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Processo n.º 963/06
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Um grupo de trinta e um Deputados à Assembleia da República veio requerer, ao
abrigo do disposto no artigo 281º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alínea f),
da Constituição da República Portuguesa, a declaração, com força obrigatória
geral, da ilegalidade e da inconstitucionalidade da Lei n.º 32/2006, de 26 de
Julho (Lei da procriação medicamente assistida), com fundamento em
inconstitucionalidade formal e violação da Lei Orgânica do Referendo, e ainda em
inconstitucionalidade material de diversas das suas normas.
Fundamentaram o pedido nos seguintes termos:
O Decreto da Assembleia da República n.º 64/X (que deu origem à Lei n.º 32/2006,
de 26 de Julho, que regula a procriação medicamente assistida) foi objecto de
votação final global em 25 de Maio de 2006, cerca das 18.00 horas.
Nesse mesmo dia, pelas 9.30 horas, o Presidente da Assembleia da República
recebeu uma petição de referendo de iniciativa popular, subscrita por mais de
setenta e nove mil cidadãos, na qual era solicitada a realização de um referendo
sobre a Lei em debate na Assembleia da República. Tal petição foi apresentada
nos termos dos artigos 115.º, n.º 2, e 167.º, da Constituição e 4.º, n.º 1, e
16.º a 22.º da Lei Orgânica do Referendo (LOR).
A Assembleia da República votou a Lei, desconsiderando a petição popular já
entregue, e declarou que a iniciativa popular de referendo pode ser frustrada
com a votação final global de uma lei, independentemente do momento em que
aquela tenha sido apresentada.
A LOR não prescreve as consequências imediatas da entrega da petição popular no
processo legislativo. Porém, uma vez que está em causa uma iniciativa cujo
objecto se prende com um acto legislativo em processo de apreciação, a entrada
da petição sempre haveria de ter efeito suspensivo sobre o referido processo,
sob pena de se tornar inútil.
A não suspensão do procedimento legislativo até à decisão da iniciativa popular
de referendo elimina um instrumento de democracia participativa com assento
constitucional, em consequência de uma agenda parlamentar que os peticionários
não dominavam. Tal situação configura vício de inconstitucionalidade formal, por
violação do artigo 115.º da Constituição, e de ilegalidade, por violação dos
artigos 4.º, 17.º a 22.º da LOR.
Além disso, o diploma questionado foi enviado ao Presidente da República, para
promulgação, imediatamente a seguir à fixação da redacção final do texto legal
(em 23 de Junho de 2006), antes de ter decorrido o prazo que assiste aos
Deputados para apresentar reclamação do texto final (nas três sessões
legislativas subsequentes), violando o disposto nos artigos 166.º e 167.º do
Regimento da Assembleia da República.
A Lei n.º 32/2006 também apresenta vários problemas de inconstitucionalidade
material e de violação da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina
(Convenção de Oviedo) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH),
que, por via do artigo 8.º da Constituição, fazem parte do ordenamento jurídico
português.
O artigo 4.º, n.º 2, admite o recurso à procriação medicamente assistida (PMA)
com vista à selecção e/ou eugenia, permitindo a triagem de embriões humanos em
função de características morfológicas ou genéticas e para cumprimento de
desideratos não identificados (para evitar a “transmissão de doenças de origem
genética, infecciosa ou outras”). Não pode aceitar-se que esta norma possa
servir de pretexto, por exemplo, para a escolha de sexo dos descendentes. O
preceito em questão viola o disposto nos artigos 24.º, 25.º, 26.º, n.º 3, e
13.º, n.º 1, da Constituição, bem como os artigos 1.º e 2.º da Convenção de
Oviedo.
O artigo 6.º não impõe um limite máximo de idade para recorrer às técnicas de
PMA, admitindo, por exemplo, que uma mulher possa ter um filho aos 67 anos.
Praticamente todas as legislações da Europa ocidental estabelecem limites de
idade para recurso à PMA e as mais liberais vão até à idade fértil da mulher. À
semelhança do que se encontra previsto no regime legal da adopção (artigos
1974.º, n.º 1, e 1979.º, n.º 3, do Código Civil), as relações a estabelecer
deverão ser de filiação, em homenagem ao interesse superior da criança, não
devendo este ser afastado em virtude de um desejo pessoal de maternidade a todo
o custo. O artigo 6.º da Lei n.º 32/2006 atenta contra os artigos 25.º, 26.º,
64.º, 67.º, n.º 2, alínea e), 68.º, e 69.º da Constituição, bem como os artigos
1.º e 2.º da Convenção de Oviedo. De facto, a PMA deve ser dirigida para a
protecção da família, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana,
tendo em conta a inviolabilidade da vida e integridade humanas e a identidade
pessoal.
Os artigos 7.º, n.º 3, e 30.º, n.º 2, alínea q), admitem a criação de
embriões-medicamento, instrumentalizando o embrião humano e violando os artigos
24.º, 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da Constituição, bem como os artigos 1.º e 2.º da
Convenção de Oviedo.
Os artigos 9.º, n.ºs 2 a 5, e 30.º, n.º 2, alíneas e) e g), colidem com o
disposto nos artigos 24.º, 26.º, 68.º e 69.º da Constituição e nos artigos 1.º,
2.º, 11.º, 14.º, 15.º e 18.º da Convenção de Oviedo.
O artigo 10.º prevê o recurso a bancos de esperma e a dádiva de ovócitos,
permitindo a existência de filhos de pai ou mãe biológicos não identificados.
Esta previsão opõe-se ao disposto nos artigos 36.º, n.º 4, 25.º, n.º 1, e 26.º,
n.º 1, da Constituição, e vai contra a jurisprudência constitucional que
reconhece a existência de direito fundamental ao conhecimento e ao
reconhecimento da paternidade, na medida em que esta representa uma referência
essencial da pessoa (Acórdãos n.º 99/98, n.º 413/89, n.º 451/89 e n.º 370/91), e
contra a doutrina que defende que o direito à identidade abrange o direito à
historicidade pessoal (Gomes Canotilho e Vital Moreira).
O artigo 10.º também coloca em xeque a dignidade da mulher, visto que é simples
imprimir um cunho mercantil (apesar de não visível) à recolha de ovócitos –
atenta a esse facto, a Comissão da Igualdade e dos Direitos das Mulheres, do
Parlamento Europeu, em 22 de Janeiro de 2006, aprovou, por unanimidade, uma
recomendação a todos os países da Comunidade Europeia, para a criação de leis
que combatam esse flagelo, que condena as mulheres à exploração – e são
conhecidos casos de morte de mulheres por hiperestimulação ovária (processo que
permite aquela recolha). O preceito legal em questão viola os artigos 9.º,
alínea d), 24.º, 25.º, 26.º, 36.º, 64.º e 67.º, todos da Constituição, bem como
todas as disposições da DUDH e da Convenção de Oviedo.
O artigo 15.º, n.ºs 1 a 4, viola o disposto nos artigos 9.º, alínea d), 13.º,
n.º 2, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 4, da Constituição. Ao indivíduo
nascido por recurso à procriação heteróloga está vedada a hipótese de conhecer
os seus antecedentes médicos, ficando diminuído nos seus direitos e incapacitado
de usar a medicina preventiva – o recurso a um processo judicial para obter essa
informação não se compadece com a necessidade de tratamentos médicos urgentes.
Tendo em conta que todos os intervenientes no processo de PMA têm dever de
sigilo, a pessoa concebida através dessa técnica nem sequer tem forma de
suspeitar que a sua identidade real não corresponde à declarada no assento de
nascimento. Essa circunstância é ainda mais grave tendo em conta que não existe
limitação legal do número de inseminações que um mesmo dador pode proporcionar
e, num país com dez milhões de habitantes, os riscos de consanguinidade são
evidentes.
Os artigos 19.º, 20.º, 21.º e 27.º conduzem à disponibilidade do direito ao
conhecimento da paternidade, em contradição com a jurisprudência constitucional
constante do Acórdão n.º 413/89. O artigo 20.º, n.º 5, da Lei n.º 32/2006 faz
derivar a paternidade de uma relação obrigacional negocial, podendo ser
discutida toda a gama de vícios e formas dessa declaração; esse mesmo artigo
colide com o disposto no artigo 6.º, ao admitir a procriação por deliberação de
um só progenitor, afrontando o princípio do superior interesse da criança e a
protecção desta, em ordem ao seu desenvolvimento integral, nos termos do artigo
68.º da Constituição. O artigo 35.º da Lei n.º 32/2006 não prevê qualquer sanção
para a violação do princípio da biparentalidade, atentando contra o disposto nos
artigos 25.º, 26.º, 36, n.º 4, e 68.º, todos da Constituição.
Os artigos 24.º e 25.º estabelecem o princípio da criação discricionária de
embriões, por exercício do poder médico/científico. Porém, os embriões criados
têm pai e mãe, a quem assistem os direitos constitucionais de maternidade e
paternidade, consagrados no artigo 68.º da Constituição. Nesta matéria há que
honrar o primado do ser humano sobre a ciência, devendo ser tidos em conta os
exemplos de países como a Alemanha, Áustria, Itália e Irlanda, que não permitem
a criação de embriões excedentários. A implantação de mais de um embrião no
útero humano também coloca questões de saúde pública, pois está cientificamente
comprovado que a gravidez múltipla constitui um factor agravante da malformação
do feto. Entende-se existir desconformidade dos preceitos mencionados com o
disposto nos artigos 64.º e 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição, assim como
nos artigos 1.º, 2.º, 11.º, 14.º e 18.º da Convenção de Oviedo.
O diagnóstico genético pré-implantatório previsto nos artigos 28.º e 29.º
destina-se à produção de seres humanos seleccionados segundo qualidades
pré-estabelecidas, consubstanciando uma manipulação contrária à dignidade,
integridade e identidade humanas. Além disso, o legislador parlamentar não
esperou que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) se
pronunciasse sobre esta questão (estando este órgão, à data, a preparar um
parecer sobre o assunto), desconsiderando as competências legais atribuídas pela
Lei n.º 14/90, de 9 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 193/99, de 7
de Junho, e pelas Leis n.º 9/2003, de 13 de Maio, e n.º 6/2004, de 26 de
Fevereiro. Contesta-se a harmonia dos dois preceitos mencionados com o disposto
nos artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da Constituição, e nos artigos 11.º a 14.º
da Convenção de Oviedo.
O artigo 36.º admite que não seja sancionada a clonagem reprodutiva, no âmbito
da PMA. Apesar de se declarar que a clonagem reprodutiva é proibida, a sua
prática não acarreta efeitos para o infractor. Ora, a clonagem reprodutiva é
proibida em todo o mundo ocidental e onde vigora um Estado de direito. O
Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo relativo à clonagem humana e o artigo
11.º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem, de
1997, proíbem a clonagem reprodutiva. O preceito em análise viola estes
instrumentos internacionais (que constituem lei interna) e ainda os artigos 8.º,
9.º, 64.º e 68.º da Constituição.
O artigo 39.º apenas sanciona a maternidade de substituição a título oneroso,
nada estatuindo acerca dos negócios gratuitos (que o artigo 8.º não admite).
Essa falta de sanção revela permissividade relativamente ao negócio da
maternidade de substituição, representa um risco para a dignidade e outros
direitos do ser humano e constitui fraude à lei, colidindo com o disposto nos
artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da Constituição e em todas as disposições da
Convenção de Oviedo.
2. Efectuada a notificação a que se refere o artigo 54º da Lei do Tribunal
Constitucional, a Assembleia da República respondeu fazendo a entrega da cópia
dos Diários da Assembleia da República onde foram publicados os trabalhos
preparatórios da Lei n.º 32/2006, bem como dos pareceres e demais documentação
relativa à tramitação da petição de referendo recebida em 25 de Maio de 2006, e
prestando, em suma, os seguintes esclarecimentos:
Em 25 de Maio de 2006, os representantes de um grupo de 78333 cidadãos eleitores
entregaram à Assembleia da República uma petição para a realização de um
referendo nacional sobre a procriação medicamente assistida.
Nesse mesmo dia foi aprovado, em votação global final, o texto elaborado pela
Comissão de Saúde (concluído em 22 de Maio de 2006), relativo aos projectos de
lei do BE, do PS, do PCP e do PSD sobre procriação medicamente assistida. Antes
dessa votação, o CDS-PP apresentou um requerimento solicitando o respectivo
adiamento, pelo prazo de uma semana, mas esse requerimento foi rejeitado, com
votos contra do PS, do PCP, do BE e do PEV, e votos a favor do PSD, do CDS-PP e
de uma Deputada do PS.
A petição foi enviada à Comissão de Saúde, em 26 de Maio de 2006, e esta emitiu
parecer, em 8 de Junho de 2006, manifestando dúvidas acerca da admissibilidade
da petição e solicitando ao Presidente da Assembleia da República que enviasse o
processo à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias, para esta se pronunciar sobre a questão. A petição foi enviada à
Comissão de Assuntos Constitucionais, em 12 de Junho de 2006, e esta emitiu
parecer, em 21 de Junho de 2006, concluindo que a iniciativa popular de
referendo não cumpria o disposto no artigo 17.º, n.º 4, da Lei Orgânica do
Referendo. O Presidente da Assembleia da República enviou, em 22 de Junho de
2006, esse parecer à Comissão de Saúde e esta, em 27 de Junho de 2006, emitiu
parecer, concluindo que a petição era ilegal e não deveria ser admitida.
Em 28 de Junho de 2006, o Presidente da Assembleia da República notificou os
representantes dos cidadãos eleitores subscritores da petição para, querendo,
procederem ao aperfeiçoamento desta, apresentando um projecto de lei relativo à
matéria a referendar (Despacho n.º 102/X). Em 29 de Junho de 2006, dois
Deputados do PCP recorreram desse despacho, entendendo que a petição não deveria
ser admitida, seguindo os pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais e da
Comissão de Saúde. Esse recurso foi encaminhado para a Comissão de Assuntos
Constitucionais, que emitiu parecer, em 4 de Junho de 2006, concluindo pela
improcedência do recurso. Esse parecer foi submetido à votação no Plenário, em 5
de Julho de 2005, tendo sido aprovado com votos a favor do PS, do PSD e do
CDS-PP, e votos contra do PCP, do BE e do PEV.
Em 10 de Junho de 2006, os mandatários da petição entregaram à Assembleia da
República um projecto de lei que regula as técnicas de procriação medicamente
assistida.
Na sequência desse aperfeiçoamento, em 18 de Julho de 2006, o Presidente da
Assembleia da República admitiu a iniciativa popular de referendo e enviou-a à
Comissão de Saúde, para os efeitos previstos no artigo 20.º, n.ºs 5 e 6, da Lei
Orgânica de Referendo. Entretanto, suspenderam-se os trabalhos parlamentares e,
após o início da sessão legislativa seguinte, a Comissão ouviu os representantes
dos cidadãos eleitores subscritores da petição, em 26 de Setembro de 2006.
O projecto de resolução que incorporou o texto da iniciativa de referendo (n.º
159/X/2) foi entregue ao Presidente da Assembleia da República em 6 de Outubro
de 2006, foi anunciado no Plenário em 19 de Outubro de 2006 e foi publicado no
Diário da Assembleia da República, Série II-A, em 21 de Outubro de 2006.
O projecto de resolução n.º 159/X/2 foi apreciado em 15 de Novembro de 2006 e
foi votado na reunião plenária de 16 de Novembro de 2006, tendo sido rejeitado,
com votos contra do PS, do PSD, do BE e do PEV, votos a favor do CDS-PP, de duas
Deputadas do PS e de um Deputado do PSD, e a abstenção de uma Deputada do PS
(cfr. Diário da Assembleia da República, Série I, de 16 e 17 de Novembro de
2006).
3. Elaborado o memorando a que alude o artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, cabe decidir.
II – Fundamentação
Vícios formais
4. Os requerentes começam por invocar dois vícios formais que poderão afectar a
Lei n.º 32/2006 e que convirá apreciar preliminarmente: (a) a não suspensão do
procedimento legislativo, por efeito da apresentação de uma iniciativa popular
de referendo, e (b) inobservância do prazo que o Regimento da Assembleia da
República concede aos Deputados para reclamarem da redacção final do diploma,
antes do envio ao Presidente da República, para promulgação.
a) A iniciativa popular de referendo
A Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que regula a procriação medicamente
assistida, procurando assim dar cumprimento ao específico dever de regulamentar
a matéria, constante do artigo 67.º, n.º 2, alínea e), da Constituição da
República Portuguesa, teve origem nos projectos de lei n.º 141/X, do Bloco de
Esquerda (BE), n.º 151/X, do Partido Socialista (PS), n.º 172/X, do Partido
Comunista Português (PCP), e n.º 176/X, do Partido Social Democrata (PSD).
Os projectos foram discutidos no dia 21 de Outubro de 2005 e aprovados, na
generalidade, no dia 10 de Novembro seguinte (Diários da Assembleia da
República, de 22 de Outubro de 2005, I série, n.º 58, págs. 2641-2657, e de 11
de Novembro de 2005, I série, n.º 60, págs. 2823-2824), tendo sido agendada a
votação final global, com base num texto elaborado na comissão parlamentar de
saúde, para a reunião plenária de 25 de Maio de 2006, que decorreria a partir
das 15 horas e 10 minutos.
Nesse mesmo dia, às 9 horas e 30 minutos, o Presidente da Assembleia da
República recebeu uma petição popular, na qual os cidadãos signatários vinham
«propor à Assembleia da República a realização de um referendo nacional sobre as
questões da procriação medicamente assistida», apresentando, também, a proposta
de três perguntas que estavam relacionadas com os projectos de Lei n.º 141-X,
151-X, 172-X, 176-X, em apreciação na Assembleia da República, e que eram as
seguintes: «1) Concorda que a lei permita a criação de embriões humanos em
número superior àquele que deva ser transferido para a mãe imediatamente de uma
só vez? 2) Concorda que a lei permita a geração de um filho sem um pai e uma mãe
biológicos unidos entre si por uma relação estável? 3) Concorda que a lei admita
o recurso à maternidade de substituição permitindo a gestação no útero de uma
mulher de um filho que não é biologicamente seu?».
Na sequência desta iniciativa, o CDS-PP solicitou o adiamento da votação por uma
semana, mas o requerimento foi rejeitado, com votos contra do PS, do PCP, do BE
e do PEV, e votos a favor do PSD, do CDS-PP e de uma Deputada do PS (Diário da
Assembleia da República, de 26 de Maio de 2006, I série, n.º 127, pág. 5859).
Submetido, então, à votação, o texto final da Comissão de Saúde foi aprovado,
com votos a favor do PS, do PCP, do BE, do PEV e de oito Deputados do PSD; teve
porém os votos contra do PSD, do CDS-PP e de três Deputados do PS; e contou com
a abstenção de vinte e um Deputados do PSD (ibidem).
Só, posteriormente, se deu seguimento ao processo referendário que culminaria
com a rejeição, na reunião plenária de 16 de Novembro de 2006, da proposta de
Resolução n.º 159/X, que se dirigia à realização do referendo nacional, tendo na
ocasião votado contra o PS, o PSD, o PCP, o BE e Os Verdes e tendo votado a
favor o CDS/PP, um deputado do PDS e duas deputadas do PS (Diário da Assembleia
da República, de 17 de Novembro de 2006, I série, n.º 21, pág. 86).
À luz desta factualidade, os requerentes questionam a validade formal da Lei n.º
32/2006, considerando que a mera entrada de uma iniciativa popular de referendo
deveria ter dado lugar à suspensão do procedimento legislativo, o que – segundo
entendem - pode caracterizar tanto uma inconstitucionalidade formal, por
violação do disposto no artigo 115º da Constituição, como uma ilegalidade por
violação de Lei Orgânica do Referendo, entendida como lei de valor reforçado.
É esta, pois, a primeira questão que cabe dilucidar.
O artigo 115.º da Constituição da República, no seu n.º 1, estabelece que «[o]s
cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a
pronunciar-se directamente, a título vinculativo, através de referendo, por
decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República
ou do Governo, em matérias das respectivas competências, nos casos e nos termos
previstos na Constituição e na lei». O n.º 2 acrescenta que «[o] referendo pode
ainda resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da República, que
será apresentada e apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei».
Em consonância com o que aí se prevê, o artigo 167º, sob a epígrafe «Iniciativa
da lei e do referendo», explicita, no seu n.º 1, que «[a] iniciativa da lei e do
referendo compete aos Deputados, aos grupos parlamentares e ao Governo, e ainda,
nos termos e condições estabelecidos na lei, a grupos de cidadãos eleitores
(…)»; ao passo que o artigo 197º, n.º 1, alínea e), igualmente confere ao
Governo, no quadro da sua competência política, a faculdade de «[p]ropor ao
Presidente da República a sujeição a referendo de questões de relevante
interesse nacional, nos termos do artigo 115º». Sendo que, em qualquer dos
casos, é ao Presidente da República que compete decidir sobre a convocação do
referendo (artigo 134º, alínea c)).
Em concretização de todos estes princípios, a Lei Orgânica do Referendo (LOR),
aprovada pela Lei Orgânica n.º 15-A/98, de 3 de Abril (entretanto alterada pela
Lei Orgânica n.º 4/2005, de 8 de Setembro), distingue entre proposta de
referendo da Assembleia da República, que pode ser da iniciativa parlamentar ou
governamental ou da iniciativa popular, e proposta de referendo do Governo, que
resulta do exercício de uma competência própria, quando este pretenda apresentar
a iniciativa referendária directamente perante o Presidente da República (cfr.
artigos 10º, 14º, 16º e 36º, n.ºs 3 e 4).
E é à luz deste critério legal que deve entender-se a norma do artigo 4.º, n.º
2, da LOR quando prescreve: “[s]e a Assembleia da República ou o Governo
apresentarem proposta de referendo sobre convenção internacional submetida a
apreciação ou sobre projecto ou proposta de lei, o respectivo processo
suspende-se até à decisão do Presidente da República sobre a convocação do
referendo e, em caso de convocação efectiva, até à respectiva realização”.
Neste contexto, facilmente se compreende que o acto de apresentação da proposta
de referendo de que fala o preceito citado não é o da apresentação da iniciativa
popular de referendo à Assembleia da República, mas sim o da apresentação da
proposta de referendo, por parte da Assembleia da República ou do Governo, ao
Presidente da República. Efectivamente, a iniciativa popular de referendo
consagrada nos artigos 115.º, n.º 2, e 167.º, n.º 1, da Constituição, é dirigida
à Assembleia da República, podendo este órgão de soberania rejeitá-la ou
aprová-la (artigos 16º e 21.º da LOR). E é da aprovação da iniciativa popular,
por parte da Assembleia da República, que nasce a proposta de referendo que
ulteriormente é submetida à apreciação do Presidente da República.
Importa, portanto, não confundir a iniciativa de referendo (que cabe à
Assembleia da República, ao Governo e aos cidadãos eleitores portugueses) com a
proposta de referendo (que só à Assembleia da República e ao Governo compete
aprovar). É à apresentação desta proposta ao Presidente da República que o
artigo 4.º, n.º 2, da LOR atribui efeito suspensivo do procedimento legislativo
em curso.
Assim sendo, a entrega, na Assembleia da República, de uma iniciativa popular de
referendo não suspende o procedimento legislativo. Esse efeito suspensivo apenas
poderia decorrer do posterior acto de apresentação da proposta de referendo ao
Presidente da República, se entretanto for aprovado, em plenário, o projecto de
resolução que incorpora a iniciativa popular.
No nosso sistema constitucional, o referendo constitui, pois, um instrumento de
participação democrática «semidirecta» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, 2003, págs. 294-298) que deverá
conjugar-se com os mecanismos próprios da democracia representativa, ou seja,
deverá receber a aprovação dos órgãos de soberania directamente eleitos: a
Assembleia da República, que votará a apresentação da proposta de referendo ao
Presidente da República e o Presidente da República que tomará a decisão de
submeter ou não a questão ou o texto em causa a referendo.
É isso também o que explicita Jorge Miranda, quando refere que «a iniciativa de
referendo a que alude o n.º 2 do artigo 115.º não passa de pré-iniciativa, por
ter de ser mediatizada pela Assembleia» (Jorge Miranda/Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra 2006, pág. 303).
Deste modo, a iniciativa popular de referendo está sempre dependente da sua
posterior aprovação pela Assembleia da República num específico processo
referendário que obedece a determinados pressupostos e a uma tramitação própria
(artigos 16.º a 21.º da LOR) e que não tem, em si, a capacidade de
automaticamente paralisar um procedimento legislativo que se encontre já
pendente.
Nem essa exigência resulta do disposto no artigo 115º, n.º 2, da Constituição,
que apenas abre a possibilidade de a iniciativa referendária (que não a proposta
de referendo) pertencer a grupos de cidadãos eleitores.
Como é de concluir, a não suspensão do procedimento legislativo, aquando da
entrega à Assembleia da República da iniciativa popular de referendo sobre o
projecto de diploma em apreciação, não enferma de inconstitucionalidade formal
nem viola a regra do artigo 4.º, n.º 2, da LOR.
b) O prazo de reclamação da redacção final do diploma
Sustentam ainda os requerentes que o Decreto da Assembleia da República n.º 64/X
(que deu origem à Lei n.º 32/2006) foi enviado ao Presidente da República, para
promulgação, imediatamente a seguir à fixação da redacção final do texto legal,
antes de ter decorrido o prazo que assiste aos Deputados para apresentar
reclamação do texto final (nas três sessões legislativas subsequentes), violando
o disposto nos artigos 166.º e 167.º do Regimento da Assembleia da República.
Todavia, o Regimento da Assembleia da República – que, à data dos factos acima
descritos, constava da Resolução da Assembleia da República n.º 4/93, de 2 de
Março, com as alterações efectuadas pelas Resoluções da Assembleia da República
n.º 15/96, de 2 de Maio, n.º 3/99, de 20 de Janeiro, n.º 75/99, de 25 de
Novembro, e n.º 2/2003, de 17 de Janeiro, mas que entretanto foi revogado e
substituído pelo Regimento da Assembleia da República n.º 1/2007, publicado no
Diário da República, Série I, de 20 de Agosto de 2007 – não pode ser utilizado
como parâmetro de aferição da legalidade da Lei n.º 32/2006.
Por um lado, como se reconhece no acórdão n.º 63/91 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 18.º, págs. 161 e segs.), o Regimento deve ser tido como um
acto normativo especifico ou sui generis, enquanto expressão da autonomia
normativa interna da Assembleia da República, que poderá ser objecto de um juízo
de constitucionalidade, por virtude da sua vinculação à Constituição, mas que
não é reconduzível a acto legislativo em sentido próprio (no mesmo sentido,
Jorge Miranda, Competência interna da Assembleia da República, in «Estudos sobre
a Constituição», vol. I, 1977, Lisboa, pág. 294, e Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, citado, pág. 856).
Por outro lado, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, a
fiscalização abstracta da legalidade de normas constantes de acto legislativo só
pode ser requerida quando esteja em causa a «violação de lei com valor
reforçado», sendo certo que não é aplicável ao caso qualquer das outras
situações previstas nas alíneas c) e d) do mesmo número.
De acordo com a jurisprudência constitucional sistematizada no acórdão n.º
374/2004 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol 59.º, pág. 51), o artigo
112.º, n.º 3, da Constituição prevê quatro espécies de leis com valor reforçado,
as duas primeiras tendo na base critérios formais ou procedimentais e as duas
últimas assentando em critérios materiais: (a) as leis orgânicas, isto é, as
leis da Assembleia da República que versem sobre as matérias mencionadas no
artigo 166.º, n.º 2; (b) as leis que carecem de aprovação por maioria de dois
terços, nos termos do artigo 168.º, n.º 6; (c) as leis que, por força da
Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis; e (d) as
leis que, por força da Constituição, devam ser respeitadas por outras leis.
Ora, o Regimento da Assembleia da República, ainda que pudesse ser entendido
como um tipo de acto legislativo, não integra nenhum desses grupos de leis com
valor reforçado, o que logo afasta a possibilidade de ser invocado como
parâmetro de legalidade para os efeitos previstos naquela disposição
constitucional.
É certo que a doutrina questiona se não deverá atribuir-se valor reforçado às
normas regimentais directamente executoras da Constituição, para efeitos de
controlo da legalidade (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, citado, pág. 857). Mas essa hipótese não se coloca no caso sub
iuditio, dado que os artigos 166.º e 167º do Regimento da Assembleia da
República, agora em causa, incidindo sobre a redacção final dos projectos e
propostas de lei e as reclamações contra inexactidões, regulam aspectos do
procedimento de formação das leis relativamente aos quais não há directrizes
constitucionais.
Em face do exposto, entende-se ser de não tomar conhecimento do pedido de
fiscalização da legalidade da Lei n.º 32/2006, com fundamento na violação dos
artigos 166.º e 167.º do Regimento da Assembleia da República.
Vícios materiais
5. Os requerentes entendem que a Lei n.º 32/2006 contém várias soluções
normativas que violam não só a Constituição da República Portuguesa, mas,
também, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, ainda, a Convenção para
a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às
Aplicações da Biologia e da Medicina (conhecida por Convenção de Oviedo), o
respectivo Protocolo Adicional sobre Clonagem Humana e a Declaração Universal
sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
Torna-se, por isso, conveniente formular algumas considerações gerais quanto aos
parâmetros normativos que poderão estar em causa em matéria de procriação
medicamente assistida.
a) Parâmetros de constitucionalidade
No âmbito do controlo da constitucionalidade das leis é de ter em conta, antes
de mais, a Constituição da República Portuguesa, embora se não possa excluir
totalmente a possível relevância constitucional dos instrumentos internacionais,
na medida em que integrem normas que possam considerar-se como correspondendo a
direito constitucionalizado ou que possam ser utilizadas como critério de
interpretação de normas constitucionais.
A única referência expressa da Constituição da República Portuguesa à procriação
medicamente assistida consta do artigo 67.º, n.º 2, alínea e), que determina:
«[i]ncumbe ao Estado (...) regulamentar a procriação assistida em termos que
salvaguardem a dignidade da pessoa humana».
O legislador constitucional não se limitou, como se vê, a impor um dever de
regulamentar a procriação medicamente assistida. Deu ainda uma referência
normativa, uma indicação de princípio, a que o legislador ordinário se deverá
submeter, ao exigir que a matéria seja regulada «em termos que salvaguardem a
dignidade da pessoa humana».
A norma resolve, por um lado, a questão da admissibilidade constitucional da
procriação assistida, ao estabelecer uma imposição constitucional de regulação;
mas, simultaneamente, não reconhece um direito a toda e qualquer procriação
possível segundo o estado actual da técnica, excluindo, à partida, as formas de
procriação assistida lesivas da dignidade da pessoa humana (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I,
4ª edição, Coimbra, pág. 859).
Ao fazer um apelo ao princípio da dignidade da pessoa humana, no âmbito da
procriação medicamente assistida, o preceito remete para o estabelecido no
artigo 1º da Constituição, onde se declara que «Portugal é uma República
soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada
na construção de uma sociedade livre, justa e solidária». Ao basear a República
na «dignidade da pessoa humana», a Constituição atribui a este princípio uma
dimensão objectiva, visto que pretende defini-lo como um critério de
legitimidade do poder político estadual (Maria Lúcia Amaral, O princípio da
dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional, Relatório do
Tribunal Constitucional Português à 9ª Conferência Trilateral Portugal, Espanha
e Itália, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Neste sentido, o
princípio da dignidade da pessoa humana surge, não como um específico direito
fundamental que poderia servir de base à invocação de posições jurídicas
subjectivas, mas antes como um princípio jurídico que poderá ser utilizado na
concretização e na delimitação do conteúdo de direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados ou na revelação de direitos fundamentais não
escritos.
É nesta linha de entendimento que pode afirmar-se que o princípio da dignidade
da pessoa humana «confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância
prática ao sistema de direitos fundamentais» (Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, Tomo IV, 4ª edição, Coimbra, 2008, pág. 197).
Ao remeter para a dignidade da pessoa humana, o artigo 67.º, n.º 2, alínea e),
da Constituição da República pretende, por conseguinte, primariamente,
salvaguardar os direitos das pessoas que mais directamente poderão estar em
causa por efeito da aplicação de técnicas de procriação assistida, e, em
especial, o direito à integridade física e moral (artigo 25.º), o direito à
identidade pessoal, à identidade genética, ao desenvolvimento da personalidade e
à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º), o direito a
constituir família (artigo 36.º), e, ainda, o direito à saúde (artigo 64.º). Sem
ignorar, nesse plano, que no universo subjectivo de protecção da norma estão não
apenas os beneficiários e as pessoas envolvidas como participantes no processo,
mas também as pessoas nascidas na sequência da aplicação das técnicas de
procriação medicamente assistida.
É, por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana, em articulação com
o direito à identidade genética, que justifica a imposição de deveres estaduais
na defesa da vida e integridade do ser humano contra práticas eugénicas de
selecção de pessoas e contra clonagens reprodutivas do ser humano (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, idem, pág. 200).
É ainda no contexto de reconhecimento da universalidade do princípio da
dignidade da pessoa humana que se deverá situar a abertura da Constituição ao
direito internacional, que resulta do seu artigo 16º, n.º 2, ao prescrever:
«[o]s preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem».
Enunciando-se aqui um princípio de interpretação conforme à Declaração Universal
dos Direitos do Homem, o alcance útil do preceito é o de permitir recorrer à
Declaração Universal para fixar o sentido interpretativo de uma norma
constitucional de direitos fundamentais a que não possa atribuir-se um
significado unívoco, ou para densificar conceitos constitucionais indeterminados
referentes a direitos fundamentais (Gomes Canotilho/Vital Moreira, idem, págs.
367-368; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976, 3ª edição, Coimbra, 2007, pág. 45). A função constitucional dessa
disposição é também salientada por Moura Ramos, quando refere que «o artigo
16.º, n.º 2, eleva [a Declaração Universal dos Direitos do Homem] ao estatuto de
critério de interpretação e de integração das regras legais e mesmo
constitucionais em matéria de direitos fundamentais. Para além da recepção da
Declaração Universal dos Direitos do Homem na ordem jurídica interna,
constata-se pois que se reconhece a este instrumento um lugar especial, quase
supra-constitucional, a partir do momento em que o concebemos como elemento de
referência para a interpretação das próprias regras constitucionais» (L'
Intégration du droit international et communautaire dans l' ordre juridique
national, in «Da Comunidade Internacional e do seu Direito», Coimbra, 1996, pág.
254).
Para além disso, não pode excluir-se, à partida, e em tese geral, em função das
cláusulas de recepção que decorrem do artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição, a
possível relevância constitucional de outros instrumentos de direito
internacional aplicáveis e, em particular, para o que aqui importa, as
Convenções e Declarações mais ligadas ao Bio-direito, como sucede com a
Convenção de Oviedo, o respectivo Protocolo Adicional sobre Clonagem Humana e a
Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
Tudo está em saber – aspectos que serão analisados mais adiante – se as
disposições delas constantes consagram direitos fundamentais internacionais que
possam complementar outros que se encontrem expressamente previstos na
Constituição, e que, como tal, devam ser perfilhados pela ordem jurídica
portuguesa nos termos do artigo 16.º, n.º 1 (quanto a esta possibilidade, Gomes
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, pág. 369;
Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
citado, pág. 45).
Uma especial referência merece ainda o direito comparado. É claro que o Direito
dos outros países não é parâmetro de constitucionalidade. Mas não há dúvida de
que em matérias que se ligam a problemas humanos tão universais como os
relacionados com a procriação medicamente assistida poderá ter interesse saber o
que sucede no âmbito de outras experiências jurídicas e (sem perda do sentido de
autonomia de cada sistema jurídico) tirar daí porventura conclusões, em especial
quando seja possível induzir princípios jurídicos comuns de tais experiências
(sobre a importância do direito comparado no domínio da jurisdição
constitucional, veja-se Romano Orrú, La giustizia costituzionale in azione e il
paradigma comparato: l' esperienza portoghese, Napoli, 2006).
A importância de todos estes dados compreende-se em vista da “abertura” dos
parâmetros constitucionais aplicáveis em matéria de procriação medicamente
assistida, mas serão estes a oferecer os decisivos critérios de decisão. A
Constituição erige a dignidade da pessoa humana ao estatuto de referência
primeira em matéria de procriação medicamente assistida e é em função desse
princípio e dos direitos fundamentais em que ele se pode concretizar que se
deverá aferir a validade das soluções normativas consignadas na Lei n.º 32/2006.
b) Os parâmetros de legalidade
Como vimos, os requerentes entendem que a Lei n.º 32/2006 contém várias
disposições que violam não só a Constituição, mas também a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os
Direitos Humanos, a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da
Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (Convenção
de Oviedo), e, ainda, o respectivo Protocolo Adicional sobre Clonagem Humana.
Sustentam que esses instrumentos de direito internacional vinculam o Estado
Português, por via do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, e que as disposições
da Lei n.º 32/2006 que as contrariem padecem não só de um vício de
constitucionalidade mas também de um vício de ilegalidade.
Cumpre começar por dizer, no que se refere à Declaração Universal dos Direitos
do Homem, que os requerentes não especificam quais as normas que poderão
considerar-se violadas, tendo-se limitado a uma referência genérica de
desconformidade do estipulado na Lei com o que consta da Declaração.
Em todo o caso, os princípios que poderão estar em causa, tendo em conta o
sentido geral da argumentação desenvolvida pelos requerentes, são os atinentes à
dignidade do ser humano e à protecção da vida humana, a que aludem os artigos 1º
e 3º dessa Declaração, e que podem entender-se, segundo alguma doutrina, como
pertencentes ao jus cogens, enquanto princípios de vocação universalista, a que
haverá de atribuir-se um valor constitucional ou até supraconstitucional por
virtude do reconhecimento que desde logo resulta do disposto no artigo 7º, n.º
1, da Lei Fundamental (neste sentido, referindo-se especificadamente a essas
disposições da Declaração Universal, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 90; Jorge Miranda, Curso de
Direito Internacional Público, Principia, 2002, págs. 156-157; admitindo que
regras formalmente convencionais possam integrar, pela sua natureza universal, o
jus cogens internacional, também Moura Ramos, Relações entre a ordem interna e o
direito internacional e comunitário, in «Da Comunidade Internacional e do seu
Direito», citado, págs. 272-273).
E, ainda que assim não fosse, essas normas sempre deveriam entender-se como
consagrando direitos materialmente fundamentais, por efeito da integração
operada pelo artigo 16º, n.º 1, da Constituição.
No ponto, porém, em que as mencionadas normas de direito internacional se
encontram, elas próprias, reproduzidas no texto constitucional, designadamente
por força da referência que lhes é feita nos artigos 1º e 24º, e, desse modo,
foram consumidas pela Constituição, não há motivo para erigir essas disposições
como parâmetro autónomo de validade da lei interna, e, quando muito, por força
da determinação constante do artigo 16º, n.º 2, poderão servir como critério de
interpretação dos correspondentes preceitos constitucionais que forem ao caso
directamente aplicáveis (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, vol. I, citada, pág. 367).
Em relação aos três outros instrumentos de direito internacional invocados, a
Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, a Convenção de
Oviedo e o respectivo Protocolo, só estes dois últimos constituem direito
internacional convencional que vincule formalmente o Estado Português, nos
termos previstos no artigo 8.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
De facto, a Convenção de Oviedo, que entrou em vigor na ordem jurídica
internacional em 1 de Dezembro de 1999, e o respectivo Protocolo Adicional sobre
Clonagem Humana, que entrou em vigor em 1 de Março de 2001, foram aprovados pela
Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, de 3 de Janeiro de 2001, e
ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/2001, da mesma data. E
iniciaram a sua vigência na ordem jurídica portuguesa em 1 de Dezembro de 2001
(artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, em conjugação com o artigo 33.º, n.º 4, da
Convenção de Oviedo e o artigo 5.º, n.º 2, do respectivo Protocolo Adicional).
Diversamente, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos
foi adoptada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), na sua 29.ª Sessão, em 1997, sabendo-se
que Portugal aderiu à Convenção que criou a UNESCO em 11 de Setembro de 1974.
Estamos perante uma Declaração solene adoptada por uma organização internacional
de que Portugal faz parte, mas que, não se encontrando sujeita a ratificação,
não vincula formalmente o Estado Português, nos termos e para os efeitos do
artigo 8.º da Constituição.
Quanto ao valor paramétrico daqueles dois outros instrumentos de direito
internacional (os únicos que importa agora tomar em consideração), não poderá
excluir-se que algumas das suas disposições, apesar do seu cariz convencional,
poderão beneficiar de força constitucional, na medida em que se apresentem como
expressão de princípios gerais de direito comummente reconhecidos no âmbito da
comunidade internacional no seu todo ou, pelo menos, de um determinado universo
civilizacional (artigo 8.º, n.º 1) ou como direitos fundamentais não escritos no
quadro da cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1.
Assim poderá entender-se, especialmente, em relação às normas dos artigos 1º e
2º da Convenção de Oviedo, que apontam para um compromisso das Partes no sentido
do primado do ser humano «sobre o interesse único da sociedade e da ciência» e
da protecção da dignidade do homem e da sua identidade em «face das aplicações
da biologia e da medicina».
No entanto, não pode ignorar-se, ainda aqui, que a Constituição assume como seus
esses parâmetros de direito internacional convencional, ao estipular limites
para a regulamentação legal da procriação medicamente assistida que permitem a
sua compatibilização com as exigências básicas da dignidade da pessoa humana ou
do Estado de Direito (artigo 67º, n.º 2, alínea e)), o que conduz a considerar
que as normas dos artigos 1º e 2º da Convenção de Oviedo não possuem, enquanto
normas de direito internacional a que o Estado Português se encontra vinculado,
um valor de parâmetro de constitucionalidade autónomo.
Por outro lado, todas as restantes disposições da Convenção de Oviedo,
designadamente as dos artigos 11º, 14º, 15º e 18º, bem como todas as disposições
do Protocolo Adicional, ainda que se lhes deva reconhecer, enquanto direito
convencional internacional, um valor supra-legal, como constitui entendimento
dominante, «não podem deixar de ser considerados como sujeitos à Constituição −
e a ela hierarquicamente subordinados» (Moura Ramos, A Convenção Europeia dos
Direitos do Homem: sua posição face ao ordenamento jurídico português, in «A
Comunidade Internacional e o seu Direito», citado, págs. 55-61, e Gomes
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, pág. 923),
e, como tal, a possível desconformidade da Lei n.º 32/2006 com qualquer desses
preceitos apenas poderá constituir um problema de mera legalidade, que, nesta
sede, é insusceptível de ser conhecido pelo Tribunal Constitucional.
É o que se explanou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 371/91 (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 20.º vol., págs. 7 e segs.):
[…] mesmo na óptica de que o artigo 8.º, n.º 2, da Constituição consagra o
princípio do primado do direito internacional convencional em face do direito
interno […], isto é, que aquele normativo constitucional reconhece às normas de
direito internacional particular um valor infraconstitucional mas supralegal, a
caracterização do correspondente vício e da sua projecção no âmbito do sistema
de controlo da constitucionalidade levará à conclusão que o Tribunal não é
competente para tomar conhecimento do pedido nesta sede.
Com efeito, neste entendimento das coisas, o artigo 8.º, n.º 2, da Lei
Fundamental, ao estabelecer que as normas de direito internacional convencional
vigoram na ordem interna portuguesa «enquanto vincularem internacionalmente o
Estado Português» determina, pois, que tais normas deixarão de vigorar na ordem
interna quando o Estado ficar desobrigado no plano internacional, nas formas
consentidas internacionalmente para tal efeito, mas postula igualmente que,
enquanto vincularem internacionalmente o Estado português, essas normas
vigorarão de pleno na ordem interna e só uma desvinculação internacional pode
fazer cessar essa vigência, a qual, portanto, não pode ser afectada por um acto,
como a lei interna, que em nada altera aquela vinculação internacional. Donde
que, em caso de divergência entre uma convenção internacional e uma norma legal
interna, inexistindo título bastante de desvinculação do Estado no plano
internacional, deve-se aplicar a convenção, que assim prevalece sobre as fontes
de direito interno de força legal.
Mas também neste entendimento que temos vindo a referenciar resulta que a
desconformidade entre uma norma de direito interno e uma norma constante de
convenção internacional gera, desde logo e em primeira mão, um vício de
inconstitucionalidade indirecta ou de ilegalidade (em sentido amplo), ou seja,
um desvalor decorrente do facto de a lei interna, ainda que constituindo um acto
normativo de idêntica eficácia vinculativa em relação à norma constante de
convenção internacional, a ela ter que se subordinar em virtude de a Lei
Fundamental reconhecer à convenção, mesmo que apenas implicitamente, um escalão
hierárquico-normativo superior.
Neste contexto, embora não negando que exista subjacente à situação que gera um
tal vício uma relevante questão de constitucionalidade, a que resulta da
violação, ainda que meramente indirecta, do preceito constitucional que funda o
princípio do primado do direito internacional convencional, trata-se de um
problema de ilegalidade e não de inconstitucionalidade.
É esta posição também a assumida por Jorge Miranda quando, a propósito da
possível discrepância entre normas internas e normas de direito internacional,
refere o seguinte: «[r]eiteramos a opinião que há muito sustentamos de que se
trata de um problema de ilegalidade (ou de ilegalidade sui generis) e não de
inconstitucionalidade. E isso não somente por virtude de uma determinada visão
do sistema de normas e actos como ainda por virtude do próprio teor do fenómeno:
pois o que está em causa (…) é, primariamente, a contradição entre duas normas
não constitucionais, não é a contradição entre uma norma ordinária e uma norma
constitucional; e é somente por se dar tal contradição que indirectamente (ou,
porventura, consequentemente) se acaba por aludir a inconstitucionalidade»
(Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, 3.ª edição, Coimbra, 2008, págs.
27-28).
Ora, conforme decorre do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alíneas b) a d), no
âmbito da fiscalização abstracta sucessiva, o controlo da legalidade de normas
pelo Tribunal Constitucional apenas é admissível com fundamento na violação de
lei de valor reforçado ou de estatuto de região autónoma.
Assim, num processo de fiscalização sucessiva, como é o caso, o Tribunal
Constitucional apenas pode apreciar a legalidade de normas por referência a
qualquer desses parâmetros, excluindo-se que essa apreciação possa ter por base
a desconformidade material da lei com normas de direito internacional.
.
Assim sendo, como é de concluir, as normas de direito internacional invocadas
pelos requerentes, a que o Estado Português se encontra vinculado (Declaração
Universal dos Direitos do Homem, Convenção de Oviedo e o respectivo Protocolo
Adicional sobre clonagem humana), não podem ser utilizadas, no presente
processo, como parâmetros de aferição da validade da Lei n.º 32/2006, ou porque
correspondem a direito constitucionalizado e não possuem um valor paramétrico
autónomo, ou porque, suscitando uma mera questão de legalidade, não podem ser
objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional por não preencherem os
requisitos a que alude o artigo 281º, n.º 1, alíneas b) a d), da Constituição.
Questões de constitucionalidade material
6. Os requerentes suscitaram a inconstitucionalidade material dos seguintes
conjuntos de normas da Lei n.º 32/2006: artigo 4.º, n.º 2; artigo 6.º; artigos
7.º, n.º 3, e 30.º, n.º 2, alínea q); artigos 9.º, n.ºs 2 a 5, e 30.º, n.º 2,
alíneas e) e g); artigo 10.º; artigo 15.º, n.ºs 1 a 4; artigos 19.º, n.º 1,
20.º, 21.º, 27.º e 35.º; artigos 24.º e 25.º; artigos 28.º e 29.º; artigo 36.º;
e artigo 39.º
Pretendem assim reportar-se a diferentes aspectos do regime legal da procriação
medicamente assistida, tais como: a) admissibilidade da utilização das técnicas
de PMA em caso de risco de transmissão de doenças de origem não genética ou
infecciosa; b) inexistência de um limite etário para os beneficiários; c)
possibilidade de recurso a técnicas de PMA para tratamento de doença de
terceiro; d) utilização de embriões em investigação científica; e)
admissibilidade da procriação heteróloga; f) regra do anonimato dos dadores; g)
regime de filiação na reprodução heteróloga; h) inexistência de limites à
criação de embriões; i) diagnóstico genético pré-implantatório; j) não punição
da clonagem reprodutiva e admissibilidade da técnica de transferência de núcleo;
l) não punição da maternidade de substituição a título gratuito.
São estas questões que serão analisadas de seguida.
a) Recurso às técnicas de PMA em caso de risco de transmissão de doenças de
origem não genética ou infecciosa
A primeira norma cuja constitucionalidade material vem questionada pelos
requerentes é a constante do artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006.
A Lei n.º 32/2006 regula a utilização de técnicas de procriação medicamente
assistida (PMA), com um âmbito aplicativo que se encontra definido no artigo 2º
dessa Lei e que se encontra assim discriminado: a) inseminação artificial; b)
fertilização in vitro; c) injecção intracitoplasmática de espermatozóides; d)
transferência de embriões, gâmetas ou zigotos; e) diagnóstico genético
pré-implantação; f) outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou
embrionária equivalentes ou subsidiárias.
Sob a epígrafe «Condições de admissibilidade», o artigo 4.º da mesma Lei, no seu
n.º 1, estabelece que «as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não
alternativo, de procriação», enquanto que o n.º 2 determina que «[a] utilização
de técnicas de PMA só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade ou
ainda, sendo caso disso, tratamento de doença grave ou eliminação do risco de
transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras».
Tendo em conta o disposto neste n.º 2, os requerentes não impugnam a
possibilidade de recurso às técnicas de procriação medicamente assistida para
evitar a transmissão de doença ou para tratar doença grave, mas sim a amplitude
com que a lei deixa em aberto essa possibilidade ao admitir a eliminação de
risco de transmissão de outras doenças não tipificadas como genéticas ou
infecciosas.
Alegam que a norma, neste contexto, abre caminho à selecção de embriões em
função de características morfológicas ou genéticas para cumprimento de
desideratos não identificados, incluindo a escolha do sexo da criança.
Deve começar por notar-se que o artigo 4º afirma um princípio de subsidiariedade
amplo, permitindo que o recurso às técnicas de procriação medicamente assistida
possa ter lugar, fora das situações de infertilidade, quando tal seja necessário
para tratamento de doença grave ou eliminação do risco de transmissão de doenças
de origem genética, infecciosa ou outras.
A questão de constitucionalidade que vem colocada prende-se com a
indeterminabilidade do inciso outras, quando entendido como podendo abranger
qualquer outro tipo de doença.
Importa referir, em primeira linha, que o que está em causa, no segmento
normativo agora em análise, é o risco de transmissão de doença e, por
conseguinte, a mera tentativa de evitar, por via da utilização de uma técnica de
procriação medicamente assistida, que o nascituro ou um beneficiário do processo
de PMA venha a sofrer de uma doença, que como tal possa ser caracterizada do
ponto de vista médico, e que seja susceptível de se transmitir por via
hereditária ou por contágio.
Está por isso excluído, mesmo no quadro de uma interpretação literal do
preceito, que o n.º 2 do artigo 4º tenha implicada qualquer possibilidade de
escolha do sexo de um descendente ou de escolha de quaisquer outras
características do nascituro que não tenham a ver, à partida, com a prevenção de
doença.
Por outro lado, o preceito não pode deixar de ser interpretado no seu
enquadramento sistemático e, designadamente, em conjugação com as subsequentes
disposições dos artigos 7º, n.ºs 2 e 3, e 29º da mesma Lei, que permitem
esclarecer com maior precisão o seu alcance ou, pelo menos, os critérios gerais
à luz dos quais deverá ser integrado o conceito outras doenças, a que ele se
reporta.
Ora, o artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006 efectua, desde logo, uma
delimitação negativa quanto às finalidades que podem ser prosseguidas através
das técnicas de PMA, ao prescrever que «[a]s técnicas de PMA não podem ser
utilizadas para conseguir melhorar determinadas características não médicas do
nascituro, designadamente a escolha do sexo». Esta última norma, por sua vez, só
tem as excepções consagradas no n.º 3 desse mesmo artigo, onde se declara:
«[e]xceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que haja risco
elevado de doença genética ligada ao sexo, e para a qual não seja ainda possível
a detecção directa por diagnóstico pré-natal ou diagnóstico genético
pré-implantação, ou quando seja ponderosa a necessidade de obter grupo HLA
(human leukocyte antigen) compatível para efeitos de tratamento de doença
grave».
Acresce que o artigo 29º da mesma Lei, referindo-se ao diagnóstico genético
pré-implantação, através do qual é possível realizar as finalidades a que se
refere o n.º 3 do citado artigo 7.º (cfr. artigo 28.º, n.º 1), prevê que essa
técnica de procriação medicamente assistida seja utilizada apenas em benefício
de «pessoas provenientes de famílias com alterações que causam morte precoce ou
doença grave, quando exista risco elevado de transmissão à sua descendência»
(n.º 1) e segundo as indicações médicas que sejam «determinadas pelas boas
práticas correntes e constem das recomendações das organizações profissionais
nacionais e internacionais da área» (n.º 2).
Sendo embora certo que o diagnóstico genético pré-implantação (DGPI) tem um
campo de aplicação limitado ao diagnóstico e prevenção de doença genética ou ao
tratamento de doença grave de terceiro (a que se reportam o sobredito artigo 7º,
n.º 3), todo o contexto legal em que se prevê o recurso a essa técnica de
procriação medicamente assistida e se definem as condições em que
excepcionalmente uma técnica de PMA pode ser usada para melhorar determinadas
características não médicas do nascituro, fornecem já um indicador seguro quanto
ao critério geral que o legislador leva em linha de conta no que se refere à
admissibilidade das técnicas de PMA.
A possibilidade de alterar as características não médicas de um nascituro opera
segundo um princípio de subsidiariedade e quando exista um elevado risco de
transmissão de doença genética grave ou necessidade de tratamento de doença
grave de terceiro (artigo 7º, n.º 3); e, por outro lado, as técnicas de DGPI
(que necessariamente devem destinar-se apenas a essas finalidades preventivas e
terapêuticas) devem ter em consideração as boas práticas médicas integradas
pelas recomendações de organismos com competência técnica nesta área.
E esse é seguramente um princípio geral que não pode deixar de ser considerado
no quadro jurídico que decorre do artigo 4º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006. As
outras doenças a que essa norma se refere, no seu segmento final, são aquelas
relativamente às quais se venha a verificar futuramente ser possível prevenir o
risco de transmissão por meio de uma técnica de PMA, quando se trate de doença
grave (ainda que não seja doença genética ou infecciosa) e não seja possível o
mesmo resultado por um outro método de prática clínica.
Em qualquer caso, fica afastada a eventualidade que, no caso presente, serviu de
fundamento aos requerentes para considerarem verificada a inconstitucionalidade
da norma por violação do direito à vida, do direito à integridade física, do
direito à identidade pessoal e genética e do princípio da igualdade.
Independentemente da validade dos parâmetros de constitucionalidade invocados,
quando aplicados à hipótese em presença, o certo é que o sistema legal não
potencia qualquer efectivo risco de as técnicas de procriação medicamente
assistida poderem ser utilizadas para fins eticamente censuráveis e,
designadamente - como se alega -, como pretexto para desideratos selectivos de
cariz não terapêutico.
Deste modo, e em suma, o artigo 4.º, n.º 2, não é inconstitucional na parte em
que abstractamente permite o recurso à procriação medicamente assistida para
«eliminação do risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou
outras», nem se coloca nenhuma questão especifica de constitucionalidade
relacionada com esse preceito que tenha autonomia e se diferencie em relação a
outros aspectos que também foram suscitados e serão seguidamente discutidos, a
propósito do tratamento de doença grave de terceiro e do diagnóstico genético
pré-implantação (cfr. infra 6. c) e 6. i)).
b) A idade dos beneficiários da PMA
Vem igualmente questionada a conformidade com a Lei Fundamental da norma do
artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006, pelo facto de nela não se estabelecer uma
idade máxima para os beneficiários da PMA.
Alegam os requerentes, a este propósito, que a inexistência de tal limite
permitirá que uma mulher em idade avançada, que tenha já ultrapassado a sua
própria idade fértil, possa recorrer às técnicas de PMA para procriar, através
da doação de ovócitos. E acrescentam que, à semelhança do que se encontra
previsto a propósito do instituto da adopção, as relações a estabelecer entre os
beneficiários da PMA e a criança deverão ser equivalentes às da filiação
natural, em homenagem ao superior interesse da criança, que não pode ser
afastado em virtude de um desejo pessoal de maternidade a todo o custo. Nestes
termos, segundo os requerentes, a norma em questão atenta contra o disposto no
artigo 67.º, n.º 1, alínea e), da Constituição, uma vez que a utilização das
técnicas de PMA deve ser dirigida para a protecção da família, em termos que
salvaguardem a dignidade humana, e ofende ainda o direito à integridade física
(artigo 25º), o direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26º), o
direito à saúde (artigo 64º), o direito à protecção na maternidade (artigo 68º)
e o direito da criança à protecção (artigo 69º).
De facto, o preceito em causa, depois de definir, no seu n.º 1, o universo das
pessoas que poderão ser beneficiárias das técnicas de PMA, prescreve, no n.º 2,
o seguinte: «[a]s técnicas só podem ser utilizadas em benefício de quem tenha,
pelo menos, 18 anos de idade e não se encontre interdito ou inabilitado por
anomalia psíquica».
E, nestes termos, para efeito de sujeição a técnicas de PMA, estabelece um
requisito etário por referência à idade mínima mas não já à idade máxima.
Como é sabido, há, nos dias de hoje, uma comprovada tendência para o
protelamento da maternidade para uma idade mais tardia, o que pode atribuir-se a
diversos factores sociológicos que têm sido já estudados (Vanessa Cunha, A
Fecundidade das Famílias Portuguesas, in «Famílias no Portugal Contemporâneo»,
coord. Karin Wall, Imprensa de Ciências Sociais/ ICS, Lisboa, 2004).
Acompanhando esta tendência, a evolução da biomedicina na aplicação de técnicas
de PMA pode provocar o aumento progressivo da idade máxima até à qual estas
podem ser utilizadas, possibilitando que beneficiem da procriação medicamente
assistida mulheres que em circunstâncias normais decorrentes da idade não
estariam em condições de procriar (identificando algumas destas situações,
Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das Origens Genéticas, Coimbra,
2008, pág. 355).
É incontroverso que o recurso à PMA em idade avançada comporta riscos tanto para
a futura mãe como para a criança que venha a nascer, o que tem permitido lançar
o debate sobre a conveniência do estabelecimento de um limite legal de idade
para a utilização da procriação medicamente assistida.
No plano do direito comparado, verificamos que, em vários ordenamentos, se optou
por incluir um limite de idade para os beneficiários de PMA, como sucede na
Áustria (40 anos), no Luxemburgo (40 anos), na Bélgica (42 anos), na Eslovénia
(43 anos), na Dinamarca (45 anos) - veja-se Replies by the member states to the
questionnaire on access to medically assisted procreation (MAP) and on the right
to know about their origin for children born after MAP), Steering Committee of
Bioethics, Conselho da Europa, de 12 de Julho de 2005, disponível em
http://www.coe.int/t/e/legal_affairs/legal_cooperation/bioethics/texts_and_documents/INF_2005_7%20e%20MAP.pdf..
Noutros países, estabelece-se como requisito subjectivo para utilização das
técnicas de PMA que ambos os membros do casal estejam ainda numa «idade
potencialmente fértil» (artigo 5.º, n.º 1, da Legge 19 febbraio 2004, n. 40) ou
que ambos os membros do casal estejam «em idade de procriar» (artigo L-2141-2 do
Code de la Santé Publique).
Em Espanha e na Inglaterra, porém, o legislador entendeu que não devia fixar uma
idade máxima para a obtenção de gravidez através da PMA e centrou-se mais na
ideia de protecção concreta da pessoa a nascer. É neste sentido que a Ley
14/2006, de 26 de Mayo, estabelece, no seu artigo 3.º, n.º 1, relativo às
condições pessoais de aplicação das técnicas de PMA, que «as técnicas de
procriação assistida só se realizarão quando haja possibilidades razoáveis de
êxito e não impliquem risco grave para a saúde, física ou psíquica, da mulher ou
da possível descendência [...]». De uma forma porventura mais ampla (que poderá
abranger não só a protecção da integridade física e psíquica da pessoa a nascer
como, ainda, do seu integral desenvolvimento), a legislação britânica
estabelece, a respeito da procriação medicamente assistida, uma obrigação para
os profissionais competentes de avaliar o «bem-estar da criança que possa vir a
nascer» (secção 13, § 5, do Human Fertilisation and Embriology Act de 1990).
No ordenamento jurídico português, a questão da possível limitação do universo
dos beneficiários da procriação medicamente assistida, em relação a situações
extremas, envolve não apenas o direito à integridade física e moral (artigo
25.º), o direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º), o dever que
os pais têm de educação e manutenção dos filhos (36.º, n.º 5), mas ainda, o
direito das crianças e jovens às condições necessárias a um desenvolvimento
integral, num ambiente familiar normal (artigo 69.º, n.º 1 e 2), exigindo todos
estes direitos e deveres uma relação efectiva dos pais com a criança a nascer ao
longo dos estádios fundamentais da sua educação e da formação da sua
personalidade.
A Constituição exige que se dê protecção aos direitos do nascituro e, portanto,
que o superior interesse da futura criança seja acautelado, de acordo com
princípios básicos da ética médica e jurídica.
E essa protecção, pode dizer-se, está genericamente afirmada pela Lei n.º
32/2006, ao consignar, no artigo 3.º, que «as técnicas de PMA devem respeitar a
dignidade humana».
Cabe fazer notar, por outro lado, que o pretendido limite de idade está
implícito no próprio regime legal decorrente do já analisado artigo 4º da mesma
Lei. As técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, de
procriação e só poderão ser utilizadas quando tenha sido efectuado um prévio
diagnóstico de infertilidade, o que tem pressuposta a ideia de que a mulher
beneficiária se encontra em idade em que normalmente poderia procriar se não
existisse um factor inibitório de natureza clínica que tenha afectado um dos
membros do casal. E o mesmo princípio tem aplicação quando se pretenda a
utilização de técnicas de PMA para qualquer das finalidades previstas na segunda
parte do n.º 2 do artigo 4º, porquanto, ainda nesse caso, é suposto que a mulher
se encontre em idade potencialmente fértil e que o recurso à procriação
medicamente assistida resulte apenas da necessidade de evitar o risco de
transmissão de doença ou de providenciar o tratamento de doença grave de
terceiro.
Poderá dizer-se, por conseguinte, que o ordenamento jurídico português, embora
não tenha optado por uma formulação verbal expressa no sentido da fixação de um
limite etário para os beneficiários das técnicas de PMA, acaba por se aproximar,
nesse plano, por efeito do elemento sistemático de interpretação, dos critérios
normativos enunciados no direito italiano e no direito francês, na medida em que
estabelece condições de admissibilidade restritivas que, à partida, obstam a que
as técnicas de procriação medicamente assistida possam ser utilizadas em
circunstâncias contrárias à ordem natural das coisas.
Resta por fim referir que o regime legal se encontra ainda coberto por diversas
cláusulas de salvaguarda, que fluem do disposto nos artigos 11º, n.º 1, 12º,
alínea c), e 14º, n.º 2, da Lei n.º 32/2006. Por um lado, a decisão médica
relativa à utilização de técnicas de PMA deve ter em conta o carácter de
subsidiariedade em relação a outros tratamentos que visem o mesmo objectivo, bem
como as perspectivas de êxito e os inconvenientes que possam implicar para
qualquer dos interessados; por outro lado, os beneficiários devem ser
previamente informados sobre as implicações médicas, sociais e jurídicas
prováveis dos tratamentos propostos, e também, para efeito de prestarem o seu
consentimento livre e esclarecido, sobre todos os benefícios e riscos conhecidos
resultantes da utilização das técnicas de PMA. O que leva naturalmente à
ponderação, quer por parte dos profissionais de saúde envolvidos, quer por parte
das pessoas directamente interessadas, de todos os riscos significativos quer
para a saúde da mãe e do filho quer para o ulterior desenvolvimento da
personalidade da criança, em função da idade de quem pretende submeter-se a
qualquer desses métodos de procriação medicamente assistida.
Neste condicionalismo há que considerar que o regime legal, não obstante a
ausência de indicação de um limite máximo de idade para sujeição às técnicas de
PMA não ofende qualquer dos valores constitucionalmente tutelados e,
designadamente, aqueles a que os requerentes fazem menção.
c) O recurso à PMA para tratamento de doença grave de terceiro
Os requerentes questionam também a constitucionalidade das normas dos artigos
7.º, n.º 3, e 30.º, n.º 2, alínea q), da Lei n.º 32/2006, na medida em que
admitem a criação de embriões-medicamento, permitindo a instrumentalização do
embrião humano, em violação do disposto nos artigos 24.º, 25.º, 26.º, 67.º e
68.º da Constituição.
O artigo 7.º, n.º 3, já há pouco transcrito, prevê que as técnicas de procriação
medicamente assistida sejam utilizadas não apenas por razões de infertilidade ou
para evitar a transmissão de doenças genéticas, mas ainda para conseguir que a
criança a nascer tenha um grupo de HLA compatível com outra pessoa (por exemplo,
um familiar ligado por um vínculo de parentesco). Deste modo, a norma em questão
permite seleccionar embriões de acordo com o seu grupo HLA, implantando apenas
os que forem compatíveis com familiares vivos que padeçam de doença grave.
A selecção de embriões com grupo HLA compatível com o de outra pessoa torna-se
possível mediante diagnóstico genético pré-implantação (DGPI), a que se referem
os artigos 28º e 29º da Lei n.º 32/2006, e tem por objectivo transferir para o
útero materno os embriões que possuam uma determinada característica genética
que será ulteriormente utilizada, através do material biológico da criança que
vier a nascer, com uma finalidade terapêutica, permitindo salvar a vida ou
melhorar o estado de saúde de uma outra pessoa.
A disposição do artigo 7º, n.º 3, pressupõe, por conseguinte, uma análise
genética de embriões num momento em que estes ainda se não encontram implantados
no útero materno.
No plano do direito comparado, e embora boa parte dos ordenamentos jurídicos não
permita ainda a selecção de embriões com base na sua compatibilidade genética
com um familiar que sofra de doença, grave tem-se verificado uma tendência
crescente no sentido da admissibilidade jurídica de tal procedimento. Assim, a
lei espanhola autoriza o recurso ao DGPI para selecção dos embriões com base no
grupo HLA, para fins terapêuticos de terceiros, embora estabeleça a
obrigatoriedade de aprovação do procedimento, caso a caso, pela Comissão
Nacional de Reprodução Humana Assistida (cfr. artigo 12.º, n.º 2, da Ley
14/2006). Também o ordenamento jurídico francês veio recentemente permitir a
selecção de embriões através do DGPI, para efeitos de doença genética grave de
um irmão, reconhecida como incurável, no momento do diagnóstico (cfr. artigo
L2131-4-1 do Code de La Santé Publique). Esta é também uma prática admitida no
Reino Unido, desde 2004 (cfr.
Human Fertilisation and Embryology Authority Report: Preimplantation Tissue
Tiping, de 2004, págs. 2 e 10, in
www.hfea.gov.uk/docs/PreimplantationReport.pdf).
Antes de analisar a conformidade constitucional da solução normativa impugnada,
cabe recordar que a Lei n.º 32/2006, no precedente artigo 4º, n.º 2, admite a
utilização de técnicas de PMA não apenas quando se verifique uma situação de
infertilidade, mas também para tratamento de doença grave ou para obviar ao
risco de transmissão de doenças, aspectos que foram já antes analisados e que
não suscitaram dúvidas no plano da constitucionalidade. Neste contexto, a norma
do n.º 3 do artigo 7º limita-se a dar concretização prática a uma das
finalidades da procriação medicamente assistida, com o âmbito de aplicação que é
legalmente reconhecido, visando definir os pressupostos em que pode ter lugar a
selecção de uma característica genética do embrião para os apontados efeitos
preventivos ou terapêuticos.
E é importante salientar que essa possibilidade é admitida a título subsidiário
e excepcional. O procedimento de selecção de embriões em função do grupo HLA
(que está especialmente em causa tendo em conta os termos em que vem suscitada a
questão de constitucionalidade) é uma excepção à regra da proibição de escolha
das características do nascituro, que decorre do n.º 2 do artigo 7.º da mesma
Lei. E só pode utilizar-se em casos de ponderosa necessidade para tratamento de
doença grave. A verificação de tal pressuposto está, além do mais, sujeita a uma
avaliação individualizada do Conselho Nacional de Procriação Medicamente
Assistida, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, alínea q).
Por outro lado, importa notar que o método de procriação medicamente assistida,
neste condicionalismo, incide sobre embriões ainda não implantados, em relação
aos quais se não pode aplicar a garantia de protecção da vida humana, enquanto
bem constitucionalmente protegido, ou de qualquer dos demais direitos pessoais
que se encontram associados, como o direito à integridade física ou o direito à
identidade pessoal e genética. E justamente porque não ocorreu ainda a
transferência para o útero materno, o embrião submetido a técnicas de PMA, para
os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 7º, nem tão pouco beneficia da protecção
correspondente à tutela da vida intra-uterina, que, aliás, segundo a
jurisprudência constitucional, assenta, ela própria, numa ponderação gradualista
que deverá atender às diferentes fases do desenvolvimento do nascituro (cfr.
acórdão do Tribunal Constitucional n.º 617/06, publicado no Diário da República,
Série I, de 20 de Novembro de 2006).
A questão de constitucionalidade que poderá colocar-se, tendo em conta a
perspectiva utilitarista que decorre do preceito legal, é a de saber se uma tal
solução não constituirá uma ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana,
no ponto em que o embrião, ainda que não implantado, é susceptível de potenciar
a existência de uma vida humana.
Note-se que é a própria lei a assegurar que «as técnicas de PMA devem respeitar
a dignidade humana» (artigo 3º), e é também nesse plano que a questão é colocada
na Convenção de Oviedo, que no seu artigo 18º prescreve:
1 - Quando a pesquisa em embriões in vitro é admitida por lei, esta garantirá
uma protecção adequada do embrião.
2 – A criação de embriões humanos com fins de investigação é proibida.
Como se constata, a Convenção não proíbe a pesquisa em embriões mas tão só a sua
criação com o objectivo deliberado de utilização na investigação científica; e
em relação à pesquisa genética apenas exige que se realize de modo a garantir a
«protecção adequada do embrião», o que naturalmente pressupõe que a técnica de
PMA que envolva esse tipo de actividade não representa, em si, uma qualquer
violação do direito à vida ou do direito à identidade pessoal e genética, mas
deve antes e apenas ser efectuada em termos que não ponham em causa o princípio
da dignidade humana.
Já vimos que a aplicação da técnica de diagnóstico genético pré-implantação para
os efeitos consentidos pelo artigo 7º, n.º 3, só pode ter lugar quando seja
ponderosa a necessidade de obter grupo HLA compatível para efeitos de tratamento
de doença grave e tem em vista salvar a vida ou melhorar o estado de saúde de um
terceiro, que será normalmente um membro da família de quem se sujeita à
execução da técnica de PMA.
A possível lesão da tutela reflexa da dignidade humana que o rastreio genético
do embrião pode representar, neste condicionalismo, tem, por conseguinte, como
contraponto a realização do direito à protecção da saúde em relação a um
terceiro que se encontra em perigo de vida e, nesses termos, a solução
legislativa corresponde, em última análise, ao cumprimento por parte do Estado
do direito à protecção da saúde na sua vertente positiva, enquanto destinada a
assegurar a adopção de medidas que visem a prevenção e o tratamento de doenças
(artigo 64º, n.º 1, da Constituição).
Dentro do regime jurídico definido pela lei, a alegada «instrumentalização» do
embrião mostra-se assim justificada pela prevalência de outros valores
constitucionalmente tutelados, também eles de natureza eminentemente pessoal, o
que desde logo exclui que o controlo genético do embrião possa ser considerado
como lesivo do princípio da dignidade da pessoa humana.
Numa outra perspectiva, deve dizer-se que a aplicação do diagnóstico genético de
pré-implantação não implica um qualquer risco para o desenvolvimento da criança
que venha a nascer, quando o embrião seja viável, nem há qualquer evidência de
que as circunstâncias que rodeiam a concepção possam ser, de algum modo, lesivas
do bem-estar psicológico da criança dadora ou que esta possa vir a considerar-se
diminuída na sua dignidade pelo facto de ter sido concebida na previsão de poder
vir a salvar a vida de outrem (cfr. Human Fertilisation and Embryology Authority
Report, citado, págs. 4-5, e os dados reunidos pelo PGD Consortium Steering
Committee da European Society of Human Reproduction na Embriology (ESHRE),
publicados em Human Reproduction, vol. 22, n.º 2, 2007, págs. 323-336; ainda
sobre estes aspectos, Guilherme de Oliveira, Um caso de selecção de embriões, in
«Temas de Direito da Medicina», Coimbra, 2005, pág. 288).
Pode concluir-se, nestes termos, que a solução normativa que se contém na Lei se
enquadra num critério de ponderação e harmonização com outros valores
constitucionalmente protegidos, sem pôr em causa, de forma evidente, a dignidade
das pessoas directamente envolvidas, e assegura, desse modo, em atenção aos
objectivos que se pretende atingir, uma protecção adequada do embrião.
O que leva a considerar não haver suficiente motivo para dar como verificada a
invocada inconstitucionalidade.
d) A investigação com recurso a embriões
Outra das questões de constitucionalidade levantada pelos requerentes é a da
licitude da investigação com recurso a embriões, prevista nas normas dos artigos
9.º, n.ºs 2 a 5, e 30.º, n.º 2, alíneas e) e g), da Lei n.º 32/2006.
A primeira das referidas disposições, sob a epígrafe «Investigação com recurso a
embriões», estipula o seguinte:
1 - É proibida a criação de embriões através da PMA com o objectivo deliberado
da sua utilização na investigação científica.
2 - É, no entanto, lícita a investigação científica em embriões com o objectivo
de prevenção, diagnóstico ou terapia de embriões, de aperfeiçoamento das
técnicas de PMA, de constituição de bancos de células estaminais para programas
de transplantação ou com quaisquer outras finalidades terapêuticas.
3 - O recurso a embriões para investigação científica só pode ser permitido
desde que seja razoável esperar que daí possa resultar benefício para a
humanidade, dependendo cada projecto científico de apreciação e decisão do
Conselho Nacional de Procriação medicamente Assistida.
4 - Para efeitos de investigação científica só podem ser utilizados:
a) Embriões criopreservados, excedentários, em relação aos quais não exista
nenhum projecto parental;
b) Embriões cujo estado não permita a transferência ou a criopreservação com
fins de procriação;
c) Embriões que sejam portadores de anomalia genética grave, no quadro do
diagnóstico genético pré-implantação;
d) Embriões obtidos sem recurso à fecundação por espermatozóide.
5 - O recurso a embriões nas condições das alíneas a) e c) do número anterior
depende da obtenção de prévio consentimento, expresso, informado e consciente
dos beneficiários aos quais se destinavam.
Por outro lado, nos termos previstos nas alíneas e) e g) do artigo 30º da mesma
Lei, compete ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA),
«dar parecer sobre a constituição de bancos de células estaminais, bem como
sobre o destino do material biológico resultante do encerramento destes» e
«apreciar, aprovando ou rejeitando, os projectos de investigação que envolvam
embriões, nos termos do artigo 9.º».
Argumentam os requerentes que a solução legal assim delineada atenta contra o
disposto nos artigos 24.º, 26.º, 68.º e 69.º da Constituição da República, que
deverão ser interpretados em conformidade com o disposto nos artigos 1.º, 2.º,
14.º, 15.º e 18.º da Convenção de Oviedo.
É, pois, esta a questão de constitucionalidade que interessa agora analisar.
Sabe-se que a experimentação em embriões pode trazer importantes benefícios no
campo terapêutico, não só no que respeita ao desenvolvimento de novas técnicas
de procriação medicamente assistida e de novos métodos de contracepção, mas
também no que respeita à investigação de novas modalidades de tratamento de
inúmeras doenças dos mais variados tipos (cfr. Parecer da Associação Portuguesa
de Bioética n.º P/01/APB/05, sobre a utilização de embriões humanos em
investigação científica, da autoria de Rui Nunes, in
www.apbioetica.org/fotos/gca/1128590447embriao.pdf).
Como informa o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) uma
das principais finalidades da investigação em embriões é, hoje, o estudo das
células estaminais embrionárias, que podem contribuir para o conhecimento das
causas e tratamentos de doenças para as quais se não conhecem actualmente
terapêuticas curativas (cfr. Parecer 47/CNECV/05 sobre a investigação em células
estaminais, de Novembro de 2005, conclusões 1ª e 3ª, pág. 4, in
http://www.cnecv.gov.pt/cnecv/pt/Pareceres/).
No plano do direito comparado, as soluções normativas não são convergentes. O
ordenamento jurídico italiano proíbe qualquer experimentação com embriões
humanos (artigo 13.º da Legge 19 febbraio 2004, n. 40), mas a experimentação é
actualmente permitida, ainda que em estritos limites, em Espanha (artigos 14.º,
15.º e 16.º da Ley 40/2006), na França (artigo L2151-5 do Code de la Santé
Publique), no Reino Unido (secção 2 do Human Fertilisation and Embriology
(Research Purposes) Regulations, de 2001). De acordo com a Comissão Europeia, a
investigação em embriões é ainda autorizada na Alemanha, Bélgica, Dinamarca,
Finlândia, Grécia, Holanda e Suécia (cfr. Survey on opinions from National
Ethics Committees or similar bodies, public debate and national legislation in
relation to human embryonic stem cell research and use, org. Line
Matthiessen-Guyader, Setembro de 2003, Directorate E-Biotechnology, Agriculture
and Food, págs. 10, 12, 15, 19, 24, 32 e 43, in
http://bioethics.academy.ac.il/articles/CATALO
GUE-SC-MEMBER-STATES-FINAL-VERSION.pdf).
Acresce que a investigação científica em embriões in vitro é objecto de menção
no já aludido artigo 18.º da Convenção de Oviedo, que admite que a legislação
estadual regule a matéria sem prejuízo dos limites impostos pela consideração da
protecção adequada do embrião (n.º 1) e apenas proíbe a criação deliberada de
embriões para fins de investigação (n.º 2).
Finalmente, os órgãos da União Europeia não consideram a pesquisa em embriões
humanos como contrária aos princípios éticos fundamentais, não excluindo a
possibilidade de se obter financiamento comunitário, para esse efeito, desde que
a actividade de investigação não vise a clonagem humana para fins reprodutivos
ou se não destine à criação de embriões humanos exclusivamente para fins de
investigação (cfr. artigo 6.º da Decisão n.º 1982/2006/CE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006). Nesse domínio, a recomendação do
Parlamento Europeu é apenas no sentido de os Estados-membros proibirem toda a
investigação sobre qualquer tipo de clonagem humana e preverem sanções criminais
para essa infracção (Resolução do Parlamento Europeu sobre Clonagem, de 7 de
Setembro de 2000).
Apesar disso, e face aos termos do pedido, poderia estar aqui em causa a tutela
constitucional da vida humana (artigo 24º), o direito à identidade pessoal e
genética do ser humano (artigo 26º), o direito à paternidade e à maternidade
(artigo 68º) e o direito das crianças à protecção (artigo 69º).
Relevam aqui, porém, todas as considerações anteriormente expendidas a propósito
da solução normativa consubstanciada no artigo 7º, n.º 3, em que igualmente
estava em causa a possibilidade de pesquisa genética em embriões, neste caso,
para efeito de tratamento de doença grave de terceiro (cfr. supra 5. c)).
O ponto essencial, como aí se explanou, é que a investigação científica nos
termos previstos no artigo 9º incide sobre embriões não implantados no útero
materno e relativamente aos quais se não colocam questões de constitucionalidade
relacionadas com o direito à vida ou os direitos de personalidade, sendo apenas
de considerar a protecção do embrião na perspectiva da dignidade da pessoa
humana na estrita medida em que o embrião poderia dar origem a uma vida humana
se fosse viável e viesse a ser utilizado num projecto parental.
E deste ponto de vista, o regime legal condensado na referida disposição do
artigo 9º oferece já uma adequada protecção.
Note-se, antes de mais, que a norma proíbe a criação de embriões com o objectivo
deliberado de utilização na investigação científica (n.º 1).
Por outro lado, salvo a previsão constante do artigo 9º, n.º 4, alínea d), que
será objecto de tratamento autónomo, só poderão ser aplicados na investigação os
embriões, criados para fins de procriação medicamente assistida, que não tenha
sido possível enquadrar num projecto parental, ou por não terem sido utilizados
pelo casal e este não ter autorizado a sua doação nos termos dos artigos 10.º e
25.º, n.º 5, ou por se terem tornado inviáveis (em virtude de o seu estado não
permitir a transferência ou a criopreservação com vista à procriação), ou ainda
por serem portadores de anomalia genética grave (artigo 9.º, n.º 4, alíneas a) a
c)).
Por fim, importa considerar que a investigação com recurso a embriões só é
lícita para qualquer das finalidades mencionadas no n.º 2 do artigo 9º
(prevenção, diagnóstico ou terapia de embriões, aperfeiçoamento das técnicas de
PMA, constituição de bancos de células estaminais para programas de
transplantação ou com quaisquer outras finalidades terapêuticas) e, como
determina o n.º 3, desde que seja razoável esperar que daí possa resultar
benefício para a humanidade.
Ou seja, só poderão ser utilizados em experimentação científica os embriões cujo
destino alternativo seria a destruição, uma vez que tem de estar afastada a
possibilidade de os envolver num projecto parental. E, ainda assim, nessa
circunstância, a experimentação é apenas admissível para finalidades
terapêuticas, de prevenção ou diagnóstico em termos de poder contribuir para o
progresso do conhecimento científico, com probabilidade até de se vir a obter um
benefício para a espécie humana.
Como decorre das normas do artigo 9º, n.ºs 1 e 4, a protecção do embrião é
adequadamente garantida, já que se proíbe a criação de embriões com o objectivo
deliberado de os utilizar em investigação, e se assegura que só se destinarão a
experimentação os embriões que não possam ser destinados para fins de
procriação. Assim, afigura-se claro que a utilização de embriões criados através
da PMA em investigação será a excepção, abrangendo somente os casos em que a
única alternativa possível seria a morte biológica.
Além de que, preenchido esse condicionalismo, o projecto científico que envolva
embriões deverá ser aprovado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente
Assistida de acordo com os critérios e objectivos que estão definidos nos n.ºs 2
e 3 desse preceito (cfr. artigo 30º, n.º 2, alínea g)).
A lei confere, pois, aos embriões que possam ser utilizados em investigação
científica um destino condizente com a sua potencial dignidade humana e, nesse
plano, não deixa de cumprir os princípios éticos que decorrem da Convenção de
Oviedo e dos instrumentos comunitários. Por outro lado, tendo em linha de conta,
como se deixou esclarecido, que os embriões utilizáveis em investigação
científica são aqueles que não podem ser aplicados para fins de procriação, fica
necessariamente prejudicada, em função da inviabilidade do embrião, a
possibilidade de ocorrer qualquer violação do direito à paternidade e à
maternidade ou do direito da criança à protecção, também invocados, no pedido,
como parâmetro de constitucionalidade.
Acresce que o regime legal permite operar uma harmonização legislativa com
outros direitos e valores constitucionais, como seja a liberdade de criação
científica em articulação com o direito à saúde, tutelados nos artigos 42º, n.º
2, e 64º, n.º 1, da Constituição, a que importa atribuir o necessário relevo, e
que por si só justifica, do ponto de vista jurídico-constitucional, a solução
normativa que veio a ser adoptada.
Além da questão anterior, a norma do artigo 9.º, n.º 4, alínea d), coloca ainda
um outro problema: o da conformidade constitucional da clonagem terapêutica não
reprodutiva, já que parece ser a embriões clonados que a lei se refere, quando
aí menciona os «embriões obtidos sem recurso à fecundação por espermatozóide».
A clonagem terapêutica, que se encontra ainda num grau inicial de
desenvolvimento, consiste na utilização de técnicas de clonagem, com o objectivo
de produzir células estaminais, susceptíveis de serem transplantadas sem que
haja risco de rejeição.
A comunidade científica debate, hoje em dia, se o produto da clonagem deve ou
não ser denominado embrião e se deve ou não ser a este equiparado, para todos os
efeitos éticos e jurídicos, e propõem-se, a esse propósito, diversas formulações
terminológicas e conceituais que procuram dar resposta a essas questões (cfr. o
Relatório sobre clonagem humana, de Abril de 2006, págs. 11-12, in
http://www.cnecv.gov.pt/cnecv/pt/Pareceres/).
Face às dúvidas que se colocam, no plano ético, o CNECV defende que o juízo
sobre a clonagem terapêutica «depende da natureza que for atribuída ao produto
da transferência nuclear somática: se for considerado um embrião não pode ser
usado porque tal constituiria uma violação da sua intrínseca dignidade; se for
considerado um artefacto laboratorial pode ser usado em investigação biomédica
sem suscitar problemas éticos além dos inerentes à utilização de material
biológico humano, nomeadamente o da não comercialização». Vindo a concluir que,
no actual estado «de ausência de unanimidade ou ampla convergência científica e
filosófica acerca da natureza do produto de transferência nuclear somática, [se]
considera dever aplicar o princípio ético da precaução» (Parecer 48/CNECV/06
sobre Clonagem Humana, de Abril de 2006, conclusões 3ª e 4ª, pág. 3).
A Organização Mundial de Saúde, por seu turno, afirma que existem justificações
científicas válidas para a pesquisa com o recurso a clonagem para fins
terapêuticos, admitindo que grandes benefícios de ordem terapêutica podem advir
do desenvolvimento de técnicas de clonagem para reproduzir tecidos humanos e
órgãos. Assim, considera que deve ser realizada a investigação relevante,
assegurando-se, porém, que fique afastada a clonagem com fins reprodutivos [cfr.
o relatório Cloning in Human Health (A52/12), de 1 de Abril de 1999, 52.ª
Assembleia Geral da OMS, pág. 3 (n.ºs 15-16), em
http://www.who.int/ethics/en/A52_12.pdf].
No plano jurídico, não pode afirmar-se que a ilicitude da clonagem terapêutica
decorra do disposto no Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo sobre a
Proibição da Clonagem (que Portugal ratificou, a 13 de Agosto de 2001), uma vez
que, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, é proibida somente qualquer intervenção
cuja finalidade seja a de «criar um ser humano geneticamente idêntico a outro,
vivo ou morto».
Do ponto de vista jurídico-constitucional, poderia estar em causa a protecção do
embrião por contraponto à liberdade de criação científica e ao dever estadual de
promoção da saúde.
Importa, no entanto, antes de mais, precisar o verdadeiro alcance do disposto no
artigo 9.º, n.º 4, alínea d), da Lei n.º 32/2006, sobretudo quando entendido em
conjugação com o previsto no artigo 9.º, n.º 1, da mesma lei. Esta disposição
proíbe a criação de embriões com o objectivo deliberado da sua utilização na
investigação científica, e, sendo este o critério essencial, parece dever
concluir-se, sob pena de existência de uma contradição insanável entre as duas
normas, que o legislador não considera o produto da clonagem por transferência
nuclear somática como um verdadeiro embrião, pese embora a formulação verbal do
artigo 9.º, n.º 4, alínea d). Poderia assim tratar-se, na perspectiva do
legislador, de um mero artefacto laboratorial, sem capacidade de vir a
transformar-se em ser humano.
Assim sendo, valem aqui, por maioria de razão, as considerações já
precedentemente formuladas a propósito da utilização em investigação científica
de embriões que se encontrem nas situações previstas nas alíneas a), b) e c) do
n.º 4 do artigo 9º.
A clonagem terapêutica tem potencialidades no campo da medicina, nomeadamente,
no que respeita à terapia celular e genética, contribuindo para a realização do
dever constitucional de promoção da saúde, e pode considerar-se, de outro modo,
como uma forma de efectivação, nessa área, da liberdade de criação científica.
Por um lado, a consideração do produto da transferência nuclear somática como um
produto laboratorial diferente do embrião afasta o parâmetro constitucional da
dignidade da pessoa humana e atenua a premência da colisão entre diferentes
valores constitucionalmente tutelados.
Em todo o caso, a utilização em investigação científica de embriões obtidos sem
recurso à fecundação por espermatozóide, como prevê o artigo 9º, n.º 4, alínea
d), está sujeita ao mesmo grau de protecção que está reservado para as demais
situações elencadas nesse preceito. Mantendo-se, designadamente, a exigência de
apreciação e aprovação do projecto de investigação por parte do Conselho
Nacional de Procriação Medicamente Assistida; além de que a lei proíbe e
sanciona criminalmente a clonagem com fins reprodutivos (artigo 36.º), proibição
que decorre da necessidade de proteger direitos fundamentais constitucionalmente
consagrados (cfr. infra 6. j)).
Por todo o exposto, não é possível afirmar que as normas que autorizam a
investigação científica em embriões, incluindo a constante do artigo 9.º, n.º 4,
alínea d), da Lei n.º 32/2006, sejam contrárias à Lei Fundamental.
e) Admissibilidade da procriação heteróloga
No pedido, vem igualmente questionada a procriação heteróloga, ou seja, a
utilização da técnica de procriação medicamente assistida que implique o recurso
a gâmetas de dadores e a dádiva de embriões.
É o artigo 10.º da Lei n.º 32/2006 que regula essa matéria nos termos seguintes:
1 - Pode recorrer-se à dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões
quando, face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis,
não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que
utilize os gâmetas dos beneficiários e desde que sejam asseguradas condições
eficazes de garantir a qualidade dos gâmetas.
2 - Os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai
nascer.
Sustentam os requerentes que esta solução legal leva à existência de filhos de
pai e/ou mãe biológicos não identificados, o que atenta contra o disposto nos
artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 4, da Constituição, visto que não salvaguarda o
direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade, enquanto
referência essencial da pessoa, nem o direito à identidade, que abrange o
direito à historicidade pessoal.
Por outro lado, alegam ainda que a licitude da doação de gâmetas femininos
coloca em causa a dignidade da mulher, visto que permite imprimir um cunho
mercantil (apesar de não visível) à recolha de ovócitos; além disso, a dádiva de
ovócitos obriga a uma técnica de recolha aliada à estimulação ovária por indução
hormonal, originando o risco de vida por hiperestimulação ovária, afectando as
mulheres que se encontram em situação de maior fragilidade, e pondo em crise,
deste modo, a igualdade tendencial entre os cidadãos. Essas circunstâncias
geram, no entender dos autores do pedido, a violação do disposto nos artigos
9.º, alínea d), 24.º, 25.º, 64.º e 67.º da Constituição.
A admissibilidade da doação de gâmetas e embriões é um problema muito discutido
em vários países, tanto no que respeita a aspectos éticos, como no que se refere
a aspectos jurídicos.
Do ponto de vista ético, e embora existam argumentos a favor e contra a
procriação heteróloga, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida,
firmou o entendimento de que, sendo preferível, em princípio, a utilização
exclusiva de gâmetas do casal, no âmbito das técnicas de PMA, «excepcionalmente
e por ponderadas razões estritamente médicas, quando esteja em causa a saúde
reprodutiva do casal, poderá ser considerado o recurso a doação singular de
gâmetas» (cfr. o Relatório sobre procriação medicamente assistida, do CNECV, de
Julho de 2004, págs. 36-37, e o Parecer 44/CNECV/04, da mesma data, conclusões
7ª e 8ª, pág. 4, in http://www.cnecv.gov.pt/cnecv/pt/Pareceres/).
No plano do direito comparado, encontram-se soluções bastante diferentes nos
vários ordenamentos jurídicos, embora a tendência maioritária seja no sentido da
licitude, quer da doação de gâmetas femininos e masculinos, quer da doação de
embriões.
No que respeita à doação de sémen, actualmente, só o direito italiano a proíbe,
dentro de um contexto de proibição geral de todo e qualquer tipo de reprodução
heteróloga (artigo 4.º, n.º 3, da Legge 19 febbraio 2004, n.º 40). O Tribunal
Constitucional italiano não considerou, contudo, que a solução legal inversa
fosse merecedora de um juízo de inconstitucionalidade, ao pronunciar-se no
sentido da admissibilidade da sujeição da questão a referendo, o que pressupõe a
consideração de que a doação é ainda compatível com a Constituição (Sentenza n.
49/2005, in www.cortecostituzionale.it).
Já no que se refere à doação de ovócitos ela é proibida por outros ordenamentos,
para além do italiano, como o ordenamento alemão [Gesetz zum Schutz von
Embryonen (Embryonenschutzgesetz - EschGo), de 13 de Dezembro de 1990, § 1 (1)
1], sendo a mesma solução seguida noutros países como a Áustria, a Suíça ou a
Noruega (cfr. Replies by the member states to the questionnaire on access to
medically assisted procreation (MAP) and on the right to know about their origin
for children born after MAP (2005), Steering Committee of Bioethics, do Conselho
da Europa, citado), proibição que tem sido justificada fundamentalmente por
razões ligadas à não dissociação da maternidade e ao risco de favorecimento,
através da dádiva de ovócitos, de gravidezes tardias (cfr. supra 6. b)).
O direito português que permite, no artigo 10.º da Lei n.º 32/2006, tanto a
doação de gâmetas masculinos e femininos como a doação de embriões, assemelha-se
ao direito espanhol (cfr. artigo 5.º da Ley 14/2006), ao direito francês (artigo
L1244-1 do Code de la Santé Publique) e ao direito inglês (Human Fertilisation
and Embryology Act de 1990, alterado pelo Act 2008, Sch. 3).
Deve todavia desde já adiantar-se que a lei consagra, como decorre de diversas
das suas disposições, um princípio de subsidiariedade em relação à aplicação das
técnicas de procriação heteróloga. A dádiva de espermatozóides, ovócitos e
embriões só é permitida quando, face aos conhecimentos médico-científicos
objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a
qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários (artigo 10.º,
n.º 1). E do mesmo modo, a inseminação com sémen de um terceiro dador só pode
verificar-se quando não seja possível realizar a gravidez através de inseminação
com sémen do marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher a
inseminar (artigo 19.º, n.º 1). O que é também aplicável na fertilização in
vitro com recurso a sémen ou ovócitos de dador e em relação a outras técnicas de
PMA como seja a injecção intracitoplasmática de espermatozóides ou a
transferência de embriões, gâmetas ou zigotos (artigos 27.º e 47.º).
Nesta perspectiva, o legislador acaba por privilegiar a correspondência entre a
progenitura social e progenitura biológica, apenas admitindo a procriação
heteróloga nos casos excepcionais em que não seja possível superar uma situação
de infertilidade sem o recurso a um terceiro dador.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, a admissibilidade subsidiária de tais
técnicas passa essencialmente pela análise do direito à identidade pessoal
compreendido em confronto com o direito ao desenvolvimento da personalidade e o
direito a constituir família.
Recorde-se que a PMA poderá porventura ser considerada, ainda, uma forma de
exercício do direito fundamental a constituir família, previsto no artigo 36.º,
n.º 1, da Constituição. Neste sentido se pronunciam Gomes Canotilho e Vital
Moreira, que definem o direito a constituir família como implicando «não apenas
o direito a estabelecer vida em comum e o direito ao casamento, mas também um
direito a ter filhos […]; direito que embora não seja essencial ao conceito de
família e nem sequer o pressuponha, lhe vai naturalmente associado»
(Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, citada, pág. 567).
Problemático é saber – como sublinham os mesmos autores - «até que ponto é que o
direito a ter filhos envolve um direito à inseminação artificial heteróloga»
(ibidem). A dificuldade de compreensão desta questão no quadro jurídico que
decorre do disposto no artigo 36º, n.º 1, apenas poderá significar que não é
líquido que a procriação heteróloga seja uma solução constitucionalmente
imposta, o que não implica que ela deva ser tida como contrária à Constituição.
O Código Civil prevê uma série de situações de biointerferência de terceiro na
família, tendo apenas por pressuposto a existência de consentimento: os artigos
1979.º, n.ºs 2 e 5, e 1992.º, n.º 2, admitem a adopção singular de filhos do
cônjuge; e o artigo 1883.º permite a introdução no lar conjugal de filhos
concebidos fora do matrimónio. Importa também recordar que o fenómeno da
procriação com recurso a sémen de dador é, desde há anos, conhecido pelo
ordenamento jurídico português, resultando da norma constante do artigo 1839.º,
n.º 3, do Código Civil a impossibilidade de o marido da mãe impugnar a
paternidade do filho nascido de inseminação artificial com esperma de dador,
quando nela tenha consentido (Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família e das
Sucessões, II vol., 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2006, pág. 115).
Relativamente às normas do direito civil que permitem a adopção de filhos do
outro cônjuge ou a inclusão no seio de família de filhos não concebidos na
constância do matrimónio, a differentia specifica que é colocada pela procriação
heteróloga é que, neste caso, a dissociação entre a paternidade/maternidade
social e a paternidade/maternidade biológica resulta do recurso intencional a
uma técnica de procriação medicamente assistida. Se houvesse de colocar-se uma
questão da identidade genética e da identidade pessoal ela mantinha validade
para qualquer daquelas situações similares que são tradicionalmente aceites no
ordenamento jurídico português.
Julga-se, contudo, que nenhum destes direitos é decisivamente afectado.
Como tem sido entendido, o direito à identidade pessoal, tal como está
consagrado no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, abrange, não apenas o direito
ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da
identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si, um direito à
investigação da paternidade e da maternidade, por forma a que todos os
indivíduos tenham a possibilidade de estabelecer o seu próprio vínculo de
filiação jurídica com base no vínculo biológico (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, citada, pág. 462; neste
sentido, ainda, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 456/03).
Não é, no entanto, a norma agora em apreciação que pode pôr em causa o direito à
historicidade pessoal, assim entendido, mas qualquer das outras disposições
legais que condicionam o acesso à informação sobre a identidade do dador, que
adiante serão analisadas (cfr. infra 6. f)), como sejam as referentes ao dever
de sigilo que impende sobre os intervenientes no processo de PMA.
É, por outro lado, discutível que se torne constitucionalmente exigível um
direito ao conhecimento da progenitura em todas as circunstâncias e, por isso,
também, no domínio da procriação heteróloga. O direito de personalidade que pode
aqui estar em consideração é o direito à identidade genética a que faz
referência o n.º 3 do artigo 26º da Constituição. É na medida em que a pessoa é
condicionada na sua personalidade pelo factor genético que a identidade genética
própria se torna uma das componentes essenciais do direito à identidade pessoal
(Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, citada,
págs. 204-205).
A garantia da identidade genética, contudo, refere-se especialmente à
intangibilidade do genoma e à unicidade da constituição genómica de cada um e
tem essencialmente o sentido de impedir a manipulação genética do ser humano e a
clonagem (João Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, in
Portugal-Brasil Ano 2000, «Studia Iuridica» 40, Coimbra, 1999, pág. 288).
E sendo assim, não serão as técnicas de medicina reprodutiva e a simples
previsão do recurso à inseminação artificial ou à fertilização in vitro com
gâmetas de um terceiro dador, com os limites que, em todo o caso, são impostos
pelo disposto no artigo 7º da Lei n.º 32/2006, que podem pôr em causa o direito
que é constitucionalmente garantido pelo n.º 3 do artigo 26º da Constituição.
Deste modo, admite-se que se situa ainda dentro da margem de livre ponderação do
legislador a opção de permitir a procriação medicamente assistida heteróloga
(neste mesmo sentido, João Loureiro, Filho(s) de um gâmeta menor? Procriação
medicamente assistida heteróloga, in «Lex Medicinae – Revista Portuguesa de
Direito da Saúde», n.º 3 (2006/6), pág. 48).
No entender dos requerentes, a procriação heteróloga tem, no entanto, uma outra
implicação que poderá determinar a desconformidade da norma com a Constituição
por violação do disposto nos seus artigos 9.º, alínea d), 24.º, 25.º, 64.º e
67.º, e que resulta do facto de poder vir a assistir-se a uma «comercialização
encapotada» de gâmetas femininos, que poderá afectar as mulheres mais
vulneráveis, com riscos para a vida e a integridade física da doadora,
originando que o Estado deixe assim de cumprir os deveres de realizar o
bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos em condições de igualdade, de
promover a saúde e de proteger a família.
Deve notar-se, porém, que o regime jurídico de procriação medicamente assistida
está rodeado de diversos mecanismos que salvaguardam a operacionalidade do
sistema e a sua conformidade legal, destacando-se, neste plano, a
obrigatoriedade de as técnicas de PMA serem ministradas em centros públicos ou
privados expressamente autorizados pelo Ministro da Saúde, precedendo parecer do
CNPMA - Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (artigos 5º e 30º,
n.º 2, alíneas b) e d)), bem como a exigência de acompanhamento desses centros,
por parte desta entidade, nomeadamente em vista ao cumprimento da lei (artigo
30º, n.º 2, alínea c)). Acresce que existe um registo de dados pessoais
relativos aos processos de PMA, incluindo os respeitantes aos dadores, a que o
CNPMA tem necessariamente acesso (artigos 16º, n.º 1, e 30º, n.º 2, alínea i)),
e a própria utilização de técnicas está sujeita a uma prévia decisão médica que
avalia todas as condicionantes que devam ser tidas em consideração, e, por
conseguinte, também, a situação clínica de qualquer dos seus participantes
(artigo 11º).
Além de que a própria Lei proíbe a compra ou venda de óvulos, sémen ou embriões
ou de qualquer material biológico decorrente da aplicação de técnicas de PMA
(artigo 18º).
Assim se compreende que, embora não se encontre legalmente estipulado um limite
para a doação de gâmetas, o Conselho Nacional de Procriação Medicamente
Assistida tenha vindo a recomendar que «[é] aconselhável que cada dador
masculino não possa dar origem a mais de oito gravidezes de termo» e «cada dador
feminino não possa efectuar mais de três dádivas ao longo da vida
independentemente da doação resultar ou não em gravidez» (cfr. «Requisitos e
Parâmetros de Funcionamento dos Centros de Procriação Medicamente Assistida», de
9 de Maio de 2008, do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida,
pág. 28, disponível em http://www.saudereprodutiva.dgs.pt/?cpp=1).
Nestes termos, a eventualidade de ocorrer um qualquer dano para a integridade
física da mulher dadora, por repetida participação nos procedimentos de PMA, não
é directamente potenciada pela previsão legal da procriação heteróloga, mas pelo
simples incumprimento dos deveres funcionais que são impostos a quem deva
superintender e colaborar na realização das técnicas e fiscalizar essa
actividade, não decorrendo da lei uma qualquer violação dos preceitos
constitucionais.
Não há, por conseguinte, motivo para julgar inconstitucional a falada norma do
artigo 10º.
f) A questão do conhecimento da identidade dos dadores
Os requerentes questionam também a constitucionalidade material das normas
contidas no artigo 15.º, n.ºs 1 a 4, conjugadas com as normas constantes do
artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, na medida em que negam à pessoa nascida com recurso à
procriação heteróloga «a hipótese de conhecer os seus antecedentes médicos».
Sustenta-se que a pessoa concebida através de técnicas de procriação medicamente
assistida não tem possibilidade de o saber, por virtude do dever de sigilo que é
imposto por lei a todos os participantes no processo, o que o coloca numa
situação de desigualdade em relação a quaisquer outros cidadãos, e, por efeito
da inexistência de um limite legal do número de inseminações que um mesmo dador
pode proporcionar, gera evidentes riscos de consanguinidade.
A norma que, neste contexto, é colocada sob sindicância, relaciona-se com a
possibilidade legalmente prevista de se recorrer à dávida de espermatozóides,
ovócitos ou embriões para aplicação de uma técnica de PMA (artigo 10º, n.º 1),
e, sob a epígrafe «confidencialidade», dispõe o seguinte:
1 - Todos aqueles que, por alguma forma, tomarem conhecimento do recurso a
técnicas de PMA ou da identidade de qualquer dos participantes nos respectivos
processos estão obrigados a manter sigilo sobre a identidade dos mesmos e sobre
o próprio acto da PMA.
2 - As pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva
de gâmetas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de saúde, obter as
informações de natureza genética que lhes digam respeito, excluindo a
identificação do dador.
3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, as pessoas aí referidas podem
obter informação sobre eventual existência de impedimento legal a projectado
casamento, junto do Conselho Nacional de Procriação medicamente Assistida,
mantendo-se a confidencialidade acerca da identidade do dador, excepto se este
expressamente o permitir.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, podem ainda ser obtidas
informações sobre a identidade do dador por razões ponderosas reconhecidas por
sentença judicial.
5 - O assento de nascimento não pode, em caso algum, conter a indicação de que a
criança nasceu da aplicação de técnicas de PMA.
A questão que se coloca é, pois, a do anonimato do dador, que tem sido objecto
de um amplo debate doutrinal e de muito diferentes soluções legais nos diversos
ordenamentos jurídicos.
No plano do direito comparado, a maior parte dos países consagra a regra do
anonimato dos dadores. A lei espanhola prevê a confidencialidade dos dados
relativos aos dadores, consentindo que os filhos nascidos de procriação
heteróloga acedam a informações gerais sobre os dadores, que não incluam a sua
identidade, salvo em casos extraordinários, que comportem perigo para a vida ou
para a saúde do filho (cfr. artigo 5.º, n.º 5, da Ley 14/2006). O princípio do
anonimato é também o adoptado em França (artigos 1244-6 e 1244-7 do Code de la
Santé Publique).
Todavia, vários países, nomeadamente os países nórdicos e anglo-saxónicos, têm
vindo a alterar a sua legislação, abandonando a regra do anonimato e permitindo
à pessoa nascida de PMA, quando tenha atingido um grau suficiente de maturidade,
conhecer a identidade dos dadores de gâmetas. Encontram-se neste grupo a Suécia
(cfr. documento do Steering Committee of Bioethics, de 12 de Junho de 2005,
citado, págs. 60, 64 e 68), a Suiça (artigo 119.º, alínea g), da Constituição
Federal) e o Reino Unido (secção 31ZA, § 2 (a), na redacção do Human
Fertilisation and Embriology Act de 2008).
Do ponto de vista jurídico-constitucional estão aqui em tensão diferentes
direitos fundamentais. Por um lado, o direito fundamental da pessoa nascida de
PMA à identidade pessoal, do qual parece decorrer um direito ao conhecimento da
sua ascendência genética (artigos 26.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição), e, por
outro, o direito a constituir família e o direito à intimidade da vida privada e
familiar (previstos, respectivamente, nos artigos 36.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da
Constituição).
A questão deve ser colocada nestes termos, uma vez que a possibilidade de
conhecimento da identidade dos dadores de gâmetas e/ou embriões não implica o
reconhecimento de qualquer vínculo legal de ordem filial, como expressamente
decorre do disposto no artigo 10.º, n.º 2, onde se refere: «[o]s dadores de
gâmetas não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer».
Alguns autores defendem a inconstitucionalidade da regra do anonimato do dador,
fundando-se no «direito de cada ser humano a conhecer a forma como foi gerado”
ou o respectivo património genético (Diogo Leite de Campos, A procriação
medicamente assistida heteróloga e o sigilo sobre o dador – ou a omnipotência do
sujeito, in «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 66, Dezembro de 2006, pág.
1028; Paulo Otero, Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano:
um perfil constitucional da bioética, Almedina, 1999, pág. 71 e seg.; Tiago
Duarte, In Vitro Veritas? A procriação medicamente assistida na Constituição e
na lei, Coimbra, 2003, págs. 44 a 48). Outros excluem que o direito ao
conhecimento das origens genéticas assuma um carácter absoluto e preconizam uma
solução de equilíbrio em que se tenha em linha de conta outros interesses ou
valores conflituantes, como a defesa da paz da família (Guilherme de Oliveira,
Aspectos Jurídicos da Procriação Medicamente Assistida, in «Temas de Direito da
Medicina», Coimbra Editora, 2005, pág. 18; Rafael Vale e Reis, O Direito ao
Conhecimento das Origens Genéticas, citado, pág. 491).
Este mesmo princípio foi afirmado pelo Tribunal Constitucional quando teve
oportunidade de se pronunciar acerca do direito ao conhecimento da maternidade e
paternidade biológicas, enquanto dimensão do direito à identidade pessoal, a
propósito de questão da constitucionalidade do prazo máximo de dois anos após a
maioridade para propor acção de investigação de paternidade. A esse respeito, o
acórdão n.º 23/06 fez notar que o direito à identidade pessoal, na sua dimensão
de historicidade pessoal, implica a existência de meios legais para demonstração
dos vínculos biológicos, mas admitiu que «outros valores, para além da ilimitada
recepção à averiguação da verdade biológica da filiação (...) possam intervir na
ponderação dos interesses em causa, como que comprimindo a revelação da verdade
biológica».
Numa linha de entendimento semelhante também o Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, no caso Odièvre v. France, por acórdão de 13 de Fevereiro de 2003,
aceitou, a respeito do regime legal francês do chamado 'parto anónimo', que
pudesse haver limites ao direito ao conhecimento das origens genéticas e que,
nesta matéria, os Estados pudessem estabelecer restrições que assegurem a
realização, segundo critérios de proporcionalidade, de todos os interesses em
presença.
Chegados a este ponto, será necessário relembrar que o artigo 15º da Lei n.º
32/2006 não estabelece uma regra definitiva de anonimato dos dadores, mas apenas
uma regra prima facie, que admite excepções expressamente previstas. Na verdade,
embora os intervenientes no procedimento se encontrem sujeitos a um dever de
sigilo, as pessoas nascidas na sequência da utilização de técnicas de PMA com
recurso a dádiva de gâmetas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de
saúde, obter as informações de natureza genética que lhes digam respeito (n.º
2), bem como informação sobre eventual existência de impedimento legal a um
projectado casamento (n.º 3), além de que podem obter informações sobre a
identidade dos dadores de gâmetas quando se verifiquem razões ponderosas,
reconhecidas por sentença judicial (n.º 4).
A questão que se coloca não é pois a de saber se seria constitucional um regime
legal de total anonimato do dador, mas antes se é constitucional estabelecer,
como regra, o anonimato dos dadores e, como excepção, a possibilidade de
conhecimento da sua identidade.
Deste modo, perdem relevância para a questão que agora se discute quaisquer
afirmações genéricas acerca da existência de um direito ao conhecimento das
origens genéticas, pois essa existência não é posta em causa, estando apenas em
jogo o peso relativo que tal direito merece e a importância que lhe é dada pela
lei no regime que concretamente instituiu.
Compreende-se, de facto, que sejam admissíveis nesta matéria soluções de
equilíbrio ou de concordância prática.
Na verdade, a identidade pessoal é um conceito referido à pessoa que se constrói
ao longo da vida em vista das relações que nela se estabelecem, sendo que os
vínculos biológicos são apenas um aspecto dessa realidade. E nesse sentido, a
história pessoal de cada um é também a história das relações que vivenciou com
os outros, de tal modo que – pode dizer-se - não é possível isolar a vida de uma
pessoa da vida daquelas com quem familiarmente conviveu desde a nascença (João
Loureiro, O Direito à Identidade Genética do Ser Humano, citado, pág. 292).
A imagem da pessoa que a Constituição supõe não é apenas a de um indivíduo
vivendo isoladamente possuidor de um determinado código genético; a Constituição
supõe uma imagem mais ampla da pessoa, supõe a pessoa integrada na realidade
efectiva das suas relações familiares e humano-sociais. Deste modo, o direito à
identidade pessoal, poderá dizer-se, possui, até certo ponto, um conteúdo
heterogéneo: ele abrange diferentes tipos de faculdades, e o seu domínio de
protecção não é absolutamente uniforme, admitindo-se nele diferentes
intensidades em função do tipo de situação que esteja em causa (quanto à
heterogeneidade do conteúdo dos direitos subjectivos fundamentais, Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, citado,
págs. 175-177).
Assim sendo, as posições jurídicas contidas no direito à identidade pessoal,
como seja o direito ao conhecimento das origens genéticas, não têm
necessariamente uma força jurídico-constitucional uniforme e totalmente
independente dos diferentes contextos em que efectivamente se desenvolve essa
identidade pessoal. O reconhecimento de um direito ao conhecimento das origens
genéticas não impede, pois, que o legislador possa modelar o exercício de um tal
direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados
que possam reflectir-se no conceito mais amplo de identidade pessoal
Além disso, o direito a constituir família é certamente um factor a ponderar na
admissibilidade subsidiária da procriação heteróloga. A partir do momento em que
se admite uma modalidade de procriação medicamente assistida que pressupõe a
doação de gâmetas por um terceiro, mal se compreenderia que se estabelecesse um
regime legal a ela relativo que fosse tendente a afectar a paz familiar e os
laços afectivos que ligam os seus membros. E, nestes termos, tendo-se já
discutido a conformidade constitucional desta forma de procriação quando não
seja medicamente possível outra (cfr. supra 5. e)), não é de considerar como
constitucionalmente inadmissível que o legislador crie as condições para que
sejam salvaguardadas a paz e a intimidade da vida familiar, sem interferência de
terceiros dadores que, à partida, apenas pretenderam auxiliar a constituição da
família.
Cabe, em todo o caso, sublinhar que o regime legal de não revelação da
identidade dos dadores não é fechado. O Conselho Nacional de Procriação
Medicamente Assistida possui a informação sobre a identidade dos dadores e
poderá prestá-la nos termos e com os limites previstos no artigo 15º, quer
fornecendo dados de natureza genética, quer identificando situações de
impedimento matrimonial, e sem excluir a possibilidade de identificação do dador
quando seja proferida decisão judicial que verifique a existência de razões
ponderosas que tornem justificável essa revelação (artigo 30º, n.º 2, alínea
i)). Além disso, as razões ponderosas a que se refere o artigo 15.º, n.º 4, da
Lei n.º 32/2006, não poderão deixar dever consideradas à luz do direito à
identidade pessoal e do direito ao desenvolvimento da personalidade de que fala
o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República, que, nesses termos, poderão
merecer prevalência na apreciação do caso concreto.
Contrariamente ainda ao que vem alegado no pedido, por tudo o que se deixou
exposto, não há também qualquer violação do princípio da igualdade, em relação
às pessoas nascidas a partir da utilização de técnicas de PMA.
Não obstante o dever de sigilo que impende sobre os intervenientes no processo,
essas pessoas podem aceder a todos os dados de informação relativos aos seus
antecedentes genéticos e só a informação referente à própria identidade do dador
é que está dependente de prévia autorização judicial. No entanto, essa limitação
ao conhecimento da progenitura (ainda que de carácter não absoluto) mostra-se
justificada, como se deixou entrever, pela necessidade de preservação de outros
valores constitucionalmente tutelados, pelo que nunca poderá ser entendida como
uma discriminação arbitrária susceptível de pôr em causa o principio da
igualdade entre cidadãos.
Em todo este contexto, a opção seguida pelo legislador, ao estabelecer um regime
mitigado de anonimato dos dadores, não merece censura constitucional.
g) O regime da filiação na reprodução heteróloga
O artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006 prevê a inseminação artificial com
sémen de um terceiro dador, acrescentando o artigo 20.º, n.º 1, que a criança
que vier a nascer é havida como filho do marido ou daquele que vive em união de
facto com a mulher inseminada, desde que tenha havido consentimento na
inseminação. Em consonância com o assim estabelecido, o n.º 5 do mesmo preceito
permite que a presunção de paternidade estabelecida nos termos desse n.º 1 possa
ser impugnada pelo marido ou aquele que vivesse em união de facto se for provado
que não houve consentimento ou que o filho não nasceu da inseminação para que o
consentimento foi prestado. O artigo 21º, entretanto, prescreve que o terceiro
dador não pode ser havido como pai, não lhe cabendo quaisquer poderes ou deveres
em relação à criança. Idêntico regime é aplicável à fertilização in vitro com
sémen de terceiro dador, nos termos do artigo 27.º do mesmo diploma.
Os requerentes sustentam que esses quatro preceitos são inconstitucionais porque
conduzem à disponibilidade do direito ao conhecimento e reconhecimento da
paternidade, argumento que retiram do disposto no artigo 26.º da Constituição.
Além de que consideram que a solução legislativa, ao admitir a
monoparentalidade, entra em colisão com a regra do artigo 6º da Lei n.º 32/2006
e afronta o superior interesse da criança a nascer, violando os princípios que
decorrem dos artigos 36º, n.º 4, e 69º da Constituição (certamente por lapso
refere-se o artigo 68º que parece não ter qualquer correlação com o caso). No
pedido, invoca-se ainda a ausência de qualquer sanção para o incumprimento da
regra da biparentalidade, o que reforça a ideia, no entender dos requerentes, de
que se aceitou o critério da procriação monoparental.
O problema específico da possível violação do direito à identidade pessoal
através da procriação heteróloga foi já discutido anteriormente (cfr. supra 6.
e)).
Admitindo a lei essa forma de procriação, e tendo-se já concluído que, em si
mesma, ela não viola o direito à identidade pessoal, não faz sentido contestar o
critério legal da paternidade que resulta das mencionadas disposições dos
artigos 20º, n.º 1, e 21º (assim, Tiago Duarte, In Vitro Veritas? A procriação
medicamente assistida na Constituição e na lei, citado, pág. 67).
Nesse sentido se exprime, também, Jorge Duarte Pinheiro (Direito da Família e
das Sucessões, II Vol., citado, pág. 140), quando refere: «[n]a procriação
assistida heteróloga, não é razoável insistir no critério biológico, atribuindo
ou impondo situações jurídicas paternais a alguém que é um mero dador de
material genético. O vínculo de filiação deve ser, em alternativa, constituído
em relação ao beneficiário da PMA que não contribuiu, para o processo, com as
suas células reprodutoras, desde que ele tenha consentido validamente na
formação desse vínculo. Tanto mais que ele teve um papel causal determinante no
nascimento. Foi a sua decisão que desencadeou o processo de procriação».
O regime de filiação acolhido nas normas ora em análise corresponde aos
princípios definidos pelo Ad Hoc Committee of experts on progress in the
biomedical sciences, do Conselho da Europa, em 1989, acerca desta matéria (cfr.
o Report on Human Artificial Procreation, princípio 14.º, n.ºs 2 e 3, in
http://www.coe.int/t/e/le
gal_affairs/legal_cooperation/bioethics/texts_and_documents/PMA%20principles%20CAHBI%201989.asp#TopOfPage)
e encontra, aliás, paralelo na generalidade dos ordenamentos jurídicos
estrangeiros, de que são exemplos próximos o caso da Espanha (artigo 8.º, n.º 1,
da Ley 14/2006), da França (artigos 311-19 e 311-20 do Code Civil) ou do Reino
Unido (§ 28.º do Human Fertilisation and Embryology Act de 1990).
Particularmente sintomática a este respeito é a lei italiana de procriação
medicamente assistida que, não obstante proibir a inseminação artificial com
gâmetas de terceiro dador (artigo 4.º, n.º 3), nega a quem tenha consentido na
inseminação heteróloga a possibilidade de impugnar a paternidade, e, ao dador,
qualquer pretensão de paternidade (artigo 9.º, nos 1 e 3, da Legge 19 febbraio
2004, n. 40).
Os requerentes fazem, no entanto, especial referência ao artigo 20.º, n.º 5, da
Lei n.º 32/2006, considerando que este, ao permitir a impugnação da paternidade
presumida quando não tenha havido consentimento do marido à inseminação
heteróloga da mulher, contraria o disposto no artigo 6.º, n.º 1, do mesmo
diploma e viola o direito da criança à protecção da sociedade, e,
designadamente, o direito a beneficiar da estrutura familiar biparental da
filiação. E reforçam o seu entendimento invocando ainda que o artigo 35.º da
mesma Lei não prevê qualquer sanção para a violação do princípio da
biparentalidade que consta desse artigo 6.º.
Deve começar por dizer-se que o citado artigo 20.º, n.º 5, não afasta nem põe em
causa o princípio da biparentalidade enunciado no precedente artigo 6.º, n.º 1.
Como decorre deste último preceito, a regra é a de que «[s]ó as pessoas casadas
que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de
facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos
cônjuges há pelo menos dois anos podem recorrer a técnicas de procriação
medicamente assistida».
Por outro lado, o artigo 20.º estabelece uma presunção de paternidade em relação
ao cônjuge que consentiu na inseminação heteróloga da mulher (n.º 1), impedindo
– como também resulta do seu n.º 5 - que este venha a exercer posteriormente o
direito de impugnação sobre a paternidade presumida. Essa é, de resto, uma regra
que se explica à luz da figura do abuso de direito. Seria contrário à boa fé que
quem aceitou um processo de inseminação heteróloga para solucionar o seu próprio
problema de esterilidade, conformando-se com a investidura na função social de
pai, apesar de não ser o progenitor biológico, venha depois contestar o vínculo
de filiação (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família,
Volume II, Tomo I, Coimbra, 2006, pág. 143; Moitinho de Almeida, La filiation
dans la réforme du Code Civil Portugais du 25 novembre 1977, BMJ, n.º 285, pág.
22; Guilherme de Oliveira, Critério jurídico da paternidade, Coimbra, 1998, pág.
352).
Acresce que o consentimento do marido ou da pessoa unida de facto é acautelado
por lei com a máxima prudência. Ele deve, nos termos do artigo 14.º, n.º 1, da
Lei n.º 32/2006, ser prestado de «forma expressa e por escrito, perante médico
responsável» e, nos termos do n.º 2 desse mesmo artigo, «devem os beneficiários
ser previamente informados, por escrito, de todos os benefícios e riscos
conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas
implicações éticas, sociais e jurídicas».
Neste condicionalismo, a possibilidade de impugnação da presunção de paternidade
apenas poderá verificar-se, nos precisos termos do n.º 5 do artigo 20º, quando
se venha a provar que «não houve consentimento ou que o filho não nasceu da
inseminação para que o consentimento foi prestado».
Note-se contudo que uma tal situação só poderá ocorrer em condições anómalas em
que os Centros de Saúde não tenham funcionado devidamente, e que, além disso, a
lei oferece sanção contra tal possibilidade, o que permite razoavelmente
garantir a inviabilidade prática de procriação medicamente assistida sem o
consentimento de ambas as pessoas casadas ou unidas de facto ou com violação da
regra da biparentalidade prevista do artigo 6.º, n.º 1.
Na verdade, o artigo 44.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 32/2006 qualifica
como contra-ordenação a aplicação de qualquer técnica de PMA sem que, para tal,
se verifiquem os requisitos de biparentalidade a que alude o artigo 6º, ou sem
que o consentimento de qualquer dos beneficiários conste de documento que
obedeça aos requisitos previstos no artigo 14.º, fazendo-lhe corresponder a
coima de € 10 000 a € 50 000, no caso de pessoas singulares, e de € 10 000 a €
500 000, no caso de pessoas colectivas, e a que poderão acrescer as sanções
acessórias previstas no artigo 45.º, como sejam, a interdição temporária do
exercício de actividade, o encerramento temporário do estabelecimento ou a
cessação da autorização de funcionamento.
Acresce que, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, «as técnicas de PMA só podem ser
ministradas em centros públicos ou privados expressamente autorizados para o
efeito pelo Ministro da Saúde» e a aplicação das técnicas de procriação
medicamente assistida fora dos centros autorizados é, nos termos do artigo 34.º,
punível com prisão até 3 anos. Daqui resultando, para além das consequências
penais, a impossibilidade do funcionamento do regime de filiação que decorre das
mencionadas regras dos artigos 20º, n.º 1, e 21º, quando a utilização da técnica
de PMA aqui em causa ocorra fora do enquadramento institucional definido por
lei.
Importa ainda referir que a natureza pecuniária das sanções escolhidas pelo
legislador para punir a PMA sem consentimento de ambos os cônjuges beneficiários
é a mesma de outras legislações estrangeiras sobre esta matéria, designadamente
a espanhola (artigos 26.º, n.º 2, alínea b), 3.ª, e 27.º, n.º 1, da Ley 14/2006)
e a italiana (artigo 12.º, n.º 4, da Legge 19 febbraio 2004, n. 40). A opção
seguida pelo legislador espanhol (na primitiva lei sobre PMA – a Ley 35/1988) já
foi apreciada pelo Tribunal Constitucional espanhol, tendo este concluído que as
sanções administrativas estatuídas para a infracção das regras da PMA não
padeciam de vício de inconstitucionalidade, por não existir uma imposição
constitucional de punição criminal, porque a protecção penal tem carácter
fragmentário (não absoluto) e porque o direito penal está sujeito ao princípio
da intervenção mínima – cfr. a já mencionada sentencia n.º 116/1999.
No mesmo sentido se pronunciou a Associação Internacional de Direito Penal, no
Congresso realizado em Viena, em 1989, onde se debateu a relação entre o direito
penal e as modernas técnicas biomédicas. As conclusões do Congresso reiteram o
carácter de ultima ratio do direito penal, no contexto da procriação medicamente
assistida (Costa Andrade, Direito penal e modernas técnicas biomédicas: as
conclusões do XIV Congresso Internacional de Direito Penal, in «Revista de
Direito e Economia», n.º 15, 1989, págs. 388 e 389).
Em face de todas as cláusulas de salvaguarda que decorrem do sistema legal, a
possível ocorrência de conflitos negativos de paternidade apenas pode derivar de
situações de anormalidade, de nenhum modo podendo atribuir-se ao legislador a
intencionalidade de instituir um regime de monoparentalidade.
Nestes termos, como tudo leva a concluir, não se verifica a pretendida
inconstitucionalidade.
h) A não criação de embriões excedentários e a prevenção geral da gravidez
múltipla
Os requerentes entendem que os artigos 24.º e 25.º da Lei n.º 32/2006 consagram
um princípio de criação discricionária de embriões e permitem a ocorrência de
gravidezes múltiplas, por simples exercício do poder médico e científico,
potenciando situações de malformação fetal, e propendem a considerar, nesses
termos, que tais soluções legislativas violam o disposto nos artigos 64.º, 67.º,
n.º 2, alínea e), e 68.º da Constituição.
As normas em causa inserem-se no capítulo referente à fertilização in vitro.
O artigo 24.º estipula que «na fertilização in vitro apenas deve haver lugar à
criação dos embriões em número considerado necessário para o êxito do processo,
de acordo com a boa prática clínica e os princípios do consentimento informado»
(n.º 1) e que «o número de ovócitos a inseminar em cada processo deve ter em
conta a situação clínica do casal e a indicação geral de prevenção da gravidez
múltipla» (n.º 2).
O artigo 25º, por seu turno, providencia sobre o destino a dar aos embriões que
não possam ser transferidos para o útero materno, dispondo nos seguintes termos:
1 - Os embriões que, nos termos do artigo anterior, não tiverem de ser
transferidos, devem ser criopreservados, comprometendo-se os beneficiários a
utilizá-los em novo processo de transferência embrionária no prazo máximo de
três anos.
2 - Decorrido o prazo de três anos, podem os embriões ser doados a outro casal
cuja indicação médica de infertilidade o aconselhe, sendo os factos
determinantes sujeitos a registo.
3 - O destino dos embriões previsto no número anterior só pode verificar-se
mediante o consentimento dos beneficiários originários ou do que seja sobrevivo,
aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 1 do artigo 14.º
4 - Não ficam sujeitos ao disposto no n.º 1 os embriões cuja caracterização
morfológica não indique condições mínimas de viabilidade.
5 - Aos embriões que não tiverem possibilidade de ser envolvidos num projecto
parental aplica-se o disposto no artigo 9.º
Quanto ao primeiro problema suscitado pelos requerentes, é necessário dizer que
de nenhuma das disposições mencionadas se pode retirar um princípio de criação
discricionária de embriões.
A «criação de embriões», a que se refere o nº 1 do artigo 24º, só se consegue
através da «inseminação de ovócitos», a que alude o n.º 2 do mesmo artigo; e o
que resulta da interpretação conjugada dessas disposições é que só é possível
inseminar os ovócitos (e, portanto, criar embriões) em número necessário para o
sucesso do processo de procriação medicamente assistida, tendo em conta a boa
prática médica e a situação clínica do casal.
Essa ideia é, por outro lado, corroborada pelo disposto no artigo 9º, n.º 1, que
proíbe a criação de embriões para investigação.
O legislador assenta, por conseguinte, num princípio de necessidade que é
avaliado segundo um critério médico, o que desde logo afasta qualquer
interpretação da lei que permita considerar como possível a criação arbitrária
de embriões.
O regime legal tem em linha de conta que o número de embriões necessários para o
sucesso da fertilização não pode ser definido a priori e de forma generalizada,
mas releva antes de uma avaliação clínica em função do caso concreto. O decisor
médico está, de todo o modo, por efeito da lei, vinculado a uma lógica de
intervenção mínima que se baseia num cálculo de probabilidade, não podendo
ignorar-se, por outro lado, que o processo de fecundação está associado à
finalidade de procriação.
Como reconhece o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, não é
possível garantir, à partida, uma total correspondência entre o número de
embriões criados e o número de embriões transferidos para o útero, sendo sempre
de admitir a existência de embriões «que, por circunstâncias ou razões
imponderáveis», são «excluídos do seu projecto parental originário» (Parecer
44/CNECV/04, citado, ponto 20). Também no Relatório do CNECV sobre o estado da
aplicação das novas tecnologias à vida humana, de 1995 (pág. 3), se encontram
referências à «inevitabilidade de pontualmente se obterem embriões
supra-numerários» e à ideia de que são restritos os casos em que se consegue
fazer inseminação artificial com sucesso apenas inseminando um número de
ovócitos próximo ou idêntico ao número de embriões a transferir (in
http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres/E932BA3E-FE2D-484A-9371-C245862C24B/0/1995RelatorioNovasTecnologias.pdf).
Para além de existirem casos em que não é cientificamente garantida a
fertilização de todos os ovócitos, obrigando à multiplicação das tentativas, há
que ter em conta que os embriões criados podem apresentar anomalias morfológicas
que os tornem inviáveis (cfr. The Protection of the Human Embryo in vitro,
Steering Committee on Bioethics, de 19 de Junho de 2003, pág. 13, in
http://www.coe.int/t/e/legal_affairs/legal_cooperation/bioethics/texts_and_documents/CDBI-CO-GT3(2003)13E.pdf),
além de que poderão sobrevir circunstâncias externas ao próprio processo de
procriação medicamente assistida que impeçam que os embriões criados sejam
transferidos para o útero (por exemplo, o falecimento da beneficiária ou a
contracção de doença que a incapacite de levar a cabo a gravidez, hipótese
expressamente prevista pela lei italiana para efeito da admissibilidade da
crioconservação de embriões – artigo 14.º, n.º 3, da Legge 19 febbraio 2004, n.
40).
Neste contexto, a ocorrência de embriões excedentários surge como uma
inevitabilidade, que só poderia ser prevenida através da proibição em geral da
fertilização in vitro, o que não deixaria de constituir um injustificável
retrocesso no desenvolvimento da biomedicina e que seria incompatível com a
referência valorativa que decorre do artigo 67º, n.º 2, alínea e), da
Constituição.
Como se observou num momento anterior, o parâmetro de constitucionalidade que
está implicado na criação de embriões excedentários em resultado da aplicação de
uma técnica de PMA, é o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em
consideração que se trata de embriões não implantados no útero materno a que se
não pode atribuir um grau de protecção correspondente à tutela da vida humana ou
da vida intra-uterina.
Neste ponto, a admissibilidade constitucional da procriação medicamente
assistida, por força da autorização concedida ao legislador ordinário para a sua
regulamentação em termos que «salvaguardem a dignidade da pessoa humana» (artigo
67º, n.º 2, alínea e)), tem implícita a ideia de que é possível conciliar, no
quadro jurídico-constitucional, esse com outros valores constitucionalmente
tutelados, como seja o direito de constituir família previsto no artigo 36º, n.º
1, da Constituição, o qual se insere num espaço de autonomia pessoal que
igualmente releva do princípio da dignidade da pessoa humana.
Ora, o artigo 25º da Lei n.º 32/2006, há pouco transcrito, embora não garanta em
absoluto a protecção da vida pré-embrionária, regula o destino a dar aos
embriões não implantados com o respeito que é devido à sua potencial natureza
humana, determinando que os embriões que não tiverem de ser transferidos devam
ser criopreservados, para serem utilizados num novo processo de transferência
embrionária pelos próprios beneficiários ou por um outro casal a quem sejam
doados (n.ºs 1 e 2), e só os embriões que, por virtude da sua caracterização
morfológica, se tornem inviáveis, ou que, de outro modo, não tenham
possibilidade de ser envolvidos num projecto parental, é que poderão ser
utilizados em investigação científica, em conformidade com o que dispõe o artigo
9º (n.ºs 4 e 5).
E como se ponderou já anteriormente, quando se analisou essa específica questão
(cfr. supra 6. e)), a experimentação científica em embriões, para além de apenas
abranger os embriões criopreservados excedentários que não possam ser destinados
para fins de procriação ou aqueles cujo estado não permita essa utilização
(conforme se depreende do disposto no já citado artigo 25º, interpretado
conjugadamente com a norma do artigo 9º, n.º 4), só é lícita se for realizada
com objectivos terapêuticos, de prevenção ou diagnóstico e desde que seja
razoável esperar que daí possa resultar benefício para a humanidade (artigo 9º,
n.ºs 2 e 3).
Em todo este condicionalismo, nada permite concluir que o sistema legal pretenda
potenciar a criação livre de embriões ou deixe de assegurar uma protecção
adequada para os embriões que não possam ser implantados.
Entretanto, os requerentes consideram ainda verificada a violação do direito à
protecção da saúde previsto no artigo 64.º da Constituição, em virtude de a
disposição do artigo 24º da Lei n.º 32/2006, ao regular a fertilização in vitro,
vir a permitir a implantação de mais do que um embrião no útero materno, com o
consequente risco de surgimento de gravidezes múltiplas e de situações de
malformação dos fetos.
Cabe recordar que o referido artigo 24º, ainda que não estipule um limite máximo
para o número de embriões a transferir, apenas permite a «criação de embriões em
número considerado necessário para o êxito do processo, de acordo com a boa
prática clínica» (n.º 1), além de que condiciona a inseminação de ovócitos, em
cada processo, em função da «situação clínica do casal» e da «prevenção da
gravidez múltipla» (n.º 2).
E, assim, embora o legislador não tenha seguido o critério da indicação
numérica, como sucede noutros sistemas legislativos (por exemplo, na Alemanha -
§ 1 (1) 3 da Embryonenschutzgesetz; na Itália - artigo 14.º, n.º 2, da Legge 19
febbraio 2004, n. 40; e em Espanha - artigo 3.º, n.º 2, da Ley 14/2006), o
certo é que não deixou de definir os requisitos que devem presidir à decisão
médica, especialmente no que respeita à necessidade de prevenção da gravidez
múltipla.
Não há, por isso, motivo para considerar que o regime legal contende com o
estabelecido no artigo 64º da Constituição, quando ele próprio está dotado de
mecanismos que, através de uma correcta aplicação por parte das equipas médicas
intervenientes no processo, visam evitar a gravidez múltipla e salvaguardar a
integridade física e a saúde da mulher.
i) Diagnóstico Genético Pré-implantação (DGPI)
Outra das questões suscitadas pelos requerentes prende-se com a
constitucionalidade dos artigos 28.º e 29.º da Lei n.º 32/2006, que regulam o
diagnóstico genético pré-implantação (DGPI).
Alegam que esse diagnóstico se destina à produção de seres humanos seleccionados
segundo qualidades pré-estabelecidas, constituindo uma manipulação contrária à
dignidade, integridade e identidade única e irrepetível do ser humano, violadora
dos artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da Lei Fundamental. E referem ainda que a
Lei n.º 32/2006 foi aprovada sem ter em conta que o Conselho Nacional de Ética
para as Ciências da Vida (CNECV) estava a preparar um parecer sobre essa
temática, o que poderá configurar uma desconsideração pelas competências que a
Lei n.º 14/90, de 9 de Junho, atribui a esta entidade.
Começando por abordar este último aspecto, cabe referir que o Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida, criado pela Lei n.º 14/90, é um órgão
independente, que funciona junto da Presidência do Conselho de Ministros, ao
qual compete analisar sistematicamente os problemas morais suscitados pelos
progressos científicos no domínio da biologia, da medicina ou da saúde em geral,
e emitir pareceres sobre essa matéria, a pedido do Presidente da República, da
Assembleia da República ou de um vigésimo de deputados em efectividade de
funções (artigos 1º e 2º, n.º 1, alíneas a) e b), e 7º).
Não há, no entanto, qualquer exigência constitucional quanto ao procedimento
legislativo referente a questões que relevam no âmbito da actividade do CNECV, e
mormente no que se refere à regulamentação legal da procriação medicamente
assistida - que o artigo 67º, n.º 2, alínea e) da Constituição remete para o
legislador ordinário -, não se tornando exigível qualquer prévio dever de
audição do CNECV, tanto mais que o pedido de emissão de parecer, conforme se
depreende do citado artigo 7º da Lei n.º 14/90, é meramente facultativo.
Acresce que o diagnóstico genético no âmbito da procriação não é uma novidade no
nosso direito interno. A Lei n.º 3/84, de 24 de Março, determina que o
planeamento familiar postula «acções de aconselhamento genético» (artigo 4.º,
n.º 1), o que se entende como constituindo uma imposição que deveria implicar a
realização de «averiguações tendentes a permitir o diagnóstico pré-natal sob a
forma do diagnóstico pré-concepcional» (Guilherme de Oliveira, O direito do
diagnóstico pré-natal, in «Temas de Direito da Medicina», citado, pág. 217); e,
por outro lado, o programa nacional de saúde reprodutiva contempla desde 1997 a
realização de exames e meios de diagnóstico pré-natal – como a biopsia do
córion, a amniocentese e a cordocentese – para detecção de doenças graves e
anomalias de base genética (cfr. o Despacho da Ministra da Saúde n.º 5411/97,
publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Agosto de 1997).
Acrescente-se ainda que o parecer da CNECV, que viria a ser aprovado em Abril de
2007, com expressa referência à Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, entretanto
publicada, se pronuncia, em termos gerais, de modo favorável à admissibilidade
do DGPI. Aí se formula o entendimento de que o recurso ao DGPI, enquanto técnica
de investigação diagnóstica, «não viola princípios éticos fundamentais», e pode
ser positivamente valorizado do ponto de vista ético «quando seja possível
evitar o desenvolvimento de um ser humano que tenha alta probabilidade de nascer
ou vir a desenvolver doença grave, que origine morte prematura e sofrimento
prolongado e irreversível» ou «quando, após avaliação médica, se demonstre que
pelo menos um dos progenitores é portador de alteração genética hereditária
causadora de doença grave»; sem excluir, à luz de um princípio de solidariedade,
a «utilização do DGPI para seleccionar embriões dadores de células estaminais
com o fim de tratar doença fatal de familiar» [Parecer sobre Diagnóstico
Genético Pré-implantação (51/CNECV/07), de Abril de 2007, conclusões 1ª, 3ª, 4ª
e 8ª, págs. 3-4, in http://www.cnecv.gov.pt/cnecv/pt/Pareceres/].
A respeito, especificamente, da admissibilidade constitucional do DGPI, importa
ter em conta, desde logo, que de entre as indicações de uso da PMA constam, nos
termos da lei, (i) o tratamento de doença grave e (ii) a eliminação do risco de
transmissão de doença genética, infecciosa ou outra (artigo 4.º, n.º 2). Ora, a
análise genética do embrião levada a cabo através do DGPI destina-se a permitir
que a aplicação de técnica de procriação medicamente assistida, para qualquer
dessas finalidades, seja bem sucedida. Daí que o artigo 28.º, n.º 1, consinta a
utilização do DGPI para «os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 7.º», isto é,
para obtenção de grupo HLA compatível para tratamento de doença grave de
terceiro, e também para detecção de embriões «portadores de anomalia grave,
antes da transferência para o útero materno».
Em ambas as situações, o DGPI visa a selecção de embriões. No primeiro caso há
uma selecção positiva: escolhem-se embriões com determinadas características
genéticas, para serem implantados no útero materno; e, no segundo caso, há uma
selecção negativa: excluem-se da implantação uterina embriões que padeçam de
anomalia grave.
A constitucionalidade da selecção positiva de embriões, em função das suas
características genéticas (grupo de HLA), para efeitos de tratamento de doença
grave, já foi anteriormente analisada (cfr. supra, 6. a) e 6. c)). Vimos que não
há na aplicação de uma técnica de PMA com essa finalidade qualquer viabilidade
de prática de eugenismo, uma vez que o objectivo é exclusivamente terapêutico.
Tendo-se concluído pela conformidade constitucional do recurso à PMA para
tratamento de doença grave, nos moldes prescritos nos artigos 4.º, n.º 2, e 7.º,
n.º 3, não poderá deixar de se seguir idêntico entendimento relativamente à
realização do DGPI quando ele vise essa mesma finalidade, visto que assume,
nessa circunstância, uma mera função instrumental. Com efeito, quando o
objectivo é tratar uma doença grave e não existam problemas de infertilidade nem
de risco de transmissão de doença genética, o recurso à PMA mostra-se
justificado exactamente pela possibilidade de seleccionar embriões com o grupo
de HLA desejado, o que apenas é possível através do DGPI.
Resta, portanto, apreciar a constitucionalidade da selecção negativa de
embriões, em função dos resultados do DGPI.
O DGPI permite a detecção dos embriões que sejam portadores da doença genética,
constituindo uma técnica de procriação medicamente assistida que se insere na
finalidade legalmente prevista no artigo 4º, n.º 2, in fine (para uma
exemplificação de doenças genéticas graves cujo risco de transmissão é
susceptível de ser evitado através do DGPI, cfr. Stedman Dicionário Médico, 27.ª
edição, 2003, Guanabara Koogan, págs. 70, 308, 596, 1559 e 1671).
Nesse contexto, o DGPI previne o abortamento precoce e evita o nascimento de
pessoas com problemas graves de saúde, como é reconhecido em diversos documentos
de entidades com competências consultivas neste domínio – cfr. The Protection of
the Human Embryo in vitro, do Steering Committee on Bioethics, citado, pág. 30,
e o Relatório sobre Procriação Medicamente Assistida, do CNECV, de Julho de
2004, citado, pág. 45, nota 63.
Note-se também que, apesar de esta técnica poder pôr em risco ou implicar a
destruição de embriões, ela não levanta em si mesma riscos para a saúde futura
do nascituro, podendo considerar-se, deste ponto de vista, que «esta técnica é
relativamente inócua» (Vera Lúcia Raposo, Pode trazer-me o menu por favor? Quero
escolher o meu embrião, in «Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da
Saúde», nº 8, 2007, pág. 60). Quando seja viável, o embrião continua, após a
colheita de uma célula para análise, o seu desenvolvimento normal, tendo as
probabilidades habituais de vir a originar uma criança saudável (cfr.,
novamente, Human Fertilisation and Embryology Authority Report: Preimplantation
Tissue Tiping, citado, pág. 4, e os dados reunidos pelo PGD Consortium da
Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia, no local citado).
A razão fundamental que se pode invocar em desfavor da utilização do DGPI para
prevenção de doença genética é o facto de implicar a destruição de embriões e de
potenciar formas de eugenismo que possam considerar-se contrárias à dignidade da
pessoa humana (artigos 1.º e 67.º, n.º 2, alínea e)).
No entanto, convém notar que, tal como sucede na investigação de embriões, se
trata sempre de embriões num estádio muito inicial de desenvolvimento, mais
concretamente, entre o 3.º e o 6.º dias de desenvolvimento (Relatório sobre
Diagnóstico Genético Pré-Implantação, do CNECV, de Abril de 2007, pág. 8,
disponível em http:/www. cnecv.gov.pt/cnecv/pt/Pareceres/). E dado o objectivo
terapêutico imediato que aqui está em causa, valem, por maioria de razão, as
considerações feitas a respeito da investigação com embriões (cfr. supra 5. d)).
Acresce que, como esclarece o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da
Vida, o DGPI pode ainda ser visto como uma forma de protecção da vida humana em
estádio fetal. Na verdade, a detecção pré-implantatória das doenças e anomalias
permite não só evitar situações de aborto espontâneo causados pela inviabilidade
do feto resultante de anomalias e doenças detectáveis pelo DGPI como ainda
eventualmente evitar, num momento posterior, possíveis interrupções voluntárias
da gravidez já em fase fetal (idem, págs. 24-25). Sabendo-se que o Código Penal
prevê a não punibilidade da interrupção da gravidez quando «houver motivos
seguros para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença
grave ou malformação congénita»” (artigo 142.º, n.º 1, alínea c)), o DGPI pode
qualificar-se, neste contexto, como uma alternativa ao aborto terapêutico, por
lesão do nascituro (cfr., em sentido idêntico, Luca Gianaroli, Cristina Magli e
Anna Ferraretti, Preimplantation genetic diagnosis, in «Current practices and
controversies in assisted reproduction», WHO, Genebra, 2002, pág. 218).
Relativamente à consideração de que o DGPI permite fazer selecção de embriões em
função de características genéticas, deve ter-se em linha de conta que a técnica
de PMA tem sempre como objectivo prevenir uma doença. Vale aqui sem dúvida, mais
uma vez, a diferença ética de grau que existe entre um inadmissível utilitarismo
positivo e um tolerável utilitarismo negativo − o que não é admissível para
aumentar a felicidade de terceiros, pode sê-lo para minorar o sofrimento de cada
um; quer dizer, o DGPI não é admissível para escolher características
subjectivamente consideradas desejáveis pelos pais, mas é legítimo para prevenir
uma doença grave (e, portanto, objectivamente indesejável) do nascituro
(defendendo a validade jurídica do utilitarismo negativo, Arthur Kaufmann,
Filosofia do Direito, 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007,
págs. 258-263).
Em homenagem a este princípio de utilidade negativa − evitar uma doença grave −,
a lei restringe a utilização do DGPI a um conjunto limitado de situações. Na
verdade, de acordo com o regime definido no artigo 29º da Lei n.º 32/2006, o
DGPI «destina-se apenas a pessoas provenientes de famílias com alterações que
causam morte precoce ou doença grave, quando exista risco elevado de transmissão
à sua descendência» (n.º 1), e pressupõe uma indicação médica específica,
determinada pelas «boas práticas correntes» que constem de «recomendações das
organizações profissionais nacionais e internacionais da área» (n.º 2). Entre as
indicações médicas legitimadoras do recurso ao DGPI, o legislador menciona
expressamente as aneuploidias (artigo 28.º, n.º 2) e as doenças genéticas graves
(artigo 28.º, n.º 3).
Assim, a aplicação do DGPI está subordinada a um rigoroso princípio de
subsidiariedade, encontrando-se condicionada, desse modo, por fortes razões de
interesse público ligadas à protecção da saúde (risco elevado de transmissão de
doença quando se trate de alterações genéticas que causam morte precoce ou
doença grave), que serão avaliadas, além do mais, através de um exigente
critério de prática clínica.
A lei é ainda expressa em salientar que, fora das condições excepcionais
mencionadas no artigo 28º, n.º 1, o DGPI não pode ser utilizado para seleccionar
embriões em função de características não médicas nem para escolher o sexo do
nascituro - artigo 7.º, n.º 2 (cfr., também, neste sentido, Maria de Belém
Roseira, O processo de elaboração da Lei n.º 32/2006, Legislação - Cadernos de
Ciência de Legislação, n.º 45, Janeiro-Março de 2007, pág. 59). Além de que a
violação destas regras determina responsabilidade criminal, punível com pena de
prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias (artigo 37.º).
Acresce que o DGPI não pode ser utilizado em casos de doença multifactorial onde
o valor preditivo do teste genético seja muito baixo (artigo 7.º, n.º 5), regra
que é de grande importância, porque restringe de forma relevante o âmbito de
aplicação do DGPI. Com efeito, as doenças multifactoriais (um terceiro tipo
clássico de doenças congénitas, para além das anomalias cromossómicas e das
doenças monogénicas) incluem a maioria das anomalias congénitas e das doenças
comuns da criança e do adulto, e a exclusão da técnica de PMA, nessa
circunstância, reforça o carácter subsidiário que lhe deverá ser conferido (cfr.
Rede de Referenciação Hospitalar de Genética Médica, Direcção-Geral da Saúde,
2005, pág. 8).
Finalmente, o artigo 28.º, n.º 4, determina que o centro de PMA que pretenda
aplicar o DGPI tem de dispor ou estar articulado com uma equipa multidisciplinar
que inclua especialistas em medicina da reprodução, embriologistas, médicos
geneticistas, citogeneticistas e geneticistas moleculares, exigência que, do
mesmo modo, contribui para a boa utilização do DGPI.
Em função do regime legal descrito, deve entender-se que o DGPI é uma técnica de
PMA de aplicação restrita, orientado para a detecção de anomalias genéticas
graves, que permite diminuir os casos de abortamento e de nascimento de pessoas
com doenças graves. A escolha de embriões resultante do DGPI é, assim,
compatível com a dignidade da pessoa humana (cfr., no mesmo sentido, Jorge
Duarte Pinheiro, Procriação medicamente assistida, in «Estudos em memória do
Professor Doutor António Marques dos Santos», vol. I, Coimbra, Almedina, 2005,
pág. 770).
O regime adoptado pelo legislador segue, aliás, os princípios definidos pelo Ad
Hoc Committee of experts on progress in the biomedical sciences (CAHBI), do
Conselho da Europa (cfr. o princípio 1.º, n.º 2, do Report on Human Artificial
Procreation, citado, e as indicações da Convenção de Oviedo, designadamente as
constantes dos seus artigos 12.º e 14.º).
Atento tudo o exposto, há que concluir que o DGPI, nos moldes definidos nos
artigos 28.º e 29.º da Lei n.º 32/2006, não atenta contra a dignidade da pessoa
humana, nem viola as disposições dos artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da
Constituição.
j) Punição da clonagem reprodutiva e admissão da técnica de transferência de
núcleo sem clonagem reprodutiva
Os requerentes entendem que o artigo 36.º da Lei n.º 32/2006 não sanciona
penalmente a clonagem reprodutiva, no âmbito da procriação medicamente assistida
e, assim, viola os instrumentos internacionais que a proíbem, designadamente, o
Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo relativo à clonagem humana e o artigo
11.º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem, de
1997, e ainda os artigos 8.º, 9.º, 64.º e 68.º da Constituição.
A norma que interessa agora analisar criminaliza e pune a clonagem reprodutiva
nos seguintes termos:
1- Quem transferir para o útero embrião obtido através da técnica de
transferência de núcleo, salvo quando essa transferência seja necessária à
aplicação das técnicas de PMA, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - Na mesma pena incorre quem proceder à transferência de embrião obtido
através da cisão de embriões.
Como se vê, trata-se de uma norma que impõe uma sanção penal em termos de
abranger as duas técnicas conhecidas de clonagem (a transferência de núcleo e a
cisão de embriões), abrindo uma excepção, no seu n.º 1, no que respeita à
transferência de núcleo, «quando essa transferência seja necessária à aplicação
das técnicas de PMA».
Será pois à constitucionalidade desta ressalva que os requerentes pretendem
referir-se e que cumpre apreciar.
Sabe-se que diversos instrumentos jurídicos internacionais reprovam
expressamente a clonagem reprodutiva, como sucede com a Declaração Universal
sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (artigo 11.º), o Protocolo Adicional
à Convenção Europeia para Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser
Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (artigo 1.º). Também ao
nível do direito comunitário, a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, publicada no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 303, de 14 de
Dezembro de 2007, reafirma o mesmo princípio - artigo 3.º, n.º 2, alínea d).
Ainda de acordo com a UNESCO não há, actualmente, nenhum país que autorize a
clonagem com finalidade reprodutiva, ainda que a proibição possa assumir
diferentes modalidades (National Legislation concerning Human Reprodutive and
Therapeutic Cloning, de Julho de 2004, págs. 2-3). Constatando-se que, nos
ordenamentos que regulam explicitamente a matéria, os legisladores optaram por
criminalizar a clonagem de seres humanos, como é o caso do Reino Unido [secção
3, § 3 (d), e secção 41, § 1 (b), do Human Fertilisation and Embryology Act de
1990), da Alemanha (§ 6 da Embryonenschutzgesetz), da Itália (artigo 12, n.º 7,
e 13.º, n.º 3, alínea c), e n.º 4, da Legge 19 febbraio 2004, n. 40), da França
(artigos L2163-1 a L2163-5 do Code de Santé Publique) e da Espanha (artigo
160.º, n.º 3, do Código Penal, e artigos 1.º, n.º 3, 26.º, n.º 2, alínea c),
secção 9, e 27.º, n.º 1, da Ley 14/2006).
Há ainda diversas Resoluções do Parlamento Europeu que recomendam aos
Estados-membros que proíbam a clonagem de seres humanos, nas diferentes fases da
sua constituição e do seu desenvolvimento, sem distinções no que se refere ao
método utilizado, e que prevejam sanções penais para punir a violação dessa
proibição – cfr. as Resoluções de 16 de Março de 1989, de 28 de Outubro de 1993,
de 12 de Março de 1997, de 15 de Janeiro de 1998 e de 7 de Setembro de 2000
(Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n.º C96, de 17 de Abril de 1989, pág.
165; n.º C315, de 22 de Novembro de 1993, pág. 224; n.º C115, de 14 de Abril de
1997, pág. 92; n.º C34, de 2 de Fevereiro de 1998, pág. 164; e n.º C135, de 7 de
Maio de 2001, pág. 263, respectivamente).
Em consonância com a referida tendência uniforme de todas as legislações actuais
no sentido da punição da clonagem, a necessidade de tutela penal nesta área foi
confirmada pela Associação Internacional de Direito Penal, no Congresso de
Viena, em 1989 (cfr. Costa Andrade, Direito penal e modernas técnicas
biomédicas: as conclusões do XIV Congresso Internacional de Direito Penal,
citado, págs. 394 e 398).
Nada permite, no entanto, concluir, revertendo ao caso português, que o artigo
36.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006 tenha excluído a criminalização da clonagem
reprodutiva.
Desde logo, numa interpretação literal do preceito, verifica-se que a ressalva
nele contida se refere, não à necessidade de recurso à transferência de núcleo
como técnica de PMA, mas antes à necessidade de recurso à transferência de
núcleo para a aplicação das técnicas de PMA. Deste modo, a letra da norma aponta
para o carácter subordinado da transferência de núcleo em relação às técnicas de
PMA enumeradas no artigo 2.º, e, nomeadamente, as consignadas na alíneas b), c)
e d) desse mesmo artigo. E assim permite-se que a transferência de núcleo possa
servir como meio para a aplicação das técnicas legalmente autorizadas de PMA em
vista das finalidades admitidas pelo artigo 4.º, n.º 2, não que ela possa ser,
em si mesma, autonomamente, uma técnica de PMA para prossecução desses
objectivos.
É esse, aliás, o entendimento que ressalta de uma interpretação sistemática da
norma. A ressalva do artigo 36.º, n.º 1, não pode abranger situações de
verdadeira clonagem reprodutiva, desde logo porque a lei o proíbe expressamente
no artigo 7.º, n.º1 («É proibida a clonagem reprodutiva tendo como objectivo
criar seres humanos geneticamente idênticos a outros»).
Não faria sentido, proibir categoricamente a clonagem reprodutiva no artigo 7.º,
n.º 1, e simultaneamente autorizá-la como técnica de PMA numa disposição
subsequente. Tudo indica que a lei utiliza no artigo 7.º, n.º 1, um conceito
restrito de clonagem reprodutiva, precisamente por pretender dele excluir as
transferências funcionais de núcleo celular, isto é, aquelas transferências de
núcleo que não têm como objectivo a transferência para a mulher de embriões
clonados, geneticamente idênticos entre si ou a uma pessoa já nascida, e que não
podem reconduzir-se a uma situação de clonagem reprodutiva.
Esta ideia é ainda confirmada pelo elemento histórico de interpretação.
Na origem do artigo 36.º da Lei n.º 32/2006, está o artigo 34.º, n.º 1, do
Projecto de Lei n.º 172/X, com a seguinte redacção: «[a] implantação no útero de
embrião obtido através de técnica de transferência de núcleo, salvo quando esta
transferência seja necessária à aplicação das técnicas de Reprodução Medicamente
Assistida, ou de embrião obtido através de cisão de embriões, constitui crime
punido com pena de prisão de 1 a 5 anos».
E na respectiva exposição de motivos esclarece-se que a ressalva (quando esta
transferência seja necessária à aplicação das técnicas de reprodução medicamente
assistida) «diz respeito a casos de transferência de núcleo que dão origem a
duas mães biológicas, por deficiências de citoplasma daquela que será havida
como mãe natural». A intencionalidade da ressalva, que transitou para a redacção
do questionado n.º 1 do artigo 36.º, tem pois a ver, como ressalta do debate
parlamentar, com os casos em que se cria um embrião a partir de gâmetas de ambos
os pais, utilizando um ovócito anucleado de uma dadora, e em que o resultado é a
existência de um embrião que tem o DNA nuclear de ambos os pais, mas que foi
criado, em parte, através de uma transferência nuclear, para evitar o risco de
transmissão de doença genética ligada ao citoplasma dos gâmetas maternos (cfr.
Diários da Assembleia da República, Série I, n.º 58/X/1, de 22 de Outubro de
2005, pág. 2652, e n.º 20, de 16 de Novembro de 2006, pág. 59).
Não há aqui, em rigor, uma clonagem reprodutiva, pois não se pretende criar um
ser humano geneticamente idêntico a outro.
Em suma, a ressalva do n.º 1 do artigo 36.º apenas pode ser interpretada como
abrangendo os casos em que a transferência de núcleo é levada a cabo, como
técnica secundária, subordinadamente necessária para a aplicação das técnicas de
PMA previstas nomeadamente nas alíneas b), c) e d) do artigo 2.º, sem pôr em
causa a proibição do artigo 7.º, n.º 1, que objectivamente impende sobre as
técnicas de PMA, de criação de seres geneticamente idênticos.
Nestes termos, a norma do artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006 não pode ser
entendida no sentido de não punir as situações de clonagem reprodutiva, e não
consubstancia, portanto, uma violação do dever estadual de protecção da
identidade genética do ser humano imposto pelo artigo 26.º, n.º 3, da
Constituição da República Portuguesa, nem viola qualquer outro dos preceitos
constitucionais que foram invocados.
l) Não punição da maternidade de substituição a título gratuito
Sustentam os requerentes, por fim, que o artigo 39.º da Lei n.º 32/2006 apenas
sanciona a maternidade de substituição a título oneroso, nada estatuindo acerca
dos negócios gratuitos. No seu entender, essa falta de sanção revela
permissividade relativamente ao negócio da maternidade de substituição,
representa um risco para a dignidade e outros direitos do ser humano e constitui
fraude à lei, por ir contra o estabelecido no artigo 8.º do mesmo diploma,
colidindo assim com as disposições dos artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da
Constituição e todas as disposições da Convenção de Oviedo.
De facto, o artigo 39.º criminaliza a celebração (n.º 1) e a promoção (n.º 2) de
contratos de maternidade de substituição a título oneroso, mas não contempla, em
termos de sanção penal, a maternidade de substituição gratuita, sendo essa a
questão de constitucionalidade que vem agora suscitada e que cabe dilucidar.
Deve dizer-se, antes de mais, que não pode entender-se a arguição como
respeitando a uma inconstitucionalidade por omissão. Não está em causa
propriamente a falta de uma medida legislativa destinada a dar exequibilidade a
uma norma constitucional, mas antes a eventual inconstitucionalidade que resulta
de, ao cumprir o dever de legislar em matéria de procriação medicamente
assistida, imposto pelo artigo 67º, n.º 2, alínea e), da Constituição, não ter o
legislador respeitado certos princípios constitucionais, ao excluir a punição da
maternidade por substituição gratuita.
A norma que em primeiro lugar carece de ser chamada à colação, na análise desta
matéria, é a do citado artigo 8º da Lei n.º 32/2006. O preceito proíbe
claramente a celebração de negócios jurídicos de maternidade de substituição,
independentemente de serem onerosos ou gratuitos, qualificando-os como nulos
(n.º 1). E o n.º 3 do mesmo artigo esclarece, em conformidade com o regime da
nulidade, que «a mulher que suportar uma gravidez de substituição de outrem é
havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer».
Esse regime não revela permissividade do legislador face à maternidade de
substituição gratuita, pois nega a esta prática quaisquer efeitos jurídicos,
permitindo que a esses casos se aplique a regra de estabelecimento da filiação
constante do artigo 1796.º, n.º 1, do Código Civil, segundo a qual,
relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento.
Também não procede a argumentação dos requerentes no sentido de que o regime
instituído no artigo 39.º defrauda a proibição constante desse artigo 8.º. Isto
porque o legislador foi coerente com o regime proibitivo que definiu, prevendo
expressamente os efeitos da violação de proibição de realização de negócios de
maternidade de substituição. Simplesmente, o legislador optou por diferenciar
esses efeitos, consoante o negócio seja gratuito ou oneroso: em ambos os casos
há um efeito civil (a nulidade do negócio) e no segundo caso há também uma
sanção criminal.
Há aqui certamente bens jurídicos dignos de tutela que decorrem do direito à
identidade pessoal, do direito ao desenvolvimento da personalidade e, ainda, do
direito às condições de um integral desenvolvimento.
Contudo, o legislador não é necessariamente obrigado a criminalizar uma conduta,
sempre que se entende haver um bem jurídico digno de tutela jurídica. No
cumprimento dos deveres de protecção de bens jurídicos que a Constituição
estabelece ao consagrar um direito fundamental, o legislador tem sempre alguma
margem de livre apreciação no que respeita à escolha dos meios mais adequados
para garantir esse bem respeitando os outros valores e interesses
constitucionalmente protegidos à luz do princípio matricial da dignidade da
pessoa humana.
Como explicita Klaus Stern, a respeito do problema dos deveres constitucionais
de protecção de bens jurídicos, «[a]os órgãos do Estado é assim deixada uma
margem de livre deliberação a respeito do concreto cumprimento dos deveres de
protecção. (…) Eles são, em ampla medida, legalmente mediatizados. Deste modo, o
legislador é o destinatário preferencial dos deveres de protecção. (…) Apenas os
erros manifestos de apreciação são judicialmente corrigíveis' (Das Staatsrecht
der Bundesrepublik Deutschland, Band III/1, Allgemeine Lehren der Grundrechte,
München, 1988, págs. 950-952).
Esta margem de livre apreciação aumenta quando está em causa a protecção penal.
Neste sentido, segundo Claus Roxin, '[s)aber se um bem jurídico é protegido
através de um meio criminal ou civil e administrativo é uma matéria
fundamentalmente de livre apreciação legislativa' (Strafrecht, Allgemeiner Teil,
I, 3. Aufl., München 1997, pág. 24).
Entre nós, Figueiredo Dias defende que «não existem imposições jurídico
constitucionais implícitas de criminalização», admitindo apenas que o critério
do legislador possa «em casos gritantes ser jurídico-constitucionalmente
sindicado»' (Direito Penal: Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra, 2007, pág.
129; neste sentido, também, Sousa e Brito, A lei penal na Constituição, in
«Estudos sobre a Constituição», 2º vol., 1978, Lisboa, pág. 218).
A não obrigatoriedade constitucional da tutela penal sempre que esteja em causa
um bem jurídico constitucionalmente protegido tem sido também reconhecida na
jurisprudência do Tribunal Constitucional.
A esse propósito, o Tribunal tem sublinhado que «[...] o direito penal,
enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se
justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos - e se não for
possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas
menos violentas do que as sanções criminais» (acórdão n° 108/99). E, assim, como
se ponderou também no acórdão 99/02, «[...] as medidas penais só são
constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e
proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse
constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando
se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e
essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro
modo».
Não pode perder-se de vista, por outro lado, como também se afirmou nesse
aresto, que «o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo
sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional
substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a
necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos”.
Em suma, aceitando-se que, «também em matéria de criminalização, o legislador
não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo
manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição», o certo é
que, «no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de
conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o
Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas
manifestamente arbitrárias ou excessivas» (assim, o citado acórdão nº 99/02, na
linha de uma firme orientação jurisprudencial).
Retomando o caso vertente, é necessário ter em conta que a punição da
maternidade de substituição gratuita está longe de ser consensual no panorama do
direito comparado.
É verdade que na generalidade dos países ela é proibida, seja por força de
disposição legal expressa, como sucede em Espanha (artigo 10.º, n.º 1, da Ley
14/2006), na Itália (artigo 4.º, n.º 3, da Legge de 19 febbraio 2004, n. 40), ou
na Alemanha (§ 1 (1) 7 da Embryonschutzgesetz), seja por meio das cláusulas
gerais de nulidade dos negócios contrários aos 'bons costumes' ou à 'ordem
pública'.
Há, contudo, países no contexto da cultura jurídica ocidental como a Grécia e o
Reino Unido, o Canadá, e alguns Estados federados dos Estados Unidos da América,
que a autorizam legalmente (veja-se Vera Lúcia Raposo, De mãe para mãe: Questões
legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição, Coimbra, 2005,
págs. 101-108). É nesta linha que há quem entre nós chegue a admitir, de iure
condendo, a possibilidade da maternidade de substituição gratuita (assim Joaquim
José de Sousa Dinis, Procriação assistida: questões jurídicas, in «Colectânea de
Jurisprudência», Ano XVIII, 1993, Tomo IV, pág. 13; Tiago Duarte, in «Vitro
Veritas?» A procriação medicamente assistida na Constituição e na lei, citado,
pág. 90, e, ainda, Vera Lúcia Raposo, idem, págs. 128-129).
O legislador nacional não seguiu esta última posição, tendo antes adoptado, no
referido artigo 8.º da Lei n.º 32/2006, o critério mais generalizado da
proibição da maternidade de substituição, ainda que gratuita, procurando assim
proteger o superior interesse da criança e prevenir os conflitos que possam pôr
em causa a paz familiar.
Apesar disso, dentro da sua margem de livre escolha dos melhores meios para dar
tutela aos bens jurídicos envolvidos, o legislador entendeu que poderia abdicar
da protecção penal. Terá partido do pressuposto de que, para tais situações,
serão suficientes os meios civis relativos à nulidade do negócio e à
determinação do vínculo de maternidade.
Ora é necessário ter em conta que a maternidade de substituição gratuita tende a
ser vista como menos censurável, por revelar altruísmo e solidariedade da mãe
gestadora em relação à mulher infértil, e por não haver, da parte desta, um
desrespeito pela dignidade da mãe gestadora, por não ocorrer aqui nenhuma
tentativa de instrumentalização de uma pessoa economicamente carenciada, por
meio da fixação de um «preço», como sucede nas situações de maternidade de
substituição onerosa.
Parece claro que esta matéria se situa ainda dentro da margem de livre
deliberação legislativa. O legislador pode legitimamente optar por não
criminalizar condutas que embora tenham resultados indesejáveis do ponto de
vista social, se situam em contextos pessoais e emocionais de tal forma
complexos que se torna difícil formular um juízo global de censura, nos termos
em que tal juízo vai pressuposto em toda a sanção penal.
Nem é possível concluir, como fazem os requerentes, que o legislador tenha sido
permissivo em matéria de maternidade de substituição. De facto, como já se
anotou, a lei, além de declarar nulos todos os negócios jurídicos que tenham por
objecto a maternidade de substituição, incluindo os negócios gratuitos (artigo
8º, n.º 1), estabelece, no n.º 3, um regime civil de determinação da maternidade
que é totalmente incompatível com essa prática e elimina qualquer efeito prático
que, apesar da proibição legal, pudesse resultar do contrato de substituição.
Em face do exposto, conclui-se que a opção seguida pelo legislador, de não
criminalizar, de forma autónoma, a maternidade de substituição gratuita, não
merece censura constitucional.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decidem, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
a) não declarar a
inconstitucionalidade formal da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, por violação do
artigo 115º da Constituição;
b) não tomar conhecimento do pedido
de fiscalização da legalidade da Lei n.º 32/2006, com fundamento na violação dos
artigos 166.º e 167.º do Regimento da Assembleia da República;
c) não tomar conhecimento do pedido
de fiscalização da legalidade da Lei n.º 32/2006, com fundamento na violação de
normas de direito internacional convencional;
d) não declarar a
inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º, n.º 2, 6.º, 7.º, n.º 3,
conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, alínea q), 9.º, n.ºs 2 a 5, conjugado com o
artigo 30.º, n.º 2, alíneas e) e g), 10.º, 15.º, n.ºs 1 a 4, 19.º, n.º 1, 20.º,
21.º, 24º, 25º, 27.º, 28.º, 29.º, 36.º e 39.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de
Julho.
Lisboa, 3 de Março de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
João Cura Mariano
Vítor Gomes
José Borges Soeiro
Ana Maria Guerra Martins
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Maria João Antunes (com declaração)
Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração)
Maria Lúcia Amaral (vencida, em parte, conforme declaração de voto junta)
Benjamim Rodrigues (vencido, em parte, nos termos da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos
da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho, que são enumerados na alínea d) da Decisão,
sem prejuízo de não acompanhar, na totalidade, a fundamentação relativa aos
artigos 7.º, n.º 3, conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, alínea q) – recurso à
procriação medicamente assistida para tratamento de doença grave de terceiro –,
9.º, n.ºs 2 a 5, conjugado com o artigo 30.º, n.º 2, alíneas e) e g) –
investigação com recurso a embriões – 24.º e 25.º, – não criação de embriões
excedentários – e 28.º e 29.º – diagnóstico genético pré-implantação.
Concretamente, não acompanho a parte da fundamentação que apela ao “princípio da
dignidade da pessoa humana, no ponto em que o embrião, ainda que não implantado,
é susceptível de potenciar a existência de uma vida humana”; à “potencial
dignidade humana” dos “embriões que possam ser utilizados em investigação
científica”; ao “princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em consideração
que se trata de embriões não implantados no útero materno a que se não pode
atribuir um grau de protecção correspondente à tutela da vida humana ou da vida
intra-uterina”; e à “dignidade da pessoa humana”.
As normas daqueles artigos pressupõem embriões não implantados no útero (ainda
não implantados ou já não implantáveis), que existem enquanto resultado de uma
técnica que a Constituição prevê expressamente (alínea e) do n.º 2 do artigo
67.º), utilizada em caso de infertilidade, para tratamento de doença grave e
para eliminação do risco de transmissão de doença de origem genética, infecciosa
ou outras (artigo 4.º da Lei n.º 32/2006), ou seja, em situações
constitucionalmente admissíveis (artigos 26.º, nº. 1, 36.º, n.º 1, e 64.º, n.º
1, da Constituição). Ao que acresce, no caso específico da investigação em
embriões excedentários, a prossecução de interesses tutelados nos artigos 42.º,
n.º 1, e 64.º, n.º 1, da Constituição.
Tanto basta para formular um juízo de não inconstitucionalidade, sem me desviar
do entendimento constante da alínea a) do ponto 5. da Fundamentação.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
A minha divergência resume-se à interpretação do pedido no que respeita à não
punição penal da celebração de contratos de maternidade de substituição a título
gratuito.
Os requerentes sustentam que o artigo 39.º da Lei n.º 32/2006 apenas sanciona a
maternidade de substituição a título oneroso, nada estatuindo acerca dos
negócios gratuitos; essa falta de sanção revela, em seu entender,
«permissividade relativamente ao negócio da maternidade de substituição,
representa um risco para a dignidade e outros direitos do ser humano e constitui
fraude à lei, por ir contra o estabelecido no artigo 8.º do mesmo diploma,
colidindo assim com as disposições dos artigos 25.º, 26.º, 67.º e 68.º da
Constituição e todas as disposições da Convenção de Oviedo».
Prevaleceu, no Acórdão, o entendimento de que não estava em causa a falta de uma
medida legislativa destinada a dar exequibilidade a uma norma constitucional,
mas antes a questão da inconstitucionalidade material do aludido artigo 39.º da
Lei n.º 32/2006 decorrente da circunstância de, ao cumprir o dever de legislar
em matéria de procriação medicamente assistida imposto pelo artigo 67º, n.º 2,
alínea e), da Constituição, o legislador não ter respeitado certos princípios
constitucionais ao excluir a punição da maternidade por substituição gratuita.
Ora, salvo o devido respeito, entendo que a crítica que os requerentes formulam
não se dirige à norma do artigo 39.º, mas à circunstância de o diploma não
conter uma norma penal de igual conteúdo que puna uma outra conduta-tipo, a
maternidade de substituição a título gratuito. Na verdade, nenhuma acusação é
formulada quanto à norma do aludido artigo 39º; pelo contrário, o que se diz é
que a censura penal deveria estender-se também aos casos de maternidade de
substituição a título gratuito, sem o que ficariam violados os «artigos 25.º,
26.º, 67.º e 68.º da Constituição». O que isto significa é que os requerentes
entendem que a Constituição impõe ao legislador, nos invocados preceitos, o
dever de, ao legislar em matéria de procriação medicamente assistida,
estabelecer uma punição de carácter penal da maternidade por substituição
gratuita, dever que aqui não foi cumprido.
Interpreto, portanto, o pedido no sentido da invocação de omissão de medida
legislativa de natureza penal destinada a dar exequibilidade às aludidas normas
constitucionais.
Aliás, embora declarando arrancar de uma interpretação do pedido traduzida na
invocação da inconstitucionalidade material da norma do artigo 39.º da Lei n.º
32/2006, o Acórdão passou imediatamente a analisar a questão do ponto de vista
de uma omissão legislativa constitucionalmente intolerável, contrapondo a
reafirmação da inexistência de imposições jurídico constitucionais implícitas de
criminalização, apoiando-se na jurisprudência do Tribunal, que cita, quanto à
não obrigatoriedade constitucional da tutela penal sempre que esteja em causa um
bem jurídico constitucionalmente protegido.
Entendo, em suma, que – diversamente do que no Acórdão se afirma – o pedido se
fundamenta, nesta parte, na denúncia de uma inconstitucionalidade por omissão.
A relevância desta distinção reside na circunstância de a Constituição reservar,
no seu artigo 283º, ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça e aos
presidentes das assembleia legislativas das Regiões Autónomas o poder de
requererem ao Tribunal Constitucional a apreciação e verificação da
inconstitucionalidade por omissão das medidas legislativas necessárias para
tornar exequíveis as normas constitucionais, o que permite concluir que os
requerentes não podem requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação dessa
omissão legislativa.
Ora, embora não discorde da decisão quanto a este ponto, votei, todavia, no
sentido de o Tribunal não tomar conhecimento desta matéria, com o exposto
fundamento.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Dissenti da orientação seguida, por larga maioria, pelo Tribunal quanto a
três pontos fundamentais. Primeiro, quanto ao conteúdo que se entendeu dever
conferir ao princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana, a que se
refere a alínea e) do nº 2 do artigo 67º da Constituição; depois, quanto à
interpretação que se fez do âmbito de protecção da norma contida no nº 1 do seu
artigo 24º; finalmente, quanto ao juízo, a que se chegou, de não
inconstitucionalidade das normas da Lei nº 32/2006 respeitantes à investigação
com recurso a embriões (nºs 2 a 5 do artigo 9º).
2. A emissão, por parte do legislador ordinário, de um regime disciplinador das
técnicas de procriação medicamente assistida corresponde ao cumprimento da
imposição constitucional de regulação que decorre do artigo 67º, nº 2, alínea e)
da Constituição. Como se diz no Acórdão, desta ordem de regulação decorrem duas
consequências essenciais. Antes do mais, com ela, a Constituição resolveu desde
logo o problema genérico da admissibilidade, face aos seus parâmetros, das
técnicas (ou da específica regulação legislativa das técnicas) de PMA; mas, para
além disso, deixou claro o legislador constituinte que assim se não
«reconhec[ia] um direito a toda e qualquer procriação possível segundo o estado
actual da técnica, excluindo, à partida, as formas de procriação assistida
lesivas da dignidade da pessoa humana». A determinação do que seja a «lesão da
dignidade da pessoa humana» aparece assim como um elemento integrante da
correcta compreensão da ordem constitucional de regulação. Posto que tal ordem
foi dada tendo em conta a imposição de um vínculo específico ao legislador, a
delimitação do seu âmbito (e, logo, em sentido inverso, a delimitação do âmbito
do livre espaço de conformação legislativa) não pode ser feita se se não
atribuir um certo sentido substancial – por mínimo que seja – à expressão
salvaguarda da dignidade (…) humana. Porém, e a meu ver, a argumentação do
Tribunal foi construída a partir da ausência (e não da necessária presença)
deste sentido substancial.
Com efeito, disse-se a este respeito, apenas, que a dignidade da pessoa humana,
enquanto «base» da República e, portanto, enquanto critério de legitimidade do
poder político (artigo 1º da CRP), detinha uma «dimensão objectiva», não podendo
por isso fundamentar ela própria posições jurídicas subjectivas; e que, assim
sendo, valeria enquanto instrumento útil para a concretização e delimitação do
conteúdo de direitos fundamentais, conferindo ao «sistema» da Parte I da
Constituição unidade de sentido, de valor e de concordância prática.
Determinou-se portanto o alcance prescritivo do princípio, nada se dizendo,
porém, quanto ao conteúdo da própria prescrição.
É compreensível que se seja prudente e parcimonioso quanto à densificação do
conteúdo de um princípio que, como este, tem em si implicada uma fortíssima
carga axiológica (porventura, e daí o seu alcance fundante, a mais forte carga
axiológica no sistema dos princípios constitucionais); mas uma coisa é o ser-se
prudente e outra o ser-se silente. Entendo que, ao optar pelo silêncio – e ao
fazê-lo num domínio em que a Constituição, pela sua própria redacção literal,
lhe exigia outro caminho – o Tribunal teceu uma argumentação que deixou na
penumbra a resolução de duas questões essenciais.
Primeira, a questão de saber de que modo pode a dignidade da pessoa humana ser
«utilizada» na concretização e delimitação do conteúdo de direitos fundamentais.
A regulação legislativa das técnicas de PMA atinge direitos – convocados ao
longo de todo o iter argumentativo do Acórdão – que precisam de ser entre si
sopesados e ponderados. Admitindo que o sentido da ordem de regulação contida no
artigo 67º da Constituição se esgotava nisso mesmo – em conferir ao princípio
[da [dignidade] o alcance de instrumento interpretativo auxiliar da ponderação a
fazer entre outros direitos ou princípios – a verdade é que ainda assim o
princípio só se tornaria operativo se se soubesse de que modo poderia ele
contribuir para a «concretização» e «delimitação» do conteúdo de outras normas
jusfundamentais. Perante o silêncio do Tribunal quanto a um qualquer sentido
substancial que lhe pudesse vir a ser atribuído, esta questão do «modo» ficou
por resolver, com prejuízo, em meu entendimento, da clareza dos métodos de
interpretação e de ponderação usados no juízo colectivo.
Mas, para além de não ter ficado esclarecido que contornos objectivos deteria o
princípio, ficou ainda por esclarecer qual o exacto âmbito da sua aplicação
subjectiva. A certo passo diz o Acórdão que a «salvaguarda da dignidade da
pessoa humana» se refere, com o alcance prescritivo que lhe fora conferido, às
pessoas intervenientes nos processos de PMA, bem como às pessoas nascidas na
sequência da aplicação das correspondentes técnicas. Mas noutros passos parece
ter-se tido em conta, igualmente, a «dignidade» do embrião, invocando-se ela
como elemento de ponderação face a outros direitos mobilizáveis para o caso. A
invocação seria a meu ver compreensível se se tivesse pelo menos referido a mais
antiga e consensual definição de «dignidade» – a decorrente da chamada «fórmula
do objecto» de Dürig, aliás já referida pelo Tribunal noutros casos, e que se
confunde, em resumo necessariamente grosseiro, com a proibição de
instrumentalização de matriz kantiana. No entanto, e como nada se disse nesse
sentido, ficou por esclarecer se, por que motivo e com que alcance, estaria o
embrião (para além das pessoas) também incluído no âmbito de aplicação
subjectiva da cláusula da «dignidade».
A isto acresce, nas razões da minha dissensão, tudo quanto o Tribunal disse a
respeito do âmbito de protecção da norma contida no nº 1 do artigo 24º da CRP.
3. É mais que sabido, e sobre o assunto me não vou alongar, que as normas
constitucionais que consagram direitos fundamentais não têm apenas dimensões
subjectivas. Não se limitam à previsão de estruturas subjectivas que integrem
direitos susceptíveis de ser invocados pelos seus titulares perante o Estado ou
perante a comunidade; para além disso, exprimem elas a decisão constituinte de
proteger objectivamente certos bens jurídicos enquanto componentes estruturais
básicas de toda a ordem infraconstitucional, de tal modo que, perante tais bens
– e ainda que não exista uma pretensão subjectiva da parte de quem quer que seja
– esteja obrigado o legislador ordinário a certos deveres de protecção. Se assim
é quanto a quaisquer normas jusfundamentais, também o é quanto à norma contida
no nº 1 do artigo 24º: o conceito constitucional de vida que aí se alberga não
tem que ser recortado em função da existência incontestada de um qualquer
radical subjectivo que lhe sirva de suporte.
Apesar de reconhecer que o embrião, ainda que não implantado, é susceptível de
potenciar a existência de uma vida humana, entendeu o Tribunal que em relação a
ele se não poderia aplicar a garantia da protecção da vida humana, enquanto bem
juridicamente protegido, precisamente por se tratar de uma «existência» ainda
não implantada. Significa isto que o Tribunal definiu o conceito constitucional
de vida – esse mesmo que, como vimos, tem antes do mais uma implicação objectiva
– da seguinte forma restritiva: a fronteira que separa a vida e a não-vida (e,
consequentemente, a fronteira que separa o «território» em que deve existir
alguma protecção dada pelo Estado e pelo Direito do «território» da
desprotecção) é a diferente localização, intra ou extra-uterina, do embrião.
Divergi deste entendimento. Reconheço sem esforço, e sem por isso conceder
razão a indemonstradas teorias dos valores, que entre «vida potencial» e «vida
actual» existe uma inquestionável gradação valorativa; mas tal não justifica que
a vida potencial extra-uterina seja tida, para efeitos da determinação do
correspondente conceito constitucional e do âmbito objectivo de protecção da
norma contida no artigo 24º da Constituição, como algo que se situa aquém da
protecção, constitucionalmente fundada e por isso mesmo devida, do Estado e do
Direito. Antes do mais, porque uma tal concepção restringe sem qualquer
fundamento as possibilidades conformadoras do Bio-Direito, ou Direito da
Bio-ética, como também é chamado.
Com efeito, se se entende que tudo o que se passa entre a criação do embrião e a
sua implantação no útero é constitucionalmente irrelevante – pois se não tem
arrimo na protecção objectiva do bem jurídico vida, em que outro lugar do
sistema constitucional pode o processo ganhar relevância? –, então,
entender-se-á também que as decisões centrais relativas ao surgimento da vida, e
à resolução dos conflitos de interesses que delas possam emergir, deverão ser
reguladas apenas, e livremente, pelo legislador ordinário que, num espaço vazio
de constitucionalidade, não contará com mais nada para além de si próprio para
poder acompanhar e ordenar a ciência e a técnica. Como a regulação de tais
decisões, e a resolução dos conflitos que delas possam emergir, são temas que se
inscrevem num dos núcleos centrais da «preocupações» do Direito da Bio-ética, a
definição dada pelo Tribunal ao conceito constitucional de vida acaba por
limitar as possibilidades conformadoras deste ramo do Direito, que se vê
privado, neste ponto e sem qualquer fundamento, do arrimo conferido pelo Direito
Constitucional.
É a nossa auto-representação enquanto espécie que, na Bio-ética, está em jogo.
Entendeu o Tribunal que fora dela (fora dessa autorepresentação) podia ficar o
embrião não implantado. Não consegui entender por quê, e não consegui dar-lhe
razão.
4. Divergi, finalmente, do juízo a que o Tribunal chegou quanto às normas
contidas no artigo 9º, nºs 2 a 5, da Lei nº 32/2006, relativas à investigação
com recurso a embriões.
Diz o nº 1 do referido artigo – em réplica, aliás, do que determina o nº 2 do
artigo 18º da Convenção de Oviedo – que «[é] proibida a criação de embriões
através de PMA com o objectivo deliberado da sua utilização na investigação
científica.»
Para quem entenda que todos os embriões (incluindo os não implantados) são
objecto da protecção conferida pelo nº 1 do artigo 24º da CRP, por não poderem
situar-se fora do conceito constitucional de vida, o dito do nº 1 do artigo 9º
da Lei não corresponde (não pode corresponder) a uma escolha livre do
legislador. E assim é não apenas por se encontrar o Estado português vinculado a
uma obrigação internacional, assumida convencionalmente; assim é antes do mais
por imperativo constitucional, que obriga o Estado, desde logo através do
legislador, a proteger o bem «vida» de uma instrumentalização que o degrade à
condição de objecto, de mero meio para a obtenção de um fim ou de medida
substituível. Que o «fim» seja a liberdade de investigação científica (artigo
42º da CRP), ou a realização do direito à saúde (artigo 64º) não justifica, por
si só, a utilização de quaisquer meios. A «dignidade» a que se refere o artigo
67º, nº 2, alínea e) da Constituição ostenta aqui o seu verdadeiro âmbito
subjectivo de aplicação: as técnicas de PMA não devem ser usadas para a criação
de embriões com o intuito deliberado de os submeter a projectos de investigação
científica porque tal implicaria uma «instrumentalização» contrária ao disposto
nos artigos 24º, nº 1; 67º, nº 2, alínea e) e 1º da Constituição.
Assim sendo, impõe-se averiguar se o sistema decorrente da Lei nº 32/2006
cumpre, de modo suficiente, esta proibição constitucional. Por outras palavras,
impõe-se saber se, desse sistema, resulta para o embrião uma protecção adequada
face à sua possível, ou eventual, criação para fins de investigação.
Ora, o sistema legal é aqui percorrido por duas decisões fundamentais, que,
como o Acórdão reconhece, não são comuns em direito comparado.
A primeira é a que resulta do artigo 24º da Lei. Aqui, e como refere o
Acórdão, não se seguiu o critério, frequente noutras ordens jurídicas, do limite
numérico para a determinação do número de embriões a criar na fertilização in
vitro. O que a lei diz, neste domínio, é que «apenas deve haver lugar para a
criação de embriões em número considerado necessário para o êxito do processo,
de acordo com a boa prática clínica». Não se discute o acerto da escolha
portuguesa neste ponto. Certo é que, ao abandonar-se a técnica comum em direito
comparado (a das indicações numéricas), e ao substituir-se tal técnica por uma
cláusula geral, preenchida pelas boas práticas clínicas (número considerado
necessário para o êxito do processo), se abre legitimamente espaço para a
indagação da protecção que a lei confere aos chamados embriões excedentários,
supra-numerários ou que não tiverem que ser transferidos para o útero materno.
Diz o nº 1 do do artigo 25º que o seu destino é a criopreservação. Mas são
justamente estes os embriões que, quando «não tiverem a possibilidade de ser
envolvidos num projecto parental» (artigo 25º, nº 5) poderão ser utilizados para
fins de investigação científica (para além dos que sejam «inviáveis», nos termos
e pelas razões previstas nas alíneas b) e c) do nº 4 do artigo 9º).
A solução contida no artigo 24º da lei proporciona, pois, uma natural
indagação quanto ao destino dos embriões não-transferidos. E proporciona-a,
exactamente, nos termos seguintes.
Sabendo-se que a solução legal comportará, naturalmente, um risco de acréscimo
de embriões excedentários – e, consequentemente, um igual risco de acréscimo
daqueles embriões que, não tendo a possibilidade de ser envolvidos num projecto
parental, poderão ser utilizados em projectos de investigação científica –,
natural seria que o legislador assumisse tal risco, transportando-o para um
maior estreitamente do regime da admissibilidade de projectos de experimentação
e de investigação. Maior, pelo menos, em relação aos paradigmas dominantes
noutras ordens jurídicas, próximas da nossa. No entanto, a verdade é que não foi
isso que sucedeu. Basta comparar, por exemplo, o artigo 9º da Lei nº 32/2006 com
o artigo 15º da Lei espanhola, ou com o artigo L-1215-5 do Code de Santé
Publique francês (para não falar, ainda a título de exemplo, das leis alemã,
italiana ou norueguesa), para assim concluir. Não vou entrar na descrição de
cada um destes regimes. O que me parece certo é que o regime português se
destaca por, ao contrário dos outros, conter apenas um limite substancial aos
projectos de investigação sobre embriões – para além de limites procedimentais,
como o consentimento informado dos potenciais pais e a apreciação e decisão por
parte do Conselho Nacional de Procriação medicamente assistida. O limite
substancial é o que vem referido no nº 3 do artigo 9º da Lei: que «seja razoável
esperar que daí [do projecto] possa resultar benefício para a humanidade».
A questão que se coloca é portanto a de saber se um sistema legislativo que,
quanto às questões que acabámos de analisar, repousa estruturalmente sobre duas
cláusulas gerais –, a saber: (i) criar-se-ão tantos embriões quanto os
necessários para o êxito do processo; (ii) serão admissíveis os projectos de
experimentação sobre embriões, desde que seja razoável esperar que deles resulte
benefício para a humanidade – confere aos embriões a protecção adequada (e
constitucionalmente imposta) contra uma instrumentalização para fins de
experimentação. É negativa a minha convicção final, e por isso, também aqui,
dissenti da decisão maioritária.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Acompanho, como declaração de voto, as considerações tecidas pela
Conselheira Lúcia do Amaral, no tocante ao conteúdo que o acórdão entendeu dever
conferir ao princípio da salvaguarda da dignidade da pessoa humana, bem como à
interpretação nele feita relativamente ao âmbito de protecção da norma contida
no n.º 1 do art.º 24.º da Constituição.
2 – Votei vencido, quanto à norma constante dos art.ºs 9.º, n.º 4, alínea a),
e 25.º, n.º 5, da Lei n.º 32/2006, na parte em que permite a investigação
científica em embriões criopreservados, decorridos que sejam três anos e que não
tenham a possibilidade de ser envolvidos num projecto parental, por não se
mostrarem fixadas as estreitas condições objectivas segundo as quais esta
possibilidade deva ser avaliada, louvando-me nas considerações feitas pela
Conselheira Lúcia do Amaral a propósito do destino dos embriões.
3 – Votei vencido quanto às normas contidas no art.º 15.º, n.ºs 1 a 4,
conjugadas com as normas constantes do art.º 10.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º
32/2006, na parte em que condicionam a obtenção de conhecimento, pela pessoa
nascida através de PMA, da identidade do dador à instauração de processo
judicial e à existência de razões ponderosas para a quebra do regime de
confidencialidade.
O legislador optou pelo regime-regra de anonimato do dador de espermatozóides,
ovócitos e embriões, mesmo em relação à pessoa nascida através de PMA,
construindo, depois, todo um sistema gradativo de excepções a essa regra.
O acórdão não vê nessa opção qualquer violação de normas ou princípios
constitucionais, com base, em síntese, no entendimento de que, na ponderação dos
direitos e valores constitucionais que estão em confronto, “não parece que deva
considerar-se como constitucionalmente inadmissível que o legislador crie as
condições para que sejam salvaguardadas a paz e a intimidade da vida familiar,
sem interferência de terceiros dadores que, à partida, apenas pretenderam
auxiliar a constituição da família”.
Estamos com o acórdão quando afirma que, abonando-se em doutrina que cita,
poderá dizer-se que o direito à identidade pessoal “possui, até certo ponto, um
conteúdo heterogéneo”, abrangendo “diferentes tipos de faculdades, e o seu
domínio de protecção não é absolutamente uniforme, admitindo-se nele diferentes
intensidades em função do tipo de situação que esteja em causa”.
Só que a heterogeneidade de conteúdo normativo e a possibilidade de
diferenciação da intensidade da tutela constitucional não são ponderações que
funcionem, apenas, em relação ao direito à identidade pessoal e ao direito ao
desenvolvimento da personalidade da pessoa nascida através de PMA, heteróloga,
mas também relativamente aos demais direitos e valores fundamentais convocáveis
para definir a situação jurídico-constitucional dos outros intervenientes da
PMA, como sejam o direito à intimidade da vida privada e o direito de constituir
e viver em família, em paz.
Sendo assim, a questão que se põe é, desde logo, a de saber quais são os
concretos conteúdos normativos dos direitos fundamentais que se apresentam como
estando em rota de colisão e qual a intensidade com que cada um deles se
apresenta (cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, p. 316), devendo-se ter, porém, em
conta que, independentemente de o radical axiológico de tais direitos
fundamentais ser o princípio da dignidade humana, a regulamentação da procriação
medicamente assistida tem de ser efectuada “em termos que salvaguardem
directamente a dignidade da pessoa humana”, por tal ser exigido, expressamente,
ao legislador, pelo art.º 67.º, n.º 4, da Constituição.
Protegendo a situação da pessoa nascida mediante PMA surgem os direitos
fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade,
consagrados no n.º 1, e ainda, numa sua certa significação, a garantia de
identidade genética, esta prevista no n.º 3, ambos os números do art.º 26.º da
Constituição.
O direito à identidade pessoal é o direito a “tudo aquilo que caracteriza cada
pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras
pessoas por uma determinada vivência pessoal” (cf. Jorge de Miranda-Rui de
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 284).
Nesta medida, a identidade pessoal não pode deixar de envolver o conhecimento
da história natural dos seus vínculos biológicos, a história das relações
vivenciadas com as outras pessoas, as relações consigo próprio e com a natureza.
Porém, no conjunto de faculdades deste direito não pode deixar de relevar-se
como correspondendo a um conteúdo imediatamente carecente de tutela a história
dos seus vínculos biológicos.
Decerto que a protecção da identidade não se esgota nela, mas, enquanto
elemento de primeira base racional na formação da identidade pessoal, ela
integra, sem dúvida, um conteúdo principal do direito, tanto mais importante
quanto a pessoa for adquirindo capacidade racional de se interrogar quanto às
suas origens.
Daí que o direito ao conhecimento da maternidade ou paternidade biológicas,
para além da legalmente estabelecida, se inclua naquele direito à identidade
pessoal.
O direito ao desenvolvimento da personalidade, para além de demandar uma
tutela abrangente da personalidade, com um vasto leque de faculdades
constituintes de variados direitos fundamentais, inclui, prevalentemente, na
nossa Constituição, um direito à formação da própria personalidade.
Ora, se existe aspecto estrutural da formação da personalidade é o
conhecimento da sua origem natural humana. O direito à verdade constitui algo
que está inscrito na dimensão própria da natureza humana.
Está, pois, em causa, relativamente ao nascido de PMA, um conteúdo principal
ou estrutural do direito ao desenvolvimento da personalidade.
Dir-se-á que esse direito também tutela a posição dos beneficiários da doação
de espermatozóides, ovócitos ou embriões e do próprio doador.
Quanto aos primeiros, porque permitirá realizar os seus projectos de ter
filhos e de assim ter uma família nuclearmente formada.
Quanto ao segundo, porque permitirá satisfazer o seu espírito de solidariedade
e da sua continuação genética.
Ora, se não existem dúvidas que a Constituição reconhece o direito de ter
filhos a quem os pode gerar (art.º 68.º), não vemos que ela reconheça qualquer
direito fundamental a quem só os possa obter através da doação de terceiros,
dado que não se trata de uma prestação que o Estado possa reclamar de terceiros
ou satisfazer directamente.
Por outro lado, se é certo que a realização dos projectos a ter filhos cabe
nas faculdades inseridas no direito ao desenvolvimento da personalidade, não
pode desconhecer-se que esse direito se realiza mediante a geração de uma pessoa
e que é intolerável que a protecção dos direitos da pessoa nascida esteja
avassalada aos direitos de quem decidiu que ela havia de nascer, privando-a de
um conhecimento essencial de verdade do seu ser.
Depois, não vemos como é que a regra do anonimato do dador se impõe como um
bem necessário à salvaguarda da paz familiar. Dependendo o recurso à procriação
heteróloga do consentimento esclarecido dos beneficiários dela, incluindo do
cônjuge ou de quem viva em condições análogas, detêm eles toda a informação
relativa à doação. Consequentemente, será irrelevante, para a paz entre eles, o
conhecimento da identidade do dador.
Também aqui o conteúdo do direito ao desenvolvimento da personalidade dos
beneficiários da doação tem um conteúdo menos extenso e, principalmente, menos
intensamente demandante de tutela.
No que respeita ao doador, a dimensão do direito ao desenvolvimento da
personalidade que se manifesta, na situação, é o direito à intimidade da esfera
pessoal.
Estando, porém, aqui em causa uma faculdade promocional da procriação
heteróloga, medicamente assistida, e mesmo admitindo que essa promoção possa ser
vista como realizando um interesse público, não pode essa dimensão promocional
do direito fazer ceder outros direitos em que o que está em causa é o conteúdo
principal.
De resto, o filantropismo apenas merece protecção na medida em que corresponda
ainda à realização de um interesse público. E quanto à pretensão de continuidade
genética, não se vê que ela tenha de merecer tutela constitucional.
Assim, não constituindo o objecto de protecção um comportamento cujos efeitos
se esgotem dentro da esfera da pessoa do doador, antes se traduzindo e
manifestando na geração de outra pessoa, com direitos autónomos, conclui-se que
esse direito não deve poder restringir os direitos já referidos dessa outra
pessoa.
Ponderando globalmente todos estes factores, como é exigido pelo juízo
decidente de um conflito entre direitos fundamentais, tenho para mim que o
legislador só poderia construir um sistema que arrancasse da regra do não
anonimato do doador.
As contracções feitas pelo legislador ao conhecimento do doador, por banda da
pessoa nascida com recurso à procriação heteróloga, medicamente assistida,
ultrapassam o limite de uma harmonização entre os vários direitos que estão em
conflito, tendo uma natureza de restrição em relação ao direito à identidade
pessoal e ao desenvolvimento da personalidade da pessoa que mais merecedora é de
tutela constitucional – a pessoa nascida. E alcançam a natureza de uma restrição
funcional em favor dos outros direitos em conflito, porque a desvelação da
identidade do doador, apenas, é consentida quando o tribunal entenda haver
razões ponderosas para quebrar o anonimato.
Ora, a exigência do recurso ao tribunal para efectivar o conteúdo essencial ou
estrutural do direito fundamental da identidade pessoal e ao desenvolvimento da
personalidade da pessoa nascida de PMA, bem como de razões “ponderosas” para a
concessão de tutela constitucional, são manifestamente desproporcionadas quando
confrontadas com os conteúdos normativos dos direitos fundamentais dos outros
intervenientes da PMA que estão em causa.
Assim sendo, não poderia o legislador adoptar a regra de concordância prática
que seguiu.
Benjamim Rodrigues