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Processo n.º 886/08
3º Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária (já integrando o
despacho de fls. 102, que corrigiu um lapso):
“1. Os recorrentes interpõem recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro de
1982, do seguinte despacho, proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal
de Justiça:
“1. A. e esposa recorreram para este Supremo Tribunal do acórdão do Tribunal da
Relação de Guimarães que, em processo de promoção e protecção, revogou a
sentença recorrida dando sem efeito a medida de protecção decretada
relativamente à menor, determinando de imediato a sua entrega à mãe, ordenando,
por conseguinte, o arquivamento do processo de promoção e protecção.
Por despacho do Ex.mo Desembargador Relator, esse recurso não foi admitido, nos
termos do art. 1411.º, n.º 2, do CPC.
Desse despacho reclamam os recorrentes, sustentando, além do mais que o art.
100.º da Lei n.º 147/99 é inconstitucional ao classificar os processos de
promoção e protecção como de jurisdição voluntária, ante o estatuído nos arts.
20.º e 69.º da CRP.
Referem que o recurso de agravo deve ser admitido ao abrigo dos arts. 124.º da
Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, 754.º, n.º 1 e 758.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Foi mantido o despacho reclamado, sem no entanto deixar de referir-se que o
acórdão em causa não foi proferido em aplicação de lei estrita, nem se reporta a
qualquer controvérsia sobre a interpretação ou aplicação de qualquer norma
jurídica.
II. Cumpre apreciar e decidir.
O acórdão questionado respeita a processo judicial de promoção dos direitos e
protecção de crianças e jovens em perigo que, nos termos do art. 100.º da Lei
n.º 147/99, de 1 de Setembro, é de jurisdição voluntária.
E, nos termos do art. 1411, n.º 2, do CPC, não é admissível recurso para este
S.T.J. nos processos de jurisdição voluntária quando a decisão recorrida se
baseia em critérios de conveniência ou oportunidade, mas já assim não é se se
funda em critérios de estrita legalidade.
In casu, o acórdão da Relação, ao revogar a decisão da 1.ª instância
determinando que a menor seja entregue à mãe, atendeu, para justificar a sua
decisão, aos direitos e interesses da menor, face aos factos apresentados.
Donde, e por essa decisão se basear em critérios de conveniência ou
oportunidade, não ser passível de recurso.
No respeitante ao art. 124.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, refere-se que
esta norma se reporta ao processamento e efeitos do recurso da decisão da 1 a
instância para a Relação, ou seja, a sua aplicabilidade só releva no recurso a
interpor para a 2.ª instância.
Por último, não é de considerar inconstitucional a norma do art. 100.º da Lei
n.º 147/99, de 1 de Setembro, não só por não violar o art. 20.º da CRP na medida
em que não veda o acesso aos tribunais nem o art. 69.º da CRP, uma vez que a
protecção da criança não implica a necessidade de intervenção do Supremo
Tribunal de Justiça quando já anteriormente duas outras instâncias se
pronunciaram sobre a situação dela.”
2. Os recorrentes pretendem ver apreciada, segundo o requerimento de
interposição do recurso, a “ inconstitucionalidade material decorrente da
aplicação do art. 100 da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro, por violação dos arts
20 e 69 da Constituição Portuguesa, questões estas de inconstitucionalidade que
os requerentes arguíram na interposição da reclamação para este Venerando
Tribunal [Supremo Tribunal de Justiça].”
Esta referência à “inconstitucionalidade decorrente da aplicação” poderia, numa
leitura do requerimento de interposição mais chegada ao seu teor literal, ser
entendida como elegendo como objecto do pedido de apreciação de
constitucionalidade a decisão judicial e não a norma por esta aplicada. O que,
como é sabido, não cabe no recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade instituído pelo nosso sistema jurídico. Admite-se, porém,
que assim não deva ser, conjugando este requerimento com a peça processual onde
se diz que tal inconstitucionalidade foi arguida. Daí se retira um propósito,
embora não eficazmente desenvolvido, como vai ver-se seguidamente, de suscitar
uma questão de constitucionalidade normativa.
Todavia, outras razões justificam que imediatamente se ponha termo ao recurso,
ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
3. Com efeito, em primeiro lugar, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º tem como pressuposto que o recorrente tenha suscitado a questão de
constitucionalidade que quer ver apreciada pelo Tribunal Constitucional de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este obrigado a dela conhecer [artigo 70.º, n.º 1, alínea b) e artigo
72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, não é modo processualmente adequado de colocar o tribunal da causa perante
uma questão de constitucionalidade normativa a mera afirmação de que um preceito
legal “é inconstitucional pela aplicação dos normativos estatuídos nos artigos
20.º e 69.º da Constituição da República Portuguesa”. Não há neste modo de
alegar um mínimo de substanciação tendente a demonstrar que, pelo simples facto
de o artigo 100.º da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção de
Crianças e Jovens em Perigo) classificar os correspondentes processos judicias
de promoção e protecção como sendo de jurisdição voluntária, resultam violadas
normas ou princípios constitucionais, designadamente qualquer das concretizações
em que se desdobra o artigo 20.º (acesso ao direito e tutela judicial efectiva)
ou o artigo 69.º (protecção da infância) da Constituição.
4. Depois, a norma que imediatamente obstou ao recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça foi a do n.º 2 do artigo 1411.º do Código de Processo Civil, na
medida em que veda esse acesso quanto às decisões tomadas com base em critérios
de oportunidade ou mérito.
É bem certo que a norma do artigo 100.º da Lei n.º 149/79 foi aplicada na
decisão recorrida, por via da consideração de que o processo judicial de
promoção e protecção tem a natureza de processo de jurisdição voluntária. Mas
sem inclusão da norma do n.º 2 do artigo 1411º do Código de Processo Civil, a
que o despacho recorrido imediatamente foi buscar a ratio decidendi da não
admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não pode dizer-se que o
recurso de constitucionalidade tenha por objecto a norma efectivamente aplicada
pela decisão recorrida (alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC).
5. De todo o modo, ainda que assim não fosse, o recurso sempre deveria
considerar-se manifestamente infundado porque não pode considerar-se que uma
disposição que vede a possibilidade de interpor recurso das decisões da Relação
para o Supremo Tribunal de Justiça nos casos em que a decisão de que se pretenda
recorrer se funde exclusivamente em critérios de conveniência ou oportunidade
viole o princípio da tutela judicial efectiva ou o direito das crianças à
protecção da sociedade e do Estado.
Com efeito, como este Tribunal vem pacificamente entendendo, a Constituição não
garante um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso das decisões
judiciais. Disse-se, por exemplo, no Acórdão n.º 415/01 (publicado no Diário da
República, II série, de 30 de Novembro de 2001) reiterando jurisprudência do
Plenário no Acórdão n.º 202/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 6
de Fevereiro de 2001):
“[...]
Como, por exemplo, se entendeu expressamente no acórdão n.º 638/98 (Diário da
República, II Série, de 15 de Maio de 1999), e ainda recentemente se reafirmou
no acórdão n.º 202/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de
2001), aprovado em plenário, “7. O artigo 20º, n.º 1, da Constituição assegura a
todos ‘o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por
insuficiência de meios económicos’.
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei
aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência,
e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz
respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a
insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e
ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes
direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele
também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32º. Para além disso, algumas vozes
têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de
direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos,
liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito
penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital
Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão n.º 65/88, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão n.º 202/90, id., vol.
16, pág. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro
Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126),
que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o
Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do
Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que ‘o legislador
ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios
recursos’ (cfr., a este propósito, Acórdãos n.º 31/87, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 9, pág. 463, e n.º 340/90, id., vol. 17, pág. 349)
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados
Acórdãos n.º 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos n.º
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), n.º 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e n.º 450/89,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307). [...]
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as
decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia
da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre,
necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do
processo penal).
[...]'
No caso, o que se pretende é que a Constituição assegura, nesta matéria, o
direito a um duplo grau de recurso ou seja a um triplo grau de jurisdição.
É pretensão sem fundamento. Não existe imposição constitucional de reapreciação
de uma decisão tomada por um tribunal de recurso e, muito menos, direito de
acesso ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciar questões, apreciadas já em
duplo grau de jurisdição pelo tribunal da Relação e neste decididas com base em
critérios de conveniência e oportunidade e não de legalidade estrita.
Não impondo a Constituição que o legislador ordinário garanta sempre aos
interessados o acesso ao órgão superior da hierarquia da respectiva ordem
jurisdicional para defesa dos seus direitos, situa-se na margem de liberdade de
conformação daquele o estabelecimento de limitação dos graus de recurso. E foi o
que fez o legislador ao não admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
das decisões proferidas segundo critérios de oportunidade e mérito, em litígios
já apreciados por duas instâncias. O que é absolutamente harmónico com a
natureza do Supremo Tribunal de Justiça como órgão superior da hierarquia dos
tribunais judiciais, funcionando primacialmente com competência restrita às
questões de direito.
Considera-se, portanto, manifesto não terem sido violados os preceitos
constitucionais apontados pelos recorrentes. Assim, o recurso teria de ser
julgado manifestamente infundado, se não tivesse precedência a verificação da
falta de pressupostos processuais
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
os recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) UCs.”
2. Os recorrentes reclamam para a conferência, por entenderem que o artigo 100.º
da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, ao vedar a possibilidade de interpor
recurso das decisões da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, no processo
sub judice, ou seja, não garantindo um duplo grau de recurso das decisões
judiciais neste domínio, afecta “direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente garantidos, coarctando garantias de defesa”. Requerem, por
isso, que sobre a matéria da decisão sumária recaia acórdão.
O Ministério Público responde que a argumentação dos reclamantes em
nada abala os fundamentos da decisão reclamada, que se apoia na forme e
reiterada jurisprudência constitucional acerca do âmbito do “direito ao
recurso”.
3. Os recorrentes limitam-se a afirmar a sua discordância relativamente à
decisão proferida pelo relator, sem o mínimo esforço argumentativo dirigido a
rebater os seus fundamentos.
Reexaminado os elementos pertinentes, verifica-se que, em qualquer dos seus
aspectos, a “decisão sumária” é conforme à reiterada jurisprudência do Tribunal,
pelo que se confirma, sem necessidade de quaisquer acrescentamentos.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar os
recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 2/3/2009
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão