Imprimir acórdão
Processo n.º 276/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é
recorrente o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e
Cinema e recorrida A., foi interposto recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da constitucionalidade da norma
do artigo 203.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), quando interpretado
no sentido de impedir que o recorrente arguisse a falta de patrocínio
obrigatório na fase de alegações do recurso contencioso e que, em qualquer caso,
o tribunal a quo estava impedido de conhecer oficiosamente da questão mesmo face
a tal arguição, por violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional
efectiva (artigo 20.º da Constituição).
2. O presente recurso emerge de recurso contencioso, ao abrigo da então vigente
Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), que A. intentou contra o
Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e Cinema e o
Estado Português, na pessoa do Secretário de Estado do Ensino Superior, pedindo
a anulação de actos praticados por aquela Escola (relativos a procedimento de
equivalência de disciplina e realização de exames), bem como a condenação do
Estado no pagamento de uma indemnização.
Por sentença do 1.º Juízo Liquidatário do Tribunal Administrativo e Fiscal de
Lisboa, foi decidido rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de
indemnização e, quanto ao pedido de anulação, foi declarado juridicamente
inexistente o acto de homologação da entidade recorrida.
Notificado da sentença, o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de
Teatro e Cinema veio, em requerimento subscrito por advogado, arguir a nulidade
das alegações apresentadas, por terem sido subscritas pela própria autoridade
recorrida, em desrespeito do disposto no artigo 26.º, n.º 1, da LPTA.
À cautela, interpôs também recurso da sentença.
Por despacho do TAF de Lisboa foi indeferida a nulidade arguida.
Inconformado, o Presidente do Conselho Directivo da Escola Superior de Teatro e
Cinema, interpôs recurso deste despacho.
Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, ora recorrido, foi decidido
negar provimento ao recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade e
negar provimento ao recurso da sentença, confirmando-a.
É deste acórdão, na parte em que indeferiu a arguição de nulidade, que vem
interposto o presente recurso de constitucionalidade.
3. O acórdão recorrido tem o seguinte teor, na parte relevante:
«1. A situação que se nos apresenta pode ser assim desenhada: logo que
notificada da sentença que declarou inexistente o acto impugnado, a Autoridade
Recorrida apresentou-se em juízo a arguir a nulidade do processado a partir da
apresentação das suas alegações alegando que estas tinham sido subscritas por
ela própria e não, como deviam, por advogado ou licenciado em direito, arguição
que foi indeferida por ter sido entendido que - por força do disposto no art.°
203.°, n.° 2, do CPC - a nulidade não podia ser arguida pela parte que lhe deu
causa.
A Recorrente, porém, não aceita esta decisão não só porque considera que nada a
impedia de arguir a referida nulidade como também porque entende que,
independentemente da sua arguição, cumpria ao Tribunal conhecer dela
oficiosamente.
Mas, diga-se desde já, que não tem razão.
Em primeiro lugar porque é indiscutivelmente verdade que «não pode arguir a
nulidade a parte que deu causa» (n.° 2 do art.° 203.° do CPC) do que resultava a
impossibilidade de arguição, por parte da Autoridade Recorrida, da nulidade das
suas alegações por ter sido ela quem lhe deu causa. Com efeito, como ensina o
Prof. J.A. dos Reis não seria “decoroso admitir que invoque a nulidade a parte a
quem a infracção é imputável, a parte que contribuiu para que a lei deixasse de
ser observada e cumprida, O contrário equivaleria a consentir que a parte
tirasse proveito da sua própria malícia ou, em linguagem popular, fizesse o mal
e a caramunha.” — Comentário ao CPC, vol.2.°, pg. 495.
Depois, porque, ainda que de conhecimento oficioso (atenta a sua possibilidade
de influir no exame e decisão da causa), essa nulidade não podia ser sanada por
iniciativa do Tribunal já que, proferida a sentença, a sua sanação se traduziria
na violação de uma disposição destinada a promover um correcto e justo
relacionamento entre as partes e destas com o Tribunal. Com efeito, se, por
ignorância ou má fé, a parte subscrevesse as suas peças processuais e, tendo
perdido a causa, viesse suscitar essa irregularidade com vista a alcançar um
novo julgamento e o Tribunal acedesse a esse pedido promovendo a regularização
processual com a anulação dos termos do processo posteriores à sua prática isso
significaria dar cobertura ao uso abusivo da lei processual.
É certo que se o Tribunal se tivesse apercebido dessa irregularidade logo que a
mesma foi cometida poderia, e deveria, ter promovido o seu remédio mas o certo é
que se não apercebeu e proferiu sentença. Se assim foi não é aceitável que a
Recorrente, tendo visto ser declarado inexistente o seu acto, venha agora, por
caminhos ínvios, tentar uma nova oportunidade de obter ganho de causa.
E esta leitura do mencionado art.° 203.º, n.° 2, do CPC não atenta contra o
acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva consagrada no art.° 20.° da
CRP, uma vez que a mesma em nada contribuiu para impedir ou dificultar o
exercício dos direitos de defesa da Recorrente.
Termos em que se nega provimento a este recurso.»
4. O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. O direito de acesso ao direito encontra-se consagrado no art. 20.° da
Constituição da República Portuguesa.
2. Ali se consagra, nomeadamente, o direito à informação e consulta jurídica e o
direito à assistência por advogado (n.° 2 do referido artigo).
3. O direito a ser acompanhado em juízo por um advogado constitui um corolário
da tutela jurisdicional efectiva, não se cingindo a uma mera formalidade. De
facto, as partes dificilmente conseguem ali efectuar uma defesa cabal e
objectiva dos respectivos direitos sem apoio especializado.
4. Neste sentido abona a importância relevada pelo Código de Processo Civil à
intervenção do advogado no processo (veja-se a questão da suspensão da
instância), a obrigatoriedade da notificação da parte para constituir advogado —
quando obrigatório — e a natureza das sanções aplicadas para a falta de
cumprimento desta notificação.
5. A Constituição remete para a lei as situações em que o patrocínio judicial é
obrigatório, pelo que não poderemos deixar de surpreender nessas situações, uma
verdadeira emanação ao direito fundamental ao patrocínio forense.
6. No caso sub judice o patrocínio era obrigatório (art. 26.°, n.° 1, da
L.P.T.A.) mas o recorrente assinou ele próprio as alegações, sem que
oficiosamente tivesse sido ordenada a sua notificação para constituir advogado
como o impunha o art. 33.° do CPC..
7. A omissão desse despacho constitui nulidade.
8. O douto acórdão recorrido entendeu que o n.° 2 do art. 203.° do Código de
Processo Civil não permite a invocação pelo recorrente de tal questão, por —
alegadamente — lhe ter dado azo.
9. Esta interpretação do art. 203.°, n.° 2, é inconstitucional, por violação do
acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nos termos do art. 20.º da
Constituição.»
5. A recorrida contra-alegou, concluindo da forma seguinte:
«a) O recurso contencioso de anulação não foi concebido com um verdadeiro
processo de “partes”, pois, enquanto que para o recorrente o patrocínio
judiciário por advogado é obrigatório (cfr. artigo 5.° do LPTA), já a autoridade
recorrida poderá praticar os actos referenciados no n.° 1 do artigo 26.° da LPTA
não só através de advogado, como através de licenciado em Direito com funções de
apoio jurídico designado para aquele efeito, sendo certo que o n.° 2 do referido
artigo impõe, até, que a resposta ao recurso só possa ser assinada pelo próprio
autor do acto recorrido ou por quem haja sucedido na respectiva competência;
b) É por virtude da especificidade das disposições contidas nos artigos 5.°,
26.° e 104.°, n.° 2, da LPTA - preceitos que têm subjacente que o recurso
contencioso de anulação não é um verdadeiro processo de “partes”, como é o
processo civil — que a norma constante do artigo 33.° do CPC não é aplicável ao
recurso contencioso de anulação;
c) Ainda que a irregularidade em causa pudesse ser qualificada como nulidade,
sempre estaria vedada ao recorrente a sua arguição, face à norma constante do
n.º 2 do artigo 203.° do CPC;
d) A norma do n.° 2 do artigo 203.° do CPC e a interpretação que lhe foi dada
pelo STA no acórdão recorrido não cria qualquer impedimento substancial à
intervenção de advogado em processo administrativo, em nada contribuindo para
impedir ou dificultar o exercício dos direitos de defesa do recorrente, pelo que
não viola o disposto no artigo 20.º da CRP.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
6. O artigo 203.º, n.º 2, do CPC reza assim:
«2 − Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou
tacitamente, renunciou à arguição.»
No presente recurso, questiona-se esta norma quando interpretada no sentido de
impedir que o recorrente arguísse a falta de patrocínio obrigatório, a que tenha
dado causa, na fase de alegações do recurso contencioso e que, em qualquer
caso, o tribunal a quo ficasse impedido de conhecer oficiosamente da questão
mesmo face a tal arguição.
Com vista a melhor delimitar o objecto do recurso, cumpre fazer duas
advertências.
A primeira é a de que a interpretação questionada, na exacta fórmula utilizada
pelo recorrente, é susceptível de abranger outras situações, diversas daquela
efectivamente em causa nos autos, pelo que se impõe a sua demarcação rigorosa,
atento o âmbito específico do recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade.
Assim, considerando a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente e
a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, deve entender-se que o presente
recurso tem por objecto a norma do artigo 203.º, n.º 2, do CPC, quando
interpretada no sentido de impedir que a entidade administrativa recorrida argua
a falta de patrocínio obrigatório na fase de alegações do recurso contencioso
(tramitado nos termos da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) e que,
uma vez proferida a sentença, o tribunal está impedido de conhecer oficiosamente
da questão mesmo face a tal arguição.
A segunda advertência é a de que não cabe nas competências do Tribunal
Constitucional sindicar a correcção ou justeza de entendimentos interpretativos,
feitos nas decisões recorridas, no plano do direito infraconstitucional.
No recurso de constitucionalidade apenas cabe apreciar se a interpretação
normativa adoptada − que aqui se apresenta como um dado adquirido − é ou não
desconforme com a Constituição. Neste caso, concretamente, o que importa é
confrontar a base normativa da decisão recorrida com as garantias
constitucionais de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efectiva,
consagradas no artigo 20.º da CRP.
7. Comecemos por atentar nos contornos do regime processual de onde emerge a
questionada interpretação do artigo 203.º, n.º 2, do CPC.
No âmbito do recurso contencioso, regulado pela Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos (adiante designada LPTA, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85,
de 16 de Julho, com as alterações posteriores, e revogada com a entrada em vigor
do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei
n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, com as alterações posteriores), prescreve-se,
como regra, que os actos processuais da autoridade administrativa recorrida
sejam subscritos por advogado constituído ou por licenciado em Direito com
funções de apoio jurídico, designado para o efeito (artigo 26.º, n.º 1, da
LPTA).
No n.º 2 do artigo 26.º da LPTA prevê-se, no entanto, um regime especial para a
resposta da autoridade recorrida (que era aplicável aos recursos processados nos
termos da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo e do Regulamento do
Supremo Tribunal Administrativo, mas já não aos recursos tramitados nos termos
do Código Administrativo e da legislação complementar deste), exigindo-se que
aquela resposta seja assinada pelo próprio autor do acto recorrido ou por quem
haja sucedido na respectiva competência.
No caso vertente, o autor do acto recorrido, Presidente do Conselho Directivo da
Escola Superior de Teatro e Cinema assinou, por si, não apenas a resposta ao
recurso, mas também as alegações apresentadas posteriormente, infringindo a
regra de patrocínio judiciário obrigatório constante do citado artigo 26.º, n.º
1, da LPTA.
Tal situação não foi detectada pelo tribunal de primeira instância, nem
suscitada pela própria entidade recorrida, antes de proferida a sentença.
A interpretação normativa sub judicio obstou à arguição e ao conhecimento
oficioso, pelo tribunal, após a prolação da sentença, da omissão de patrocínio
judiciário da entidade administrativa recorrida na fase das alegações do recurso
contencioso.
8. O recorrente alega que a interpretação questionada viola o direito de acesso
aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva, na sua dimensão de “direito à
assistência de advogado” (artigo 20.º, n.º 2, da CRP), defendendo, em síntese,
que tal interpretação limita ilegitimamente o direito do recorrente ao
patrocínio judiciário, impedindo o exercício de um direito fundamental − o
direito a assistência judiciária, nos casos em que a lei a considera
obrigatória.
Nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, todos têm direito, nos
termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a
fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
Estes são componentes, entre outros, de um direito geral à protecção jurídica, e
inserem-se na própria noção de Estado de Direito (cfr. GOMES CANOTILHO/ VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra,
2007, 409).
Como se referiu no Acórdão n.º 380/96, citado no Acórdão n.º 245/97 (disponíveis
em www.tribunalconstitucional.pt) «o direito ao patrocínio judiciário é (…) uma
dimensão da garantia de protecção jurídica. Quando tenham que recorrer a juízo
para defender os seus direitos ou interesses juridicamente protegidos, têm pois,
as partes o direito de se fazer assistir por profissionais do foro por si
escolhidos e mandatados, que aí pratiquem, com a necessária competência e
serenidade, os actos processuais devidos; que os pratiquem de molde a que haja
uma boa administração da justiça».
Saliente-se, porém, que desse direito não decorre um dever de as partes
constituírem mandatário forense em todo e qualquer processo judicial (cfr. o
citado Acórdão n.º 245/97 e o Acórdão n.º 262/2002).
A Constituição deixa ao legislador uma ampla faculdade de conformação do
universo de processos em que é obrigatória a constituição de mandatário (cfr.
artigo 32.º, n.º 3, segunda parte, da CRP; e, em sua concretização, o artigo
32.º do CPC, os artigos 5.º e 26.º da antiga LPTA e o actual artigo 11.º do
CPTA).
9. No caso em apreço está em causa o patrocínio judiciário de uma pessoa
colectiva pública, entendendo-se aquele como a representação processual dessa
pessoa, ou seja o modo como (o através de quem) são praticados os actos
postulativos.
A representação processual do Estado e demais pessoas colectivas públicas em
contencioso administrativo tinha − e tem, ainda hoje − especificidades que
importa salientar.
Em primeiro lugar, a lei (quer a LPTA quer o actual CPTA) atribui às pessoas
colectivas públicas a possibilidade de, em alternativa à constituição de
advogado, designarem licenciado em direito com funções de apoio jurídico,
expressamente designado para o efeito − artigo 26.º, n.º 1 da LPTA, que
corresponde ao actual artigo 11.º, n.º 2, do CPTA. (Esta regra só é afastada nos
casos, que não interessam à presente questão, em que a representação processual
do Estado é assegurada obrigatoriamente pelo Ministério Público).
Em segundo lugar, no recurso contencioso tramitado nos termos da Lei de Processo
nos Tribunais Administrativos, o mandatário forense não pode praticar um dos
actos processuais principais: o articulado de resposta (à petição de recurso
contencioso) tem de ser subscrito, pessoalmente, pela entidade pública recorrida
(artigo 26.º, n.º 2, da LPTA).
A norma do artigo 26.º, n.º 2, da LPTA, foi já apreciada pelo Tribunal
Constitucional, que se pronunciou no sentido da sua não inconstitucionalidade.
Nos Acórdãos n.ºs 199/94 e 117/95 considerou-se, designadamente, que esta regra
não cria um impedimento substancial nem coarcta arbitrariamente a intervenção de
advogado em processo administrativo, pelo que não viola o direito de acesso aos
tribunais.
De todo o modo, a especialidade do artigo 26.º, n.º 2, da LPTA − que «pretendia
imprimir um carácter pessoal à resposta da autoridade recorrida, não sendo
alheia a intenção legislativa de assegurar que a mesma entidade reponderasse a
legalidade e mérito da decisão em causa, operando, se fosse caso disso, a
revogação total ou parcial do acto, nos termos do artigo 47.º da mesma Lei»
(Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código
de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., Coimbra, 2007, 105), e que
foi eliminada no actual contencioso administrativo − não elimina, como regra, no
recurso contencioso tramitado nos termos da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, a obrigatoriedade de a entidade pública recorrida se encontrar
representada processualmente.
Na verdade, ressalvadas aquelas duas especialidades, não se vislumbra diferença
substancial, no plano do direito ordinário, entre o regime de patrocínio
judiciário dos entes públicos, resultante do artigo 26.º (n.º 1) e o previsto
para os recorrentes particulares no artigo 5.º da mesma LPTA.
10. No plano constitucional, pode questionar-se se o direito ao patrocínio
judiciário, como componente e dimensão do direito de acesso à justiça e aos
tribunais, não deverá considerar-se um direito exclusivo dos sujeitos privados,
que o próprio Estado (e por extensão, as demais pessoas colectivas públicas) não
pode invocar.
As dúvidas a tal respeito não são suscitadas pela morfologia dos entes públicos,
enquanto sujeitos que assumem a natureza de pessoas colectivas.
Na verdade, como salientam RUI MEDEIROS (in JORGE MIRANDA/ RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, T. I, Coimbra, 2005, 185) o direito à protecção
jurídica é compatível com a natureza das pessoas colectivas e, nessa medida,
também lhes é aplicável (por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, da
Constituição).
É antes a sua natureza pública que levanta interrogações quanto à sua inclusão
na esfera de protecção do artigo 20.º, n.º 2 (sobre esta problemática vd. VIEIRA
DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed.,
Coimbra, 130 e s.).
A respeito do genérico direito de acesso aos tribunais, o Tribunal
Constitucional considerou, com votos de vencido, que «o exercício da acção penal
pelo Estado (através do Ministério Público) não é protegido pelo direito
fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da Constituição» −
Acórdãos n.ºs 530/2001 e 120/2002.
Desta decisão não pode, contudo, inferir-se que, em qualquer caso, as pessoas
colectivas públicas estão excluídas do âmbito de protecção do direito de acesso
aos tribunais e, especificamente, do direito ao patrocínio judiciário.
Como salienta GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
7ª ed., 422-423) «[a] negação da capacidade de direitos fundamentais às pessoas
colectivas de direito público não pode acolher-se em todas as suas dimensões.»
No caso, está em causa admitir a titularidade, por parte de um órgão de um
instituto público (estabelecimento de ensino superior público) de um direito ao
patrocínio judiciário.
O argumento, esgrimido pelo recorrente, de que esse direito adquire natureza de
direito fundamental no âmbito de um regime processual, como o que está aqui em
causa, em que o legislador ordinário impõe o patrocínio judiciário obrigatório,
não se afigura definitivo. Na verdade, a obrigatoriedade de patrocínio
judiciário, no âmbito de um processo judicial que, reconhecidamente, se
caracteriza pela especialidade e complexidade técnica, visa também a protecção
de valores fundamentais objectivos, relacionados com a boa administração da
justiça. para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, a que se
reporta o n.º 1 do mesmo preceito
O direito ao patrocínio judiciário é, nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da
Constituição, um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos
tribunais. Esta fórmula (introduzida na revisão constitucional de 1997, em
consonância com a expressão já utilizada no artigo 268.º, n.ºs 3 e 4, da
Constituição) é susceptível de abranger, não apenas os direitos subjectivos
privados e individuais, mas também, outros interesses juridicamente protegidos,
designadamente, os interesses prosseguidos pelos entes públicos (em sentido
próximo, v. GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, ob. cit., 410).
No caso em apreço, deve, por isso, admitir-se a titularidade, pela autoridade
pública recorrida, enquanto Presidente de um instituto público, de um direito
processual fundamental ao patrocínio judiciário, em sentido amplo (precisamente
pela especialidade acima referida, não se trata aqui do patrocínio forense
enquanto direito ao advogado, expressamente aflorado na Constituição, nos
artigos 20.º, n.º 2, e no artigo 208.º), ou seja, do direito a estar
representado em juízo através de um intermediário, técnica e profissionalmente,
qualificado.
11. Cumpre agora apreciar se a interpretação do artigo 203.º, n.º 2, do CPC, na
medida em que impediu a arguição e o conhecimento oficioso, após a prolação da
sentença, da nulidade resultante da falta de patrocínio judiciário obrigatório
(na fase das alegações do recurso contencioso), contende com o direito ao
patrocínio judiciário da entidade pública recorrida, na dimensão constitucional
acima explicitada.
A propósito de uma questão respeitante ao regime de apoio judiciário, o Tribunal
Constitucional salientou, no Acórdão n.º 316/95, que «muito embora o exercício e
as formas do “direito ao patrocínio judiciário” seja, pelo n.º 2 do artigo 20.º
da Constituição, relegado para a lei, o certo é que (…) a lei ordinária não
poderá estabelecer condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem
por demais difícil o exercício daquele direito» (sublinhado nosso).
E no Acórdão n.º 870/96 julgou-se inconstitucional, com força obrigatória geral,
a norma do artigo 41.º da Organização Tutelar de Menores, que não admitia a
intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso, por se ter
considerado que, mesmo que essa intervenção não se mostrasse absolutamente
necessária, atentas as especificidades próprias do processo tutelar, aquela
restrição ao patrocínio atingia o núcleo essencial do direito de acesso aos
tribunais consagrado no artigo 20º, na vertente de direito a nomeação no
processo de “intermediário técnico”.
O mesmo não se pode dizer da interpretação normativa em apreço que, aliás,
emerge de um regime processual, no qual o legislador fixou, como regra, o
patrocínio obrigatório.
Saliente-se que não está em causa uma interpretação normativa que proíba ou
impeça. à partida, que a entidade administrativa se faça representar em juízo
através de advogado ou licenciado em direito; mas sim uma interpretação que
impossibilita a emenda, a posteriori, do vício de falta de representação. Ou,
mais rigorosamente, que impõe limites à possibilidade de corrigir essa falta.
O primeiro limite que emerge da interpretação questionada é o de que não pode
ser a própria entidade pública que, objectivamente, deu causa à falta de
representação, a invocar a nulidade daí resultante.
O segundo limite é essencialmente temporal, no sentido de que, sendo de
conhecimento oficioso, a nulidade decorrente da falta de patrocínio obrigatório
não pode ser conhecida pelo tribunal (que antes a não detectou), depois de
proferida a sentença.
É certo que da interpretação questionada, que imediatamente apenas incide sobre
o regime de arguição e conhecimento da nulidade, decorre a consequência mediata
de impedir (fazer precludir) o exercício retroactivo do direito ao patrocínio
judiciário.
Mas a limitação a posteriori do exercício de um direito que, a seu tempo não foi
exercido por conduta imputável exclusivamente (a titulo objectivo) ao seu
titular, não constitui uma restrição intolerável desse mesmo direito, não afecta
o seu núcleo essencial, nem constitui uma limitação que dificulte o exercício
(no momento processual próprio) daquele direito.
Durante o processo de que emerge o presente recurso − incluindo na fase das
alegações, aqui em causa − a autoridade recorrida não esteve impedida de se
fazer representar por mandatário forense. Simplesmente não o fez, por razões que
não se conhecem e não estão apuradas nos autos, pelo que daí não se pode
concluir, sem outros elementos que demonstrem o contrário, que a entidade
pública prescindiu intencionalmente do patrocínio exigido na fase das alegações.
No entanto, independentemente das razões que levaram à falta de representação
processual na fase das alegações, não pode concluir-se pela violação, no plano
constitucional, do direito ao patrocínio judiciário, quando a parte não exerceu
o direito − que, objectivamente, estava na sua disponibilidade e cujo exercício
se lhe impunha, por ser obrigatório − e posteriormente não lhe é permitido, após
a prolação da sentença, corrigir retroactivamente essa falta.
Por tudo isto, conclui-se que a interpretação normativa sub judicio, na medida
em que impede a arguição pela parte que lhe deu causa e conhecimento ex officio,
após a prolação da sentença, de uma nulidade consubstanciada na falta de
patrocínio obrigatório da autoridade pública recorrida, num recurso tramitado ao
abrigo da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, não afronta o disposto
no artigo 20.º da Constituição.
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo
203.º, n.º 2, do CPC, quando interpretada no sentido de impedir que a entidade
administrativa recorrida argua a falta de patrocínio obrigatório a que tenha
dado causa, na fase de alegações do recurso contencioso (tramitado nos termos da
anterior Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) e que, uma vez proferida
a sentença, o tribunal fique impedido de conhecer oficiosamente da questão,
mesmo face a tal arguição;
b) E, em consequência, julgar o recurso improcedente.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos