respeitou,
proporcionada e racionalmente, o direito de acesso à justiça na sua vertente de
direito de o interessado produzir a demonstração dos factos que, na sua óptica,
suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso aos
tribunais. Uma resposta negativa a essa questão apenas pode perspectivar-se,
neste contexto, quando se possa concluir que a norma em causa determina, para a
generalidade de situações, que o interessado se veja constrito à impossibilidade
de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
5. Revertendo ao caso concreto, não pode deixar de reconhecer-se que o regime
legal decorrente da mencionada norma do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004,
ao circunscrever a prova a produzir apenas à de natureza documental, é, em
regra, susceptível de garantir ao interessado a demonstração da sua situação de
insuficiência económica, visto que as declarações de rendimentos a entregar
perante o serviço de finanças, bem como as declarações contributivas para efeito
de aplicação do regime de segurança social, que apresentam sempre um suporte
documental, fornecerão normalmente uma indicação suficientemente precisa quer
quanto à situação laboral do requerente do apoio judiciário, quer quanto ao
nível dos respectivos proventos económicos.
Deve notar-se, a este propósito, que a opção legislativa tem certamente por base
a consideração de que os meios de prova documentais são os que se apresentam
como possuindo maior eficácia e fiabilidade de que quaisquer outros e que são
também os que melhor se compadecem com a natureza instrumental do processo, que
tem unicamente em vista assegurar, com a necessária celeridade, que o requerente
possa obter a protecção jurídica para efeito de defender os seus direitos e
interesses em acção judicial. E importa igualmente reter duas outras
circunstâncias: por um lado, os documentos exigíveis encontram-se ao dispor dos
interessados, por respeitarem a declarações pessoais que decorrem do cumprimento
de deveres fiscais e contributivos, podendo ser obtidos, por isso, sem grande
dificuldade, por outro lado - como decorre do contexto verbal do citado artigo
27º -, o pedido de impugnação judicial pode ser formulado directamente pelo
interessado, não exigindo a constituição de advogado, nem carecendo de ser
articulado, podendo o impugnante limitar-se a requerer ao tribunal a obtenção da
prova documental adequada (cfr. nºs 1 e 2 dessa disposição).
Ou seja, embora a lei imponha a utilização de um certo meio de prova, não faz
incidir sobre o impugnante o ónus processual de apresentar essa prova – ao
contrário do que sucede no regime geral que decorre do Código de Processo Civil
(cfr. artigos 523º e 524º) -, impondo antes ao tribunal um dever oficioso de a
realizar, desde que o interessado indique quais os elementos documentais que
considera demonstrativos da sua situação de insuficiência económica.
Sem dúvida que se não encontra excluída a possibilidade de, em certas situações,
a prova documental não permitir efectuar a demonstração dos factos em que
assenta o pedido impugnatório. Poderá ser o caso em que tenha ocorrido a perda
ou diminuição dos meios de fortuna do interessado que se não encontre ainda
patenteada nas declarações tributárias, que apenas se referem aos anos fiscais
transactos; ou que tenha havido despesas que devam ser ponderadas para efeito da
apreciação do pedido de apoio judiciário e que não sejam susceptíveis de prova
documental.
Será necessário avaliar, em qualquer dessas hipóteses, se o regime probatório
restritivo do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004 – excluindo, à partida e em
todos os casos, a prova testemunhal – não poderá afectar de forma intolerável o
exercício do direito de acesso aos tribunais.
Mas não é seguramente esse o caso dos autos.
O que se constata, na situação vertente, é que a requerente do apoio judiciário
não juntou, com o requerimento inicial, qualquer documentação atinente à sua
situação económica, e absteve-se de satisfazer a notificação feita, na fase de
audiência do interessado, no sentido de apresentar documentos que fossem
susceptíveis de esclarecer qual o montante de rendimentos que poderia auferir,
tais como a declaração de IRS, o pacto social da firma de que era gerente, a
acta de renúncia ou destituição da gerência, o documento de comunicação de
cessação da actividade da firma (todos eles especificamente identificados no
ofício de notificação).
Por outro lado, no pedido de impugnação judicial, a requerente alegou certos
factos indiciários da sua insuficiência económica – encontra-se separada de
facto desde Dezembro de 2006, vive por tolerância e a título precário em casa
cedida pelos sogros, aufere apenas a quantia de € 200 a título de alimentos
devidos aos filhos menores, encontra-se desempregada desde que a empresa cessou
a sua laboração e desde há muito que já não recebia as remunerações de gerência
-, mas absteve-se de apresentar ou requerer a obtenção de prova documental,
limitando-se a solicitar a inquirição de testemunhas.
Ou seja, a impugnante prescindiu, na fase procedimental, de demonstrar
documentalmente a sua situação de desemprego e de carência de rendimentos, e
pretende agora através do pedido de impugnação judicial efectuar a prova
substitutiva mediante a comprovação, por inquirição de testemunhas, de factos
indiciários da insuficiência económica quando essa demonstração poderia ser
feita desde logo por via documental e estava ainda em tempo de ser efectuada por
esse meio na fase de impugnação judicial.
Não restam dúvidas de que estaria ao alcance da impugnante preencher e
apresentar no competente serviço fiscal a declaração de rendimentos relativa ao
ano de 2006, bem como a declaração de cessação de actividade da empresa, tal
como poderia obter através do serviço de segurança social próprio o documento
comprovativo da sua situação de desempregada. Podendo demonstrar-se a
insuficiência económica através de prova documental – que a requerente poderia
ter obtido facilmente através do cumprimento de qualquer dessas formalidades -,
e tendo até sido dada oportunidade, na fase procedimental, de satisfazer essas
exigências probatórias, não é possível afirmar – como faz a sentença recorrida –
que a prova testemunhal era a mais adequada e até única capaz de esclarecer os
factos controvertidos. Na verdade, a impugnante não pretende mais do que fazer a
prova, através da inquirição de testemunhas, de factos instrumentais que
indiciariamente permitam ao juiz concluir, através de presunção judicial, pela
existência de uma situação de insuficiência económica – facto essencial de que
depende a procedência da pretensão deduzida em juízo -, quando a esse mesmo
resultado probatório poderia ser obtido, desde logo, por via de elementos
documentais que evidenciariam directamente essa situação de carência económica.
Não é possível, por conseguinte, extrair a ilação – tal como se concluiu, em
situação algo similar, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/89 – de que
a exigência de prova documental como único meio de prova admissível no âmbito da
impugnação judicial do indeferimento do pedido de protecção jurídica é
susceptível de pôr em causa o direito de acesso aos tribunais e à tutela
jurisdicional efectiva.
Estamos, em todo o caso, perante uma situação muito díspar daquela que foi
analisada no acórdão n.º 157/2008, que julgou inconstitucional, por violação do
direito à tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade, a
norma constante do n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro,
interpretada no sentido de restringir aos de natureza documental os meios de
prova utilizáveis para o reconhecimento dos períodos contributivos para a
segurança social verificados nos ex-territórios ultramarinos; o Tribunal
chegou a esse juízo de inconstitucionalidade, por ter constatado, no caso, uma
absoluta indisponibilidade de meios de prova documentais, por virtude da
extinção da instituição de previdência para a qual o interessado terá efectuado
contribuições e do subsequente desaparecimento dos correspondentes arquivos,
vindo a concluir, em conformidade, que a exclusão total e abstracta da
admissibilidade de meios de prova não documental era susceptível de afectar
desproporcionadamente a efectividade da tutela jurisdicional de um direito
constitucionalmente consagrado – o de ver relevar, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho, independentemente do sector de
actividade em que tiver sido prestado (artigo 63.º, n.º 4, da CRP).
Tais premissas não são de todo transponíveis para o caso dos autos, nada
justificando, por tudo o que anteriormente se expôs, a manutenção do julgado.
6. A este propósito, importa ainda notar que a matéria de facto dos presentes
autos é substancialmente idêntica à matéria de facto constante dos autos donde
se tiraram os Acórdãos já citados (havendo, inclusivamente, identidade da
recorrida e do Tribunal a quo).
Assim sendo, é o entendimento adoptado nos Acórdãos citados que se impõe
reiterar no presente recurso. Por conseguinte, pelos fundamentos expostos,
reafirma-se que a norma questionada não padece da inconstitucionalidade que lhe
é apontada pelo recorrente.
III
Decisão
Pelo exposto, e com estes fundamentos, decide-se
a) Não julgar inconstitucional, por violação do artigo 20° da Constituição da
República, a norma do artigo 27º, n° 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na
sua redacção originária, na parte em que estatui que é apenas admissível, para
efeito da dedução do pedido de impugnação judicial, prova documental, quando a
obtenção dessa prova estava ao alcance do requerente do apoio judiciário e este
prescindiu de a apresentar;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão
recorrida para ser reformada de acordo com o juízo de constitucionalidade agora
formulado.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Janeiro 2009
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão